domingo, 5 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 1)


O homem olhava para fora da janela, segurando uma caneca de café preto e forte, com suas mãos calejadas pelo trabalho duro, a observar o tempo lá fora. Uma chuva, fina e fria, caía sem parar. Havia dias que o tempo não mudava e o trabalho não podia ser deixado de lado, por tanto tempo. Era uma questão de sobrevivência.

O homem vestiu seu casaco de inverno, embora fosse começo de Outono, tomou seu café quente e saiu, ainda muito cedo na madrugada. O vento e a chuva castigavam a pele massacrada pelo tempo, fazendo-o caminhar curvado e de cabeça baixa, pela orla, na direção do pequeno cais. Sabia que tinha de enfrentar o mar. Sua subsistência dependia apenas daquele trabalho e daquela vida não muito fácil.

Ele já não pensava muito, nem amaldiçoava o tempo ou a chuva. Não reclamava, tampouco. Estava acostumado àquela rotina, a aquele trabalho, à sua solidão e à simplicidade de sua vidinha aparentemente descomplicada, mas bastante dura. Mas sentia que não tinha grandes motivos para reclamar... e não o fazia...

No pequeno cais, o velho barco, seu camarada de todos os dias, oscilava, embalado pelas cristas das ondas. Ele suspirou e caminhou, com passos firmes e decididos, pelo corredor de madeira pesada e escura, carcomida, de tanto ser pisada. Olhou as outras embarcações, todas firmemente amarradas ao embarcadouro, aprumou o capucho do casaco e saltou para dentro da sua.

O velho companheiro rangeu, quando ele pisou no convés, como se estivesse a saudar o homem. Poucos minutos depois, o barulho do motor foi-se distanciando da costa, tornando-se, apenas, mais um monótono murmúrio na praia, enquanto a silhueta do pequeno barco de pesca desaparecia, em meio à bruma e à chuva da madrugada, solitária e incógnita, como seu rijo dono.

***

Uma noite daquelas, cerca de uma semana depois, o tempo mudou... para pior. A chuva caía sem piedade e os trovões, que seguiam os relâmpagos, que  riscavam um céu negro como o petróleo, soavam como os tímpanos de uma orquestra, a tocar uma sinfonia enlouquecida. Ele sorriu, ao ver o céu iluminar-se, como se fossem fogos de artifício. Gostava das tempestades e, sabia, a trovoada, quase sempre, era sinal de mudança.

Na manhã seguinte, o homem saiu de casa, muito cedo, como de costume, para recolher a rede, que estava a meio mar. Ao invés de caminhar pela calçada, para chegar ao cais, resolveu ir pela praia, já que o tempo estava melhor, embora ainda nublado.

A praia estava coberta com muitas algas, como era comum, depois das fortes tempestades. 
Ele gostava de caminhar pela praia, o que era, para ele, tanto um exercício físico, quanto mental. Gostava da areia fofa e limpa; do cheiro iodado do mar; do som das ondas, naquele vai-e-vem contínuo; da brincadeira das águas, a tentar molhar-lhe os pés, cada vez que ele se distraía; da visão das gaivotas a entreter-se com seus voos branquinhos, contra o azul acinzentado do céu e com seus mergulhos dramáticos, no verde esmeralda do oceano...

Àquela hora da manhã, enquanto a vila estava ainda adormecida, longe dos barulhos ordinários do dia-a-dia, longe dos olhares dos transeuntes, enquanto o murmúrio do mar se misturava com os gritos angustiantes das aves, ele sentia-se como se fizesse parte daquela paisagem.

Uma lufada de vento fê-lo estremecer e ajeitar o casaco contra o corpo. O inverno ia ser rigoroso. Mal começara o outono e já sentia-se os efeitos do frio e da humidade, a incomodar os nervos dos mais sensíveis.

Mas ele gostava do frio e do vento. Gostava do mar e da solidão da sua profissão. Às vezes tinha a impressão que perdia a capacidade de comunicar-se e, para o bem da verdade, pouco importava-se com aquilo. Era, agora, um homem do mar, não um orador. Nem era, tampouco, um homem de muitas palavras.

Na verdade, naquela fase de sua vida, preferia os animais aos homens. Aqueles eram muito mais verdadeiros e puros, sem intenções escondidas por trás de suas ações. Instintos e afeições eram diretos e sem falsas intenções. Eram transparentes, como ele já havia sido uma vez… há muito tempo atrás…

O vento batia de frente, como se abraçasse seu corpo já não tão jovem, porém, robusto o suficiente. Ele sabia que ainda tinha muitas forças e haveria de viver longamente, mas não sentia saudades de outros tempos. Ao que lembrasse, não foram tempos que merecessem suas saudades, ou mesmo quaisquer memórias a reviver.
Já não lembrava se havia sido feliz… Talvez houvesse, enganosamente, pensado sê-lo, por um período muito breve de sua vida… a vida que costumava brincar com ele, tantas e tantas vezes… em ocasiões que ele tentava não lembrar, mas que voltavam vívidas, como filmes reciclados, carregados de emoções e que insistiam em manter-se sempre vivas na memória. Ocasiões que trouxeram sua carga de dor, deixando cicatrizes, que eram sempre tocadas, sempre acariciadas e nunca apagadas.
Ele apressou o passo. Não podia deixar o passado interferir no seu presente. Sacudiu a cabeça como quem tenta livrar-se de um pensamento inconveniente e cobriu-a com o capucho do casaco surrado. Tinha que recolher a rede…
Seus pensamentos foram interrompidos por um movimento um tanto inesperado, alguns metros à frente. Um grupo de aves marinhas parecia entretido, em algazarra, com algo que destacava-se no meio de um monte de algas. A princípio ele pensou ser algum animal morto ou apenas restos de peixes, o que não seria surpreendente, mas ao aproximar-se, viu que era algo bem maior, que simples comida para pássaros. Ele apressou-se a afastar os animais, que insistiam em manter-se por perto, como curiosos transeuntes, ao testemunhar um acidente.  
Um corpo, muito pálido, jazia imóvel, na areia da praia, parcialmente coberto pelas algas marinhas. O mar lambia-lhe os pés e as pernas, insistentemente. Ele ajoelhou-se, para examinar o corpo. Como estava de costas, teve que ser virado, para poder ser reconhecido. Esperava ver o rosto todo destruído pelos peixes ou caranguejos e aves, mas ao invés disso, estava em perfeito estado, assim como todo o resto do corpo. Ao tocar na pele, não sentiu o ‘rigor mortis’, nem a temperatura de um cadáver. Ao contrário, estava com temperatura apenas um pouco abaixo do normal, o que poderia ser esperado de uma pessoa que estivesse exposta ao frio do vento e do mar, naquelas condições e em estado de completa nudez. Ele chegou perto do rosto, para tentar perceber se o jovem ainda respirava, ou detetar algum movimento, que fosse, de alguma forma, minimamente percetível. A fraca respiração quase não era notada. O peito mal movia com a entrada de ar nos pulmões, mas o homem estava, com certeza, vivo. 
Ele cobriu o corpo com seu casaco, tomou-o nos braços e levou-o dali. A recolha da rede tinha que esperar.
***
A ilha possuía apenas um pequeno povoado, que tinha um único Posto de Saúde, visitado por um médico, uma vez por semana. O hospital mais próximo ficava no continente, a mais de trezentos quilômetros de distância. Havia uma enfermaria, com medicamentos básicos e primeiros socorros, controlado por uma matrona de humor instável, mas de bom coração. Por saber que o médico viria, já no dia seguinte, ele levou o rapaz para sua casa. Vivia praticamente sozinho, a não ser por um gato gordo, malhado de cinzento e branco, que servia-lhe de diversão e companhia. Tinha tempo para olhar pelo paciente, até, pelo menos, o doutor  examiná-lo, quando chegasse à ilha, algumas horas mais tarde.
Já em casa, tratou de lavar o corpo desacordado do jovem homem e verificar se havia algum sinal de ferimentos. Havia um corte razoavelmente grande na cabeça que, embora já não sangrasse, devia ter vertido bastante sangue, quando feito. Ou havia sido vítima de um assalto ou de um infeliz acidente. Por qual razão estava despido, também era um mistério. Ele foi até o armário e selecionou uma camisa e um par de calças para vesti-lo e arranjou um cobertor e uma colcha para cobri-lo, no sofá da sala de sua casa, de tão poucos cómodos. Ao voltar-se para fechar o armário, seus olhos foram atraídos por uma velha maleta de couro, deixada de propósito, no fundo, para cair no esquecimento, por trás dos casacos mais pesados e longos. Ele levou a mão à maleta e puxou-a para fora.
O coração do jovem batia normalmente, mas a tensão arterial estava bem baixa. Fazia tempo que ele não usava seus velhos instrumentos de medicina. Ele suturou o corte e fez um curativo na cabeça do rapaz, de modo a promover o início da cicatrização, pelo menos até ser examinado pelo médico. Suas mãos já não tinham a destreza de antes e os calos e a textura da pele não facilitaram seu trabalho, mas ele trabalhou como um verdadeiro profissional da saúde. O rapaz precisava ser hidratado. Ele tinha que dar um jeito de arranjar soro e ministrar imediatamente. Só de pensar que tinha de ir ao posto de saúde, ele sentia um desconforto no estômago. Mas não podia pensar em si… não naquela hora…
***
No dia seguinte, com a presença do médico, ele sentia-se mais à vontade. Não tinha tido muita dificuldade em conseguir o soro e a própria matrona ofereceu-se para ir até sua casa, tratar de introduzir a intravenosa. Era mais por curiosidade que por eficiência, mas ele aceitou, para não ter que dar muitas explicações.
Além do corte, que já havia sido tratado, não havia muito o que fazer, a não ser continuar a hidratar e esperar que o rapaz reagisse. Havia o perigo de uma concussão, por isso o médico decidiu que deveria mover o rapaz para o hospital no continente. Precisava de um responsável, caso o doente acordasse. E a polícia teria que ser informada, com urgência…
***
Ele ficava pouco à vontade na cidade. Menos ainda no hospital. A polícia havia sido chamada e iniciara uma investigação. Não encontraram nenhum registo de desaparecimento. Tiraram as impressões digitais e tentaram reconhecimento de face, mas não conseguiram chegar a nada. Enviaram uma foto dele para várias delegacias do país, para tentar, através da distribuição da mesma, descobrir quem era o acidentado. Também não conseguiram nada, verificando se tinha registo criminal. A identidade do rapaz era completamente desconhecida.
***
- Os sinais vitais estão normais, mas algo o impede de acordar… Temos que ter paciência…
Uma semana havia passado, sem grandes mudanças no quadro clínico. O homem decidiu voltar para a ilha, já que, embora tivesse melhorado o estado físico, o rapaz não havia acordado do estado de coma. Avisou ao médico e ao pessoal do hospital que iria para a pensão, onde estava hospedado e, na manhã seguinte, tomaria o barco, de volta para casa e à sua vida de pescador. Dali para diante, o caso era somente com a polícia.
Antes de ir-se, decidiu passar no quarto, para “despedir-se” daquele que nem chegou a conhecer, mas que mexera com sua rotina de vida, por alguns dias.
O rapaz jazia ainda desacordado, muito pálido e sereno, como se, apenas, dormisse. Seu estado era estável, mas ainda sem consciência. Ele aproximou-se e tocou na mão do outro, com uma terna afeição de pai.
- Nossas vidas separam-se aqui, meu rapaz. Pena que não tivemos oportunidade de nos conhecer. Eu gostaria de ter ouvido a tua história.
O rapaz parecia dormir um sono profundo. O pescador virou-se e saiu do quarto. Ao passar pela receção, saudou a enfermeira e despediu-se.
Quando já ia cruzando a porta, ouviu que uma campainha tocou e foi como se aquilo desencadeasse o maior rebuliço da história do hospital. Houve um alvoroço tão grande dentro do recinto, que ele não sabia se corria ou se escondia-se. A enfermeira disse-lhe, em meio à uma agitação, que ele não conseguiu perceber, a princípio:
- Acho melhor não ir-se embora, ainda. O alarme vem do quarto de onde o senhor acabou de sair.
Ele parou e voltou-se, apressando o passo, para chegar ao quarto, junto com os especialistas.
                                                   

1 comentário:

  1. Dois homens. Duas gerações. Dois passados e duas intenções em relação a eles: lembrar, quando quer-se esquecer e esquecer, quando quer-se lembrar...

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