domingo, 5 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 1)


O homem olhava para fora da janela, segurando uma caneca de café preto e forte, com suas mãos calejadas pelo trabalho duro, a observar o tempo lá fora. Uma chuva, fina e fria, caía sem parar. Havia dias que o tempo não mudava e o trabalho não podia ser deixado de lado, por tanto tempo. Era uma questão de sobrevivência.

O homem vestiu seu casaco de inverno, embora fosse começo de Outono, tomou seu café quente e saiu, ainda muito cedo na madrugada. O vento e a chuva castigavam a pele massacrada pelo tempo, fazendo-o caminhar curvado e de cabeça baixa, pela orla, na direção do pequeno cais. Sabia que tinha de enfrentar o mar. Sua subsistência dependia apenas daquele trabalho e daquela vida não muito fácil.

Ele já não pensava muito, nem amaldiçoava o tempo ou a chuva. Não reclamava, tampouco. Estava acostumado àquela rotina, a aquele trabalho, à sua solidão e à simplicidade de sua vidinha aparentemente descomplicada, mas bastante dura. Mas sentia que não tinha grandes motivos para reclamar... e não o fazia...

No pequeno cais, o velho barco, seu camarada de todos os dias, oscilava, embalado pelas cristas das ondas. Ele suspirou e caminhou, com passos firmes e decididos, pelo corredor de madeira pesada e escura, carcomida, de tanto ser pisada. Olhou as outras embarcações, todas firmemente amarradas ao embarcadouro, aprumou o capucho do casaco e saltou para dentro da sua.

O velho companheiro rangeu, quando ele pisou no convés, como se estivesse a saudar o homem. Poucos minutos depois, o barulho do motor foi-se distanciando da costa, tornando-se, apenas, mais um monótono murmúrio na praia, enquanto a silhueta do pequeno barco de pesca desaparecia, em meio à bruma e à chuva da madrugada, solitária e incógnita, como seu rijo dono.

***

Uma noite daquelas, cerca de uma semana depois, o tempo mudou... para pior. A chuva caía sem piedade e os trovões, que seguiam os relâmpagos, que  riscavam um céu negro como o petróleo, soavam como os tímpanos de uma orquestra, a tocar uma sinfonia enlouquecida. Ele sorriu, ao ver o céu iluminar-se, como se fossem fogos de artifício. Gostava das tempestades e, sabia, a trovoada, quase sempre, era sinal de mudança.

Na manhã seguinte, o homem saiu de casa, muito cedo, como de costume, para recolher a rede, que estava a meio mar. Ao invés de caminhar pela calçada, para chegar ao cais, resolveu ir pela praia, já que o tempo estava melhor, embora ainda nublado.

A praia estava coberta com muitas algas, como era comum, depois das fortes tempestades. 
Ele gostava de caminhar pela praia, o que era, para ele, tanto um exercício físico, quanto mental. Gostava da areia fofa e limpa; do cheiro iodado do mar; do som das ondas, naquele vai-e-vem contínuo; da brincadeira das águas, a tentar molhar-lhe os pés, cada vez que ele se distraía; da visão das gaivotas a entreter-se com seus voos branquinhos, contra o azul acinzentado do céu e com seus mergulhos dramáticos, no verde esmeralda do oceano...

Àquela hora da manhã, enquanto a vila estava ainda adormecida, longe dos barulhos ordinários do dia-a-dia, longe dos olhares dos transeuntes, enquanto o murmúrio do mar se misturava com os gritos angustiantes das aves, ele sentia-se como se fizesse parte daquela paisagem.

Uma lufada de vento fê-lo estremecer e ajeitar o casaco contra o corpo. O inverno ia ser rigoroso. Mal começara o outono e já sentia-se os efeitos do frio e da humidade, a incomodar os nervos dos mais sensíveis.

Mas ele gostava do frio e do vento. Gostava do mar e da solidão da sua profissão. Às vezes tinha a impressão que perdia a capacidade de comunicar-se e, para o bem da verdade, pouco importava-se com aquilo. Era, agora, um homem do mar, não um orador. Nem era, tampouco, um homem de muitas palavras.

Na verdade, naquela fase de sua vida, preferia os animais aos homens. Aqueles eram muito mais verdadeiros e puros, sem intenções escondidas por trás de suas ações. Instintos e afeições eram diretos e sem falsas intenções. Eram transparentes, como ele já havia sido uma vez… há muito tempo atrás…

O vento batia de frente, como se abraçasse seu corpo já não tão jovem, porém, robusto o suficiente. Ele sabia que ainda tinha muitas forças e haveria de viver longamente, mas não sentia saudades de outros tempos. Ao que lembrasse, não foram tempos que merecessem suas saudades, ou mesmo quaisquer memórias a reviver.
Já não lembrava se havia sido feliz… Talvez houvesse, enganosamente, pensado sê-lo, por um período muito breve de sua vida… a vida que costumava brincar com ele, tantas e tantas vezes… em ocasiões que ele tentava não lembrar, mas que voltavam vívidas, como filmes reciclados, carregados de emoções e que insistiam em manter-se sempre vivas na memória. Ocasiões que trouxeram sua carga de dor, deixando cicatrizes, que eram sempre tocadas, sempre acariciadas e nunca apagadas.
Ele apressou o passo. Não podia deixar o passado interferir no seu presente. Sacudiu a cabeça como quem tenta livrar-se de um pensamento inconveniente e cobriu-a com o capucho do casaco surrado. Tinha que recolher a rede…
Seus pensamentos foram interrompidos por um movimento um tanto inesperado, alguns metros à frente. Um grupo de aves marinhas parecia entretido, em algazarra, com algo que destacava-se no meio de um monte de algas. A princípio ele pensou ser algum animal morto ou apenas restos de peixes, o que não seria surpreendente, mas ao aproximar-se, viu que era algo bem maior, que simples comida para pássaros. Ele apressou-se a afastar os animais, que insistiam em manter-se por perto, como curiosos transeuntes, ao testemunhar um acidente.  
Um corpo, muito pálido, jazia imóvel, na areia da praia, parcialmente coberto pelas algas marinhas. O mar lambia-lhe os pés e as pernas, insistentemente. Ele ajoelhou-se, para examinar o corpo. Como estava de costas, teve que ser virado, para poder ser reconhecido. Esperava ver o rosto todo destruído pelos peixes ou caranguejos e aves, mas ao invés disso, estava em perfeito estado, assim como todo o resto do corpo. Ao tocar na pele, não sentiu o ‘rigor mortis’, nem a temperatura de um cadáver. Ao contrário, estava com temperatura apenas um pouco abaixo do normal, o que poderia ser esperado de uma pessoa que estivesse exposta ao frio do vento e do mar, naquelas condições e em estado de completa nudez. Ele chegou perto do rosto, para tentar perceber se o jovem ainda respirava, ou detetar algum movimento, que fosse, de alguma forma, minimamente percetível. A fraca respiração quase não era notada. O peito mal movia com a entrada de ar nos pulmões, mas o homem estava, com certeza, vivo. 
Ele cobriu o corpo com seu casaco, tomou-o nos braços e levou-o dali. A recolha da rede tinha que esperar.
***
A ilha possuía apenas um pequeno povoado, que tinha um único Posto de Saúde, visitado por um médico, uma vez por semana. O hospital mais próximo ficava no continente, a mais de trezentos quilômetros de distância. Havia uma enfermaria, com medicamentos básicos e primeiros socorros, controlado por uma matrona de humor instável, mas de bom coração. Por saber que o médico viria, já no dia seguinte, ele levou o rapaz para sua casa. Vivia praticamente sozinho, a não ser por um gato gordo, malhado de cinzento e branco, que servia-lhe de diversão e companhia. Tinha tempo para olhar pelo paciente, até, pelo menos, o doutor  examiná-lo, quando chegasse à ilha, algumas horas mais tarde.
Já em casa, tratou de lavar o corpo desacordado do jovem homem e verificar se havia algum sinal de ferimentos. Havia um corte razoavelmente grande na cabeça que, embora já não sangrasse, devia ter vertido bastante sangue, quando feito. Ou havia sido vítima de um assalto ou de um infeliz acidente. Por qual razão estava despido, também era um mistério. Ele foi até o armário e selecionou uma camisa e um par de calças para vesti-lo e arranjou um cobertor e uma colcha para cobri-lo, no sofá da sala de sua casa, de tão poucos cómodos. Ao voltar-se para fechar o armário, seus olhos foram atraídos por uma velha maleta de couro, deixada de propósito, no fundo, para cair no esquecimento, por trás dos casacos mais pesados e longos. Ele levou a mão à maleta e puxou-a para fora.
O coração do jovem batia normalmente, mas a tensão arterial estava bem baixa. Fazia tempo que ele não usava seus velhos instrumentos de medicina. Ele suturou o corte e fez um curativo na cabeça do rapaz, de modo a promover o início da cicatrização, pelo menos até ser examinado pelo médico. Suas mãos já não tinham a destreza de antes e os calos e a textura da pele não facilitaram seu trabalho, mas ele trabalhou como um verdadeiro profissional da saúde. O rapaz precisava ser hidratado. Ele tinha que dar um jeito de arranjar soro e ministrar imediatamente. Só de pensar que tinha de ir ao posto de saúde, ele sentia um desconforto no estômago. Mas não podia pensar em si… não naquela hora…
***
No dia seguinte, com a presença do médico, ele sentia-se mais à vontade. Não tinha tido muita dificuldade em conseguir o soro e a própria matrona ofereceu-se para ir até sua casa, tratar de introduzir a intravenosa. Era mais por curiosidade que por eficiência, mas ele aceitou, para não ter que dar muitas explicações.
Além do corte, que já havia sido tratado, não havia muito o que fazer, a não ser continuar a hidratar e esperar que o rapaz reagisse. Havia o perigo de uma concussão, por isso o médico decidiu que deveria mover o rapaz para o hospital no continente. Precisava de um responsável, caso o doente acordasse. E a polícia teria que ser informada, com urgência…
***
Ele ficava pouco à vontade na cidade. Menos ainda no hospital. A polícia havia sido chamada e iniciara uma investigação. Não encontraram nenhum registo de desaparecimento. Tiraram as impressões digitais e tentaram reconhecimento de face, mas não conseguiram chegar a nada. Enviaram uma foto dele para várias delegacias do país, para tentar, através da distribuição da mesma, descobrir quem era o acidentado. Também não conseguiram nada, verificando se tinha registo criminal. A identidade do rapaz era completamente desconhecida.
***
- Os sinais vitais estão normais, mas algo o impede de acordar… Temos que ter paciência…
Uma semana havia passado, sem grandes mudanças no quadro clínico. O homem decidiu voltar para a ilha, já que, embora tivesse melhorado o estado físico, o rapaz não havia acordado do estado de coma. Avisou ao médico e ao pessoal do hospital que iria para a pensão, onde estava hospedado e, na manhã seguinte, tomaria o barco, de volta para casa e à sua vida de pescador. Dali para diante, o caso era somente com a polícia.
Antes de ir-se, decidiu passar no quarto, para “despedir-se” daquele que nem chegou a conhecer, mas que mexera com sua rotina de vida, por alguns dias.
O rapaz jazia ainda desacordado, muito pálido e sereno, como se, apenas, dormisse. Seu estado era estável, mas ainda sem consciência. Ele aproximou-se e tocou na mão do outro, com uma terna afeição de pai.
- Nossas vidas separam-se aqui, meu rapaz. Pena que não tivemos oportunidade de nos conhecer. Eu gostaria de ter ouvido a tua história.
O rapaz parecia dormir um sono profundo. O pescador virou-se e saiu do quarto. Ao passar pela receção, saudou a enfermeira e despediu-se.
Quando já ia cruzando a porta, ouviu que uma campainha tocou e foi como se aquilo desencadeasse o maior rebuliço da história do hospital. Houve um alvoroço tão grande dentro do recinto, que ele não sabia se corria ou se escondia-se. A enfermeira disse-lhe, em meio à uma agitação, que ele não conseguiu perceber, a princípio:
- Acho melhor não ir-se embora, ainda. O alarme vem do quarto de onde o senhor acabou de sair.
Ele parou e voltou-se, apressando o passo, para chegar ao quarto, junto com os especialistas.
                                                   

domingo, 28 de junho de 2015

Rota de Fuga (Parte 3 - Epílogo)


- Vocês não podem estar aqui. Essa área é classificada como de segurança nacional. É proibida a permanência de civis, além de ser muito perigoso…
Os rapazes não sabiam o que dizer. O soldado recitava, com uma certa dificuldade, o discurso que, provavelmente, aprendera durante seu treinamento. Estava caído no chão, com algumas queimaduras estranhas na pele das mãos e do rosto. Pela boca, escorria um fio de sangue, mas ele havia sido, certamente, preparado para proteger o lugar, com a sua vida, se fosse necessário. Ele não sacou a arma, nem fez menção de tentar. Parecia saber que estava morrendo rapidamente. Tentou levantar-se, mas o esforço só piorou sua condição. Ele tossiu e soltou uma golfada de sangue, antes de perder a consciência. Os rapazes evitaram aproximar-se, mais por medo, do que incapacidade ou respeito às regras. Um som intermitente saía de algum lugar na sala, mas eles não conseguiam distinguir de onde vinha.
- Que lugar é esse? E de onde vem este som? Parece algo que eu já ouvi antes, mas não consigo lembrar-me de onde…
- Não sei. Parece um depósito, pela quantidade de caixas empilhadas. Aquilo ali…
O rapaz hesitou em concluir a frase, mas prosseguiu, ao ver que o ponteiro do aparelho, que emitia aquele som quase contínuo, oscilava de um lado ao outro, sem parar. Estava encostado ao corpo do soldado desacordado.
- …é um contador Geiger? Parece com um daqueles que vimos nas aulas de Ciências.
Ao ser afastado de onde estava, o contador diminuiu a ação. O rapaz aproximou-o mais uma vez do corpo do soldado e o som voltou a ser aquele ra-ta-tá-tá intermitente.
- Ele foi submetido à radiação. Este lugar pode estar totalmente contaminado. Temos que sair daqui.
- Olha aquilo. O que deve haver lá dentro?
Havia uma porta metálica, que levava a um outro compartimento, na parte traseira daquela sala, onde haviam muitas prateleiras com comida não perecível, água e outros víveres, provavelmente estocados para o caso de alguma emergência ou acidente... e aquela era uma emergência, com certeza.
- Vamos ver se a comida e a água estão aproveitáveis. Se não estiverem, não podemos usá-las. Qualquer sinal de radiação deve nos fazer mal. Acho que será melhor manter sempre o aparelho connosco, daqui para diante. Pode ser-nos muito útil.
Constataram que, dentro daquela sala, porém, tanto a água quanto a comida desidratada estavam boas, sem qualquer sinal de radiação. Também havia algumas barras de chocolate, que podiam cair bem numa hora de enganar o estômago, se fosse conveniente. Os rapazes pegaram alguns pacotes e encheram a mochila. Também pegaram um pouco de antisséptico e gaze. Numa outra caixa, mais afastada, havia algumas bolsas com alças ao tiracolo. Eles tomaram uma delas, encheram com comida e água e apressaram-se a deixar o lugar, antes que a radiação lhes causasse algum mal.
Ao passarem pelo soldado, perceberam que ele já não respirava. Havia uma grande mancha de sangue a espalhar-se no peito da farda. Já não havia nada que eles pudessem fazer, mesmo que quisessem.
- Vamos embora daqui. Este lugar causa-me uma má impressão. E é perigoso demais…
- Tive uma ideia. Ainda tens a bússola?
- Acho que tenho. Aqui.
- Segundo as aulas de Geografia, a cidade fica ao noroeste.
- Como é que lembras disso?
- Como é que não lembras? É para isso que levamos as bússolas, quando acampamos no mato… Pela orientação da agulha, se o norte é naquela direção, este túnel segue para o noroeste… Deve levar-nos à cidade. Era esta, com certeza, a ‘rota de fuga’ deste lugar e o depósito, uma das últimas possibilidades de abastecimento, em caso de acidente. Eles pensaram em quase tudo.
- Claro. São engenheiros e cientistas. Será que sobrou alguém?
- Claro que sim... Não faça perguntas idiotas. Vamos embora daqui, antes que mais alguém nos pare.
Caminharam pelo extenso corredor por algum tempo, sem ver ou ouvir qualquer coisa, além do som dos próprios passos a ecoar no piso de concreto. Às vezes parecia que a estrutura rangia, quando eles passavam e eles, então, apressavam o passo, receosos que a mesma quebrasse.
Mais à frente, à esquerda, viram um outro corredor lateral, depois de terem caminhado algumas dezenas de metros. Um sinal indicava, com uma seta: Laboratório de Pesquisas e Desenvolvimento. Enveredaram por ali, mas antes que chegassem a algum lugar, viram que a estrutura havia entrado em colapso e, boa parte dela, havia começado a desabar. Uma espessa porta metálica bloqueava-lhes o caminho. Era controlada e aberta por um sistema eletrónico de segurança, com um código a digitar, mas como não havia eletricidade, não havia forma de mover um centímetro sequer da pesada porta. Eles tentaram forçar a entrada, mas foi em vão.
Na parte que havia quebrado, conseguiram ver o tamanho da cratera deixada e o estado que ficara o edifício subterrâneo da base. A destruição era total. A cratera engolira todo o edifício principal, que havia na parte central.
A estrutura estremeceu e um som, já conhecido deles, fê-los olharem-se, em pânico. O piso começava a quebrar por baixo dos pés deles. Os dois nem pensaram muito. Correram dali o mais rápido que conseguiram. Já de volta ao corredor, pisando terreno mais firme e pensando estarem fora de perigo, pararam para avaliar a situação.
- Temos que parar de entrar nestas frias, a cada esquina, apenas por curiosidade. É melhor mantermo-nos no túnel e evitarmos mais perigos. Quero sair daqui o quanto antes.
- Vamos embora, então. Se a única saída for à cidade e, para o nosso bem, é melhor que seja, temos muito chão a percorrer... Isso, se não encontrarmos mais obstáculos pelo caminho. Pelas minhas contas, se caminharmos cerca de cinco quilômetros por hora, devemos estar lá em pouco mais de dez horas.
- Dez horas? Não sei se vou aguentar…
- Desculpa. Havia-me esquecido das horas, com esta agitação toda. É melhor comermos alguma coisa e descansar um pouco, antes de continuarmos. Como está o ferimento?
Ao invés de responder, o rapaz parou, com uma expressão estranha no rosto e, apesar de estar sem os óculos, tinha os olhos parecendo fixos num ponto atrás do amigo.
O outro voltou-se, para ver o que se passava e ficou tão estarrecido quanto o rapaz que havia sido ferido. Não esperavam por aquela. Não depois de tudo que já haviam passado.
***
- Será que aquele depósito tem ferramentas?
- É bom que tenha, ou nunca sairemos daqui. Lá se vão as dez horas de caminhada…
- Não contava com essa. Pensei que teríamos o túnel livre até o povoado. É muito azar. Aquela é nossa única alternativa. Não há outra saída.
As explosões haviam enfraquecido as vigas de sustentação do túnel. Algumas partes haviam caído e outras apresentavam risco iminente. Os dois rapazes não tinham ideia do perigo que ainda corriam, até que uma boa parte do teto rompeu-se à frente deles e bloqueou o túnel completamente. A saída, que antes parecia fácil, estava fora de alcance dos dois, naquele momento. 
Havia uma alternativa… Uma única alternativa: escavar, até conseguir sair daquela situação.
***
- Preciso descansar. Já faz tanto tempo que cavamos. Ainda não conseguimos nada. Será que vamos conseguir sair daqui?
- Cala-te... Claro que vamos. Por isso não podemos desistir. Este túnel tem que ser a nossa saída… 
- Se tivéssemos uma forma de cavar mais rápido…
- Acho que há…
Pela expressão na face do rapaz, o plano era, ou brilhante, ou louco. De todas as formas, parecia ser imprudente e arriscado demais.
- Tens certeza que isso vai dar certo? Podemos quebrar isso tudo e ficar soterrados de uma vez. Sem contar com o perigo de ficarmos sem ar…
- Não tens outra ideia melhor, tens? Vamos a isso!
O rapaz atirou uma granada de mão contra o monte de terra que haviam estado a escavar e correu na direção oposta. Havia visto duas delas na cintura do soldado morto, dentro do armazém. Se conseguissem abrir uma passagem no meio do túnel, ainda conseguiriam transpor e correr para longe dali, antes que as estruturas desabassem todas, por estarem enfraquecidas demais. A granada poderia ter o efeito oposto ao que eles desejavam, mas era uma hipótese, entre as poucas que haviam.
Quando a poeira baixou, correram para ver se conseguiram atingir o objetivo. Uma grande cratera havia sido aberta no monte de terra, mas não havia sido suficiente para proporcionar-lhes a liberdade. Foi decepcionante. O rapaz sentou-se, desanimado, sobre um monte de terra. Sentia vontade de chorar e desistir, mas não queria demonstrar fraqueza ao amigo, que já tinha sido ferido por culpa da curiosidade de ambos. Tinha que mostrar-se forte, mesmo sabendo que estavam condenados a ficar naquele lugar. Pousou a cabeça entre as duas mãos e sentiu que podia enterrar-se ali. Desejou que aquilo fosse somente um sonho mau... um pesadelo… mas não era…
O outro aproximou-se e tocou-lhe no ombro.
- Foi uma boa tentativa. Fizemos o que podíamos. Vamos descansar dentro do armazém e depois continuamos a cavar. Pelo menos o teto não cedeu… ainda… Estou cansado e com fome. Vamos parar um pouco.
- Tinha que ter dado certo. Não podia dar errado. Agora estamos mesmo enrascados…
O teto, acima do monte de terra que havia sido explodido, fez um som conhecido e começou a abrir uma rachadura, que desceu pela parede, correu pelo chão e começou a desabar, ali na frente deles. Um dos rapazes começou a correr. O outro seguiu-o, mas ao olhar para trás, para certificar-se que estavam a salvo e longe do perigo, parou e gritou ao outro:
- Volta! Olha aquilo!
Havia uma pequena fenda ao lado direito, junto à parede. Não era suficiente para passarem, mas eles conseguiam ver através dela. O corredor estava praticamente desimpedido, do outro lado. Mas a parede era de betão sólido. Não havia como cavar à volta.
- Nós ainda temos uma granada…
- Ah, não! Nós vamos morrer soterrados.
O rapaz não ouviu o aviso do outro. Colocou a granada na fenda, com extremo cuidado, mas certificando-se que ficava bem presa. Amarrou um barbante no gatilho e puxou o fio de uma distância que considerou suficientemente segura. A granada demorou um pouco e explodiu, como era de esperar.
Quando conseguiram chegar perto, viram que havia espaço suficiente para passarem, mas a estrutura estava começando a desabar, novamente. Eles passaram e o teto caiu logo atrás deles, cerrando o que havia atrás, incluindo a única fonte de comida e água que tiveram. Os dois correram como desesperados pelo corredor escuro, sem olhar para trás e sem intenção de parar tão cedo.
***
- Ainda não vimos ninguém, além do soldado a morrer... E não foi uma visão espetacular. Nunca havia visto nada parecido.
- Nem eu. Mas acho que é melhor não encontrarmos mais ninguém. Somos intrusos aqui. Queres parar um pouco?
Eles haviam perdido a noção do tempo, completamente, desde que entraram naquela aventura. Mas ao consultar as horas, viram que deviam estar na cama há muitas horas. Não foi necessária resposta. Os dois arranjaram-se contra a parede e deitaram as cabeças sobre as mochilas. Adormeceram quase imediatamente, tão grande era o cansaço físico que sentiam.
***
Quando o rapaz que havia perdido os óculos acordou, ouvia um som conhecido, mas não conseguia associar a nada, de tão atordoado que estava. Uma vibração constante reverberava em seu estômago, dando-lhe a impressão que não comia há muitos dias. Quando conseguiu focar os olhos, viu que o amigo estava de pé a olhar, com uma cara muito assustada, para um clarão que se aproximava e que o cobria de uma estranha luminosidade, como se fosse ele um ser  totalmente feito de luz.
- Estamos ferrados. Levanta-te devagar. Não digas nada!
- O que é aquilo?
- Nossa salvação ou nossa morte!
O jeep blindado aproximou-se e parou a poucos centímetros dos dois. Um soldado saiu do volante e veio na direção dos dois, com uma arma em punho, mas quando viu o estado crítico em que os rapazes estavam, guardou a arma e mudou a estratégia.
- Venham comigo! Preciso ver se ainda há alguém lá na base.
- Não há mais nada lá e o túnel está bloqueado em vários pontos. A estrutura desabou, junto com todo o resto.
- E como vocês entraram aqui e como escaparam?
Os rapazes contaram, brevemente, sua inusitada história, com algumas pequenas reticências, tentando evitar maiores problemas. O soldado não disse muito. Virou o rumo do carro e foi na direção da qual viera. Ao contrário do que os rapazes pensavam, a saída estava bem mais longe do que cinquenta quilômetros do centro da base. Por precaução, resolveram não perguntar nada, pelo menos até que estivessem seguros e fora dali.
Muitos quilômetros adiante, havia uma grande porta de metal, ainda fechada. Por cima dela, em letras brancas, num fundo vermelho, estava escrito: SAÍDA. 

Os corações dos dois deram um salto. Estavam, finalmente, livres de perigo...
O soldado desceu do jeep e foi até a porta. Havia uma alavanca que ele começou a girar e a porta começou a mover-se, lentamente. A luz lá fora era muito pouco intensa. Chovia. Já no carro, o homem disse-lhes:
- Ponham os cintos de segurança... Preparem-se.
- Meu Deus! O que aconteceu aqui? Onde estão as plantações?
- Estamos passando pelo que sobrou delas. Viraram cinzas... assim como todo o resto.
O contador Geiger começou a vibrar e o ponteiro parecia enlouquecido, ratatatando sem parar.
- Estamos um pouco além da cidadela. Já não há mais nada lá. Tenho que levá-los à base principal, longe do perigo. O carro é revestido de chumbo, mas tenho que passar rápido por essa região.
- Não, por favor. Precisamos voltar para casa. Nossos pais devem estar preocupados.
- Não posso. Já não há nada lá. Foi tudo destruído na explosão. A população foi tomada de surpresa pela sequência de  explosões. Morreram todos num raio de mais de cinquenta quilômetros. Sinto muito rapazes. Vocês agora vão ter que vir comigo, até a base. Não há alternativa.
O jeep blindado deslizou em alta velocidade pela estrada, passou por um posto de controlo, muito além e rumou para a base. No banco de trás, um rapaz chorava sem parar, com a cabeça enterrada no ombro de um outro, que tinha lágrimas nos olhos, mas mantinha uma expressão séria e fechada, tentando manter-se forte a todo custo.
O soldado não disse mais nada. Não havia nada que ele pudesse dizer. Imaginava o tamanho da tragédia e o peso que aqueles dois rapazes iriam carregar pelo resto de suas vidas. Mais adiante, parou em outro posto de vigia, trocou umas poucas palavras com o guarda, que mantinha o controlo da guarita e entrou na grande base militar.
A chuva, fina e fria, caía sem parar. 

Aqueles dois jovens, sobreviventes de uma inverosímil hecatombe, sentiam como se estivessem tendo um pesadelo. Não sabiam, entretanto, se aquele sonho ruim já terminara ou se apenas começava...


quarta-feira, 10 de junho de 2015

Rota de Fuga (Parte 2)


O vilarejo tinha poucos habitantes e vivia, basicamente, dos resultados das colheitas de suas plantações, especialmente, culturas de milho e trigo, que estendiam-se por vários hectares de terra fértil. Também plantavam horticulturas de época, porém em menor escala. Era raro serem visitados por outros, que não os intermediários, que vinham buscar as safras, distribuídas pela cooperativa local e que acontecia segundo um calendário pré-estabelecido. 
A base, estrategicamente localizada num raio de mais de cinquenta quilômetros do povoado, para que as idas e vindas do exército fossem muito bem camufladas, mesmo durante a fase de construção, começara as atividades como um genuíno acampamento militar. Rapidamente evoluiu para uma sofisticada base de testes e experiências secretas, muitas delas sustentadas por fundos de pesquisas, alimentados por grandes empresas civis e públicas, direcionados para a área nuclear. A base já não era unicamente militar, pois os investidores, com interesses tecnológicos, tinham calendários definidos e precisavam de um cumprimento bastante rigoroso aos mesmos. Os pesquisadores eram grandes cientistas procedentes de uma incubadora de um grupo de Universidades e, convenientemente, recrutados pelo exército.
Um tremor de terra, incomum naquela região, chamou a atenção dos habitantes da pequena localidade. Os agricultores pensaram que a hipótese de um terremoto estava fora de cogitação, quando o primeiro tremor foi sentido. Ficaram em alerta, sem deixar o trabalho, mas quando o segundo sismo ribombou, bem mais forte que o primeiro, saíram em desabalada corrida, de volta para suas casas.
Não estavam preparados, de maneira alguma, porém, para o que viria a seguir.
***
A cavidade abrira tão rapidamente, com tanta violência e de uma forma tão ampla, que seria impossível, para qualquer criatura, agarrar-se a algo, enquanto caía para dentro do enorme abismo, que se formava desgovernadamente. Era como uma grande cascata de terra, cujas areias levavam, junto com elas, tudo o que podiam, enquanto escorregavam pelas bordas de um imenso poço, que aumentava de tamanho e profundidade, com velocidade vertiginosa.
- Depressa! Agarra a alça da mochila e não larga até eu dizer…
Como não havia forma de suster a queda, agarraram-se às alças da mochila, para poderem ficar juntos.
Separados, eles teriam menos condições de sobrevivência, se conseguissem escapar daquela. O rapaz de óculos passou o braço numa das alças. O outro repetiu o gesto, enquanto os dois continuavam a ser engolidos pela ávida cratera.
Alguns metros abaixo, porém, um espesso tubo de metal, que estendia-se através do diâmetro do poço, reteve a queda, deixando-os pendurados, cada um de um lado, a balançar no vazio. O impacto contra o tubo fez os óculos caírem no meio do buraco, que aumentava de profundidade com muita rapidez.
O outro rapaz viu que abaixo deles havia um grande corredor de concreto, que estava quebrado, mas que parecia firme. Tinham que ser rápidos e tentar saltar até lá, antes que o cano vergasse e quebrasse. 
- Olha para baixo. Temos que balançar e tentar cair naquele corredor. Achas que consegues?
- Não!
- Faz impulso para a frente e balança o corpo. Salta, quando eu disser.
- Não!
- Se não pulares, vais morrer. Pula! Agora!
Os dois saltaram. Sem enxergar bem, já que ficara sem os óculos, o rapaz não largou a mochila, em nenhum momento, colocando-a contra o peito, quando viu que ia bater contra o chão de concreto. Na queda, as pernas não aguentaram o impacto e ele tombou sobre o lado ferido, que ainda sangrava, perdendo a consciência.
O outro aproximou-se e examinou o ferimento. Felizmente a bala passara de raspão, mas havia bastante sangue na camisa do amigo. Na mochila, havia uma caixinha com uns band-aids de vários tamanhos, que ele usou para cobrir o ferimento, depois de limpar com a camisa e um pouco de água, que ainda restava, numa garrafinha de plástico. Usou um curativo maior sobre o outro menor, amarrou uma bandagem, que fez com um pedaço de sua própria t-shirt, por cima do curativo, para manter uma certa pressão… e era o que podia fazer. Esperava que aquilo resolvesse por ora.
Puxou o amigo para longe da abertura, aprumou-o num canto, contra a parede e olhou à volta.
O túnel era longo e amplo, parecendo estar construído em espiral, porque as paredes eram curvas e aparentemente subiam ou desciam, embora bastante subtilmente. Haviam galerias laterais e um sistema de ventilação centralizado, que tinha aberturas para o exterior, para renovação de ar.
- O que aconteceu?
- Tu desmaiaste. Fiz um curativo no ferimento, para tentar estancar o sangue. Agora, descansa um pouco, que eu vou procurar uma saída.
- Não. Eu vou junto. Não quero ficar aqui sozinho.
- Tens certeza?
***
Os dois subiam pelo túnel de ligação aos corredores, quando a terceira explosão ocorreu. Ouviram um som atrás deles, como se algo viesse arrastando, em velocidade acelerada. Quando viram o que era, apressaram-se a correr pelo túnel, na direção oposta. Uma das galerias havia quebrado e grandes massas de terra vinham, como numa avalanche, a persegui-los. Ele entraram numa conduta de ar, mas esta balançou e rompeu.
Os rapazes caíram dentro de uma grande sala, totalmente vedada do exterior, com grossas paredes de concreto armado. Havia uma porta em cada lado. Por cima deles veio a avalanche de terra, a cair, descontrolada. Os dois correram e encostaram-se num vão perto de uma das portas. A terra caiu e soterrou grande parte do lugar.
Em seguida, o lugar todo estremeceu e as luzes, que ainda haviam nas laterais da sala, estouraram ao mesmo tempo. Ficou tudo às escuras. Eles não se moveram por uns longos segundos, tentando ouvir tudo o que se passava à volta.
De repente, com um som estranho, muito ténue, como de contactos metálicos sendo acionados pela passagem da corrente elétrica, uma luz vermelha acendeu, meio incerta de ficar ativa, por muito tempo, acima da cabeça deles. Eles olharam na direção da luz e viram a palavra escrita, em branco, sob fundo vermelho: SAÍDA.
Foi naquele momento que o lugar começou a estremecer todo, primeiro como uma vibração crescente, depois com mais violência. Por fim, parecia que a sala toda ia desabar por cima deles. O som era ensurdecedor. Aquilo durou apenas alguns minutos, mas as estruturas, todas, começaram a balançar de uma maneira tão violenta, que a parede por trás deles rompeu-se, ao lado da porta trancada. As vigas de sustentação por cima deles arrebentaram e o teto veio abaixo. Um dos rapazes esgueirou-se pela fenda na parede e puxou o outro atrás dele. A avalanche selou o lugar onde estavam e a fenda desapareceu, soterrando completamente a antecâmara, onde haviam estado apenas uns segundos antes. Ao dar uns poucos passos à frente, na escuridão, não viram que o chão também havia cedido e havia uma grande fissura aberta no chão, por onde os dois caíram, inadvertidamente.
***
- Que lugar é esse? Parece um bunker…
- Não sei... Mas temos que sair daqui, depressa. Temos que tentar achar uma saída, porque não sabemos se haverá ar suficiente. Estamos muito soterrados. Tem que haver uma saída qualquer deste lugar.
- Parece que há uma abertura naquela direção. Vejo uma claridade. Pode ser uma saída. Vamos tentar chegar até lá…
A tal abertura nada mais era que uma grande rachadura numa das paredes, por onde passaram com alguma dificuldade, mas que, afinal, levou-os para o outro lado. No outro lado havia uma longa galeria, que parecia não ter fim e que parecia ter sido pouco afetada pelas explosões. Algumas luzes de emergência, nas laterais, ainda estavam acesas, embora fracas.
- Acho que ouvi um ruído. Parece que há algo ou alguém. Vamos…
- Não. Pode ser perigoso. Melhor termos cuidado. Se for outro daqueles guardas, estaremos em perigo…
Mas já era tarde demais. O rapaz que perdera os óculos já havia aberto uma pesada porta metálica, no final de um corredor mal iluminado e espiava para dentro, quando o outro aproximou-se e viu o que passava lá dentro.

***

sábado, 30 de maio de 2015

Rota de Fuga (Parte 1)


O sol de verão castigava a cabeça daquele jovem robusto, de tez muito clara e cabelos quase loiros, vestido com uma farda em tecido estampado com padrões abstratos, em vários tons de cáqui e verde. O suor escorria-lhe pela face arredondada, barbeada às pressas, fazendo-a avermelhar.

Era começo da tarde e ele desejava um banho frio, urgentemente. Seu desejo, porém, só seria possível bem mais tarde, após anoitecer e ele terminar o turno. Passava dias e dias naquele lugar, a caminhar de um lado para o outro, sem muito o que fazer, a não ser vigiar o local.

Ele odiava o calor. Odiava aquela roupa abotoada até a altura do peito, quase no pescoço. Odiava ter que usar aquela t-shirt branca por baixo da farda. Ele, simplesmente, odiava estar ali, ao sol, a transpirar, numa função com muito pouca ação e que não exigia nada dele, além de muita paciência.

Aprendera a observar os mais ínfimos movimentos ao longo da área, distraindo-se da aborrecida tarefa que tinha de executar todos os dias, o dia todo. Seus olhos treinados percebiam as mínimas atividades dos pequenos predadores da região, que vinham sempre a busca de alguma comida ou em perseguição de algum roedor, réptil ou mesmo insetos.

Um movimento incomum, num canto, perto de um dos rolos de arame farpado que cercavam o lugar, que ele tinha vigiar e proteger, chamou-lhe a atenção. Primeiro, pensou que fosse um coelho ou um pássaro, mas um pequeno reflexo, quase imperceptível, fê-lo desconfiar que poderia haver algo mais, daquela vez.

Se aquele reflexo fosse de alguma superfície de vidro polido, poderia ser de alguém, que estivesse escondido, a espreitar. Aquela era uma área que de segurança nacional, cuja entrada era proibida a civis. Ele puxou a arma do coldre, destravou o gatilho e começou a caminhar na direção do brilho.


- Acho que ele nos viu. Corre!

- Mas que diabos foi aquilo? Ele atirou em nós?

- Não faça perguntas tolas. Claro que são tiros. Ele é o guarda, afinal… Agora, corre!

O som dos tiros e as balas, a passarem perto dos dois rapazes e ricochetearem nas paredes de concreto, dava-lhes mais que motivos suficientes para correrem o mais rápido que pudessem, sem olhar para trás. Se não o fizessem, perderiam segundos preciosos na fuga. Haviam invadido terreno proibido e sabiam que, se fossem capturados, não seriam poupados.

O tal guarda não parecia nem um pouco interessado em capturá-los. Estava mais predisposto a abatê-los de vez e acabar com a possibilidade de ter a base invadida por intrusos curiosos, como aqueles dois rapazes irresponsáveis e intrometidos. Ele fora treinado para o combate e as saídas estratégicas, não para perseguir adolescentes em fase escolar, vestidos com calções e t-shirts coloridas.

Se a base fosse descoberta, eles iriam ter que explicar muita coisa. Ao mesmo tempo, matar civis poderia gerar um conflito ainda maior. A solução era eliminar, completamente, quaisquer vestígios que pudessem colocar a operação em risco.

Ele odiava correr, especialmente atrás de intrusos. Já bastava ter que ficar de pé o dia todo, debaixo daquele sol de verão, vestido com farda e botas, sentindo o corpo a ferver e agora ainda tinha que correr atrás dos rapazes, debaixo daquele calor infernal.

Ele execrava aquilo tudo: a maldita operação, a maldita base "secreta" e, agora, os malditos adolescentes.

Ele adorava, entretanto, ter uma hipótese de poder atirar em alguém… já que havia sido treinado para aquilo e nunca tivera oportunidade para tal.

A base fora edificada no meio do nada, entre algures e nenhures. Era uma estrutura praticamente invisível, tanto vista de cima, quanto da estrada. Estava construída no topo de um monte, numa cratera escavada com o fim de ficar longe da vista de curiosos. A maior parte das operações ficava na parte subterrânea. Quanto mais estratégico e importante o sector, mais profunda era a área. Era como um arranha-céu invertido.

O povoado mais próximo devia ficar a mais de cinquenta quilômetros daquele lugar. Os rapazes descobriram o local, por acaso, quando ouviram e seguiram o som de um helicóptero, enquanto acampavam no meio da mata.

Logo chegaram a uma área, cercada por centenas de metros de arame farpado, enrolados em espirais, ao longo da grande construção, que por fora, parecia nada mais que um vasto campo de concreto.

Adolescência e curiosidade andam sempre de mãos dadas. As consequências daquela perigosa e displicente  parceria nem sempre eram boas. Era aquele o caso.

Os dois rapazes fugiam, sem olhar para trás, tentando sair do campo de visão do atirador. O guarda era alguns anos mais velho que eles e tinha porte físico bem mais avantajado, além de haver sido treinado militarmente. Com uma arma na mão, colocava, obviamente, os dois em desvantagem.

Eles só tinham uma alternativa: correr… ou então, morrer… e nenhum dos dois tinha intenção de morrer tão cedo. Ainda tinham planos para a escola, carreira, mulheres, futuro.

Morrer não era uma opção. Não mesmo!

Se chegassem de volta à mata, ainda teriam alguma hipótese, pois seriam alvos menos limpos, mas tinham que correr mais e torcer para não serem atingidos até lá.

- Por ali. Depressa!

Uma outra bala passou zunindo. O rapaz, cujos óculos haviam denunciado a presença dos dois ao guarda, sentiu uma dor estranha no lado esquerdo e suas pernas fraquejaram, descontroladas. Tentou continuar correndo, mas, apesar de a adrenalina estar circulando em alta velocidade em seu sangue, ele caiu. A ausência do som dos passos próximo de si, fez o outro rapaz virar-se, para ajudar o amigo, mas já era tarde demais.

O guarda estava de pé, com a arma em punho, a apontar para os dois. O rapaz ferido fechou os olhos. O outro não falou nada. Ficou, somente, a olhar para aquele jovem, de faces avermelhadas, que não demonstrou qualquer emoção, quando firmou o dedo no gatilho e começou a apertá-lo.

Um estrondo ecoou na cabeça do rapaz que estava agachado junto ao amigo caído. Ele mantinha os olhos fixos na arma, que, de repente, passou a apontar em outra direção…

O chão havia estremecido com tanta violência, que o guarda perdera o equilíbrio. O rapaz ainda conseguiu ver a estranha expressão na face do outro, quando uma rachadura abriu-se na terra, engolindo-o, bem ali, à frente deles. O rapaz puxou o amigo pelos braços e viu que ferimento em seu lado esquerdo sangrava. Para sua surpresa, os olhos do outro abriram, revelando uma expressão bastante confusa, como se não percebesse o que havia acontecido, apenas poucos segundos antes.

- Consegues caminhar? Temos que fugir, antes que seja tarde demais…

- Acho que sim.

O chão estremeceu uma outra vez, com mais violência que anteriormente. A cavidade começou a alastrar-se, não só em diâmetro, mas rompendo estranhas fendas, que corriam, como braços, em todas as direções e em velocidade incontrolada. Boa parte do campo, onde estavam, ia afundando rapidamente, amplificando ainda mais o perigo.

- Vamos embora. Rápido!

O rapaz ferido, apoiado pelo outro, levantou-se, ainda com um pouco de dificuldade, mas conseguiu caminhar. A terra tremeu por baixo deles. Eles viram a cratera ceder e as fendas abrirem, como se fossem perigosos tentáculos, que cresciam, como se estivessem em busca de suas impotentes presas.

Os dois começaram a correr, tentando ser, ainda, mais rápidos que antes.

Em poucos segundos, porém, o chão faltou-lhes completamente e eles foram sugados para dentro da cratera, sem conseguirem agarrar-se a nada, enquanto a terra os engolia rapidamente…


***

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Engenheiro das Palavras: Uma Análise Sintática


Numa bela tarde de sol, eu estava empenhado em fazer a tarefa de casa, sentado à mesa improvisada, construída por minha mãe, a partir de tábuas de caixotes, para que eu pudesse estudar no quarto, que dividia com meu irmão mais novo.

Eu tinha que fazer uma redação acerca do texto que Dona Alba, uma austera mulherzinha de meia-idade, que sempre vestia-se de preto, havia lido para a turma de Português, da 1ª série do segundo grau. Era um texto introdutório ao livro Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Fui, talvez, um pouco ingénuo, ao caprichar na execução da tarefa, mas eu não era um estudante que fazia as coisas mal feitas. Eu levava a vida a sério e meus deveres também. Mesmo assim, senti-me estranho quando a grande maioria dos meus colegas de classe lia suas redações e elas todas soavam do mesmo jeito. Eu achava que estava errado, até o momento que ela pediu-me que lesse a minha.

“Embora corresse e brincasse como qualquer menino da sua idade, José Lins do Rego”

- Pare já!

Eu parei. Todos ficaram a olhar-me e eu nem sabia o que estava a acontecer. Então ela levantou a voz e disse, com uma rispidez, que ficou marcada a fogo na minha lembrança:

- Eu não admito que os pais façam as tarefas dos alunos, em hipótese alguma. Isso é uma falta de responsabilidade e jamais vou tolerar este tipo de coisas nas minhas classes.

- Mas fui eu quem…

- Chega! Não quero ouvir mais nada.

Eu calei-me. Já havia percebido que ela não era nem razoável, nem ouvia além de sua própria voz e razão. Meus colegas, que já conheciam-me e ao meu estilo de estudar e apresentar meus trabalhos, olharam-me com um misto de pena e confusão, mas não disseram nada. Eu que me defendesse sozinho, mas nem isso eu ia conseguir fazer.

Nem preciso dizer que minha confusão e embaraço diante daquela situação, transformou-se num ódio mortal e eu jurei que ela iria engolir todas aquelas palavras. O facto é que ao invés de ficar desanimado, eu sabia que tinha que provar que ela estava errada, por isso empenhei-me cada vez mais em melhorar minha redação. Era uma verdadeira questão de honra para mim. Eu, que nunca tinha dificuldade em escrever, passei a ler mais, a usar os dicionários e exceder-me a cada novo desafio, que a mulher lançava e dos quais ela duvidava que eu fosse o autor, fazendo questão de humilhar-me na frente da classe, semana após semana.

Como era de esperar, chegou o dia do teste bimestral e ela anunciou que deveríamos trazer uma folha de papel almaço, para fazer uma redação. Não devo ter-me sentido intimidado, pois não lembro de nada até o momento em que ela deu o tema da redação: “A força do vento do sul sobre a antiga casa”. Eu tive um choque. Quem, em sã consciência, poderia pedir uma redação, sobre um tema daqueles? Eu pensava, pensava e pensava... e não conseguia começar a alinhavar meu texto.

Os outros colegas estavam já a escrever e eu ainda ali, com as mãos na cabeça, a reconhecer que ela havia, finalmente, conseguido. Quase percebia o ar de vitória em sua face, ao ver-me, finalmente, derrotado, provando que ela estava certa, desde o início.

Eu sentia-me um incapaz. Olhei à volta. Todos empenhados a escrever. Dez preciosos minutos haviam passado. Ela não podia vencer-me assim.

Fechei os olhos e pensei. Vou escrever qualquer coisa. Dane-se. Estou malvisto mesmo. Minhas orelhas ferviam. Resolvi comparar o vento e a casa às adversidades da vida e aos homens que conseguem suportá-las. Quando ela anunciou que faltavam apenas mais cinco minutos para o fim da aula e do teste, eu senti o corpo todo a queimar. Quando entreguei a folha escrita nos quatro lados, senti-me como se fosse a criatura mais infeliz do mundo.

Ela havia vencido. Eu recusava-me a falar sobre o assunto, quando alguém perguntava se eu havia conseguido escrever algo coerente. Eu apenas dizia que não tinha ideia nenhuma. Tinha corrido muito mal. Cerca de duas semanas depois, como ela tinha que entregar as notas, trouxe os testes de volta e, antes de devolvê-los, disse:

- Eu quero que vocês ouçam com muita atenção o que eu vou ler.

E começou a ler, em voz alta, palavra por palavra e pausadamente, uma certa redação. Ela parecia saborear o momento, quase num êxtase.

Reconheci algumas partes, mas como havia ficado completamente arrasado durante a prova, minha mente recusava-se a aceitar o pior. Eu não tinha muita certeza de nada. Algumas partes pareciam-se mesmo, com a minha redação. Eu só queria sumir, morrer, ou mesmo desejar que ela parasse, mas era apenas um desejo, que não se realizaria… Na sua natural crueldade, ela jamais pararia de humilhar-me e fazia questão de ler a redação até o final, o que evidentemente o fez. Quando terminou, não fez nenhum comentário - nem positivo, nem negativo. Simplesmente colocou o papel de volta na pilha de testes, que eventualmente começou a devolver aos alunos.

Quando recebi meu teste, tive a certeza que ela havia lido, na íntegra, a minha obra mais lamentada. Não havia nota, nenhuma correção gramatical, nenhuma correção ortográfica. Recebi o papel sem nenhum comentário. À parte de toda aquela ausência de vestígios, havia, apenas um rabisco, que pensei ser sua assinatura, no topo direito da folha. Mais nada.

Nunca havia-me sentido tão humilhado e enxovalhado.

Jamais mencionei que a leitura havia sido do meu texto, por ter experimentado uma vergonha enorme e um desconforto insuportável. Ninguém da classe jamais soube como eu senti-me. Mantive o segredo com o peso que ele tinha na minha consciência e a vergonha que a ocasião trouxera. Eu era acostumado a ler e escrever, informalmente, textos, poemas, peças de teatro e outras pequenas obras, que nunca seriam lidas, nem publicadas e que ficariam totalmente apagadas pelo tempo. Não esperava que fosse desenvolver um interesse maior na literatura, além daquelas pequenas aventuras.

Muito mais tarde, somente, compreendi o que havia acontecido, mas já estava na Universidade, passando por uma outra fase em relação aos meus escritos. Entre uma etapa e outra, haviam-se passado alguns anos. As aulas de Português eram grandes desafios para aquele adolescente inseguro. Mesmo assim, havia aprendido que se não fizéssemos corretamente as análises sintáticas dos textos e poemas, nunca os compreenderíamos ao todo. Aquelas pequenas lições, porém, eu absorvia de maneira muito menos dolorosa que havia passado através de Dona Alba.

No primeiro ano da faculdade de Engenharia, havia uma cadeira de Português. O professor era um catedrático e também escritor já de algum renome no nordeste do país, mas não tão conhecido no sul, onde eu estava. Suas avaliações eram feitas com base na destreza escrita dos novos engenheiros em formação. Em outras palavras, em avaliação de nossas redações. Lembro-me bem que quando entregou-me de volta o primeiro teste do semestre, havia uma mensagem escrita, com uma letra praticamente ilegível.

“Você tem grandes capacidades fictícias. Como não acho que vai manter o nível, vou retirar-lhe um ponto da nota e, se o mantiver, devolvo-lhe no final”.

Pela segunda vez, eu sentia-me desafiado, nas minhas capacidades e desanimava com os resultados, mas sentia um orgulho secreto de haver deixado aquelas dúvidas nas cabeças de meus professores. Eu acreditava em mim e treinava minhas habilidades de maneira informal, sem censura e sem vontade de ser avaliado novamente, com receio que as injustiças anteriores repetissem.

Não foi surpresa, quando percebi que aproximadamente a mesma mensagem acompanhava meus dois outros testes feitos posteriormente, na mesma cadeira. Nem preciso dizer que ele nunca devolveu-me os tais pontos e que minha média semestral ficou B, ao invés de A, em Língua Portuguesa, por causa daquilo…

Perlo jeito, não era fácil encontrar engenheiros que gostassem de escrever qualquer tipo de literatura, além dos relatórios formais das aulas de Física Experimental, Laboratório ou outra coisa que o valesse.

Desisti de escrever por uns tempos, limitando-me a rabiscar alguns poemas aqui e acolá, durante a minha vida de estudante, mesmo assim, para pouquíssimos olhos os lerem. Como ninguém lia, ninguém criticava…. Nem elogiava tampouco… Ainda escrevi umas duas ou três peças para teatro e muitos poemas, mas nada que me fizesse sentir qualquer vontade de publicar. Naquela época, não havia internet. Publicar nem chegava a ser um sonho, pois só poderia ser através de coletâneas, concursos, ou nos varais literários da Universidade, nos quais nunca quis participar.

Depois de algumas décadas, quando já vivia só e depois de passar por uma fase em que minha inspiração para a literatura e o desenho voltavam a aflorar lentamente, fui convidado a deixar o país pela segunda vez, a trabalho. A distância da terra, da família e dos amigos levava-me a produzir pequenos textos, onde contava minhas aventuras e desventuras em terra lusitana. Meus amigos e família liam-nos, através de mensagens de ‘e-mails’ que eu os enviava. Era um grupo muito fechado de leitores. Jurlini, uma grande amiga, disse-me, um dia, quando eu comentei que apenas escrevia para manter uma espécie de diário:

- Tu não tens ideia de como é bom ler o que tu escreves…

Eu senti aquele orgulho secreto, mais uma vez, depois de tê-lo abafado por tanto tempo, tendo quase esquecido que ainda existia. Naquela fase, além das pequenas crônicas, eu escrevia somente poemas, mas sem intenção alguma de publicá-los. Mostrava-os para uns pouquíssimos olhos. Muitos deles tinham destinatários certos, sendo praticamente mensagens exclusivas e direcionadas, de uma forma carinhosa. Eu escrevia, mais por uma necessidade minha de expressar o que passava na minha cabeça, como se existisse um gigante aprisionado, que necessitava manifestar-se daquela forma, ou sufocaria no meu peito. A poesia era um confortável meio de expressar-me, mas fui desafiado a escrever algo diferente, depois de um tempo.

- Só vou ficar descansado quando tu escreveres uma história em que tenha um dragão, um laranjal e dois regatos gémeos.

- Isso não existe. Não há maneira de juntar estes elementos numa história.

- Estás desafiado a fazê-lo.

- E já recusei-me… Esqueça!

Mas Maykon sabia que a única forma de fazer-me, pelo menos tentar, seria desafiar-me daquela forma. Passados alguns dias, eu começava a esboçar as primeiras linhas da história, em que havia dito que era impossível juntar aqueles elementos tão surreais, mas que tornaram-se, em pouco tempo, uma grande parte de mim.

A intenção inicial era de escrever um pequeno conto, mas acabei empolgando-me e deixei-me levar pelo prazer de dar vida àquela série de personagens bastante complexos, cheios de conflitos, mas muito humanos. A história evoluiu, cresceu e por incentivo de meus sobrinhos e dos poucos amigos que iam acompanhando o processo criativo, virou um pequeno livro – meu primeiro e único, até agora. Escrito de uma maneira bastante formal, a Efígie do Dragão ganhou forma, corpo, capa e contracapa e virou um projeto independente, que foi publicado e lançado em Julho de 2009. Apesar de não haver sido divulgado como poderia, nem vendido os quinhentos exemplares impressos, a experiência causou-me um efeito interessante.

Nascia, em mim, uma fase de frenesi literário, em que eu escrevia contos em vários estilos, muitos deles ilustrados por desenhos e aguarelas, que também faziam parte de estudos que eu fazia, com técnicas artísticas amadoras. Estas, também, eu sentia vontade de evoluir e melhorar.

- Eu não sou engenheiro das palavras como tu.

Eu ri. A expressão, engenheiro das palavras, criada por um amigo, divertia-me e, ao mesmo tempo, estimulava-me a enfrentar outros desafios. Embora considerando-me sempre um amador, tanto na escrita quando no desenho e pintura, ambas as formas de expressão tornaram-se partes muito arraigadas em mim, tornando-se tão essenciais quanto respirar.

Pensando bem, passaram a ser bem mais do que simples prazeres: tornaram-se necessidades... Verdadeiros vícios, talvez desencadeados pela necessidade de mostrar minha capacidade de escrever, à famigerada Dona Alba...