quarta-feira, 10 de junho de 2015

Rota de Fuga (Parte 2)


O vilarejo tinha poucos habitantes e vivia, basicamente, dos resultados das colheitas de suas plantações, especialmente, culturas de milho e trigo, que estendiam-se por vários hectares de terra fértil. Também plantavam horticulturas de época, porém em menor escala. Era raro serem visitados por outros, que não os intermediários, que vinham buscar as safras, distribuídas pela cooperativa local e que acontecia segundo um calendário pré-estabelecido. 
A base, estrategicamente localizada num raio de mais de cinquenta quilômetros do povoado, para que as idas e vindas do exército fossem muito bem camufladas, mesmo durante a fase de construção, começara as atividades como um genuíno acampamento militar. Rapidamente evoluiu para uma sofisticada base de testes e experiências secretas, muitas delas sustentadas por fundos de pesquisas, alimentados por grandes empresas civis e públicas, direcionados para a área nuclear. A base já não era unicamente militar, pois os investidores, com interesses tecnológicos, tinham calendários definidos e precisavam de um cumprimento bastante rigoroso aos mesmos. Os pesquisadores eram grandes cientistas procedentes de uma incubadora de um grupo de Universidades e, convenientemente, recrutados pelo exército.
Um tremor de terra, incomum naquela região, chamou a atenção dos habitantes da pequena localidade. Os agricultores pensaram que a hipótese de um terremoto estava fora de cogitação, quando o primeiro tremor foi sentido. Ficaram em alerta, sem deixar o trabalho, mas quando o segundo sismo ribombou, bem mais forte que o primeiro, saíram em desabalada corrida, de volta para suas casas.
Não estavam preparados, de maneira alguma, porém, para o que viria a seguir.
***
A cavidade abrira tão rapidamente, com tanta violência e de uma forma tão ampla, que seria impossível, para qualquer criatura, agarrar-se a algo, enquanto caía para dentro do enorme abismo, que se formava desgovernadamente. Era como uma grande cascata de terra, cujas areias levavam, junto com elas, tudo o que podiam, enquanto escorregavam pelas bordas de um imenso poço, que aumentava de tamanho e profundidade, com velocidade vertiginosa.
- Depressa! Agarra a alça da mochila e não larga até eu dizer…
Como não havia forma de suster a queda, agarraram-se às alças da mochila, para poderem ficar juntos.
Separados, eles teriam menos condições de sobrevivência, se conseguissem escapar daquela. O rapaz de óculos passou o braço numa das alças. O outro repetiu o gesto, enquanto os dois continuavam a ser engolidos pela ávida cratera.
Alguns metros abaixo, porém, um espesso tubo de metal, que estendia-se através do diâmetro do poço, reteve a queda, deixando-os pendurados, cada um de um lado, a balançar no vazio. O impacto contra o tubo fez os óculos caírem no meio do buraco, que aumentava de profundidade com muita rapidez.
O outro rapaz viu que abaixo deles havia um grande corredor de concreto, que estava quebrado, mas que parecia firme. Tinham que ser rápidos e tentar saltar até lá, antes que o cano vergasse e quebrasse. 
- Olha para baixo. Temos que balançar e tentar cair naquele corredor. Achas que consegues?
- Não!
- Faz impulso para a frente e balança o corpo. Salta, quando eu disser.
- Não!
- Se não pulares, vais morrer. Pula! Agora!
Os dois saltaram. Sem enxergar bem, já que ficara sem os óculos, o rapaz não largou a mochila, em nenhum momento, colocando-a contra o peito, quando viu que ia bater contra o chão de concreto. Na queda, as pernas não aguentaram o impacto e ele tombou sobre o lado ferido, que ainda sangrava, perdendo a consciência.
O outro aproximou-se e examinou o ferimento. Felizmente a bala passara de raspão, mas havia bastante sangue na camisa do amigo. Na mochila, havia uma caixinha com uns band-aids de vários tamanhos, que ele usou para cobrir o ferimento, depois de limpar com a camisa e um pouco de água, que ainda restava, numa garrafinha de plástico. Usou um curativo maior sobre o outro menor, amarrou uma bandagem, que fez com um pedaço de sua própria t-shirt, por cima do curativo, para manter uma certa pressão… e era o que podia fazer. Esperava que aquilo resolvesse por ora.
Puxou o amigo para longe da abertura, aprumou-o num canto, contra a parede e olhou à volta.
O túnel era longo e amplo, parecendo estar construído em espiral, porque as paredes eram curvas e aparentemente subiam ou desciam, embora bastante subtilmente. Haviam galerias laterais e um sistema de ventilação centralizado, que tinha aberturas para o exterior, para renovação de ar.
- O que aconteceu?
- Tu desmaiaste. Fiz um curativo no ferimento, para tentar estancar o sangue. Agora, descansa um pouco, que eu vou procurar uma saída.
- Não. Eu vou junto. Não quero ficar aqui sozinho.
- Tens certeza?
***
Os dois subiam pelo túnel de ligação aos corredores, quando a terceira explosão ocorreu. Ouviram um som atrás deles, como se algo viesse arrastando, em velocidade acelerada. Quando viram o que era, apressaram-se a correr pelo túnel, na direção oposta. Uma das galerias havia quebrado e grandes massas de terra vinham, como numa avalanche, a persegui-los. Ele entraram numa conduta de ar, mas esta balançou e rompeu.
Os rapazes caíram dentro de uma grande sala, totalmente vedada do exterior, com grossas paredes de concreto armado. Havia uma porta em cada lado. Por cima deles veio a avalanche de terra, a cair, descontrolada. Os dois correram e encostaram-se num vão perto de uma das portas. A terra caiu e soterrou grande parte do lugar.
Em seguida, o lugar todo estremeceu e as luzes, que ainda haviam nas laterais da sala, estouraram ao mesmo tempo. Ficou tudo às escuras. Eles não se moveram por uns longos segundos, tentando ouvir tudo o que se passava à volta.
De repente, com um som estranho, muito ténue, como de contactos metálicos sendo acionados pela passagem da corrente elétrica, uma luz vermelha acendeu, meio incerta de ficar ativa, por muito tempo, acima da cabeça deles. Eles olharam na direção da luz e viram a palavra escrita, em branco, sob fundo vermelho: SAÍDA.
Foi naquele momento que o lugar começou a estremecer todo, primeiro como uma vibração crescente, depois com mais violência. Por fim, parecia que a sala toda ia desabar por cima deles. O som era ensurdecedor. Aquilo durou apenas alguns minutos, mas as estruturas, todas, começaram a balançar de uma maneira tão violenta, que a parede por trás deles rompeu-se, ao lado da porta trancada. As vigas de sustentação por cima deles arrebentaram e o teto veio abaixo. Um dos rapazes esgueirou-se pela fenda na parede e puxou o outro atrás dele. A avalanche selou o lugar onde estavam e a fenda desapareceu, soterrando completamente a antecâmara, onde haviam estado apenas uns segundos antes. Ao dar uns poucos passos à frente, na escuridão, não viram que o chão também havia cedido e havia uma grande fissura aberta no chão, por onde os dois caíram, inadvertidamente.
***
- Que lugar é esse? Parece um bunker…
- Não sei... Mas temos que sair daqui, depressa. Temos que tentar achar uma saída, porque não sabemos se haverá ar suficiente. Estamos muito soterrados. Tem que haver uma saída qualquer deste lugar.
- Parece que há uma abertura naquela direção. Vejo uma claridade. Pode ser uma saída. Vamos tentar chegar até lá…
A tal abertura nada mais era que uma grande rachadura numa das paredes, por onde passaram com alguma dificuldade, mas que, afinal, levou-os para o outro lado. No outro lado havia uma longa galeria, que parecia não ter fim e que parecia ter sido pouco afetada pelas explosões. Algumas luzes de emergência, nas laterais, ainda estavam acesas, embora fracas.
- Acho que ouvi um ruído. Parece que há algo ou alguém. Vamos…
- Não. Pode ser perigoso. Melhor termos cuidado. Se for outro daqueles guardas, estaremos em perigo…
Mas já era tarde demais. O rapaz que perdera os óculos já havia aberto uma pesada porta metálica, no final de um corredor mal iluminado e espiava para dentro, quando o outro aproximou-se e viu o que passava lá dentro.

***

sábado, 30 de maio de 2015

Rota de Fuga (Parte 1)


O sol de verão castigava a cabeça daquele jovem robusto, de tez muito clara e cabelos quase loiros, vestido com uma farda em tecido estampado com padrões abstratos, em vários tons de cáqui e verde. O suor escorria-lhe pela face arredondada, barbeada às pressas, fazendo-a avermelhar.

Era começo da tarde e ele desejava um banho frio, urgentemente. Seu desejo, porém, só seria possível bem mais tarde, após anoitecer e ele terminar o turno. Passava dias e dias naquele lugar, a caminhar de um lado para o outro, sem muito o que fazer, a não ser vigiar o local.

Ele odiava o calor. Odiava aquela roupa abotoada até a altura do peito, quase no pescoço. Odiava ter que usar aquela t-shirt branca por baixo da farda. Ele, simplesmente, odiava estar ali, ao sol, a transpirar, numa função com muito pouca ação e que não exigia nada dele, além de muita paciência.

Aprendera a observar os mais ínfimos movimentos ao longo da área, distraindo-se da aborrecida tarefa que tinha de executar todos os dias, o dia todo. Seus olhos treinados percebiam as mínimas atividades dos pequenos predadores da região, que vinham sempre a busca de alguma comida ou em perseguição de algum roedor, réptil ou mesmo insetos.

Um movimento incomum, num canto, perto de um dos rolos de arame farpado que cercavam o lugar, que ele tinha vigiar e proteger, chamou-lhe a atenção. Primeiro, pensou que fosse um coelho ou um pássaro, mas um pequeno reflexo, quase imperceptível, fê-lo desconfiar que poderia haver algo mais, daquela vez.

Se aquele reflexo fosse de alguma superfície de vidro polido, poderia ser de alguém, que estivesse escondido, a espreitar. Aquela era uma área que de segurança nacional, cuja entrada era proibida a civis. Ele puxou a arma do coldre, destravou o gatilho e começou a caminhar na direção do brilho.


- Acho que ele nos viu. Corre!

- Mas que diabos foi aquilo? Ele atirou em nós?

- Não faça perguntas tolas. Claro que são tiros. Ele é o guarda, afinal… Agora, corre!

O som dos tiros e as balas, a passarem perto dos dois rapazes e ricochetearem nas paredes de concreto, dava-lhes mais que motivos suficientes para correrem o mais rápido que pudessem, sem olhar para trás. Se não o fizessem, perderiam segundos preciosos na fuga. Haviam invadido terreno proibido e sabiam que, se fossem capturados, não seriam poupados.

O tal guarda não parecia nem um pouco interessado em capturá-los. Estava mais predisposto a abatê-los de vez e acabar com a possibilidade de ter a base invadida por intrusos curiosos, como aqueles dois rapazes irresponsáveis e intrometidos. Ele fora treinado para o combate e as saídas estratégicas, não para perseguir adolescentes em fase escolar, vestidos com calções e t-shirts coloridas.

Se a base fosse descoberta, eles iriam ter que explicar muita coisa. Ao mesmo tempo, matar civis poderia gerar um conflito ainda maior. A solução era eliminar, completamente, quaisquer vestígios que pudessem colocar a operação em risco.

Ele odiava correr, especialmente atrás de intrusos. Já bastava ter que ficar de pé o dia todo, debaixo daquele sol de verão, vestido com farda e botas, sentindo o corpo a ferver e agora ainda tinha que correr atrás dos rapazes, debaixo daquele calor infernal.

Ele execrava aquilo tudo: a maldita operação, a maldita base "secreta" e, agora, os malditos adolescentes.

Ele adorava, entretanto, ter uma hipótese de poder atirar em alguém… já que havia sido treinado para aquilo e nunca tivera oportunidade para tal.

A base fora edificada no meio do nada, entre algures e nenhures. Era uma estrutura praticamente invisível, tanto vista de cima, quanto da estrada. Estava construída no topo de um monte, numa cratera escavada com o fim de ficar longe da vista de curiosos. A maior parte das operações ficava na parte subterrânea. Quanto mais estratégico e importante o sector, mais profunda era a área. Era como um arranha-céu invertido.

O povoado mais próximo devia ficar a mais de cinquenta quilômetros daquele lugar. Os rapazes descobriram o local, por acaso, quando ouviram e seguiram o som de um helicóptero, enquanto acampavam no meio da mata.

Logo chegaram a uma área, cercada por centenas de metros de arame farpado, enrolados em espirais, ao longo da grande construção, que por fora, parecia nada mais que um vasto campo de concreto.

Adolescência e curiosidade andam sempre de mãos dadas. As consequências daquela perigosa e displicente  parceria nem sempre eram boas. Era aquele o caso.

Os dois rapazes fugiam, sem olhar para trás, tentando sair do campo de visão do atirador. O guarda era alguns anos mais velho que eles e tinha porte físico bem mais avantajado, além de haver sido treinado militarmente. Com uma arma na mão, colocava, obviamente, os dois em desvantagem.

Eles só tinham uma alternativa: correr… ou então, morrer… e nenhum dos dois tinha intenção de morrer tão cedo. Ainda tinham planos para a escola, carreira, mulheres, futuro.

Morrer não era uma opção. Não mesmo!

Se chegassem de volta à mata, ainda teriam alguma hipótese, pois seriam alvos menos limpos, mas tinham que correr mais e torcer para não serem atingidos até lá.

- Por ali. Depressa!

Uma outra bala passou zunindo. O rapaz, cujos óculos haviam denunciado a presença dos dois ao guarda, sentiu uma dor estranha no lado esquerdo e suas pernas fraquejaram, descontroladas. Tentou continuar correndo, mas, apesar de a adrenalina estar circulando em alta velocidade em seu sangue, ele caiu. A ausência do som dos passos próximo de si, fez o outro rapaz virar-se, para ajudar o amigo, mas já era tarde demais.

O guarda estava de pé, com a arma em punho, a apontar para os dois. O rapaz ferido fechou os olhos. O outro não falou nada. Ficou, somente, a olhar para aquele jovem, de faces avermelhadas, que não demonstrou qualquer emoção, quando firmou o dedo no gatilho e começou a apertá-lo.

Um estrondo ecoou na cabeça do rapaz que estava agachado junto ao amigo caído. Ele mantinha os olhos fixos na arma, que, de repente, passou a apontar em outra direção…

O chão havia estremecido com tanta violência, que o guarda perdera o equilíbrio. O rapaz ainda conseguiu ver a estranha expressão na face do outro, quando uma rachadura abriu-se na terra, engolindo-o, bem ali, à frente deles. O rapaz puxou o amigo pelos braços e viu que ferimento em seu lado esquerdo sangrava. Para sua surpresa, os olhos do outro abriram, revelando uma expressão bastante confusa, como se não percebesse o que havia acontecido, apenas poucos segundos antes.

- Consegues caminhar? Temos que fugir, antes que seja tarde demais…

- Acho que sim.

O chão estremeceu uma outra vez, com mais violência que anteriormente. A cavidade começou a alastrar-se, não só em diâmetro, mas rompendo estranhas fendas, que corriam, como braços, em todas as direções e em velocidade incontrolada. Boa parte do campo, onde estavam, ia afundando rapidamente, amplificando ainda mais o perigo.

- Vamos embora. Rápido!

O rapaz ferido, apoiado pelo outro, levantou-se, ainda com um pouco de dificuldade, mas conseguiu caminhar. A terra tremeu por baixo deles. Eles viram a cratera ceder e as fendas abrirem, como se fossem perigosos tentáculos, que cresciam, como se estivessem em busca de suas impotentes presas.

Os dois começaram a correr, tentando ser, ainda, mais rápidos que antes.

Em poucos segundos, porém, o chão faltou-lhes completamente e eles foram sugados para dentro da cratera, sem conseguirem agarrar-se a nada, enquanto a terra os engolia rapidamente…


***

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Engenheiro das Palavras: Uma Análise Sintática


Numa bela tarde de sol, eu estava empenhado em fazer a tarefa de casa, sentado à mesa improvisada, construída por minha mãe, a partir de tábuas de caixotes, para que eu pudesse estudar no quarto, que dividia com meu irmão mais novo.

Eu tinha que fazer uma redação acerca do texto que Dona Alba, uma austera mulherzinha de meia-idade, que sempre vestia-se de preto, havia lido para a turma de Português, da 1ª série do segundo grau. Era um texto introdutório ao livro Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Fui, talvez, um pouco ingénuo, ao caprichar na execução da tarefa, mas eu não era um estudante que fazia as coisas mal feitas. Eu levava a vida a sério e meus deveres também. Mesmo assim, senti-me estranho quando a grande maioria dos meus colegas de classe lia suas redações e elas todas soavam do mesmo jeito. Eu achava que estava errado, até o momento que ela pediu-me que lesse a minha.

“Embora corresse e brincasse como qualquer menino da sua idade, José Lins do Rego”

- Pare já!

Eu parei. Todos ficaram a olhar-me e eu nem sabia o que estava a acontecer. Então ela levantou a voz e disse, com uma rispidez, que ficou marcada a fogo na minha lembrança:

- Eu não admito que os pais façam as tarefas dos alunos, em hipótese alguma. Isso é uma falta de responsabilidade e jamais vou tolerar este tipo de coisas nas minhas classes.

- Mas fui eu quem…

- Chega! Não quero ouvir mais nada.

Eu calei-me. Já havia percebido que ela não era nem razoável, nem ouvia além de sua própria voz e razão. Meus colegas, que já conheciam-me e ao meu estilo de estudar e apresentar meus trabalhos, olharam-me com um misto de pena e confusão, mas não disseram nada. Eu que me defendesse sozinho, mas nem isso eu ia conseguir fazer.

Nem preciso dizer que minha confusão e embaraço diante daquela situação, transformou-se num ódio mortal e eu jurei que ela iria engolir todas aquelas palavras. O facto é que ao invés de ficar desanimado, eu sabia que tinha que provar que ela estava errada, por isso empenhei-me cada vez mais em melhorar minha redação. Era uma verdadeira questão de honra para mim. Eu, que nunca tinha dificuldade em escrever, passei a ler mais, a usar os dicionários e exceder-me a cada novo desafio, que a mulher lançava e dos quais ela duvidava que eu fosse o autor, fazendo questão de humilhar-me na frente da classe, semana após semana.

Como era de esperar, chegou o dia do teste bimestral e ela anunciou que deveríamos trazer uma folha de papel almaço, para fazer uma redação. Não devo ter-me sentido intimidado, pois não lembro de nada até o momento em que ela deu o tema da redação: “A força do vento do sul sobre a antiga casa”. Eu tive um choque. Quem, em sã consciência, poderia pedir uma redação, sobre um tema daqueles? Eu pensava, pensava e pensava... e não conseguia começar a alinhavar meu texto.

Os outros colegas estavam já a escrever e eu ainda ali, com as mãos na cabeça, a reconhecer que ela havia, finalmente, conseguido. Quase percebia o ar de vitória em sua face, ao ver-me, finalmente, derrotado, provando que ela estava certa, desde o início.

Eu sentia-me um incapaz. Olhei à volta. Todos empenhados a escrever. Dez preciosos minutos haviam passado. Ela não podia vencer-me assim.

Fechei os olhos e pensei. Vou escrever qualquer coisa. Dane-se. Estou malvisto mesmo. Minhas orelhas ferviam. Resolvi comparar o vento e a casa às adversidades da vida e aos homens que conseguem suportá-las. Quando ela anunciou que faltavam apenas mais cinco minutos para o fim da aula e do teste, eu senti o corpo todo a queimar. Quando entreguei a folha escrita nos quatro lados, senti-me como se fosse a criatura mais infeliz do mundo.

Ela havia vencido. Eu recusava-me a falar sobre o assunto, quando alguém perguntava se eu havia conseguido escrever algo coerente. Eu apenas dizia que não tinha ideia nenhuma. Tinha corrido muito mal. Cerca de duas semanas depois, como ela tinha que entregar as notas, trouxe os testes de volta e, antes de devolvê-los, disse:

- Eu quero que vocês ouçam com muita atenção o que eu vou ler.

E começou a ler, em voz alta, palavra por palavra e pausadamente, uma certa redação. Ela parecia saborear o momento, quase num êxtase.

Reconheci algumas partes, mas como havia ficado completamente arrasado durante a prova, minha mente recusava-se a aceitar o pior. Eu não tinha muita certeza de nada. Algumas partes pareciam-se mesmo, com a minha redação. Eu só queria sumir, morrer, ou mesmo desejar que ela parasse, mas era apenas um desejo, que não se realizaria… Na sua natural crueldade, ela jamais pararia de humilhar-me e fazia questão de ler a redação até o final, o que evidentemente o fez. Quando terminou, não fez nenhum comentário - nem positivo, nem negativo. Simplesmente colocou o papel de volta na pilha de testes, que eventualmente começou a devolver aos alunos.

Quando recebi meu teste, tive a certeza que ela havia lido, na íntegra, a minha obra mais lamentada. Não havia nota, nenhuma correção gramatical, nenhuma correção ortográfica. Recebi o papel sem nenhum comentário. À parte de toda aquela ausência de vestígios, havia, apenas um rabisco, que pensei ser sua assinatura, no topo direito da folha. Mais nada.

Nunca havia-me sentido tão humilhado e enxovalhado.

Jamais mencionei que a leitura havia sido do meu texto, por ter experimentado uma vergonha enorme e um desconforto insuportável. Ninguém da classe jamais soube como eu senti-me. Mantive o segredo com o peso que ele tinha na minha consciência e a vergonha que a ocasião trouxera. Eu era acostumado a ler e escrever, informalmente, textos, poemas, peças de teatro e outras pequenas obras, que nunca seriam lidas, nem publicadas e que ficariam totalmente apagadas pelo tempo. Não esperava que fosse desenvolver um interesse maior na literatura, além daquelas pequenas aventuras.

Muito mais tarde, somente, compreendi o que havia acontecido, mas já estava na Universidade, passando por uma outra fase em relação aos meus escritos. Entre uma etapa e outra, haviam-se passado alguns anos. As aulas de Português eram grandes desafios para aquele adolescente inseguro. Mesmo assim, havia aprendido que se não fizéssemos corretamente as análises sintáticas dos textos e poemas, nunca os compreenderíamos ao todo. Aquelas pequenas lições, porém, eu absorvia de maneira muito menos dolorosa que havia passado através de Dona Alba.

No primeiro ano da faculdade de Engenharia, havia uma cadeira de Português. O professor era um catedrático e também escritor já de algum renome no nordeste do país, mas não tão conhecido no sul, onde eu estava. Suas avaliações eram feitas com base na destreza escrita dos novos engenheiros em formação. Em outras palavras, em avaliação de nossas redações. Lembro-me bem que quando entregou-me de volta o primeiro teste do semestre, havia uma mensagem escrita, com uma letra praticamente ilegível.

“Você tem grandes capacidades fictícias. Como não acho que vai manter o nível, vou retirar-lhe um ponto da nota e, se o mantiver, devolvo-lhe no final”.

Pela segunda vez, eu sentia-me desafiado, nas minhas capacidades e desanimava com os resultados, mas sentia um orgulho secreto de haver deixado aquelas dúvidas nas cabeças de meus professores. Eu acreditava em mim e treinava minhas habilidades de maneira informal, sem censura e sem vontade de ser avaliado novamente, com receio que as injustiças anteriores repetissem.

Não foi surpresa, quando percebi que aproximadamente a mesma mensagem acompanhava meus dois outros testes feitos posteriormente, na mesma cadeira. Nem preciso dizer que ele nunca devolveu-me os tais pontos e que minha média semestral ficou B, ao invés de A, em Língua Portuguesa, por causa daquilo…

Perlo jeito, não era fácil encontrar engenheiros que gostassem de escrever qualquer tipo de literatura, além dos relatórios formais das aulas de Física Experimental, Laboratório ou outra coisa que o valesse.

Desisti de escrever por uns tempos, limitando-me a rabiscar alguns poemas aqui e acolá, durante a minha vida de estudante, mesmo assim, para pouquíssimos olhos os lerem. Como ninguém lia, ninguém criticava…. Nem elogiava tampouco… Ainda escrevi umas duas ou três peças para teatro e muitos poemas, mas nada que me fizesse sentir qualquer vontade de publicar. Naquela época, não havia internet. Publicar nem chegava a ser um sonho, pois só poderia ser através de coletâneas, concursos, ou nos varais literários da Universidade, nos quais nunca quis participar.

Depois de algumas décadas, quando já vivia só e depois de passar por uma fase em que minha inspiração para a literatura e o desenho voltavam a aflorar lentamente, fui convidado a deixar o país pela segunda vez, a trabalho. A distância da terra, da família e dos amigos levava-me a produzir pequenos textos, onde contava minhas aventuras e desventuras em terra lusitana. Meus amigos e família liam-nos, através de mensagens de ‘e-mails’ que eu os enviava. Era um grupo muito fechado de leitores. Jurlini, uma grande amiga, disse-me, um dia, quando eu comentei que apenas escrevia para manter uma espécie de diário:

- Tu não tens ideia de como é bom ler o que tu escreves…

Eu senti aquele orgulho secreto, mais uma vez, depois de tê-lo abafado por tanto tempo, tendo quase esquecido que ainda existia. Naquela fase, além das pequenas crônicas, eu escrevia somente poemas, mas sem intenção alguma de publicá-los. Mostrava-os para uns pouquíssimos olhos. Muitos deles tinham destinatários certos, sendo praticamente mensagens exclusivas e direcionadas, de uma forma carinhosa. Eu escrevia, mais por uma necessidade minha de expressar o que passava na minha cabeça, como se existisse um gigante aprisionado, que necessitava manifestar-se daquela forma, ou sufocaria no meu peito. A poesia era um confortável meio de expressar-me, mas fui desafiado a escrever algo diferente, depois de um tempo.

- Só vou ficar descansado quando tu escreveres uma história em que tenha um dragão, um laranjal e dois regatos gémeos.

- Isso não existe. Não há maneira de juntar estes elementos numa história.

- Estás desafiado a fazê-lo.

- E já recusei-me… Esqueça!

Mas Maykon sabia que a única forma de fazer-me, pelo menos tentar, seria desafiar-me daquela forma. Passados alguns dias, eu começava a esboçar as primeiras linhas da história, em que havia dito que era impossível juntar aqueles elementos tão surreais, mas que tornaram-se, em pouco tempo, uma grande parte de mim.

A intenção inicial era de escrever um pequeno conto, mas acabei empolgando-me e deixei-me levar pelo prazer de dar vida àquela série de personagens bastante complexos, cheios de conflitos, mas muito humanos. A história evoluiu, cresceu e por incentivo de meus sobrinhos e dos poucos amigos que iam acompanhando o processo criativo, virou um pequeno livro – meu primeiro e único, até agora. Escrito de uma maneira bastante formal, a Efígie do Dragão ganhou forma, corpo, capa e contracapa e virou um projeto independente, que foi publicado e lançado em Julho de 2009. Apesar de não haver sido divulgado como poderia, nem vendido os quinhentos exemplares impressos, a experiência causou-me um efeito interessante.

Nascia, em mim, uma fase de frenesi literário, em que eu escrevia contos em vários estilos, muitos deles ilustrados por desenhos e aguarelas, que também faziam parte de estudos que eu fazia, com técnicas artísticas amadoras. Estas, também, eu sentia vontade de evoluir e melhorar.

- Eu não sou engenheiro das palavras como tu.

Eu ri. A expressão, engenheiro das palavras, criada por um amigo, divertia-me e, ao mesmo tempo, estimulava-me a enfrentar outros desafios. Embora considerando-me sempre um amador, tanto na escrita quando no desenho e pintura, ambas as formas de expressão tornaram-se partes muito arraigadas em mim, tornando-se tão essenciais quanto respirar.

Pensando bem, passaram a ser bem mais do que simples prazeres: tornaram-se necessidades... Verdadeiros vícios, talvez desencadeados pela necessidade de mostrar minha capacidade de escrever, à famigerada Dona Alba...


terça-feira, 5 de maio de 2015

Vertente


Verte,
Lenta e abundante,
A marcar o caminho
Que percorre;
A incendiar,
Por onde passa,
A pálida pele;
A descer,
Sem rédeas
E, já, sem receio;
A libertar-se,
Em mergulho,
Num vazio
Infinito,
Aberto
Entre a dor
E a placidez imensurável
Da queda.
Traz atrás de si
Uma outra lágrima…
Depois outra…
E ainda outra…
Até que a alma esvai-se,
Enfim,
E seca sua fonte
De tanto pesar
E o olhar perde-se,
Vagante,
Num ponto inexistente,
Entre o que foi
E o que já não há,
Nem voltará a haver
Jamais...

domingo, 26 de abril de 2015

Um Pacto (In Pactus)


Por favor, não te apaixones por mim. Tu prometeste que não irias...

- Eu sei. Não te preocupes. Eu sei muito bem onde estou pisando. Já passei por isso antes e não vou-me apaixonar outra vez.

- OK. Lembra que tu prometeste.

- Sim. Eu sei. Podes deixar... Quando vens de novo? Já faz algum tempo, desde a última vez.

- Talvez na próxima semana. As coisas não estão fáceis do meu lado. A esposa está exigindo atenção. Anda meio desconfiada, mas eu estou apenas sobrecarregado de trabalho e sentindo-me muito cansado.

- Tu precisas é de uma massagem, um forte abraço e descansar tua cabeça no meu colo. Eu afago-te até que durmas em meus braços, relaxado e feliz.

- Soa como o paraíso, mas longe de ser viável em um curto espaço de tempo. Eu não posso escorregar agora ou posso perder tudo. Precisamos ter paciência.

Eu desisti de discutir. Não havia nada que eu pudesse fazer, de qualquer maneira. Desejei que a vida fosse diferente. Desejei que eu fosse diferente. Eu queria que ele fosse diferente. Mas a vida não é feita de desejos...

- OK. Leva o tempo que precisares, descansa um pouco... ou descansa muito... Quando estiveres pronto, novamente, por favor, me avise.

- OK. Adeus por agora.

- Até mais, meu querido. Vou sentir tua falta.

- Dorme bem.

- Tu também.

A conversa fora bastante superficial, simples e quase impessoal. Ambos estávamos tendo muito cuidado, tentando evitar o inevitável. Ambos acreditávamos que era fácil manter nossas emoções sob controlo. Homens casados ​​são, realmente, muito complicados.

Fechei a sessão, desliguei o computador e voltei à minha vida, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Nós costumávamos conversar on-line todos os dias, à mesma hora, dizendo quase as mesmas coisas e prometendo nunca nos apaixonarmos ou teríamos que deixar de vermo-nos, para o bem de nossas sanidades. Ele era um homem casado com mulher e filhos. Um par deles. Eu havia sobrevivido a um divórcio e queria continuar assim, sem mais ninguém. Não havia nada de novo naquilo.

A maioria das pessoas que eu conhecia também estavam divorciadas e gostariam de permanecer naquela condição, de qualquer maneira, durante o tempo mais longo que pudessem. Alguns deles, no entanto, tinham medo de envelhecer sozinhos.

Eu tinha a minha vida, meu passado, minhas crenças sobre o amor, relacionamentos e solidão. E eu gostava tanto da minha vida, quanto da minha liberdade.

Estar com ele era como ter alguém e não ter nada, nem ninguém, ao mesmo tempo. Mas eu não tinha medo de envelhecer, nem de solidão... absolutamente...

Decidi preparar algo para comer, descansar um pouco, talvez assistir um pouco de TV e ir para a cama cedo. Tentei não pensar sobre a conversa que tivera, por mais tempo que o necessário. Tendo minha mente e as mãos ocupadas, por algum tempo, seria perfeito para o momento.

O gato entrou na cozinha, sentou-se no tapete azul e ficou à espera de seu jantar e eu comecei a cozinhar um macarrão com molho de cogumelos, logo que o bichano foi servido. Meu único e verdadeiro companheiro estava OK com sua pequena porção de atum para o jantar e mostrou sua satisfação, esfregando a cabeça nas minhas pernas, assim que terminou. Brinquei com ele, afaguei-lhe a cabeça e voltei a cozinhar, depois de lavar minhas mãos pela milionésima vez, naquela noite.

Fui para a cama como planejado, após a refeição simples de massa, acompanhada de um bom e encorpado vinho tinto e tentei relaxar, esvaziando a mente, antes de adormecer.

Sonhei que estava em seus braços. Seus lábios eram quentes na minha fronte, minhas pálpebras, meu rosto e meus lábios. Seu gosto era doce e amargo ao mesmo tempo. Ele sempre havia sido doce, mas o acordo que fizemos trouxe uma espécie de amargura na minha alma, que não era novidade para mim. Ele estava repetindo aquelas palavras, que eu já não podia ouvir mais, mas, infelizmente, só se pode desejar que as coisas fossem diferentes. A verdade é, às vezes, muito difícil de suportar.

"Por favor, não te apaixones por mim."

Quão abstrato e estúpido um pacto daqueles poderia ser? Quão imprevisível pode ser um coração, antes que se perceba que já é tarde demais, para voltar atrás?

E eu conhecia meu coração muito bem. Eu poderia dizer todas as palavras e fazer todas as promessas e ainda permanecer longe de problemas, se eu quisesse, mas era isso que eu realmente queria? Se eu não sentisse aquela paixão, como eu poderia estar inteiramente presente naqueles encontros íntimos?

Eu adorava seu cheiro, seu sabor, seu toque e sua abertura em receber minhas carícias. Adorava a forma como ele sentia prazer com a minha presença; do jeito que ele dizia que era todo meu e eu tinha pleno acesso a tudo o que eu quisesse; a maneira que dava o seu corpo para mim e a forma como ele usava o meu corpo para seu próprio prazer e para o meu, também, é claro. Gostava de como ele me olhava no fundo dos olhos e como ele fechava as pálpebras ao ser tocado por meus dedos; o modo como ele segurava meu corpo perto do seu, enredava as pernas nas minhas, deixando a impressão de que nunca iriamos separar-nos novamente; a maneira como ele me beijava com paixão genuína e, também, do jeito que ele me amava.

Sim. A maneira como ele fazia amor comigo. Aquilo era mais do que o contato apenas físico, eu poderia garantir. Eu já tivera outros homens antes dele e ninguém tinha-me deleitado com tal paixão. Ele era apaixonado, gentil, atencioso e presente. Mas não era meu.

Ou, melhor dizendo: ele era. Por alguns minutos apenas, por vezes, um par de horas, ele era inteira e abertamente meu, como ninguém havia sido antes.

Eu tinha orgulho de suas realizações e de sua vida. Ele me dissera, certa vez, que eu era a única pessoa que sabia tudo sobre sua vida e seus desejos secretos. A maioria deles eram tão secretos, que quase escondia de si mesmo, mas, no entanto, haviam sido compartilhados comigo.

Que tipo de homem faria isso, sem ter uma confiança cega na pessoa com quem estava?

- Quando tu pensas em mim, no que tu pensas?

Ele corou. Não era bom em falar sobre seus pensamentos ou sentimentos, especialmente quando se referia ao nosso não-chamado "relacionamento".

Eu ri. Como ele podia ser tão docemente teimoso?

Ao dizer nada e corando assim, ele estava-me dizendo tudo, sem pronunciar uma única palavra. Ele não admitia o óbvio, nem aceitava a verdade. O que estava acontecendo entre nós era algo a ser seriamente considerado, mas ele nunca diria nada em alta voz. No fundo, entretanto, sabíamos... e muito bem... o que havia entre nós.

O que são as palavras, afinal? Por que uma pessoa precisa dizer o que acontece, em alta voz, quando os sentimentos não precisam de vocábulos, para serem, expressamente, expressados? Eu podia ver em seus olhos. Eu podia sentir em seu corpo. Eu podia ler seus pensamentos, só de olhar para ele e perceber a expressão terna em seu bonito rosto. Sua boca nunca iria pronunciar as palavras, mas eu podia ouvi-las sendo gritadas por seus doces olhos.

Eu olhei para ele e pensei: ‘tu não precisas admitir, mas eu sei que tu és, de fato, o meu homem’.

- E tu? Em que tu pensas, quando pensas em mim?

- Eu penso em anjos e percebo quão forte tu és. Eu gosto tanto de ti...

- Tu estás caindo em tentação e apaixonando-te, embora tenhas prometido que não irias. O que vais fazer agora?

- Eu não vou fazer nada. Não há nada que eu possa fazer, mas deixar minhas emoções correrem livres. Eu gosto muito de ti e eu não quero perder isso. És importante... muito importante para mim...

- Eu sei. Eu sei muito bem, mas tu prometeste...

Beijei seus lábios. Ele, então, respondeu-me com ternura, abrindo suas enormes asas e segurando-me em um caloroso abraço.

- Deixe a vida guiar-nos, por favor. Não lute contra isso, ou então vamos perder o melhor de nós...

- Eu não vou lutar... não vou lutar...

Acordei no meio da noite, sentindo-me feliz, sob a calorosa proteção de um anjo, que não existia de fato. Ele não era nada mais que uma doce ideia. Era o meu conceito de perfeição. Não era impecável fisicamente, embora eu gostasse de olhar para ele o tempo todo, mas era perfeito como um homem com quem se podia envelhecer, exceto que ele nunca seria meu, afinal... Nem eu seria dele, além da condição de estarmos completamente ligados por aqueles breves momentos, em que o mundo poderia parar de girar ao nosso redor e todos os problemas de nossas vidas complicadas nunca iriam passar da porta do quarto.

Não consegui dormir de novo até que o sol da manhã atingiu a janela do quarto e abriu caminho através das cortinas, dizendo que era hora de levantar-me e voltar à vida normal.

Os dias passavam muito lentamente e de forma muito aborrecida quando não nos víamos. Alguns dias depois, quando a campainha tocou, finalmente, meu corpo e mente estavam prontos para recebê-lo.

Quando abri a porta e vi-o, ali na minha frente, com seu sorriso irresistível, meu coração deu uma batida em falso. Ele não disse nada, até que eu fechei a porta atrás de suas costas e abracei-o com força, beijando-lhe os lábios.

- Senti tua falta.

- Eu também…

Nós tivemos uma das mais notáveis noites, desde que começamos a sair juntos. Ele foi todo meu e eu dele. Não me lembro onde nossas roupas caíram, a caminho do quarto. Não me lembro o que aconteceu entre a porta de entrada e minha cama. Eu só lembro que estávamos tão emaranhados, que éramos quase um corpo só.

Eu tinha necessidade física dele. Aspirei o seu perfume viril, tentando mantê-lo na minha pele e memória. Não fechei meus olhos porque eu queria mantê-lo no meu campo de visão. Eu queria apreciar a sua beleza e perfeição. Toquei cada centímetro de sua pele nua, com cuidado e suavidade. Ele respondeu a cada toque dos meus dedos no corpo no dele. Nunca disse uma palavra. Apenas respirou fundo e gemeu baixinho.

Em seguida, beijou-me com uma intensidade tão grande, que parecia ter fome. Ele tocou-me os lábios e o corpo com imensa paixão e desejo. Eu sentia-me como se um anjo de asas muito largas estivesse conduzindo-me ao céu. Em seguida, fizemos amor. Eu tinha certeza que aquilo não era apenas luxúria ou sexo: estava muito mais perto do sentido real de amor. Ele era completamente meu, assim como eu era dele.

- Eu não consigo deixar de pensar em ti o tempo todo. Achas isso normal? Eu fico pensando quando e como eu posso estar contigo... Se isto não for um sinal de paixão, não sei o que possa ser. Eu não tenho nenhuma dúvida sobre isso tudo e morro de medo do que sinto.

- Como é que algo tão bom e prazeroso possa causar-te algum tipo de medo? Não valorizas o nosso tempo juntos?

- Aí é que está. Eu aprecio muito e até acho que estou irremediavelmente apaixonado por ti, mas isso não está certo. Vou acabar machucando-te a ti e às outras pessoas, que não merecem, e isso não é justo, nem para ti, nem para elas. Temos que parar com isso, urgentemente!

- Meu amigo, se é isso que tu pensas e estás a deixar-me, por medo de machucar-me, não o faças... Agora, se o facto de estares apaixonado por mim, prejudica a vida de outras pessoas, então deves ir-te agora, antes que seja tarde demais.

Ele não disse nada, quando levantou-se e começou a vestir-se, saindo em seguida, sem dizer uma única palavra a mais.

Era estranho ver partir aquele homem, que deu-me seu tudo, naquela noite e tirou tudo de mim, apenas alguns minutos depois. Eu senti-me como se estivesse afogando em um mar de desesperança. Deixar-me assim, por estar muito envolvido comigo, além de ser um peso demasiado pesado para suportar, era também de uma injustiça e crueldade inconcebíveis.

Depois daquele último encontro, fomo-nos separando cada vez mais. Nossos contatos escassearam, exceto pelas mensagens de "bom dia", que tornaram-se cada vez menos frequentes, pois ele foi deixando de respondê-las, aos poucos, até deixá-las no vazio, completamente. Eu sabia que ele estava evitando-me daquela forma, para que pudesse ter certeza que eu poderia viver longe dele. 

Ele estava errado, mas não havia nada que eu pudesse fazer para convencê-lo do contrário. Ele deixava-me porque estava preocupado em envolver-se mais do que estávamos. Eu nunca temi nada daquilo. Deixou-me porque me amou… pelo menos foi o que disse... Eu tinha certeza, no meu coração, que ele havia sido sincero...

Os dias passaram uns após os outros, em sua sequência impiedosa e aborrecida. Algum tempo depois, quando passeava pelo Shopping Center, eu o vi, parado em frente à uma loja, olhando para uma moderna jaqueta de couro, exposta na montra. Meu primeiro impulso foi de correr até onde ele estava e surpreendê-lo, abraçando-o e beijando-o, na frente da multidão, que passava à nossa volta, absolutamente incógnita.

Comecei a andar em sua direção, mas parei, sentindo algo estranho, quando uma mulher, de repente, aproximou-se e beijou-o no pescoço. Um rapaz e uma menina, pré-adolescentes, também acercaram-se do casal e eles foram-se embora, andando pelos corredores, de mãos dadas e sorrindo um para o outro. Ele parecia estar bastante feliz.

Senti uma estranha pontada de dor, mas reconheci que ele, afinal, merecia aquela sua vida. Se ele estava feliz, eu deveria estar feliz também. Voltei-me, sentindo um peso enorme na alma, sabendo que ele não era, nem seria meu. Nunca havia sido, de qualquer maneira e eu tinha que viver com aquilo... infelizmente...

Naquele momento, o que eu precisava era de um café bem forte e quente… e com urgência... As coisas, na minha vida, teriam que, paulatinamente, voltar ao normal e eu sabia disso.

Só, novamente e como já era de costume, eu tinha que continuar a existir, embora sentisse que estava, lentamente, afogando-me em grande mágoa e decepção.

Não havia nada de novo ou surpreendente naqueles últimos acontecimentos, entretanto. Não era nenhuma novidade que minha existência continuasse a ser, assim, solitariamente desajeitada…



domingo, 19 de abril de 2015

Falling


- Please do not fall in love with me. You promised you wouldn't…

- I know. Don’t worry. I know very well where I'm treading on. I have been there before and I won’t fall in love again.

- OK. Remember you promised.

- Yeah. I will. You know that… When are you coming over again? It’s been quite a while since you last did.

- Maybe next week. Things are not easy from my side. Wife is demanding attention and she thinks I’m eating out, but I'm just overworked and feeling a lot tired.

- You need a massage, a hug and resting your head on my lap. I would cuddle you until you sleep in my arms, relaxed and happy.

- Sounds like paradise, but far from achievable in a short time. I must not slip right now or I will lose everything. We need to be patient.

I gave up. There was nothing I could do, anyway. I wished life was different. I wished I was different. I wished he was different. But life is not made of wishes…

- OK. Have your time, rest a little… or a lot… and when you’re ready again, please let me know.

- I will. Bye for now.

- Bye, sweet man. I’ll miss you.

- So will I. Sleep well.

- You too.

The conversation was quite shallow, simple and almost impersonal. Both sides were being too careful, trying to avoid the unavoidable. Both believed it was easy to keep their emotions under control. Married men are, oh, so complicated. 

I closed the session, switched the computer off and went back to normal life. We used to chat every day, at the same time, saying almost the same things and promising never to fall in love or we would have to stop seeing each other, for the sake of our sanities. He was a married man with wife and children. A couple of them. I was divorced and alone. Nothing new about that. 

Most of the people I knew were divorced and would like to remain in that condition, anyway, for as long as they could. Some of them, however, were scared to grow old alone. I had my life, my past, my beliefs about love, relationships and solitude. And I enjoyed my life and my freedom. 

Being with him was like having someone and having nothing and no one to be attached to. But I was not afraid of being alone when I was old... not at all...

I decided to prepare something to eat, rest a bit, maybe watch some TV and go to bed early. I tried not to think about the conversation any longer. Having my mind and hands busy for some time would be perfect for the time being. 

The cat got into the kitchen, sitting on the blue carpet and waiting for his dinner and I started cooking some pasta with mushroom sauce as soon as I fed him. My only companion was OK with his small portion of canned tuna for dinner and showed his satisfaction by rubbing his head on my legs, as soon as he finished. I spoke to him, pat his head and went back to my cooking, after washing my hands for the millionth time that evening.

I went to bed as planned after the simple meal of pasta and wine and tried to switch my thoughts off before falling asleep.

I dreamed I was in his arms. His lips were warm on my front, my eyelids, my face and my lips. His taste was sweet and bitter at the same time. He was always sweet, but that agreement we made brought a kind of bitterness to my soul that was not news for me whatsoever. He was repeating those words I could not hear anymore, for as long as I existed, but, alas, one can only wish. The truth was too hard to bear.

"Please don’t fall in love with me".

How careless and dim-witted could that agreement be? How unpredictable can a heart be before it is too late? 

I knew my heart very well. I could say all the words and make all the promises and still remain away from trouble, if I wanted to, but did I really want it? If I were not in love, how could I be entirely his, when we were together, in those close encounters? 

I loved his smell, his taste, his touch and his openness to my caresses. I loved the way he let himself pleasure my presence with his own; the way he said he was all mine and I had full access to everything that I wanted; the way he gave his body to me and the way he used my body for his own pleasure and for mine, as well, of course. I enjoyed the way he looked at me deep in the eyes and how he closed his eyes when being touched by my fingertips; the way he held my body close to his, entangling his legs in mine, so we had the impression we would never fall apart again; the way he kissed me with genuine passion and the way he loved me. 

Yes. The way he loved me. That was more than just physical contact, I could guarantee. I had other men before and no one had pleased me with such a passion. He was passionate, kind, attentive, gentle. But he was not mine. 

Or better saying, he was. For some minutes only, sometimes a couple of hours, he was entirely and openly mine, like no one had ever been before. 

I was proud of his achievements and his life. He told me once I was the only one who knew everything about his life and his secret desires. Most of them were so secret he almost hid them from himself, but they had been shared with me. 

What kind of men would ever do that, without having a blind trust in his lover that way?

- When you think of me, what do you think of?

He blushed. He was not good at talking about his thoughts or feelings, especially when referred to our not so called “relationship”. 

I laughed at him. How could he be so sweetly stubborn? 

By saying nothing and blushing like that, he was telling me everything without uttering a single word. He neither admitted the obvious, nor accepted the truth. What was going on between us was something to be seriously considered, but we would never speak it out loud. Deep inside, however, we knew it very well. 

What are words, anyway? Why would one person need to say what was going on in words, when the feelings were absolutely wordless? I could see it in his eyes. I could feel it in his body. I could sense it in his thoughts, just by looking at him and noticing the tender expression of his lovely face. His mouth could never pronounce the words, but I could hear them being shouted out loud by his sweet and dark eyes. 

I looked at him and thought to myself: you don’t need ever to admit, but I know you are, indeed, my man.

- And you? What do you think of, when you think of me?

- I think of angels and realize how strong and kind you are. I like you very much.

- You are falling in love. You promised you wouldn't. What are you going to do now?

- I'm not going to do anything. There is nothing I can do, but let my emotions run free. I like you very much and I don’t want to lose this. It is important… too important…

- I know, my dear. I know very well, but you promised…

I kissed his lips. He then responded tenderly, by opening his wide wingspan and holding me in a warm embrace.

- Let life guide us, please. Don’t fight it or else we will lose the best of it...

- I won’t, my beloved... I won’t.

I woke up in the middle of the night, feeling warm and happy, satisfied and protected by an angel who did not exist in fact. He was nothing but a sweet idea. He was my concept of perfection. Not flawless in body or physical attractiveness, although I liked looking at him all the time, but perfect like a real tender man to grow old with, except that he would never be mine, after all... Nor I would be his… other than that condition of being unattachedly attached to each other for those brief moments when the world could stop turning around and all the problems of our complicated lives would never come across the bedroom door.

I could not sleep again until the morning sun hit the bedroom window and made its way through the curtains, telling me it was time to get up and go back to normal life.

Days went on very slowly and in a very dull way when we were apart from each other. Some days afterwards, when the doorbell finally rang, I was all ready for him. 

When I opened the door and saw him standing in front of me with an irresistible smile, my heart missed a beat. I welcomed him with a grin and flushed cheeks. He said nothing until I closed the door behind his back and held him tightly in my arms and kissed his lips.

- I missed you.

- Missed you too, my dear…

It was our most remarkable night together. He was all mine and I was all his. I can’t recall where our clothes fell upon on our way to my bedroom. I can’t recall what happened from the door to my bed. I just remember we were so close and entangled to each other that we were almost one. 

I tasted him with hunger. I smelled his manly scent keen for much more. I never closed my eyes for I wanted to keep him in my sight and memory forever. I wanted to appreciate his beauty and perfection. I touched every little inch of his bare skin… carefully and softly, plainly, lustily, intensily… He responded to every touch of my fingertips and body on his. He never said a word. He just breathed deeply and moaned lightly.

He then kissed me. It was not just a kiss but a warm and intensely hungry kiss. He touched my lips and body with passion and desire. I felt I was so close to heaven I was being touched by an angel with very broad wings. Then we made love. That was not just lust or sex: it was so much closer to real love. He was mine and I was his... completely.

- I can’t help but thinking of you all the time. Do you think it is normal one person having his thoughts directed to another one, all the time, as I'm doing lately? I keep on pondering when and how I can be with you… this is certainly a sign of passion… to my understanding. I have no doubt about that whatsoever… and it scares the hell out of me…

- How come something so good and pleasurable scare you? Don't you value our time together?

- This is the thing. I do appreciate it so much, I think I am hopelessly falling for you and this is not right. I am going to hurt you and other people who I must not and this is not fair either to you or them. We must stop seeing each other... urgently!

- My friend, if this is what you think and you are rather leaving me because you're going to hurt me, don't... Now, if you're going to harm someone else by being with me or because you're falling for me, then just leave... now... before it is too late.

He did not say anything when he got up and started dressing up. He left without a word. 

I felt weird and left aside by the man who gave me his everything that night and took everything out of me just some minutes afterwards. I felt like I was all worn out and drowning in a sea of hopelessness. Being left for giving myself too openly and by being too much involved to someone who was falling for me was too much to bear... Was that unfair or what?

After that last meeting we grew apart from each other. Our contacts became almost gone, except for the 'good day' messages which became rarer and rarer, for he never responded to them. I knew he was avoiding me that way so he would be sure I could live away from him. He was wrong, but there was nothing I could do to convince him of the opposite. He was leaving me because he was concerned of getting more involved than we were. I had never been. He left me because he loved me... or so he said... and I was sure in my heart he was sincere...

Days passed on again and again, dully and sulky. One day, when strolling around in the shopping mall, I saw him. He was standing by a shop window, looking at a smart leather jacket. My first impulse was to run towards him and surprise him, hugging and kissing him in front of the crowd moving around us. 

I started walking to him but was held by some strange feeling, when a woman suddenly came closer and kissed him on the neck. A boy and a girl approached the couple and they left, walking down the aisles, hand in hand and smiling to each other. He seemed to be happy. 

I felt a sting of a strange pain, but thought to myself he deserved his life. If he was happy, I should be happy too. I turned around feeling heavy, but knowing he was not mine. He had never been anyway and I had to live with that... unfortunately...  

I felt  I needed a hot and very strong coffee urgently… Life would have to slowly go back to normal and I knew it. 

I was alone again, as usual, and although totally hurt inside, I was not surprised at all…