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domingo, 28 de junho de 2015

Rota de Fuga (Parte 3 - Epílogo)


- Vocês não podem estar aqui. Essa área é classificada como de segurança nacional. É proibida a permanência de civis, além de ser muito perigoso…
Os rapazes não sabiam o que dizer. O soldado recitava, com uma certa dificuldade, o discurso que, provavelmente, aprendera durante seu treinamento. Estava caído no chão, com algumas queimaduras estranhas na pele das mãos e do rosto. Pela boca, escorria um fio de sangue, mas ele havia sido, certamente, preparado para proteger o lugar, com a sua vida, se fosse necessário. Ele não sacou a arma, nem fez menção de tentar. Parecia saber que estava morrendo rapidamente. Tentou levantar-se, mas o esforço só piorou sua condição. Ele tossiu e soltou uma golfada de sangue, antes de perder a consciência. Os rapazes evitaram aproximar-se, mais por medo, do que incapacidade ou respeito às regras. Um som intermitente saía de algum lugar na sala, mas eles não conseguiam distinguir de onde vinha.
- Que lugar é esse? E de onde vem este som? Parece algo que eu já ouvi antes, mas não consigo lembrar-me de onde…
- Não sei. Parece um depósito, pela quantidade de caixas empilhadas. Aquilo ali…
O rapaz hesitou em concluir a frase, mas prosseguiu, ao ver que o ponteiro do aparelho, que emitia aquele som quase contínuo, oscilava de um lado ao outro, sem parar. Estava encostado ao corpo do soldado desacordado.
- …é um contador Geiger? Parece com um daqueles que vimos nas aulas de Ciências.
Ao ser afastado de onde estava, o contador diminuiu a ação. O rapaz aproximou-o mais uma vez do corpo do soldado e o som voltou a ser aquele ra-ta-tá-tá intermitente.
- Ele foi submetido à radiação. Este lugar pode estar totalmente contaminado. Temos que sair daqui.
- Olha aquilo. O que deve haver lá dentro?
Havia uma porta metálica, que levava a um outro compartimento, na parte traseira daquela sala, onde haviam muitas prateleiras com comida não perecível, água e outros víveres, provavelmente estocados para o caso de alguma emergência ou acidente... e aquela era uma emergência, com certeza.
- Vamos ver se a comida e a água estão aproveitáveis. Se não estiverem, não podemos usá-las. Qualquer sinal de radiação deve nos fazer mal. Acho que será melhor manter sempre o aparelho connosco, daqui para diante. Pode ser-nos muito útil.
Constataram que, dentro daquela sala, porém, tanto a água quanto a comida desidratada estavam boas, sem qualquer sinal de radiação. Também havia algumas barras de chocolate, que podiam cair bem numa hora de enganar o estômago, se fosse conveniente. Os rapazes pegaram alguns pacotes e encheram a mochila. Também pegaram um pouco de antisséptico e gaze. Numa outra caixa, mais afastada, havia algumas bolsas com alças ao tiracolo. Eles tomaram uma delas, encheram com comida e água e apressaram-se a deixar o lugar, antes que a radiação lhes causasse algum mal.
Ao passarem pelo soldado, perceberam que ele já não respirava. Havia uma grande mancha de sangue a espalhar-se no peito da farda. Já não havia nada que eles pudessem fazer, mesmo que quisessem.
- Vamos embora daqui. Este lugar causa-me uma má impressão. E é perigoso demais…
- Tive uma ideia. Ainda tens a bússola?
- Acho que tenho. Aqui.
- Segundo as aulas de Geografia, a cidade fica ao noroeste.
- Como é que lembras disso?
- Como é que não lembras? É para isso que levamos as bússolas, quando acampamos no mato… Pela orientação da agulha, se o norte é naquela direção, este túnel segue para o noroeste… Deve levar-nos à cidade. Era esta, com certeza, a ‘rota de fuga’ deste lugar e o depósito, uma das últimas possibilidades de abastecimento, em caso de acidente. Eles pensaram em quase tudo.
- Claro. São engenheiros e cientistas. Será que sobrou alguém?
- Claro que sim... Não faça perguntas idiotas. Vamos embora daqui, antes que mais alguém nos pare.
Caminharam pelo extenso corredor por algum tempo, sem ver ou ouvir qualquer coisa, além do som dos próprios passos a ecoar no piso de concreto. Às vezes parecia que a estrutura rangia, quando eles passavam e eles, então, apressavam o passo, receosos que a mesma quebrasse.
Mais à frente, à esquerda, viram um outro corredor lateral, depois de terem caminhado algumas dezenas de metros. Um sinal indicava, com uma seta: Laboratório de Pesquisas e Desenvolvimento. Enveredaram por ali, mas antes que chegassem a algum lugar, viram que a estrutura havia entrado em colapso e, boa parte dela, havia começado a desabar. Uma espessa porta metálica bloqueava-lhes o caminho. Era controlada e aberta por um sistema eletrónico de segurança, com um código a digitar, mas como não havia eletricidade, não havia forma de mover um centímetro sequer da pesada porta. Eles tentaram forçar a entrada, mas foi em vão.
Na parte que havia quebrado, conseguiram ver o tamanho da cratera deixada e o estado que ficara o edifício subterrâneo da base. A destruição era total. A cratera engolira todo o edifício principal, que havia na parte central.
A estrutura estremeceu e um som, já conhecido deles, fê-los olharem-se, em pânico. O piso começava a quebrar por baixo dos pés deles. Os dois nem pensaram muito. Correram dali o mais rápido que conseguiram. Já de volta ao corredor, pisando terreno mais firme e pensando estarem fora de perigo, pararam para avaliar a situação.
- Temos que parar de entrar nestas frias, a cada esquina, apenas por curiosidade. É melhor mantermo-nos no túnel e evitarmos mais perigos. Quero sair daqui o quanto antes.
- Vamos embora, então. Se a única saída for à cidade e, para o nosso bem, é melhor que seja, temos muito chão a percorrer... Isso, se não encontrarmos mais obstáculos pelo caminho. Pelas minhas contas, se caminharmos cerca de cinco quilômetros por hora, devemos estar lá em pouco mais de dez horas.
- Dez horas? Não sei se vou aguentar…
- Desculpa. Havia-me esquecido das horas, com esta agitação toda. É melhor comermos alguma coisa e descansar um pouco, antes de continuarmos. Como está o ferimento?
Ao invés de responder, o rapaz parou, com uma expressão estranha no rosto e, apesar de estar sem os óculos, tinha os olhos parecendo fixos num ponto atrás do amigo.
O outro voltou-se, para ver o que se passava e ficou tão estarrecido quanto o rapaz que havia sido ferido. Não esperavam por aquela. Não depois de tudo que já haviam passado.
***
- Será que aquele depósito tem ferramentas?
- É bom que tenha, ou nunca sairemos daqui. Lá se vão as dez horas de caminhada…
- Não contava com essa. Pensei que teríamos o túnel livre até o povoado. É muito azar. Aquela é nossa única alternativa. Não há outra saída.
As explosões haviam enfraquecido as vigas de sustentação do túnel. Algumas partes haviam caído e outras apresentavam risco iminente. Os dois rapazes não tinham ideia do perigo que ainda corriam, até que uma boa parte do teto rompeu-se à frente deles e bloqueou o túnel completamente. A saída, que antes parecia fácil, estava fora de alcance dos dois, naquele momento. 
Havia uma alternativa… Uma única alternativa: escavar, até conseguir sair daquela situação.
***
- Preciso descansar. Já faz tanto tempo que cavamos. Ainda não conseguimos nada. Será que vamos conseguir sair daqui?
- Cala-te... Claro que vamos. Por isso não podemos desistir. Este túnel tem que ser a nossa saída… 
- Se tivéssemos uma forma de cavar mais rápido…
- Acho que há…
Pela expressão na face do rapaz, o plano era, ou brilhante, ou louco. De todas as formas, parecia ser imprudente e arriscado demais.
- Tens certeza que isso vai dar certo? Podemos quebrar isso tudo e ficar soterrados de uma vez. Sem contar com o perigo de ficarmos sem ar…
- Não tens outra ideia melhor, tens? Vamos a isso!
O rapaz atirou uma granada de mão contra o monte de terra que haviam estado a escavar e correu na direção oposta. Havia visto duas delas na cintura do soldado morto, dentro do armazém. Se conseguissem abrir uma passagem no meio do túnel, ainda conseguiriam transpor e correr para longe dali, antes que as estruturas desabassem todas, por estarem enfraquecidas demais. A granada poderia ter o efeito oposto ao que eles desejavam, mas era uma hipótese, entre as poucas que haviam.
Quando a poeira baixou, correram para ver se conseguiram atingir o objetivo. Uma grande cratera havia sido aberta no monte de terra, mas não havia sido suficiente para proporcionar-lhes a liberdade. Foi decepcionante. O rapaz sentou-se, desanimado, sobre um monte de terra. Sentia vontade de chorar e desistir, mas não queria demonstrar fraqueza ao amigo, que já tinha sido ferido por culpa da curiosidade de ambos. Tinha que mostrar-se forte, mesmo sabendo que estavam condenados a ficar naquele lugar. Pousou a cabeça entre as duas mãos e sentiu que podia enterrar-se ali. Desejou que aquilo fosse somente um sonho mau... um pesadelo… mas não era…
O outro aproximou-se e tocou-lhe no ombro.
- Foi uma boa tentativa. Fizemos o que podíamos. Vamos descansar dentro do armazém e depois continuamos a cavar. Pelo menos o teto não cedeu… ainda… Estou cansado e com fome. Vamos parar um pouco.
- Tinha que ter dado certo. Não podia dar errado. Agora estamos mesmo enrascados…
O teto, acima do monte de terra que havia sido explodido, fez um som conhecido e começou a abrir uma rachadura, que desceu pela parede, correu pelo chão e começou a desabar, ali na frente deles. Um dos rapazes começou a correr. O outro seguiu-o, mas ao olhar para trás, para certificar-se que estavam a salvo e longe do perigo, parou e gritou ao outro:
- Volta! Olha aquilo!
Havia uma pequena fenda ao lado direito, junto à parede. Não era suficiente para passarem, mas eles conseguiam ver através dela. O corredor estava praticamente desimpedido, do outro lado. Mas a parede era de betão sólido. Não havia como cavar à volta.
- Nós ainda temos uma granada…
- Ah, não! Nós vamos morrer soterrados.
O rapaz não ouviu o aviso do outro. Colocou a granada na fenda, com extremo cuidado, mas certificando-se que ficava bem presa. Amarrou um barbante no gatilho e puxou o fio de uma distância que considerou suficientemente segura. A granada demorou um pouco e explodiu, como era de esperar.
Quando conseguiram chegar perto, viram que havia espaço suficiente para passarem, mas a estrutura estava começando a desabar, novamente. Eles passaram e o teto caiu logo atrás deles, cerrando o que havia atrás, incluindo a única fonte de comida e água que tiveram. Os dois correram como desesperados pelo corredor escuro, sem olhar para trás e sem intenção de parar tão cedo.
***
- Ainda não vimos ninguém, além do soldado a morrer... E não foi uma visão espetacular. Nunca havia visto nada parecido.
- Nem eu. Mas acho que é melhor não encontrarmos mais ninguém. Somos intrusos aqui. Queres parar um pouco?
Eles haviam perdido a noção do tempo, completamente, desde que entraram naquela aventura. Mas ao consultar as horas, viram que deviam estar na cama há muitas horas. Não foi necessária resposta. Os dois arranjaram-se contra a parede e deitaram as cabeças sobre as mochilas. Adormeceram quase imediatamente, tão grande era o cansaço físico que sentiam.
***
Quando o rapaz que havia perdido os óculos acordou, ouvia um som conhecido, mas não conseguia associar a nada, de tão atordoado que estava. Uma vibração constante reverberava em seu estômago, dando-lhe a impressão que não comia há muitos dias. Quando conseguiu focar os olhos, viu que o amigo estava de pé a olhar, com uma cara muito assustada, para um clarão que se aproximava e que o cobria de uma estranha luminosidade, como se fosse ele um ser  totalmente feito de luz.
- Estamos ferrados. Levanta-te devagar. Não digas nada!
- O que é aquilo?
- Nossa salvação ou nossa morte!
O jeep blindado aproximou-se e parou a poucos centímetros dos dois. Um soldado saiu do volante e veio na direção dos dois, com uma arma em punho, mas quando viu o estado crítico em que os rapazes estavam, guardou a arma e mudou a estratégia.
- Venham comigo! Preciso ver se ainda há alguém lá na base.
- Não há mais nada lá e o túnel está bloqueado em vários pontos. A estrutura desabou, junto com todo o resto.
- E como vocês entraram aqui e como escaparam?
Os rapazes contaram, brevemente, sua inusitada história, com algumas pequenas reticências, tentando evitar maiores problemas. O soldado não disse muito. Virou o rumo do carro e foi na direção da qual viera. Ao contrário do que os rapazes pensavam, a saída estava bem mais longe do que cinquenta quilômetros do centro da base. Por precaução, resolveram não perguntar nada, pelo menos até que estivessem seguros e fora dali.
Muitos quilômetros adiante, havia uma grande porta de metal, ainda fechada. Por cima dela, em letras brancas, num fundo vermelho, estava escrito: SAÍDA. 

Os corações dos dois deram um salto. Estavam, finalmente, livres de perigo...
O soldado desceu do jeep e foi até a porta. Havia uma alavanca que ele começou a girar e a porta começou a mover-se, lentamente. A luz lá fora era muito pouco intensa. Chovia. Já no carro, o homem disse-lhes:
- Ponham os cintos de segurança... Preparem-se.
- Meu Deus! O que aconteceu aqui? Onde estão as plantações?
- Estamos passando pelo que sobrou delas. Viraram cinzas... assim como todo o resto.
O contador Geiger começou a vibrar e o ponteiro parecia enlouquecido, ratatatando sem parar.
- Estamos um pouco além da cidadela. Já não há mais nada lá. Tenho que levá-los à base principal, longe do perigo. O carro é revestido de chumbo, mas tenho que passar rápido por essa região.
- Não, por favor. Precisamos voltar para casa. Nossos pais devem estar preocupados.
- Não posso. Já não há nada lá. Foi tudo destruído na explosão. A população foi tomada de surpresa pela sequência de  explosões. Morreram todos num raio de mais de cinquenta quilômetros. Sinto muito rapazes. Vocês agora vão ter que vir comigo, até a base. Não há alternativa.
O jeep blindado deslizou em alta velocidade pela estrada, passou por um posto de controlo, muito além e rumou para a base. No banco de trás, um rapaz chorava sem parar, com a cabeça enterrada no ombro de um outro, que tinha lágrimas nos olhos, mas mantinha uma expressão séria e fechada, tentando manter-se forte a todo custo.
O soldado não disse mais nada. Não havia nada que ele pudesse dizer. Imaginava o tamanho da tragédia e o peso que aqueles dois rapazes iriam carregar pelo resto de suas vidas. Mais adiante, parou em outro posto de vigia, trocou umas poucas palavras com o guarda, que mantinha o controlo da guarita e entrou na grande base militar.
A chuva, fina e fria, caía sem parar. 

Aqueles dois jovens, sobreviventes de uma inverosímil hecatombe, sentiam como se estivessem tendo um pesadelo. Não sabiam, entretanto, se aquele sonho ruim já terminara ou se apenas começava...