sábado, 7 de novembro de 2015

Espirais (Parte 3)


Uma mocinha, aparentando não mais que uns dezoito anos, vestida com uma simples túnica azul celeste de tonalidade muito clara, adornada apenas por um cordão dourado, amarrado à cintura, entrou, logo atrás de dois homens, que portavam nada discretas pistolas militares nas mãos, quando a pesada porta de madeira maciça foi aberta. Vinha com o propósito de servir de intérprete e traduzir a intenção por trás da presença dos dois homens armados a aqueles jovens prisioneiros. 

Ela pousou seus grandes olhos azuis nos dois, mas demorou-se uma fração de tempo mais longa no rapaz de óculos, que a observava com genuíno interesse e com a boca semiaberta. O amigo percebeu a reação do outro e sorriu discretamente. 

Poucos minutos depois, o grupo seguia pelo longo corredor, cujo piso de pedra polida amplificava o som dos passos, ecoando pelas altas paredes pintadas de bege. Iam em direção à uma sala aberta, no outro extremo do edifício. 

Um homem alto e corpulento, com a cabeça raspada e ar muito sério os aguardava, de pé e descalço. Estava vestido com uma túnica muito clara e uma espécie de calça feita de uma peça única de tecido liso amarrado à volta da cintura e dobrado, de modo a deixar as pernas cobertas até a altura dos joelhos, sem entretanto tolher-lhe os movimentos. Era tingida de um tom de azul bem mais escuro. 

Ele adiantou-se e recebeu-os com a mão estendida, ainda com o semblante bastante sério e falou-lhes, praticamente sem sotaque. 

- É uma enorme satisfação receber os dois homens que sobreviveram, incólumes, a uma explosão nuclear. 

Ele abriu bem os olhos, exibindo um sorriso um tanto estranho.

- Esse poder interessa-me muito…

O rapaz de óculos levantou o sobrolho, desconfiado, sem mover-se mais que o necessário. Estava, também, surpreso que o homem falasse a mesma língua. O outro soldado respondeu mais positivamente ao cumprimento daquele homem estranho, vestido com uma indumentária igualmente incomum, cujo aperto de mão, muito firme, mostrava uma força bastante evidente, a emanar dele, com uma naturalidade espantosa. 

Os dois olharam-se firmemente nos olhos, como se desafiassem um ao outro.

***

- Por que não dormes? Quase consigo ouvir teus pensamentos daqui…

- Não consigo… parar de pensar…

- Naqueles olhos azuis? Achas que eu não percebi?

- Bobagem. Não é nada disso. Estou preocupado. Nós estamos como hóspedes, neste quarto de luxo, depois de termos sido sequestrados. Há algo muito errado aqui…

- Pois há. Mas é melhor dormir, agora. Amanhã temos que arranjar uma forma de sair daqui. Agora descansa.

- Se fossemos hóspedes, mesmo, a porta teria uma maçaneta pelo lado de dentro. Estamos presos aqui.

- Eu sei. Mas de nada adianta tentarmos sair agora. Nossa saída tem que ser mais estratégica, quando estivermos fora daqui. O quarto é à prova de fuga. Nem janela tem…

- Estamos aprisionados por um louco. Viste os olhos dele? Ele é completamente louco… O que ele espera de nós? 

- Não sei ao certo. Mas ele quer mais poderes… se é que tem algum, além daquela insanidade doentia… Ele é muito, muito perigoso…

Os dois ficaram em silêncio, cada um imerso em seus próprios pensamentos. A quietude da noite, naquela ala do grande edifício onde estavam, pesava sobre os dois jovens soldados, perigosamente, como se fosse uma sentença de morte. 

O rapaz, cujos óculos repousavam ao lado do travesseiro, olhou o teto e viu, por um instante, num estranho lampejo de memória ou delírio, dois grandes e conhecidos olhos a olharem para si. Ele sorriu, virou-se para o lado e cerrou as pálpebras. Uma sensação agradável tomou conta dele, como se estivesse sendo embalado pelos braços e colo da mocinha de magnéticos olhos azuis. 

O outro sentiu, também, suas pálpebras pesarem, foi tomado por uma agradável sensação e não tardou a adormecer. 

Nenhum dos dois percebeu que um silvo muito subtil, quase imperceptível, num canto, instilava um poderoso opiáceo no ambiente, fazendo-os cair em sono profundo e pesado, fazendo-os sentir que estavam a flutuar, agradavelmente, sobre as camas dispostas em lados opostos do espaçoso quarto.

***

Depois de uma leve e breve refeição, à base de frutas, chá e sumos naturais, já a meio da manhã seguinte, os rapazes foram levados por um corredor, que seguia acima de uma grande sala, que cruzava uma larga parte aberta do edifício, onde aglomeravam-se muitas pessoas, vestindo túnicas soltas sobre seus corpos e as cabeças totalmente cobertas por capuzes, que escondiam boa parte de seus rostos. Entravam em grupos separados por cores das vestes, descendo por sete escadas em espiral, uma em cada um dos sete cantos da sala heptagonal e juntavam-se no grande hall, numa sequência que lembrava um arco-íris. Vinham participar de uma espécie de ritual, dirigido e controlado pelo homem da cabeça raspada, que os aguardava, num pedestal construído no centro do hall. 

O sumo-sacerdote estava vestido com uma longa e larga túnica dourada, mas não usava o capuz sobre a cabeça. Ele esperou até os grupos tomarem o espaço, por completo, à sua volta, em completo silêncio.

A mocinha conduziu os dois jovens soldados até uma sala com uma sacada fechada, num mezanino, donde podiam ver o ritual, por completo, mas sem o direito de participar ou interferir. 

Quando o homem da túnica dourada começou a falar, eles perceberam a perfeição da acústica da grande sala. Ele não usou nenhum artifício para amplificar sua voz, a qual soou clara e poderosa, para a surpresa dos dois amigos.

***

- Vê só como ele manipula estas pessoas. Consegue o que quiser destas criaturas tão carentes e a necessitar de esperança. Ele sabe disso e usa deste conhecimento contra elas. 

- São como ovelhas perdidas a seguir um mau pastor, por ignorância ou por medo… Mal percebem que estão sendo conduzidas à própria exploração e condenação, por escolha delas mesmas. Não percebem, nem sabem pensar por si próprias. Buscam um paraíso que não existe, onde os seus pecados possam ser redimidos, para poderem sentir-se menos miseráveis ou para terem algo a que apegar-se. Como se diz: o pior cego é, com certeza, aquele que não quer ver.

- O fanatismo sempre levou as pessoas a cometerem as maiores barbaridades, em nome de suas crendices. As religiões são quase tão antigas quanto a humanidade. Os mitos e os deuses foram criados pelos homens, para explicar o inexplicável ou para controlar o comportamento dos mais comuns e menos esclarecidos. 

- As massas sempre necessitaram de líderes. É natural que sigam seus profetas e hierofantes, sem questionar. Facilita-lhes viver e diminui-lhes a culpa e o sofrimento. As pessoas precisam apegar-se a algo para terem razões para viver. Procuram fora delas o que não encontram dentro de suas fracas e desesperançadas almas: paz e, talvez, fé.

- É mais fácil apegar-se a algo externo do que trabalhar a paz internamente. Também é mais conveniente, pois uma viagem ao exterior é menos complicada e dolorosa que para o interior das nossas mentes. 

- E gera menos questionamentos. Os antigos profetas e os sumo-sacerdotes nada mais eram que indivíduos com um grande poder de persuasão e controlo dos homens através das palavras e, muitas vezes, por conta de delírios esquizofrênicos. Em algumas tribos indígenas, até recentemente, as profecias e visões eram geradas por alucinantes poderosos a fazer efeitos em mentes complexas, depois de participarem em rituais mais complexos ainda e eram respeitadas como visões iluminadas de homens iluminados. O mesmo acontecia com os rituais pagãos, que mais tarde foram condenados e perseguidos pela igreja. Que diferença existe, afinal, entre um nórdico, que acreditava que o som do trovão era gerado pelo bater do martelo do deus Thor numa bigorna, no reino divino de Asgard, um índio que chamava a Tupã o deus do trovão ou um homem que guia-se por uma tábua escrita por um dedo invisível de um deus todo-poderoso, com uma dezena de mandamentos de conduta, mas que não respeita as manifestações religiosas de outros povos?

- O ser humano, quando está carente ou desorientado, é mais manipulável que um gato com fome. São como cegos em busca de luz. Os mais espertos, manipuladores e sem escrúpulos aproveitam-se da fragilidade emocional destas pessoas. Nestas ocasiões as novas seitas e religiões nascem e proliferam, para conforto dos pobres fiéis e enriquecimento dos ditos pastores e líderes. Isso sempre foi e sempre será assim.

- Sabes muito bem que as pessoas não questionam as religiões, as tradições ou os ensinamentos dos ancestrais, por conformismo ou medo de colocar sua fé em cheque. Por trás de boas intenções, existem, sempre, entretanto, muitas más ações.

A mocinha, que até então estava quieta a ouvir os dois rapazes discorrendo sobre um assunto muito complexo, olhou para os dois, firmemente e disse:

- Cuidado com ele ou a falar mal dele. O nosso povo confia cegamente e não medirá esforços a protegê-lo. Qualquer palavra em falso poderá causar-vos um problema bastante grave… e uma complicação das grossas... Ou mesmo a vossa condenação e morte. 

***

O rapaz de óculos vinha saindo do lavatório, quando ouviu uma música muito suave, vindo de algum ponto, no fim do corredor. Curioso e intrigado, ele resolveu que tinhas de descobrir de onde aquela melodia vinha. 

Numa saleta desprovida de decoração, uma moça dançava com movimentos muito lentos, como se fizesse yoga ou alongamento. O rapaz ficou a olhar a moça, completamente encantado pelo que via. A luz, que entrava por uma pequena janela, no alto da parede, batia na cabeça da moça, dando, ao rapaz, a impressão que estava diante de uma cena tanto surreal quanto angelical. Uma estranha sensação brotou em seu estômago, como se fossem borboletas a baterem suas frágeis asas, num voo suave e certeiro, atingindo-o em cheio e deixando-o, ao mesmo tempo, fascinado e confuso. 

Ela abraçava seu próprio colo e dançava sozinha, com os olhos fechados, como estivesse tomada por uma alucinação qualquer. Seu rosto era sereno e, assim, iluminado pela luz que entrava pela janela, parecia refletir os raios do sol.

Quando a música parou, ela abriu os olhos e viu o rapaz parado na porta a observá-la. 

Ele corou imediatamente, sem saber o que fazer. 

Ela não disse nada. Limitou-se a olhar na direção da porta, com aqueles olhos muito grandes e azuis, que tanto enfeitiçavam o jovem soldado, que de repente, teve seus dois braços agarrados por trás e puxados com uma força tão grande e descomunal, que deixaram-no totalmente inerte e imobilizado…

***

sábado, 24 de outubro de 2015

Espirais (Parte 2)

- Férias?
- Sim. Férias. Nós nunca tiramos férias. Desde que…
- Mas nem sabemos o que fazer… Não sei se é uma boa ideia.
- Lembras dos nossos acampamentos? Aquilo era divertido.
- Lembro. Lembro muito bem do último acampamento e dos problemas que tivemos… muito embora isso já tenha acontecido há tanto tempo…
- Pois então. Nós estamos vivos por causa do incidente. Vamos ficar longe de problemas. Não vai acontecer nada de mal desta vez. Eu prometo. OK?
- Não prometa. Ficar na base é que significa ficar longe de problemas.
- Vamos lá. Eu já consegui autorização para sairmos por três semanas.
- Como assim? Conseguiste autorização? Quer dizer que eu fui traído, então!
O rapaz riu e deu um leve soco no braço do amigo. Sabia que ele tinha, ainda, reticências sobre aquele programa, mas estava praticamente convencido a tirar as tais férias, depois de estarem tanto tempo reclusos naquela base militar.
***
- Temos que passar num lugar, primeiro.
- Que lugar? Não era esse o plano…
- Vamos ver como está a área, depois desse tempo todo.
O rapaz de óculos calou-se. Embora não tivesse previsto aquela aparente mudança de planos, também tinha curiosidade em saber. Um súbito desconforto no estômago e peito deu sinal de apreensão, mas ele só fechou os olhos e respirou fundo.
O local, como era de esperar, ainda estava cercado e tinha muitas placas de advertência, indicando proibição ao acesso e entrada de todos. O jeep alugado cortou caminho pela lateral, onde havia uma brecha na cerca de arame farpado e entrou no vasto campo destruído pela explosão nuclear, muitos anos atrás. O coração do rapaz de óculos acelerou. O outro, ao volante, conduzia com o cenho franzido e o semblante fechado e com uma seriedade e silêncio que já lhe eram peculiares. Cerca de cinquenta quilómetros adiante e meia hora depois, chegaram ao que parecia ser o centro da área. O rapaz consultou o GPS, para confirmar se estava certo. Saltou do carro e olhou à volta. O deserto estendia-se, a perder de vista, em um círculo de provavelmente bem mais que o dobro dos cinquenta quilómetros que já haviam viajado.
- Eu tinha que ter esta certeza… Eu só precisava ter mesmo certeza absoluta… Nunca nos deixaram voltar, depois daquele dia.
O outro estava de pé ao seu lado, com os olhos fixos num ponto à esquerda, onde um dia houvera uma mata e onde ficaram soterradas muitas lembranças. Uma imensa fenda estendia-se pelo campo até abrir-se numa grande cratera. Os dois soldados aproximaram-se da borda e olharam para baixo. Terra seca e não fértil escorreu para dentro da fenda, por baixo dos pés deles, até desaparecer da vista, na escuridão.
O vento assobiou na borda do precipício aberto. Um arrepio correu-lhes pela espinha acima.
Os dois viraram-se e voltaram ao jeep, em meio à uma angústia silenciosa e com o propósito tácito de nunca mais retornar a aquele árido, vazio e infecundo deserto, onde o passado havia sido enterrado para todo o sempre. Estavam definitivamente convencidos que já não pertenciam a aquele lugar. Era o destino a colocar uma pedra no passado e a abrir novos horizontes, provavelmente cheios de novas oportunidades.
O tempo encarregar-se-ia de transformá-los, aos poucos… ou não… mas constantemente.
Aqueles dois rapazes eram, agora, soldados de elite, treinados numa base militar, que lhes servia de lar, desde que o dia em que foram resgatados pelo exército, há bastante tempo atrás.
***
Sentados no hall do aeroporto, à espera da chamada para o voo, os dois jovens homens não conversavam. Tinham as faces sérias e os olhares distantes, ambos a olharem para fora, onde aeronaves de várias companhias e localidades subiam e desciam, umas após as outras, de e para os mais variados destinos.
Gentes de todas as raças, nacionalidades e origens misturavam-se, arrastando malas de todos os tamanhos, cores e formas, pelos corredores afora e em todas as possíveis direções.
Os fortes aromas das caras fragrâncias francesas exalavam das perfumarias do ‘Duty Free’, misturando-se com tantos outros, nem todos tão nobres, pela longa avenida, repleta de viajantes e seus pequenos grandes mundos. Vozes de diversas tonalidades e em vários idiomas misturavam-se às chamadas para os voos, provenientes dos altifalantes, em múltiplos e diferentes pontos do aeroporto internacional, caracterizando uma verdadeira e moderna torre de Babel.
O monitor exibiu, finalmente, a mensagem esperada com bastante aflição. O embarque estava autorizado. Os dois levantaram-se, ajeitaram as mochilas às costas e entraram na fila, em frente ao balcão de controlo. Alguns metros atrás deles, dois olhos observaram seus movimentos, com cuidadosa atenção e com discrição exemplar, certificando-se que não os perdia de vista.
Os dois soldados passaram pela funcionária uniformizada, cruzaram a porta de vidro, desceram a rampa e desapareceram na curva do corredor móvel, que levava até a pequena porta da aeronave.
Poucos minutos depois, acomodando-se nos assentos próximos às asas e ocupados em ajeitar as mochilas nos apertados compartimentos acimas das cabeças, não perceberam quando um dos passageiros passou e tomou o assento no lado oposto, algumas fileiras atrás, assegurando-se que os dois eram mantidos sob constante e criteriosa observação.
***
- Onde é que nós estamos?
- Não sei.
- Como é que nós viemos parar neste lugar?
- Não tenho ideia. Não sei o que aconteceu…
O rapaz de óculos olhou à volta e não viu a mochila com seus pertences. Sua face manifestava uma visível preocupação. O outro compreendeu sua confusão com genuína empatia. Era evidente que estavam numa grande enrascada, mesmo sem saber a razão pela qual estavam naquela sala trancada e muito mal iluminada. As paredes eram altas e nuas, pintadas de um tom impessoal, provavelmente de bege, pouco distinto na penumbra. O teto era apenas um borrão na escuridão. A sala era totalmente desprovida de móveis, mas estava muitíssimo limpa, ainda com cheiro de detergente no ar. A porta era de madeira lisa e escura, pesada e maciça e não tinha fechadura, pelo lado de dentro. Como estava muito firmemente trancada, provavelmente tinha um fecho com cadeado ou algo similar.
O chão, feito de um bloco único de cerâmica polida, era de um pardo monocromático. Havia uma impessoalidade muito fria e marcante no aposento e que dava-lhes a impressão que servia para fins não muito dignos.
- Temos que repassar os últimos acontecimentos a limpo e com cuidado, para tentar resgatar alguma memória. Qual é a última coisa que tu lembras? Lembras de termos saído do avião? Lembras de chegarmos até a saída?
- Sim. Lembro bem. Até acenarmos para o táxi, já do lado de fora do aeroporto. Disso eu lembro claramente...
- Mas uma 'van' escura parou antes... e alguém esbarrou em mim.
- Em mim também… Depois tudo ficou confuso… Não consigo lembrar de nada direito. Acho que fomos drogados e assaltados.
- Ou sequestrados…
Os dois rapazes chegaram à aquela conclusão com alarme nos olhos e com um aperto no coração.
Um estranho silêncio instalou-se no meio dos dois, quando ouviram o som de passos a reverberar no piso do lado de fora do aposento onde estavam aprisionados. O ruído de metal roçando contra metal e batendo solto na madeira deixou-os em posição de alerta. Alguém mexia no ferrolho, abria a porta e entrava, sem ser anunciado, nem convidado...

***

sábado, 17 de outubro de 2015

Espirais (Parte 1)

Os dois jovens homens atravessaram, correndo, o grande hall, a procura de uma saída. O som de seus passos ecoava pelas paredes e pelo teto alto, em forma de abóbada com arcos góticos, que sustentavam a pesada estrutura, num desenho arquitetónico bastante rebuscado. Atrás deles, uma moça, um pouco mais nova que eles seguia, descalça e vestida com uma espécie de túnica azul celeste, amarrada na cintura com um cordão da espessura aproximada de um dedo, feito de fibra dourada e trançada à mão. 
Os rapazes viram um pórtico, também em arco, que dava para fora do edifício e seguiram por lá. A moça ainda tentou avisá-los, mas já era tarde. A tal passagem levava a um pátio murado, mas sem portões de saída, como se fosse uma varanda fechada. As paredes de pedra lisa não permitiam que subissem e não havia nada à volta que pudesse sugerir uma saída ou passagem que pudesse ser usada para chegar a qualquer lado, ou para atravessar para o outro lado do muro. A única alternativa era voltar para dentro. Eles subiram os três degraus de um pequeno lance de escadas e correram na direção de onde vieram, novamente, chegando até onde a moça os observava, sem mover-se, mas demonstrando uma certa impaciência, por eles não lhe haverem dado ouvidos. Os dois passaram e carregaram-na junto com eles, puxando-a pela mão. A moça foi junto, sem resistir. Os três seguiram pelo corredor vazio até uma grande sala, muito maior que o hall por onde vieram e muito mais impressionante.
O piso era de um mármore puro e muito alvo, praticamente sem manchas. As paredes pareciam não haver sido pintadas alguma vez, não tinham nenhuma decoração adicional, nem eram perfuradas por janelas ou quaisquer tipos de aberturas. Não haviam cadeiras ou assentos no aposento, tampouco. Dois círculos concêntricos, um vermelho e um dourado, estavam pintados no chão, à volta de onde uma árvore havia sido plantada, provavelmente há muitas dezenas de anos, no centro daquela sala. Suas muitas e longas raízes aéreas denunciavam sua idade. Seus ramos, longos e pesados, eram sustentados por muitas forquetas de metal, tão antigas, que muitas delas já faziam parte do madeiro, que as envolvia, como se quisesse que nunca deixassem de sustentá-lo. Em volta do enorme tronco, uma encorpada liana, quase sem folhas, subia em espiral, para além do limite do teto e perdia-se da visão. Eles ficaram a olhar, boquiabertos, a imensidão daquela árvore centenária, tão sóbria e respeitosamente senhora daquele lugar.
Passos pesados e ligeiros aproximavam-se pelo corredor, fazendo os três entrarem em estado de alerta, mudando o foco de sua atenção. Homens armados entraram na grande sala, aparentemente dispostos a tudo. Os rapazes apressaram-se a subir pela espiral, mas a moça, que havia ficado por último, foi logo apanhada por um dos homens. O rapaz de óculos quis voltar atrás, mas ela gritou:
- Fujam! Depressa!
Ela foi carregada para fora da sala e do campo de visão dos dois, enquanto um dos homens começava a subir atrás deles. Não foi preciso muito para decidirem para qual lado ir. Só tinham que ser mais rápidos que o seu perseguidor.
Por cima do telhado, os ramos estendiam-se para além do limiar das muralhas da grande edificação. Eles tomaram a direção do que pareceu ser a saída mais próxima, por cima do pátio murado, onde estiveram minutos antes. Este estava construído por cima de uma grande ravina rochosa. Uma névoa impedia de ver o fundo do precipício, mas dali eles podiam ouvir o som de água a correr muito abaixo de onde estavam. Vendo que aquela direção os conduziria à uma morte mais rápida, os dois resolveram voltar.
O rapaz de óculos virou-se e viu que o homem que os perseguia estava sobre o mesmo galho da árvore em que estavam e vinha aproximando-se deles. Sem saber o que fazer, ele paralisou, completamente, a meio caminho. Seu companheiro, ao ver que ele não sabia como reagir, diante daquela situação, puxou-o para trás, certificou-se que ele não caía e correu na direção do homem, que já apontava a arma contra eles. A investida contra seu corpo pegou o homem de surpresa e fê-lo perder o equilíbrio e cair por cima do telhado e rolar dali abaixo. Ainda ouviu-se um tiro, que deve ter sido a reação do homem ao tentar apegar-se a algo enquanto desabava do galho da imensa árvore.
Eles correram para o outro lado, na direção de uma densa floresta, até onde um dos galhos curvava para baixo, devido ao excesso de peso e saltaram para a mata. Tinham que sair dali a qualquer custo.
Havia uma espécie de trilha marcada, pela qual seguiram, por puro instinto. Se havia aquele caminho tão distinto, devia, certamente, levar a algum lugar para fora dali. Correram até onde a tal trilha terminava no topo do paredão da ravina. Apesar de não ver o fundo, sabiam que passava um rio por baixo. Deviam ter andado em círculos, à volta da fortificação. Uma saída era para trás, a tentar encontrar outra alternativa. A outra era para baixo… E era muito abaixo de onde estavam.
As vozes de vários homens a gritar no meio da densa vegetação e aproximando-se deles, rapidamente, fê-los entrar em pânico. Um rugido, aterrorizante e ameaçador, ouvido atrás deles, muito alto e aparentemente muito próximo de onde estavam, foi sinal suficiente para apressar-lhes a única possível decisão. A saída, naquele momento, era, definitivamente, para baixo.
Eles saltaram, antes que a fera – fosse ela qual fosse – e também os homens estivessem perto demais. O tempo pareceu-lhes bastante longo, enquanto caíam no vazio, entre o topo do paredão, a névoa do caminho e o fundo, onde esperavam haver água… muita água…
Quando a adrenalina está correndo muito rapidamente e em nível alto no corpo, a perceção de tempo e espaço, bem como as sensações, são distorcidas pelo cérebro. É como olhar pelo espelho lateral de um veículo, para certificar-se da direção, mas sem saber ao certo se as distâncias estão bem calculadas. Era necessário uma experiência maior, para certificar-se, mas não havia tempo para experimentar.
O impacto foi menor que eles imaginaram, quando chocaram-se contra a água fria do largo e profundo curso de água. As corredeiras, porém, eram mais fortes que eles esperavam e nadar era praticamente impossível. Deixaram-se ser arrastados pela correnteza, rio abaixo, na esperança de que, em algum ponto mais adiante, houvesse calmaria, para poderem sair dali, em segurança. Tentavam não afogar-se nem engolir água demais, no caminho, mantendo a atenção um no outro, para não ficarem perdidos, nem separados. Pelo menos estavam seguros, indo para longe de onde caíram e da perseguição dos homens armados.
Alguns quilômetros abaixo, quando as piores e mais violentas corredeiras já haviam ficado para trás, mas ainda deixando-se levar pela correnteza, avistaram uma região aparentemente mais virgem. Uma espécie de alívio tomou conta deles, quando perceberam que estavam vivos e a salvo, longe da ameaça na fortaleza.
A impressão foi logo desmistificada, quando viram que um grupo de homens os observava de cima de uma grande rocha, na curva do rio. Sem saber se estavam a salvo ou cada mais em perigo, deixaram-se levar, sem saudar os observantes.
Alguns homens correram pela margem, seguindo os dois, provavelmente até um ponto onde pudessem resgatá-los… ou atingi-los, de alguma forma e acabar, de vez, com a vida deles. Uma sensação esquisita de medo, apesar de haverem sido treinados pelo exército, passou pelos dois, instintivamente e ao mesmo tempo. A amizade entre eles ia além de uma comum e parcial afinidade. Havia uma sintonia maior, especialmente depois do que passaram juntos, até serem recolhidos por um soldado num jeep do exército, há muito tempo atrás.
Como daquela vez, estavam incertos se, ao serem resgatados, estariam mais a salvo ou em maior perigo.
Como a sorte gostava de brincar com os dois, a correnteza ficou mais calma. Os homens que corriam pelas margens, seguindo o trajeto deles, enquanto eram levados pelas corredeiras, no leito do rio, aproximaram-se e entraram na água, apressando-se a retirá-los de lá…

***

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Um Animal de Sorte



Eu, decididamente, não gosto de viajar de carro. Não gosto de ficar preso dentro de uma caixa de transporte, mesmo que seja por uns poucos instantes e para minha própria segurança. Sei que é necessário e, provavelmente, ainda não acharam uma forma melhor, mas eu, simplesmente, abomino aquelas experiências.

No dia em que eu fui transportado para fora da casa de onde estava, temporariamente, depois de haver sido recolhido da rua, não foi diferente. Apesar de tudo, eu não queria deixar a casa de minhas madrinhas. Não tinha a mínima ideia do que iria acontecer e não estava nada voltado para uma nova mudança. Já tinha passado por uns maus bocados e não estava com intenção de passar outros. Meus passeios anteriores não haviam sido marcantes pela positiva.

Quando levaram-me para dentro e abriram a pequena caixa de transporte, ele estava inquieto e apreensivo, apesar de nos haver recebido com um sorriso no rosto. Talvez até estivesse mais receoso que eu… não sei direito. A minha madrinha colocou a caixa sobre um tapete que havia no hall de entrada do apartamento.

Ele sentou-se no chão e eu percebi que estava bastante tenso… ou talvez fosse uma demonstração de cuidado excessivo. Quando vi-me livre, olhei à minha volta e esperei uns segundos. Ele esperou também. Não invadiu meu espaço, o que pareceu-me uma boa estratégia. Aquele sinal de respeito indicou que minha sorte estava por mudar. Antes, eu estava assustado e desconfiado, mas senti-me abrigado e seguro, perto daquele homem desconhecido, cujos olhos tinham uma tristeza tocante e pareciam carregados de dor. Naquele momento, senti o impulso de aproximar-me dele e deixá-lo saber que eu apreciei sua consideração. Dei um passo adiante e inclinei meu corpo para perto dele, que levantou a mão e tocou-me a cabeça, com muito cuidado. Eu retribuí com uma leve turra.

Lembro que ouvi a madrinha perguntar à colega: o que foi que aconteceu aqui? Ele riu e disse: não sei, mas pareceu-me um bom sinal...

Eles trocaram informações sobre meu estado de saúde e as indicações médicas. Eu estava a curar uma infeção urinária, decorrente do stress que tive, no meu primeiro lar. Ele disse que achava esquisito o nome que me deram. Eu também, mas não tinha como dizer-lhes. Mas foi graças ao tal nome esquisito que ele teve ciência da minha história e resolveu conhecer-me.

Quando elas saíram e a porta foi fechada, deixando-nos a sós, o meu novo lar temporário pareceu-me um imenso campo a ser explorado… nas minúcias. Já sabia onde ficava minha comida e água e também a caixa de areia, portanto o básico estava sob controlo. Fui-me habituando, aos poucos, tanto ao lugar, quanto ao homem que cuidava de mim, inicialmente como FAT… uma família de uma pessoa só.

Duas semanas depois ele disse que havia decidido adotar-me. Eu já desconfiava, pela maneira que havia-se apegado e como parecia contente com minha presença na sua rotina de vida. Levaram-me, ele e minha madrinha, ao veterinário, para avaliar o estado da minha saúde. Eu estava bem. Ainda assustava-me com muitas coisas e ruídos desconhecidos, mas estava a adaptar-me bem ao meu novo lar, graças à paciência dele.

Burocracias ultrapassadas e compromissos assumidos, um novo nome foi-me escolhido, por ele, para combinar com minha nova vida. O passado tinha que, definitivamente, ficar para trás, junto com meu antigo nome e a dor eu já havia sofrido. Ele passou a chamar-me Thomas. Um novo nome, um novo lar e uma nova vida. Não sei porque, mas às vezes chama-me de “tigre”, além de muitos outros estranhos e carinhosos cognomes. Não acho que sejam os nomes ou as alcunhas que me fazem o que eu sou. Aliás, meu nome oficial é bonito e caiu-me muito bem.

Dois anos já decorreram desde o dia em que entrei por aquela porta. Engraçado como o tempo passa rápido, quando está-se bem. Agora eu ando livre pela nossa casa, conheço as rotinas e os horários e sei quando ele chega, de volta do trabalho, pelo som de seus passos nas escadas e corredor. Eu corro para a porta e fico à espera do barulhinho da chave na fechadura, para dizer-lhe olá, assim que entra. Ele chama-me de “meu menino”, faz festinhas e conversa comigo, como se eu fosse uma criança, perguntando-me se estou bem, se tenho fome e se quero um carinho.

Nós não recebemos muitas visitas. O tocar da campainha da porta ainda causa-me uma certa desconfiança. A mulher da limpeza reclamou que eu era muito arisco, mas eu tinha que certificar-me que ela estava livre de qualquer suspeita, antes de deixá-la aproximar-se. No dia em que ele chegou mais cedo e que trouxe-me, ao colo, para perto dela, percebi que, afinal, a mulher não ia fazer-me mal.

Melhor assim… para o bem dela…

Gostei da reviravolta que minha vida deu. Gosto da tranquilidade que ele me proporciona e do cuidado que demonstra para comigo. Ele cuida bem de mim e faz de tudo para proteger-me. Tenho mimos, conforto, comida e água, a caixa de areia sempre limpa e, ainda, companhia e segurança. Não preciso muito mais que isso, afinal.

Ele não perde a paciência comigo, nem quando eu apronto alguma. Na verdade, ele acha engraçado que eu arranje, da minha maneira, um lugar para ficar em cima do roupeiro, derrubando as incómodas caixas que lá foram deixadas. Eu sou um bichano grande e preciso de espaço… e gosto de lugares altos e quietos…

Ele sempre diz que eu sou muito amado e eu sei o que isso significa. Basta reparar no jeito que me trata e a forma como me olha. Não tenho quaisquer dúvidas em relação ao sentido daquelas palavras, ditas com tamanha afeição. É fácil compreender as intenções explícitas por elas. É bom saber que sou amado. Dá-me uma sensação boa saber que eu faço parte da vida dele e que ele faz da minha.

Ouvi uma conversa, dia desses, quando um amigo disse a ele que eu era um gatinho de sorte. Apesar de ele ter dito que eu já sofri o suficiente na minha vida e que mereço um pouco de paz e tranquilidade, reconheço que muitos animais não têm a mesma sorte que eu. Alguns continuam a sofrer maus tratos e acabam por ter uma vida infeliz, sujeita a muitos perigos e, consequentemente, com baixas expectativas de vida longa. Eu, pelo menos, estou seguro e sou bem tratado e respeitado, o que é uma coisa que nem todos conseguem ser.

Sim. Eu sou, mesmo, um gato de sorte!

Sinto que, às vezes, a rotina dele precisa de um pouco de ação… e eu, claro, faço questão de proporcionar-lhe alguma.

Vou lá dentro, agora, fazer minha cara de santo e inocente para ele. Acabo de ouvi-lo chamar meu nome e perguntar quem foi que bagunçou o armário e derrubou as t-shirts no chão do quarto...

…Não sei porque fazer qualquer drama. Nem foi no chão… Foi no tapete!

domingo, 20 de setembro de 2015

Of Sea and Men (Epilogue)


The opened door did not seem to be a good sign to the fisherman, who was still wary by the dream he had a few weeks before. He put his coat on and ran out of the door in a desperate rush. He could not even tell if his reaction was protective or defensive; if it were either a fear of losing or at the same time, of being alone...

He could hardly feel his feet trampling the soft wet sand nor could he sense the adrenaline running fast in his body, as he hastened along the beach, feeling the anguish upsurge exponentially within. In his mind, he could only think of the worse. And the worst was inconceivable to him at the time.

It was still dawning and the cool breeze, mixed with a dense fog, quite common at that time of the year, passed almost unnoticed by the man’s troubled mind, whose eyes, more carefully than his feet, scrutinized the waterfront with extreme and meticulous attention. The visibility was precarious due to the poor daylight and fog, but he was moved by a force which led him not to give up until he found the boy.

Up ahead, he discerned the outlined silhouette of his friend, sitting on a rock by the cliff. The mixed emotions of relief and urgency blended into his chest while he ran in that direction.

- You gave me such a huge fright, young man. I thought the worst had happened.

- I’m sorry for that. I had to think a little bit about everything that happened recently. Being here gives me a sense of security and broadens the horizons. I try to think outside the box... and it's not easy... My life will take a twist very soon and I have to make the right decisions.

- I see. We were caught in surprise, were we not?

- Certainly. It's all a little too fanciful to me right now and I have to think seriously about what to do.

- That night I told you I had a strange dream, I was quite apprehensive. I dreamed you were trying to commit suicide, drowning in the sea. I could not buy that story of the witness who saw you being assaulted and thrown into a car. When I saw that the door was open and you were not lying on the couch, I could only recall my dream... or nightmare... and think that it became real somehow. I confess I was afraid...

- Not so fast, my friend... I also had a very peculiar dream that night, you know...

The boy told him, in detail, the dream he had weeks before. The fisherman found it much more credible than the "evidence" informed by the police. In a way it kind of corroborated the presence of the man dressed in black.

- Do you think my memory, by some means, brought that fact to my mind? Or was it too coincidental?

- Anything is possible, my friend. Everything is possible in this story. I wish your memory recovered to end up with this mystery, but at the same time, I am afraid of what you'll remember and what will happen next. But you have to go ahead, no matter what you'll discover.

- Don’t be afraid. We will not stop being friends, regardless of what I will remember... I will not be able to shut my life down to what happened this time I am living on this island. I may be young... much younger than you, to tell the truth, but I am not ungrateful or stupid and do not take things for granted.

- I have never thought something in this regard, my friend. You know how much I care about you.

The boy looked at the man sitting next to him, facing the sea vastness and smiled. He patted the hand of his protector and said:

- Let's go back? We have much to do. The sea awaits us...

- You do not need to help me in the sea labours anymore. You know that.

- But I want to... one more time, at least. Tomorrow I must return to the mainland, and from then on, I do not know what will happen to me. But it's necessary to go on…

***

- I'm glad you came. Are you ready? We should go soon...

The man, dressed in black and wearing a very discreet but elegant dark blue silk tie with a small logo printed, possibly of the firm where he worked at, seemed to be in his early forties. He had the body shape of whom spent many hours in the gym and weight lifting. It would not be a surprise that he was also an expert in martial arts and personal defence or carry a gun on himself. After all, he was the head of security of a company whose founder’s bastard son had mysteriously disappeared, some time before, not long after his father recognize him as such.

The Chief of Security had come to the island on the morning ferry, along with the doctor and, like the week before, with a single interest: to bring the boy to the mainland and undergo a revolutionary new treatment for memory recovery, specially developed and designed for those people who had it lost in traumatic situations.

According to him, the young man had a Q.I. well above average and an immense sensory capacity, as well as an exceptional knack for investment analysis and a flair to work with computer programs. His skills had brought much profit to the company’s entrepreneurs and investors. For these and other reasons, it was interesting for the Administration to invest in his recovery and have him return to the business world as shortly as possible.

The deal was the boy be ready in a week’s time from the first visit of the chief of Security, who had been designated responsible for identifying the "survivor", who had been recognized by pamphlets that the police had distributed across the country. He was carrying documents and a series of photographs, that supported the authentication. When the boy came in, accompanied by the fisherman, he was showing documentary evidence to the doctor, who admitted they were very well supported and evident.

- I cannot recognize myself in these photos. That's not me. Or rather... that young man has nothing to do with me whatsoever. I am thinking of studying, graduate and make my life. I want to study Oceanography and deepen my IT knowledge, which seems to be my expertise. I want to associate the two fields in a career...

- You must come back to work with us. You'll have everything you want, supported by the firm and by your father. He anxiously waits for you. The company needs your services... and the sooner the better.

- But I do not want to go back to the company this way... I want to recover the memory, yes, but I have other plans. If the company does not want to invest in me in these terms - which is understandable - no problem. My life is no longer focused in that direction. I want to decide for myself...

- And how can you support this decision? You do not have financial conditions to do so. We can provide you everything you desire. At least until you can get enough to endure a change. Until then, you need a decent job. I do not think an old fishing boat can be your source of livelihood for a long time. Your father would never forgive you...

- I don't know the man you state as being my father. I don't know the company. I know nothing beyond the old fishing boat... which, after all, gave me all I have now... I don't want to go back to the life I had and of which I know nothing about, nor do I have any recollection whatsoever.

- I've come though this previously... Before you disappeared, you had already showed intentions to leave the company. It was a great disappointment to your father, my boss, and a problem for all of us. Let's stop this chit-chat and leave before the ferry departs without us.

The man dressed in black firmly grabbed the boy's arm, which seemed quite odd to the other two men. The boy pulled his arm off the other man’s grip, freeing himself up.

- If my father was really worried about me, he would have come himself and meet me, not just sent his body guard...

The man was livid. He knew he had a mission. The consequences of not carrying out his task, he knew very well. He stepped forward, toward the boy, who dodged. He put his hand inside his jacket and pulled a small pistol out, to the astonishment of all.

The boy looked at the man with the gun pointed in his direction and it was like a flash passed through his eyes, bringing his long-lost memories back, as if the forbidden archives had been opened in his mind and he remembered.

He was being chased through the streets and hiding in the city alleys by the river. He saw that there was a boat ready to leave the dock, at that very moment. He tried to listen carefully to the sounds close to him, to be able to take some action even if he had to risk too much. That same man, dressed in black, was carefully looking for him, armed with a pistol, probably with the sole intention of bringing him back at any cost and in any case...

At any cost, or in any way, however, it was not his intention to return to anywhere... even less to that company...

The boy kept his eyes on the gun pointed at him and said, pretending a serenity he did not really feel:

- Now I remember what happened...

***

- It was almost a miracle having my memory back, so clear, before that shocking situation. I almost froze...

- Normally, situations where there is a great rush of adrenaline trigger this sort of reaction. If he had not said that you would not escape him a second time, pointing that gun, like that, at you, we would have no reason to attack him, nor grounds for the police to arrest him. Thankfully, our reaction was quick, but I still have the mark of the bullet scraped in my arm when I and the doctor ran and jumped on him. The bad intentions of the man were clear from that moment on.

- But it could have been much worse. We could have been shot dead. After the gun was taken from his hand, it was easier. I still remember the matron hitting him hard in the back, knocking him down at once. Beating the confession out of him after that whole mess and in the middle of an angry outburst, when he could deny it if he were smarter, was a lucky treat for us... but he was completely overcome with anger by then...

- Yes. We were very lucky. It was a great team effort. He could have done anything, but he just did not count that you would survive after you've been beaten, stripped and thrown overboard. What I don’t understand, however, is the reason why he chose to hit your head, although very hard and getting rid of the body, without making sure you were really dead.

- He must have thought that the blow could be easier to explain if the body was found. He wanted it to look like an unfortunate accident. The master touch was thinking that by being naked I would be more difficult to identify... and he had a good point after all...

- Fortunately it all ended up well and I found out on the beach at the right time. I would never hesitate to defend you from any dangers that could appear. I would do it all again if I needed to. You can be sure of that.

- You know what I think? You are like the rain: sometimes falls down and refreshes; sometimes simply floods. You're a good man. It doesn't matter to me what you have done in the past or what your past has done to you. You have already lived your private hell. Your debt has been paid and has nothing to do with me. You did not know me and yet you did everything possible to help me out without even knowing who I was. You had no obligation whatsoever and you were my best mentor and protector. You were the only person who really cared for me, never thinking of ulterior intentions. You simply followed your heart and I'm very grateful to you for what you did. My debt to you is eternal.

- Nonsense. You owe me nothing!

The boy hugged his old mentor and friend with true affection and gratitude and said something he would never expect to hear.

- Yes, I do. I owe you my life!

For some inexplicable reason, that hug caused him a very peculiar effect. He felt light and full of life, with his heart warmed up with long lost emotions...

- I can hardly admit I was still able to feel these kind of emotions. I did not even know that it was possible to bring them out of my most basic needs...

- You think too much. It seems that you're afraid to show your feelings, as if they were a sign of weakness. I may be young yet but I can guarantee that only the strong live, truly, their feelings... and they’re not ashamed or afraid of that.

***

A few months later, the seaman received two envelopes by mail.

The smaller one enclosed a simple letter, coming from afar, written in a calligraphy he recognized immediately. The news were comforting. After a few tries, the boy had gotten a scholarship in the College of Oceanography. The money he had used earlier in order to pay his expenses, while going through admission tests, had been very well spent and the letter held the promise of returning the amount to his mentor and friend, within a reasonable time.

The man smiled. He had invested with his heart, in the success of his young friend and felt he had already obtained the profits of that venture. He was not worried about the money, in fact, but with the progress that his protégé had been achieving since he went back to the city. Life was ultimately good for the boy, in response to his efforts and capabilities.

He put the letter aside, still smiling and turned his attention to the brown envelope, larger than the other, where there was a well-known logo, printed on the upper-left corner. It was sent from a renowned firm in the city, whose name brought him some unusual memories.

He opened it with uneasy fingers. There was a message and a report from the lawyers. The letter stated that an inquiry had been opened to investigate the accident/incident and his wife’s subsequent death during the surgery procedure. A note revealed the reason for the reopening of the investigation process. They had grounds to believe that the death was not a simple and unfortunate contingency, once some witnesses had heard him arguing with his wife, about her infidelity, during the dinner at the restaurant on the night of the accident. Apparently the doctor had left the place, quite altered, emotionally. Despite the fact that he had already served time for manslaughter, he could still be convicted if deceit could be evidenced.

The man set the document back on the table. A deep sadness pressed his chest, like a straitjacket, tied with effective cruelty, hindering the movements of his soul. The wind and drizzle falling outside the grey and almost too chilly day, only intensified his melancholy and brought long time vivid memories back to his troubled mind. Two hot tears streamed down his cold face and fell on the letterhead paper lying on the table, with so unwelcome news.

***

A middle-aged man was walking along the beach, completely immersed in his thoughts. Those ghosts, who were very well concealed for so long, had decided to come back to mind and haunt him. There were days when he felt more alone than in others and that was definitely one of them. He felt sad and a sense of emptiness seemed to grow within him. At that moment, he was sensiblly charged with memories that made him emotional and somewhat frail, about to surrender to tears, but strong enough to want to stay alive.

Circumstances put people and situations in our way to assess us or to shake our balance up and get us out of our comfort zones. The Universe has its own means and plans, which life itself is unaware of. The beauty of living is exactly the surprises and unpredictability of what happens to us every day. The fisherman knew that life puts us to test, all the time, challenging our limits. It is the way to make us stronger and more tolerant, increasing our resistance to the circumstances. Living is truly a constant exercise of adaptation, endurance and strength. The good thing is that all along the road, we often find people and even animals, moments and occasions that are effectively worth it.


The autumn wind blew fresh, yet mild, against his body and his face framed by an auburn beard, misaligning his light brown hair, which has thinned on top of the head. He stopped, looked at the horizon and felt the urge to get carried away by a silent invitation. Almost instinctively, he undressed and walked into the ocean, without thinking any much. The low temperature of the waters made him feel more alive than long ago. He took a few steps ahead and dove into the chilling sea, allowing his naked body to be completely surrounded by that welcome and cooling sensation...