domingo, 19 de maio de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 2



- E se eu me apaixonar por ti?

Ela não esperava por aquilo… A mensagem a piscar no espaço digital à sua frente, naqueles longos segundos, causou-lhe surpresa e um certo alarme. Em sua mente, foi como se uma luz vermelha acendesse, imediatamente, em reacção àquelas palavras.

(Oh, Deus! E se eu já estiver apaixonada por ti, meu menino?)

Como responder àquela pergunta, sem demonstrar todas as suas apreensões e suas dúvidas, somadas aos seus desejos tão cuidadosamente dissimulados e ao seu receio de perdê-lo?

E se ela não estivesse preparada para dizer-lhe, ou mesmo envolver-se mais que já realmente estava? Teria sido cedo demais? Relacionamentos são sempre tão complicados, ponderou a mulher, antes de tentar expressar o que realmente se passava na sua cabeça…

Por sorte, estavam apenas a conversar no ‘cyber-chat’, sem câmera ligada, por isso não precisava demonstrar as emoções expostas claramente em seu rosto naquele momento. Ela digitou a mensagem e acrescentou um ‘emoticon’, representando um abraço. Decidira ganhar tempo…

- Do que tens medo, meu amigo? De te machucar?

- Eu, na verdade, não sei do que tenho medo…

Ela ficou em silêncio… Aquela declaração havia sido quase óbvia. A nova experiência, com uma mulher madura e aparentemente mais experiente e destemida, podia ser a única razão pela qual ele pudesse ter algum receio de arriscar-se. Mas, afinal, o que ele perderia se, por acaso, se aventurasse a ficar com ela, enfrentando tantos temores e tantas inseguranças? Ela estaria lá, para ele, o tempo todo… ou, pelo menos, enquanto a eternidade do relacionamento durasse…

Sabendo o efeito que a próxima mensagem ia ter, ela digitou-a, premiu a tecla “Enter” e esperou.

- Só um OK? Tu sabes como eu odeio quando envias somente um “OK”… dás-me a impressão que não te importas… que não faz nenhuma diferença…

Ela riu e disse a si mesma, em voz alta: Faz diferença, sim. Claro que faz…

Ela sentia um enorme carinho por aquele rapaz que a fizera sentir-se feminina e viva, depois de um longo tempo. Ele já fazia parte de sua história, ela reconhecia. E aquela parte de si, que envolvia-se cada vez mais naquele relacionamento, confirmava as palavras que ela havia pronunciado em alta voz. Fazia uma diferença, sim… e esta diferença era bem grande…

E pensar que todo aquele envolvimento começara a partir de um desvio casual de estratégia, para evitar o contacto com outro personagem, inconveniente, que costumava fazer suas investidas num bar recentemente inaugurado, à beira do rio…

Seus olhos perderam o foco, automaticamente, quando as lembranças preencheram sua mente, como numa avalanche incontrolada de memórias.

***

Vermelho…

A luz do sol de fim de tarde de verão, que infiltrava-se pela parte de cima do vitral em arco - decorado com pequenos detalhes florais um tanto ‘sui generis’, à volta de um fundo vermelho, acima da linha de luminárias penduradas no teto abobadado - causava um efeito luminoso bastante encantador a quem entrava. Na parte central do grande salão, um bar fora construído em forma ovalada, de modo a ter-se acesso por todos os lados, sem causar filas de atendimento aos usuários.

‘O Templo’ era o lugar da moda. Os vitrais coloridos nas janelas em arco gótico lembravam antigas igrejas, fazendo com que a incidência da luz do dia diminuísse a necessidade de lâmpadas e luminárias acesas e tingisse o ambiente com vários matizes de cores intensas.

A acústica era bem projectada, de maneira a não criar reverberações devido ao alto pé direito do edifício e aproveitar a distribuição dos altifalantes no grande salão, ainda assim permitindo que se conversasse em tom razoavelmente baixo, sem poluir o ambiente, devido ao volume da música ambiente. Tudo havia sido cuidadosamente calculado, de modo a tornar o lugar devidamente aconchegante e convidativo.

O ‘happy hour’ era um acontecimento à parte. Música ‘Vintage’ para um grupo mais tranquilo de frequentadores, que mudava consideravelmente à partir de um certo horário mais adiantado da noite. Às quintas-feiras, especialmente, transformava-se em uma grande festa com música electrónica e dança num ambiente paralelo. Era noite da juventude e, assim, evitada pelos mais tradicionais.

Um longo e cansativo expediente havia terminado e a investigadora de polícia decidira conhecer aquele novo estabelecimento, do qual já muito ouvira falar, construído à beira da foz do rio. Precisava beber algo… talvez um refresco, talvez uma bebida mais forte.

Quando entrou, a atmosfera pareceu-lhe um tanto surreal. O ambiente era encantadoramente criativo e inovador, tocando música bastante a seu gosto - incomum, até - em um volume deliciosamente relaxante, àquela hora da tarde. Um facho de luz colorida - que vinha de cima, em um ângulo agudo com o piso de madeira pesada e escura - quase transformava o rapaz recostado no balcão, em personagem de um estranho conto de fadas, pintado em matizes luminosos de vermelho.

Ele estava virado para a entrada, brincando com um copo de cerveja à mão. Moveu-se para frente, saindo do facho de luz filtrada pelo vitral. Ela percebeu sua mais fascinante característica, assim que os viu pela primeira vez…

Azuis… como as águas do Oceano Pacífico…

Era assim que ele se referia aos seus próprios olhos. Estes eram de um tom de cobalto tão intenso e tão brilhante, que atraíram a atenção da investigadora quase de imediato. Acima deles, molduras de sobrancelhas quase invisíveis, decoravam-lhe o olhar maroto.

A barba de pelos aloirados – estrategicamente deixada por fazer já havia alguns dias -, adornava a atraente e harmoniosa face - masculina e angelical, ao mesmo tempo. O sorriso era largo e adorável, com dentes bem proporcionados e asseadamente brancos. Os lábios eram demasiadamente bem desenhados. Os cabelos claros, com os quais o vento de fim da tarde brincava, todas as vezes que a porta se abria, desafiava-a a desviar o olhar, que já se encontrava magnetizado pela beleza ímpar do rapaz.

Ela perdeu a noção do tempo a contemplar o impossível – ou inatingível -, no que pareceu-lhe um momento infinitamente longo. Os olhos que miram o sol por muito tempo podem ficar irremediavelmente queimados, foi o que pode perceber logo em seguida.

Misha tinha plena ciência de haver causado um efeito surpreendente na mulher que acabara de entrar e que não desviava os olhos de si. Sabia que era observado com grande interesse e fazia seu show particular a provocar, enquanto ouvia e cantarolava, ao mesmo tempo, a canção que lhes servia de trilha sonora para aquele momento – uma fusão de jazz moderno com bossa nova – levemente dançante e altamente sensual.

“When loving me is so easy, then why do I feel twisted, Cupid?” (from ‘Twisted Cupid’ – by Slow Train Soul)

Aquele jovem homem sabia usar seu charme de uma maneira extremamente provocante e com a maior naturalidade. Quando cruzou o olhar com o dela, mostrou-lhe seu melhor sorriso, sabendo que sua jogada era magistral e a mulher que o observava estava fascinada pela sua figura imponentemente sedutora.

Na verdade, porém, sua presença ali não era tão inofensiva quanto pareceu-lhe à primeira vista. Em pouco tempo, seus olhos treinados perceberam mais que segundas intenções naquela parada para um nem tão inocente drink ao final da tarde. Ali havia mais mistérios encobertos, que ela decidira tentar desvendar, sem que deixasse ele perceber suas reais intenções. Sob uma fachada de modelo profissional, ele escondia o lado um tanto mais obscuro de sua personalidade. Ser um ‘escort’ não era, definitivamente, sua menos bem-vista ocupação…

Passou a visitar o ‘Templo’ assiduamente. Às vezes ia sozinha, às vezes encontrava-se com uma amiga, que era fotógrafa e repórter.

Em pouco tempo conseguiu avaliar o seu comportamento e perceber o tipo de pessoa que o rapaz era. Aproximar-se dele e incitar conversa havia sido um acto natural, já que sua presença naquele lugar tinha um objectivo que tornou-se claro com o passar do tempo.

Assim que conversaram pela primeira vez, a imagem que ela tinha dele decaiu muito, mas piorou bastante nas ocasiões seguintes. Ela já estava acostumada com pessoas que não sabiam ouvir, por terem o ego demasiadamente inchado, mas Misha ultrapassava todas as expectativas. Não demorou a revelar-se um grande manipulador. Esta característica dele, porém, ela conseguiu detectar a tempo de não se permitir ser usada ou de fazer alguma grande tolice.

Aquele encanto inicial fenecera rapidamente, tão logo compreendera quem ele era, por trás daquela atraente - porém vazia - beleza física. Por dentro não passava de um homem um tanto amargo e muitíssimo petulante - bastante patético e, até certo ponto, tocando as raias do pedantismo. Uma pessoa que deixava muito a desejar em termos de confiança e com uma tendência muito clara a se aproveitar das fragilidades das pessoas. Ele não recebeu bem sua recusa em ajudá-lo em seus esquemas para levantar dinheiro ou em acreditar em suas histórias trágicas, que sempre apareciam, devido ao seu sangue quente e arrogância natural da juventude, aliados a um narcisismo soberbamente agigantado.

Decidiu ter cautela ao tratar com ele, para sua própria segurança.

Como já seria de esperar, foi fácil decepcionar-se mais, com o passar do tempo. Numa briga de rua, os envolvidos foram parar na delegacia onde a investigadora trabalhava. Por um infeliz acaso, ela cruzou a sala, no momento em que Misha esperava sua vez de dar declaração. Ele logo percebeu sua presença. Seus perspicazes olhos pousaram sobre ela, com curiosidade intrigante. Franziu o cenho, como se estranhasse vê-la naquele lugar, tão à vontade. Ela desviou-se sem dar nenhum sinal de reconhecê-lo. Ele ainda tentou chamar-lhe a atenção, mas ela desapareceu da vista, antes de demonstrar qualquer reacção. O rapaz, percebendo que ela o evitara, registou o comportamento da mulher no seu subconsciente, assim como aquela nova informação que acabara de obter, como se fosse um bem-vindo presente do destino. Haveria de aparecer uma oportunidade para utilizar aquela novidade. Bastava ter paciência…. E ele não ia perder nada por esperar. Apesar de estar sendo registado na delegacia de polícia por atentado à ordem pública, o rapaz de cabelos loiros e olhos azuis sorriu. Acabara de arranjar uma carta útil, para manter escondida na manga, até a hora certa de jogar. 

Ela resolveu evitar sua frequência habitual ao ‘Templo’. Não queria expor-se tão cedo. Talvez o incidente pudesse ser esquecido em pouco tempo, mas ela tinha receio que ele fosse cobrar uma explicação para sua atitude do outro dia.

O ‘Café’ da esquina, próximo à sua morada, pareceu-lhe ser a alternativa mais viável, para desestressar no final do dia… pelo menos enquanto ela tentasse evitar encontrar-se com o belo, porém perigoso, Misha.

***

Vermelho… Azul... Vermelho… Azul… Vermelho... Azul…

- Pare de olhar estas luzes assim. Tu não podes mudar o que aconteceu. Não há mais nada que se possa fazer agora… Vamos embora daqui. Entre no carro. É tarde demais...

Ela não parava de falar… e aquela falácia era uma tortura sem igual na minha cabeça, já bastante fatigada e completamente atormentada. Por que as mulheres insistem tanto em pensar que sempre sabem tudo? Eu sou uma e não penso assim… Deve ter algo muito errado comigo…

Ela agarrou-me o braço com força e olhou-me com uma firmeza perceptivelmente intimidadora, abstraindo-me da atenção fixa às luzes a girar. Se não fosse a pessoa em quem eu mais confiasse - uma das poucas amigas que ainda tinha, certamente a teria mandado calar-se e teria me desvencilhado de suas mãos com um puxão – se tivesse encontrado forças para tal, naquela hora.

Embora não tivesse que esconder minhas emoções, devo admitir que ela estava certa, afinal. Minha amiga, uma brilhante fotógrafa e repórter, embora tomando uma atitude que me incomodava, naquele exacto momento, tencionava tão-somente proteger-me.

Eu estava esgotada, pálida e prestes a perder o equilíbrio e o controlo. Precisava concentrar-me e recompor-me antes que fizesse alguma asneira. Minha vontade, porém, era somente de gritar... e gritar alto… bem alto!

(Por que eu não cheguei apenas uns míseros minutos antes, meu Deus, por que? Tanta coisa podia ser diferente… por que, meu Deus, por que?)

A coerência, porém, forçava-me a engolir minha dor, meu orgulho e minha fraqueza, para não desabar ali mesmo, na frente de tanta gente. Entrei no carro, mas não consegui dar a partida de imediato. Ela também entrou e sentou-se ao meu lado - desta vez calada - mas atenta aos meus mínimos movimentos, como uma desconfiada gata, à espreita de toda actividade à sua volta e pronta a não deixar passar nada, sem que visse ou interferisse instintivamente.


As atenções dos curiosos, técnicos e policiais ainda estavam todas voltadas para a cena a desenrolar-se a poucos metros do carro. Eu sentia como se estivesse fora daquele contexto, vendo tudo de fora, como num filme, numa atmosfera bastante surreal. Quase não acreditava o que via diante dos meus olhos cansados. Aquilo não podia estar, realmente, acontecendo.

As luzes acesas no topo das viaturas policiais, que formavam um paredão de isolamento de um lado da rua, continuavam a girar e a pintar o cenário, alternadamente, de vermelho… e azul… e vermelho… e azul…

Fechei os olhos e respirei fundo… Quando os abri, minha visão ainda estava turva pelas lágrimas que retive, mas decidi ser mais forte que meu sofrimento. Eu sou uma policial condicionada a controlar minhas emoções e ser coerente e fria, especialmente diante de situações consideradas fortes pela maioria das pessoas… Eu sabia que tinha de ser mais que forte, diante daquela cena, que me abalara, sensível e consideravelmente, as estruturas, mostrando que, apesar de bem treinada, eu era humana, afinal de contas…

Ela me conhecia muito bem e decidira não dizer uma palavra a mais, felizmente, enquanto aguardava que eu me recompusesse. Levantei a cabeça, decidida, pigarreei alto e com energia forçada e girei a chave na ignição…

***

Deitada, sentindo-se estranhamente desconfortável no macio divã da analista, a inquieta mulher contava a angústia que passara nos últimos dias. Ao mesmo tempo, sentia sua dor revivida em detalhes, em cada palavra que usava para descrever o que vira e sentira e que a fizera estar ali, naquele consultório, sobriamente decorado em tons de sépia e âmbar, a falar de si – uma das situações mais difíceis que se aventurara a enfrentar.

A terapia havia sido encaminhada pelo médico de plantão, que a socorrera, após o princípio de colapso por stress e excesso de horas em vigília e, provavelmente, trabalho compulsivo. Mal sabia ele, que a verdadeira razão do ataque de depressão, estava directamente ligada ao mistério à volta do crime que ela tinha que resolver… tanto as causas, quanto as consequências, a tirar-lhe noites de sono…

A psicoterapeuta, uma mulher de idade indefinida – uma matrona de mais de quarenta anos, com certeza - daquelas que imagina-se, mas não consegue-se precisar exactamente quantos anos já vivera, induziu-a a percorrer um caminho dolorosamente trilhado, enquanto aplicava pressão em pontos específicos nas plantas dos bem cuidados pés da investigadora de polícia. Suas técnicas de shiatsu e reflexologia, associadas a um planeado exercício mental, onde uma bem definida linha condutora era dada como guia, tinham um objectivo muito específico no tratamento: perceber os mecanismos da mente em dissociar e recompor os detalhes da memória dos acontecimentos e apresentar saídas propostas pela própria paciente.

A mulher fechou, lentamente, os olhos. Tanto na sua cabeça, como diante de si, uma sequência de cores continuava a piscar insistentemente, incessantemente, hipnoticamente, … como se lâminas giratórias de luz fossem alternadamente recortando as memórias e suas percepções, … ora em azul… ora em vermelho… azul… vermelho…azul… vermelho…

A triste visão dos olhos azuis a mirar o nada e uma grande poça vermelha formando-se, lentamente, à sua volta, atormentavam-na sem lançar um simples vestígio de como encontrar uma saída…

Encurralados na mente grandemente perturbada pelo sentimento de perda, seus devaneios iam e vinham, misturando realidade e imaginação, num processo habilmente conduzido pela terapeuta, que ia dando inputs para uma e outra linha de reflexão, a fim de encontrar uma forma de escapar do labirinto em que se encontrava. Era importante trazer à memória os factos e tentar captar mais detalhes escondidos nos acontecimentos. Sua maior preocupação, porém, era desvendar o mistério que envolvia o evento recentemente vivenciado e que a abalara tão grandemente. Cada uma com um objectivo distinto, ambas trabalhavam para encontrar as respostas certas.

Quem me dera não haver estado naquele lugar, nem naquele momento difícil de suportar. Se pudesse reviver este último dia da minha vida, eu mudaria tudo… quantos equívocos podem-se fazer no mesmo dia? Quantas vezes o mesmo erro pode ser cometido, até se perceber que é um erro? Quantas vezes pode-se insistir, até que a vida canse e mostre, com tratamento de choque, que tudo não passa de uma grande estupidez e que desta forma tem ser reconhecida e assumida?

- Vais ter que te acostumar a viver com teus erros, disse a terapeuta. Eles fazem parte do aprendizado…

- Mas este custou a vida de um inocente, mulher… será que é tão difícil perceber isto? E não me trate como uma adolescente. Eu sei a extensão dos meus erros e conheço estas teorias de psicologia...

Ela mordeu o lábio, para não soltar um palavrão, que estava a ponto de sair. Às vezes era mesmo difícil controlar-se, especialmente quando sua irritação fugia das raias do aceitável eticamente.

- A culpa pelo que ocorreu não é tua. Tu não és responsável pelos actos de outros… especialmente, de maníacos e assassinos…

- Mas fui eu que provoquei a ira ”de outros”, disse ela, colocando uma boa dose de ironia e um certo deboche na voz, ao pronunciar a expressão recentemente dita pela outra. E eu me sinto responsável…

A terapeuta abanou a cabeça, num gesto conhecido, que ela já sabia interpretar e que significava que não adiantava discutir, pois nenhum argumento seria suficientemente forte para fazê-la aceitar ou mudar de opinião.

Não havia nada mais que pudesse ser feito, era verdade, mas não era - de maneira alguma - tarde demais.

Ao contrário, a investigação – e talvez muito mais que um simples processo policial - apenas começava. Era sua questão pessoal de honra ir ao fundo do caso e descobrir não somente as razões, mas também punir severamente o culpado.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Other Studies in Red and Blue - Part 1



- You come here every day, always at the same time. I don’t know why ... yet ... but I wonder if there is a particular reason...

He was right. It had been some time since she did the same thing every morning on her way to work and in the evening, on her way back home: stopping at that particular Cafe at the corner.

After a very few times, she realized the waiter who used to serve her was always the same - a young man of big, melancholy blue eyes, strategically misaligned light-brown hair, with a very pleasant face to look at. He seemed to be younger than her - at least ten years. He was tall and rather stout, a bit far from the purely athletic shaped body, although he was not even close to being fat. That young man was actually quite attractive to the eyes – at least to her eyes.

He invariably saluted her with a broad smile when she walked in and headed to the same table by the window. As soon as she sat, he hastened to serve her the strong plain 'espresso' she used to order and which was freshly prepared as soon as she walked in.

The same routine was repeated every day for weeks and it was the first time she was addressed by the young man for anything else than the coffee she used to order. Maybe the little contact they have had on their hands when he put the cup on the table caused that unusual reaction.

She looked at him with some curiosity, on what would look like a boldness act from an employee to a regular customer.

In a fraction of seconds she realized the reason she kept on attending the same place every day.

How could she tell him that among so many choices of Cafes, that specific one was where she felt most alive, for the simple pleasure of looking momentarily to those magnetizing blue eyes, which never seemed to smile?

The statement, almost a question, however, left her uncomfortable as a teenager caught peeking at a prohibited man.


Why don’t you say what you think? He gave the line for you to grab and you just let it go. What are you waiting for?


She did not know how to react. That little demon installed in his brain was asking the question she did not know or would not ever answer.

And how could she say that the simple fact of looking at those big, sad and brilliant sapphires, made her days brighter and less dull?

Although she did not answer him with more than an awkward smile, that question had given her food for thought. She needed to do something, she knew... and the sooner the better... or she would lose the opportunity he opened with that simple question.

She opened her mouth to speak, but something stronger - perhaps a survival instinct - prevented her from doing so.

She merely stood up, left the money to pay the bill on the table and left the place without looking back. As she passed outside the window, she still saw the boy with an embarrassed expression and a slight flushing on the cheeks, still collecting the scattered coins from the top of the white table cloth.

***

- Why don’t you invite me in? How long will we keep this conversation here on the outside? I feel a little cold and my little break will be over in a short time...

The woman looked at that young man with a mixture of affection and respect and invited him, then, to enter the corner Cafe near her home, where she used to go every day for a strong and sugarless 'espresso' in the morning and a 'cappuccino' late in the afternoon.

After a certain incident a few weeks before, she had decided to reconsider what she regarded initially as a defiant approach. After some thinking and reconsidering, it then turned out to be a kind of seduction with words...

She came back the following morning, but it was not the same young man who brought her the daily espresso. She noticed he stayed at a corner, just pretending not to watch her, while the other man served her coffee.

Somewhat worried, even more than disappointed, the woman asked the waiter to ask his colleague to bring her a cream pastry, which always goes well with strong and dense coffee, in spite of her not being used to eating sweet things that time in the morning.

He came and placed the dish on the table without looking at her directly. Knowing that she had hurt the pride of the young man, the woman said:

- I’m sorry.

- Lady, I am a servant here, nothing else. Please forgive my impudence of yesterday. I am so sorry and I promise I will not repeat this inappropriate behaviour anymore.

He spoke with studied formal speech, which he passed in his head many times that morning before she came in the premises. Fearing that she noticed how nervous he was, he put both hands in the pockets of his work apron.

She detected his uneasiness and said:

- I'd rather we were at least friends...

- OK, he told her, still without looking up, but she realized he blushed and smiled a shy and somewhat weird smile. He said a polite 'excuse me', turned around and left.

Only the other day, when she returned to the Cafe, like on a normal day, she was greeted with a smile, although still a bit shy. She sighed with relief. The strain had apparently dissipated between the two of them.

***

He was not dressed for a date. He wore an already-worn leather jacket over a blue sweater. Faded blue jeans and brown heavy boots completed the attractively casual look, which suited him so well... at least to her eyes. Without the apron over the ordinary clothes, he would pass by a regular customer of the Cafe.

She still had her work clothes - a quilted coat and a cashmere scarf with stripes in various tones of gray - simple but comfortable. It was not exactly the outfit for a meeting either. Despite working for the police, it was not in an area where uniforms were ever to be used, for obvious reasons. She often had to go through her working days, like an ordinary person - not a police officer in uniform - to investigate and get information.

A pause for an "espresso" or "cappuccino"... that was the only thing they had agreed to. The cool late winter evening was perfect for a hot large cup of cappuccino - and that was what she ordered. He chose an espresso – strong and with no sugar at all.

They sat facing each other, like two long-time acquaintances. In fact, they were only analyzing each other. They needed time to assess how far they could get. She knew she had to have patience. They both needed a bit of security and confidence to be able to feel more comfortable in the presence of each other...

As he spoke, she listened to him in silence, trying to understand his reasons, expectations and concerns. It was the first time they chatted that long. When they parted, however, she felt a pang of disappointment. Just a handshake and a 'see you later' broke her expectations in small portions, like a crystal 'bibelot' falling down on a hard, polished and cold granite floor.

Minutes later, when she got home, she decided it was too late for anything but to prepare herself for bed. She was already on her way the bedroom when she heard the characteristic "beep" of the phone indicating an income message. She turned around and went back to the table where she left the phone and picked it up. She read the message and gave a loud laugh. Well, all was not lost, after all...

***

The small break meetings every day turned out to be more and more common as time went by. She was getting fascinated by slowly discovering things about that character so different from her.

One day, in an outburst of alleged boldness, he decided to invite her to dinner. That would be the first time they would be in a real date. A week had passed since she had told him the cause of always stopping at the Café twice a day. He was flattered, but blushed slightly when heard her reason being finally expressed out. It was his cue to leave shyness behind and be, once again, daring.

The woman had played her best cards, knowing she might lose the game, but unlike her fears, the boy told her he had to take an audacious action, especially from the absence of response the other day. His apparent insecurity made his shy smile even more appealing and utterly charming. She comforted him, saying that she also felt insecure, but was willing to give it a try.

- You’re such a seductive woman... I'd love to see you dressed in a more feminine way, out of the context before and after work, with these usual work clothes. They give you a very... uhm... serious look...

He had been well educated and polite. That hesitation made her think that he might have meant that the work clothes made her manly... too masculine. She laughed at his proposal, anticipating her discomfort in dressing like a 'lady', after a long time, but accepting the challenge. It could be a fun experience, at least.

- Your body is so attractive... you should show it a little more... more times, maybe...

He was beginning to cross the line... She decided it was best to stop the conversation immediately ... before she would lose her composure ... and kiss him right there in front of everyone...

She got up and left, quite hastily, when he laughed at the blush that suddenly appeared decorating her pale face...

***

Lost or hidden in a forgotten corner of her wardrobe she found a 'basic black dress', as it used to be called, in her past days. Her only decent dress, wore but a few times, was a single piece of knitted cotton with Lycra, which clung to the body in a way that left little to the imagination. Two very thin shoulder straps made her feel almost naked - which was not exactly the truth - but it made her feel like that anyway. On top of the bare shoulders, she wore a short black laced bolero intended to disguise the sensation of being extremely uncomfortable.

In front of the mirror, she carefully analyzed herself from head to toe. She felt like she was inside the body of a person who was not really her – someone else, in fact. She thought it was not a good idea, after all, to accept that challenge. She should call it off...

False modesty?

That voice in her head again... She laughed at the irony.

Although very little used to makeup, she put a bit of a transparent lip ‘gloss’ on and with a dark pencil she outlined a very subtle touch around her hazel eyes. She could not go beyond that and did not want to show what she was not.


Still having the sensation she was not at ease in a dress like that, she saw the boy's eyes smiled for the first time, even before his lips, as soon as he set his sight on her. Her doubts immediately dissipated. After so long, she was feeling attractive... and what a devious sensation it was...


- Today we will cook together.

His voice was low and serious, but not too serious.

- I know who will have to wash the dirty dishes, she said, smiling.

He winked, mischievously, and laughed loudly. She immediately fell in love with his laughter - so loose and spontaneous - as if he was that young man who had nothing to fear and nothing to lose... full of life and hope in the future... or at least that was the impression he passed on to her at that very moment.

He led her to the kitchen. While chopping some vegetables for a soup he was preparing, as a starter, he talked animatedly about music and the life he lived, before they met, as if it were the most natural thing in the world.

Fascinated by his conversation, the woman carefully came closer to the young man and touched his hand slightly. He stopped doing the task and, with studied spontaneity, joined the chopped vegetables with his two cupped hands and placed them in the water which was already boiling in a pot. He seasoned the soup with a cube of vegetable broth, stirred it well and tasted it. He, then, turned to face her.

That man looked at her in a way that no one else had ever done before. He had not only his eyes fixed on her, but his interest went far beyond his simply observing... it was as if he could see through her... and she thought that thing was eerily sexy.

He stepped forward and took her bolero off, placing it carefully on the back of a chair. He kissed her one shoulder, then the other, as he slowly pushed the delicate dress straps to the sides with his fingers. As he opened the zipper down, he continued slowly kissing her back from her neck downwards. When he released the black fabric of her pale body, he uncovered a large tattoo printed on her left side, which extended up to a spot close to her groin. He asked her if there was any special meaning to it.

- 'Victory' - she said.

He kissed the image - painted in black only - an elongated Japanese dragon, indelibly stamped on her skin. He stopped there for a while and then went back to caressing her body, tasting it with his lips.

His attention to every detail of her body caused her chills, in spite of the gentle warmth that came from his mouth. She closed her eyes and let herself be carried away by his touch... so warm and so welcome. When his mouth was close to her breasts, she held his face firmly and tenderly with both hands and brought it to the height of her face, looking at him deeply in those amazing blue eyes.

She kissed him fondly... slightly... carefully. He closed his eyes and gave himself in to the woman as a true lover.

They played right there in the kitchen while the soup was boiling up in the stove behind them. He lifted her off the ground with a big hug, as he kissed her with a passion which she was not used to and sat her on the counter. He kissed her neck, her breasts and her stomach and went down. She closed her eyes when he touched the most sensitive spot of her body and moaned softly.

That boy had become an experienced and fully grown up man and lover and made her the most special woman she ever had been. His body was all she needed. His touch, everything she wanted - even without having a firm awareness of it.

She seethed around him, like a volcano in full activity, blasting repeatedly, by the heat emanating from all the recesses of her body.

When they had passed the fire to lower flame, he looked into her eyes and said softly:

-The moments spent with you are, for me, the most beautiful ones.

The woman, who was asleep inside her for so long, felt that inside that man there was a great strength and a unique sweetness, albeit in a very innocent and spontaneous way.
He added:

- I like your 'tattoo'... and I love your body. It is so perfect...

The woman asked him why he said that and he told her he felt he had to express what he was feeling at that moment. He, who had always cautiously studied the terrain on which he ventured to tread, become brave enough to face his own fears, based on what had happened between them, a few minutes before.

It was only when he asked her how she felt when she saw him that she said... not only everything she felt, but also everything she thought of. He realized that she was not afraid to expose herself.

He opened a half bashful and refreshingly provocative boyish smile, putting a song to play on, right then. He used to change the subject when felt uncomfortable or intimidated to answer something he did not want to.

"I believe I can fly, I believe I can touch the sky, I think about it every night and day, spread my wings and fly away ..." (R. Kelly)
 
He took that moment to say something without talking. For a brief moment, she had the feeling those melancholy blue eyes smiled at her again, but that impression faded away very quickly.

The words sung messed up with her reactions, making her look at him with a unique affection, but he looked away, blushing a little, almost shyly. Amazing how, in just a matter of minutes, he had completely changed, from a daring and experienced lover who knew how to explore all her senses, to that shy little boy again. The image she visualized immediately was of an animal that hid inside its protective shell.

He decided to choose another song, as if that one was not expressing whatever he wanted to.

He pretended to be busy and hid his beautifully blue eyes from her, when the hoarse voice of Bryan Adams began: "Look into my eyes, you will see what you mean to me... and continued: Everything I do, I do it for you"...

She wrote those words on a piece of paper and showed it to him, who smiled, amused, looking down and away again.

She walked towards him and kissed him, lightly, on a specific spot of his neck in the area behind the ear... Her whole body shuddered when she saw the goose bumps growing up his skin, as if a load of electricity had switched a reaction on in her lover’s body.

He turned around and kissed her again... starting by the eyes and going down, while listening to the moaning of the woman, who already felt a volcano about to enter into a new eruption, exploding in all shades of red inside her.

Those eyes, of the most stunning shade of sapphire blue, flashed when they reconnected with hers.

Tightly clinched to his body, like a castaway who clasps to a lifeline never to let it go away ever again, she let herself lose control one more time... and another one... and another one...


domingo, 28 de abril de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 1


- Tu vens aqui todos os dias, sempre às mesmas horas, rotineiramente. Eu não sei porque… ainda… mas gostaria de saber se há um motivo especial…

Ele tinha razão. Havia já algum tempo em que ela passara a frequentar aquele específico Café da esquina, a caminho do trabalho e ao final da tarde, quando ia de volta para casa.

Depois de umas poucas vezes, percebeu que o funcionário a servir-lhe era quase sempre o mesmo – um rapaz de grandes e melancólicos olhos azuis, cabelos castanho-claros, estrategicamente desalinhados e face agradável de olhar. Parecia ser mais jovem que ela, pelo menos uns dez anos. Era alto e um tanto corpulento, longe do porte puramente atlético, mas não estava nem perto de ser gordo. Na verdade, era bastante atraente a seu ver.

Ele invariavelmente a recebia com um largo sorriso quando ela entrava e dirigia-se à mesma mesa, perto da janela. Apressava-se a servir-lhe o 'espresso', sem açúcar, que ela sempre pedia e que era preparado assim que a avistava à porta.

A mesma rotina repetia-se todos os dias, há semanas e era a primeira vez que ela era interpelada pelo rapaz. Talvez o pequeno contacto que tiveram, nas mãos, quando ele pousou a chávena sobre a mesa, provocara aquela reacção.

Ela olhou-o com uma certa curiosidade, diante daquilo que pareceria um atrevimento do funcionário para com uma cliente habitual.

Em uma pequena fracção de segundos ela deu-se conta do motivo que continuava a frequentar o mesmo lugar, todos os dias.

Como poderia dizer-lhe que, dentro de tantas opções de Café, era ali que ela sentia-se mais viva, pelo simples prazer de olhar momentaneamente para aqueles magnetizantes olhos azuis, que não pareciam sorrir nunca?

O comentário, quase uma pergunta, todavia, deixara-a desconfortável, como uma adolescente flagrada a espreitar um homem proibido.

Por que não dizes o que pensas? Ele deu a linha, para te agarrares e tu o deixaste escapar. Que estás esperando?

Não soube como reagir. Aquele demoniozinho instalado em seu cérebro fazia a pergunta que ela não sabia ou não queria responder.

E como é que poderia dizer-lhe que o simples facto de olhar para aquelas grandes, brilhantes e tristes safiras, fazia seus dias mais luminosos?

Apesar de não responder-lhe com mais que um sorriso meio sem jeito, aquela pergunta dera-lhe o que pensar. Precisava fazer algo, sabia… e o quanto antes fizesse, melhor… teve medo de perder a oportunidade que ele abriu com aquela simples pergunta.

Abriu a boca, para falar, mas algo mais forte – talvez um instinto de sobrevivência – impediu-a.

Ela limitou-se a levantar, deixar o dinheiro para pagar a conta e sair, sem olhar para trás. Quando passou pela janela, ainda viu o rapaz com uma expressão aparvalhada e um leve rubor na face, a recolher as moedas de sobre a mesa.

***

- Porque não me convidas para entrar? Quanto tempo, ainda, vamos manter esta conversa aqui do lado de fora? Sinto um pouco de frio e a minha pequena folga não demora a terminar…

A mulher olhou aquele jovem homem com um misto de carinho e condescendência e convidou-o, então, a entrar no Café da esquina, perto de sua casa, onde costumava frequentar diariamente, para um ‘espresso’ forte e sem açúcar, pela manhã e um ‘capuccino’ no final da tarde.



Depois de um certo incidente, há algumas semanas, havia decidido reconsiderar o que achara um atrevimento, a princípio, mas que tornou-se uma espécie de sedução por palavras… Ela voltou na manhã do dia seguinte, mas não foi o mesmo rapaz de sempre que a serviu, tendo ficado a um canto apenas a observar, enquanto outro lhe trazia o 'espresso-nosso-de-cada-dia'.

Um tanto preocupada, mais ainda que decepcionada, a mulher pediu ao rapaz que solicitasse ao seu colega de profissão que lhe trouxesse uma nata, um doce típico, que sempre vai bem com café forte e denso, apesar de ser acostumada a comer doces àquela hora da manhã.

Ele veio e depositou o pedido sobre a mesa, sem olhá-la directamente. Sabendo que havia ferido os brios do rapaz, a mulher disse:

- Desculpe.

- Dona, eu sou um serviçal aqui. A senhora desculpe meu atrevimento de ontem. Peço imensas desculpas e prometo que não vou repetir esse comportamento inadequado.

Ele falava com formalidade, num discurso estudado, que repassara em sua cabeça muitas vezes antes daquela manhã. Temendo que ela visse quão nervoso estava, ele colocou as duas mãos nos bolsos do avental de trabalho.

Ela percebeu a agitação e disse-lhe:

- Eu preferia que fôssemos, pelo menos, amigos…

- OK, disse-lhe ele, ainda sem levantar os olhos, mas ela percebeu que ele ruborizou e esboçou um leve e acanhado sorriso. Ele virou-se, disse um educado ‘com licença’ e saiu.

Somente no outro dia, quando voltou a entrar no estabelecimento, como se fosse em um dia normal, que ela foi recebida com um sorriso, apesar de, ainda, um tanto tímido. Suspirou aliviada. A tensão havia-se, aparentemente, dissipado entre eles.

***

Ele não estava vestido para um encontro. Trajava uma jaqueta de couro, já gasta pelo uso, sobre uma malha de lã azul. Blue jeans desbotados e botinas castanhas completavam o visual atraentemente casual, que lhe caíam tão bem… pelo menos aos seus olhos. Sem o avental de uniforme por cima da roupa comum, ele passava por um cliente habitual do Café.

Ela ainda estava com a roupa do trabalho, com o casaco acolchoado e um cachecol de caxemira com listras em vários tons de cinza, simples, mas confortável. Não era propriamente a roupa para um encontro tampouco. Apesar de trabalhar para a polícia, não era em uma área onde o uniforme fosse usado obrigatoriamente, por motivos óbvios. Muitas vezes tinha que passar por uma pessoa comum, não uma policial em fardas, para conseguir informações.

Uma pausa para o “espresso” ou até o “capuccino”. Era somente o que haviam combinado. A noite fresca de fim de inverno pedia uma grande chávena de capuccino bem quente – e foi o que ela pediu. Ele preferiu um espresso – forte e sem açúcar.

Sentaram frente a frente, como dois conhecidos de longa data. No fundo, estavam somente analisando um ao outro. Precisavam de tempo para avaliar até onde poderiam chegar. Ela sabia que tinha de ter paciência. Precisavam de um pouco de segurança e um tanto de confiança para poderem se sentir mais à vontade...

Ela ouvia-o, em silêncio, tentando compreender suas razões, suas expectativas, suas preocupações. Era a primeira vez que falavam longamente. Quando se despediram, porém, sentiu uma ponta de decepção. Apenas um aperto de mãos e um ‘até mais’, quebrou suas expectativas em pequenas porções, como um bibelô de cristal que cai no chão de granito - duro, polido e frio.

Minutos depois, ao chegar em casa, decidiu que era tarde demais para qualquer outra coisa além de se preparar para deitar. Já ia a caminho do quarto, quando ouviu o “bip” característico do telefone indicar uma mensagem a entrar. Foi até a cómoda e pegou o aparelho. Leu e deu uma risada alta. Nem tudo estava perdido, afinal...

***

Os pequenos encontros na pausa do turno habitual do rapaz passaram a tornar-se frequentes. Ela começava a ficar encantada com o que ia descobrindo aos poucos sobre aquele personagem tão diferente dela.

Num ímpeto de pretenso atrevimento, ele decidiu convidá-la para jantar. Aquela deveria ser a primeira vez em que marcavam um encontro a sério. Havia uma semana que ela havia-lhe dito a causa de sempre passar no Café duas vezes por dia. Ele sentiu-se lisonjeado, mas ruborizou ligeiramente quando soube. Era sua deixa para deixar a timidez de lado e ser, mais uma vez, arrojado.

A mulher havia jogado suas melhores cartas, sabendo que podia perder o jogo, mas ao contrário de seus temores, o rapaz disse-lhe que tivera receio de levar um não, diante da ausência de resposta no outro dia. Aquela aparente insegurança tornava-o ainda mais atraente e o tímido sorriso absolutamente encantador. Ela tranquilizou-o, dizendo que também se sentia insegura, mas estava disposta a fazer uma tentativa.

- Tu és uma mulher tão sedutora… eu gostaria de ver-te vestida de uma forma mais feminina, fora do contexto pré e pós-laboral, com essas roupas usuais de trabalho. Elas dão-te um ar muito… ahn… sério…

Ele fora educado. Aquela hesitação fê-la pensar que talvez quisesse dizer que a roupa de trabalho deixava-a masculinizada. Riu-se da proposta dele, antecipando seu desconforto em voltar a vestir-se como uma ‘dama’, depois de muito tempo, mas aceitando o desafio. No mínimo poderia ser uma experiência divertida.

- Teu corpo é tão atraente… devias mostrar-te um pouco mais…

Ele começava a passar dos limites… Decidiu que era melhor parar com aquela conversa logo… antes que ela perdesse a compostura… e o beijasse ali mesmo, na frente de todos…

Levantou-se e saiu, meio às pressas, quando ele riu do rubor que apareceu-lhe subitamente a decorar-lhe a face…

***

Achou, num cantinho esquecido no guarda-roupa, um ‘pretinho básico’, como costumava-se chamar, em seus áureos tempos. Seu único vestido, pouquíssimas vezes usado era uma peça inteira, em malha de algodão com Lycra, que colava-se ao corpo de uma maneira que deixava muito pouco para a imaginação. Duas finíssimas alças deixavam os ombros à mostra, fazendo-a sentir praticamente despida - o que não era exactamente uma verdade - mas era como se sentia. Usou um curto bolero de renda preta, a fim de cobrir-lhe a parte de cima do corpo.

De frente ao espelho, analisou-se, cuidadosamente, da cabeça aos pés. Sentiu-se como se estivesse dentro do corpo de uma pessoa que não era ela, realmente. Começava a achar que não havia sido boa ideia, afinal, aceitar o desafio…

Falso pudor? Ela riu-se da ironia.

Apesar de muito pouco acostumada com maquilhagem, usou um pouco de ‘gloss’ transparente nos lábios e um leve retoque nos cantos externos dos olhos, com um lápis escuro. Não sabia ir além daquilo e não queria parecer o que não era.

Embora não estivesse à vontade dentro de um vestido como aquele, viu que os olhos do rapaz sorriram, pela primeira vez, antes mesmo que seus lábios, assim que a viu. Suas dúvidas logo dissiparam-se. Depois de tanto tempo, sentiu-se atraente.

- Hoje vamos cozinhar juntos.

- Já sei quem vai ter que lavar a louça suja, disse-lhe ela, sorrindo.

Ele piscou o olho, maroto, e deu uma gargalhada. Ela apaixonou-se imediatamente pela risada dele – tão solta e espontânea – como de um menino que não tem nada a temer, nada a perder... cheio de vida e de esperança no futuro… ou pelo menos foi a impressão que o rapaz lhe passou.

Ele conduziu-a à cozinha. Enquanto cortava os legumes para uma sopa que preparava, como entrada, conversava animadamente sobre música e sobre sua vida, antes de se conhecerem, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Fascinada a ouvir-lhe, a mulher aproximou-se dele com cuidado e tocou-lhe a mão, de leve. Ele parou de fazer a tarefa e, com naturalidade estudada, juntou os legumes picados, com suas duas mãos em concha, e deitou-os na água, que já fervia na panela. Temperou com um cubo de caldo de legumes, mexeu bem, provou o resultado e, em seguida, voltou-se de frente para ela.

Aquele homem olhou-a de um jeito que poucos até então haviam-na olhado. Ele não só tinha os olhos fixos nela, mas seu interesse ia muito além de simplesmente observar… era como se conseguisse ver através dela… e sentiu que aquilo era assustadoramente sensual.

Adiantou-se e tirou-lhe o bolero, colocando-o cuidadosamente no encosto da cadeira. Beijou-lhe um ombro, depois o outro, enquanto empurrava com os dedos as alcinhas do vestido para os lados. Enquanto abria o fecho, vagarosamente, continuava a beijar-lhe as costas. Ao soltar o negro tecido do seu pálido corpo, descobriu a tatuagem impressa ao lado esquerdo, que estendia-se até próxima à virilha. Perguntou-lhe se tinha algum significado especial.

- ‘Vitória’ - disse-lhe ela.

Ele beijou a imagem – pintada em preto somente - de um alongado dragão japonês, estampada indelevelmente em sua pele, antes de voltar a percorrer-lhe o corpo com seus lábios.

Sua atenção aos mínimos detalhes causava-lhe arrepios, apesar do calor suave que vinha de sua boca. Fechou os olhos e deixou-se levar por suas carícias tépidas e tão bem-vindas. Quando sua boca aproximou-se dos seios, ela segurou-lhe firme e ternamente o rosto com ambas a mãos e trouxe-o até a altura de sua face, olhando-o firmemente no fundo dos olhos azuis.

Beijou-o com carinho… levemente… cuidadosamente. Ele fechou os olhos e entregou-se àquela mulher, como um verdadeiro amante.

Brincaram ali mesmo na cozinha, enquanto a sopa cozia, no fogão atrás deles. Ele levantou-a do chão com um forte abraço, enquanto a beijava com uma paixão à qual ela não estava acostumada e sentou-a sobre o balcão. Beijou-lhe o pescoço, os seios, o ventre e desceu. Ela fechou os olhos, quando ele tocou o ponto mais sensível de seu corpo e gemeu, baixinho.

O menino transformara-se em um experiente homem e fez dela a mulher mais especial que alguma vez ela havia sido. Seu corpo era tudo que ela precisava. Suas carícias, tudo que desejava - mesmo sem ter uma firme consciência daquilo.

Ferveu a volta dele, como se fosse um vulcão em plena actividade, explodindo repetidas vezes, ao sabor do calor que emanava de todos os recônditos do seu corpo.

Quando já havia passado o fogo para chama baixa, ele olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

-Os momentos passados contigo são, para mim, os mais belos.

Naquele momento, a mulher que estava adormecida tanto tempo dentro dela, sentiu nele uma enorme força e uma doçura sem igual, ainda que de uma maneira muito inocente e espontânea.

Ele acrescentou:

- Eu gosto tanto da tua ‘tatoo’ e do teu corpo… é tão perfeito…

A mulher perguntou-lhe por que razão dissera aquilo e ele respondeu que sentiu que tinha de expressar o que se passava naquele momento. Ele, que sempre pisava com cautela estudada o terreno sobre o qual aventurava-se a entrar, tornara-se bravo o suficiente para enfrentar seus próprios receios, diante do que havia acontecido entre eles, poucos minutos antes.

Foi quando ele, por sua vez, perguntou-lhe o que sentia, quando o via, que ela disse… não somente tudo o que sentia, mas também o que pensava. Ele percebeu que ela não temia expor-se. Abriu-lhe um sorriso de criança, meio acanhado e agradavelmente provocante, colocando uma canção a tocar, logo em seguida. Costumava desviar o assunto quando se sentia desconfortável ou intimidado a responder algo que não desejava.

“I believe I can fly, I believe I can touch the sky, I think about it every night and day, spread my wings and fly away”… (R. Kelly)

Usou aquele momento para dizer algo, sem precisar falar. Por um breve instante, pareceu, a ela, que os melancólicos olhos azuis do rapaz sorriram-lhe outra vez, mas aquela impressão passou muito rapidamente.

As palavras cantadas mexeram com suas reacções, fazendo-a contemplá-lo com um carinho sem igual, mas ele desviou o olhar, ruborizando um pouco, quase timidamente. Incrível como, em questão de minutos, ele passara de um ousado e experiente amante, que sabia explorar todos os seus sentidos e voltara a ser aquele menininho tímido, novamente. Um animalzinho, que se escondia em sua casca protectora, foi a imagem que ela visualizou imediatamente.

Decidiu escolher outra canção, como se aquela não estivesse expressando tudo o que ele queria.

Fingiu estar ocupado, escondendo os olhos – lindamente azuis - quando a voz rouca de Bryan Adams começou: “Look into my eyes, you will see what you mean to me…  e continuou: Everything I do, I do it for you”…

Ela escreveu aquela frase num pedaço de papel e mostrou a ele, que sorriu, divertido, baixando os olhos mais uma vez.

Ela aproximou-se e beijou-lhe, de leve, um ponto no pescoço, na região atrás da orelha… Seu corpo estremeceu todo, quando viu-lhe a pele arrepiar, como se uma carga de electricidade houvesse ligado uma reacção no corpo do amante.

Ele virou-se e beijou-a novamente… a começar pelos olhos e foi descendo, enquanto ouvia os gemidos da mulher, que já sentia um vulcão prestes a entrar em nova erupção, em todas as tonalidades de vermelho, dentro dela.

Os olhos, de um dos mais impressionantes matizes de azul-safira, brilharam ao reencontrar com os dela. Ela perdeu o controlo completamente, abraçada ao corpo dele, como um náufrago que agarra-se à sua tábua de salvação…

quarta-feira, 10 de abril de 2013

A Visita


Eu tinha a cabeça recostada ao grande travesseiro que jazia, desalinhado, na cabeceira da cama. Meus olhos estavam cerrados, mas eu não havia adormecido ainda. Havia um leve perfume de alfazema no ar.

Na taciturna penumbra do quarto, minha intuição alertou-me que não estava sozinho. Foi como se a atmosfera à minha volta houvesse mudado. Senti sua forte presença, muito próxima de mim. Sabia, com uma certeza absoluta, que ela estava ali e que só poderia abrir meus olhos se tivesse permissão para tal. Por incrível que pareça, são esses instintos que sempre flutuam na minha cabeça, naqueles tipos de ocasiões. Eu não precisava de mais certeza que aquela.

Senti seu rosto repousar sobre minha cabeça, com suavidade… leve e carinhosamente... quase um toque de pluma. E ela disse, baixinho:

- Eu precisava vir…

Sem abrir os olhos, eu falei:

- Quero te ver.

Ela sussurrou, incerta:

- Mas eu estou diferente.

- Não tem importância, disse-lhe eu.

Ao que ela respondeu:

- Tenho medo.

- Eu também...

Minha afirmação era uma verdade incontestável. Minha razão receava que, ao abrir os olhos, um sentimento negativo assolasse meu espírito e o medo ou decepção a afastasse de mim.

Ela havia mantido seu silêncio, como se os meus temores fossem também os dela. Foi então que decidi que devia abrir meus olhos e enfrentar o que visse e viesse. Era necessário mais que coragem naquele momento – era preciso uma atitude arrojada, que derrubasse barreiras e juízos pré-concebidos…

Abri os olhos devagar.

Sua face realmente estava diferente, mas ela me olhava do mesmo jeito – aquela maneira meio triste, como se estivesse sentindo uma certa apreensão em relação à minha possível reacção. Os ossos da face pareceram-me mais acentuados e ela tinha aquela melancolia incerta no semblante… Minha mãe parecia mais jovem, todavia, que da última vez que a vira.

Toquei-lhe a face com delicadeza, como uma criança faria e vi que ela fechou os olhos ao meu contacto, como se aquele leve roçar de meus dedos sobre sua pele lhe fizesse algum bem. Foi então que eu chorei. Não por medo, nem por angústia… chorei por nostalgia, por sentir uma saudade enorme...

O relógio despertou-me, apagando de imediato meus pensamentos, chamando-me à realidade e à vida. Levantei-me de um salto e fui ao duche, entrando automaticamente na rotina diária.

Ela havia vindo a mim em um sonho, como não podia deixar de ser; um sonho cujos detalhes não lembrei imediatamente, ao despertar. Foi somente quando voltei ao quarto, para vestir-me, antes de sair para trabalhar, que as imagens vieram como num filme.

Foi como se acordasse, naquela hora, a memória de poucos minutos antes. Meu peito apertou-se, diante da tristeza gigantesca que me tomou os pensamentos. Daquela vez meus olhos inundaram com lágrimas incontroláveis e eu chorei mais… muito mais que no sonho. Sentado à beira da cama, enterrei o rosto nas mãos e me deixar levar por aquela emoção estranha, que misturava dor e saudade – uma saudade impossível de matar com uma viagem programada ou um telefonema de longa distância...

Como já era costume, Tiger entrou no quarto, mas ao ver-me soluçar, chegou-se, deu-me a tradicional cabeçada na perna e sentou-se a observar-me, quieto e com fixa atenção. Somente quando viu-me composto novamente, o astuto gato saiu do quarto… ainda em absoluto silêncio. Aquele respeito tácito fazia-me ter grande consideração pelo animalzinho que soube cativar-me tão bem e exercer tão marcante presença na minha vida.

Durante aquele dia, muitas vezes senti ondas de tristeza irem e virem, comprimindo-me o peito, incontrolável e inconsolavelmente. Por várias vezes tive de engolir, a seco, a vontade de chorar, para não parecer tolo, nem ter que explicar o inexplicável, para quem olhasse e percebesse o estado em que eu me encontrava.

Quando voltava para casa, vinha a pensar no que me acontecera durante o dia ou em coisas que me afectaram o humor, incidentes pessoais ou mesmo pensamentos aleatórios, engatilhados pela música que tocava no momento. Foi então que compreendi…

Em meu pequeno mundo, sua ausência ainda é sentida e um certo inconformismo diante do facto de não haver podido dizer-lhe adeus, propriamente, faz-me pensar, de vez em quando, nas últimas palavras que trocamos.

- A gente se fala na semana que vem…

Nem mais, nem menos. Entre nós existia aquela espécie de comunicação que sempre indicava continuidade. Quando ainda estava por perto, era a mim que ela esperava nos fins-de-semana para ir à farmácia, ou ao supermercado, ou ao shopping center comprar algo que necessitasse ou desejasse. Era o meu telefonema que ela aguardava sempre aos domingos, às 3:00h da tarde, estivesse no Brasil ou longe de lá.

No fundo, dizer que ia ligar-lhe na semana seguinte foi a melhor despedida que pude fazer. Era um simples “até breve”, que ficara entre nós… e agora ela vinha, em um sonho, apenas ver se tudo estava bem comigo… matar um pouco daquela saudade que ficou arranhando o peito… que gesto assustadoramente bonito!

- Até breve, então, mãe…


terça-feira, 19 de março de 2013

A Heart of Steel



Wondering if there was a key

To unlock that door

That would consent one to go

Into the heart

You said is made of steel,

I asked myself if

There was a place

In your fearless soul,

A smile to open up,

A touch

And a whisper,

That would allow me

To glimpse

What was behind the disguise

You wore

Over your true

And concealed self.

And when that song

Played again,

I saw your eyes

Shining bright

And your grin

Revealing how sweet

You could be

-Even more than you ever tried

To admit to anyone.

You held your chin,

You looked away

And pretended not to care,

But your smile

Undoubtedly showed me

What was truly going on

Through your wandering mind.

And when you looked

At me, again,

My own heart

– Uncontrollably –

Melted away

And I dared

To ask myself

How could I ever resist you?

And knowing all of these,

It was impossible for me

To believe

Your heart was made

Of anything even close

To the hard,

Unbreakable

And cold steel?

domingo, 3 de março de 2013

O Que Passar Pelo Meu Coração… (Whatever Walks In My Heart)1








A conexão perdida, por atraso e irresponsabilidade de uma companhia aérea, dias perdidos em fila de espera, até finalmente conseguir lugar em um voo cheio, mas garantido, haviam dado cabo de qualquer sinal de tolerância e educação que ele alguma vez tivera. 

O homem de meia-idade - cabelos castanho-claros, levemente ruivos, cortados curtos e cuidadosamente penteados – ajustou os óculos de aro de metal, que escorregavam lentamente de seu nariz. Aparentemente alheio aos outros expectantes sentados à sua volta, no movimentado hall do aeroporto internacional, aguardando a hora de, finalmente, viajar de volta ao bem-vindo conforto de seu pequeno lar, nunca pensara que fosse desejar tanto estar em outro lugar, que não ali, naquele momento. Ele só queria mesmo que aquele dia passasse o mais rápido possível… 

Seu humor estava pior a cada hora que passava. Além de abominar as infindáveis horas entre as conexões, considerava cada viagem intercontinental, em si, uma verdadeira perda de tempo e um teste à sua parca tolerância. Até chegar de volta à casa, cerca de vinte e quatro horas ter-se-iam passado, numa situação normal. Aquela jornada, porém, já gastara praticamente mais de meia semana de seu tempo… e sua paciência já havia passado do limite aceitável. 

Chegar em casa… aquele era um conceito estranho. “Home is where your heart is”2 (Lar é onde teu coração está)… E onde estava seu coração, afinal? Entre dois países, entre aquilo que parecia como se fossem duas vidas diferentes, separadas por um imenso oceano, ele já não sabia mais exactamente onde ficava o lugar que pudesse chamar de lar

Sentado à desconfortável cadeira plástica, por muito tempo, ele estava inquieto e se irritava com qualquer coisa que ouvia ou lia. Ao invés de ficar contente por finalmente ter as coisas alinhadas, ainda remoía os dias passados e as dificuldades que tivera para chegar ao ponto em que estava. A certa altura, mesmo a música a tocar nos fones de ouvido tivera que ser desligada e devidamente guardada, pois ao invés de acalmá-lo, estava a deixá-lo mais tenso. Seu único consolo, naquele momento, era o vôo ser nocturno, o que se constituía uma vantagem, pois tencionava dormir durante boa parte do tempo.

Até então, não percebera que também era alvo dos olhares e da curiosidade de outros viajantes, acomodados ali à sua volta, à espera do mesmo que ele: entrar no grande avião, que os levaria, por mais de dez horas, ao destino comum - um pequeno país da velha Europa. 

Passou os olhos à volta, esquadrinhando as faces dos desconhecidos vizinhos, já que não havia muito mais a fazer e ainda tinha muitos minutos de sobra, até a hora do embarque. Sua atenção voltou-se, por uma fracção de segundos, para um rapaz de cabelos e olhos claros, sentado ali perto, ainda que sem causar mais que um simples interesse momentâneo - daqueles que se tem por uma pessoa que considera agradável e sabe que nunca mais encontrará em nosso caminho - aquelas pequenas distracções que a gente tem, ao encontrar estranhos, de passagem, em lugares igualmente desconhecidos. 

Às vezes, generalizar os eventos simples que se sucedem em nossas vidas, pode levar a um grande engano. E ele ia perceber isso naquela mesma situação, apenas um pouco mais tarde. 

‘Nada acontece por acaso’, havia-lhe sido dito, naquela mesma tarde, em conversa informal com o motorista do táxi - um visionário, provavelmente - quando iam a caminho do aeroporto.

Em triste consequência da paranóia deixada pelos atrasos e confusão até então acontecidos naquela viagem, perdeu o interesse em praticamente tudo – a não ser o de alojar-se na sua poltrona - do momento em que entrou na fila de embarque, até sentar-se, finalmente, no seu lugar. A partir dali, já menos preocupado, ficou a observar as pessoas passarem, à procura de seus assentos. Algumas pareciam meio perdidas - provavelmente marinheiros de primeira viagem; outras vinham a caminhar, indiferentes, ao longo da grande nave - com certeza os chamados “frequent flyers”

Quando estava inspirado, em viagens normais, enquanto observava, fazia análises mentais rápidas, tentando construir uma pequena história para um e outro passageiro, que lhe parecessem mais singulares. Pessoas constituíam-se materiais interessantes para um espectador imaginativo como ele. Naquele dia, contudo, nada lhe era muito atractivo. Estava cansado…

Um jovem que aproximava-se pelo lado esquerdo, a procurar, com os olhos, o número de seu lugar, parou ao lado do homem sentado junto ao corredor, na mesma fileira que ele. Acomodou sua pequena mochila de lona parda no compartimento acima das poltronas, abriu um largo e simpático sorriso e pediu licença para sentar-se a seu lado. Reconheceu-o como o tal rapaz que havia-lhe chamado a atenção um pouco antes, na sala de espera do aeroporto. Daquela vez, observou-lhe, detalhadamente, cada pormenor. 

Tinha estatura mediana, penetrantes olhos azuis, cabelos claros cortados curtos e um corpo vigoroso, em contraponto às mãos quase pequenas, não exactamente delicadas. Ele, que tinha um interesse acima do normal por mãos – esteticamente - observou-as tão longamente quanto pode. Eram firmes, pareciam um pouco calejadas pelo trabalho árduo e tinham, ao mesmo tempo, forma e graça genuínas. Passaram-lhe a ideia de uma força generosa e destemidamente disponível.  

Já devidamente acomodado no assento a seu lado, apresentou-se polidamente e começaram a conversar. Muito inversamente ao que lhe era de costume em viagens como aquela, a prosa fluiu livre a noite inteira, como se fossem conhecidos de longa data. Esqueceu o sono e outras distracções habituais - os filmes, revistas e livros - naquela noite e dormiu o mínimo possível… A jornada, afinal, acabara transcorrida rápida demais. 

Apesar da tenra idade, o rapaz apresentava uma maturidade incomum para um homem tão jovem e, quando ria, parecia uma criança – tão aparentemente inocente e livre de qualquer preconceito… tão cheio de um frescor sem igual e tão aberto para a vida. Era como se vivesse num mundo muito diferente do seu – o mundo de um razoavelmente bem sucedido executivo de meia-idade - o que era, de certa forma, a mais pura verdade.

Quando se olharam, quase acidentalmente, um nos olhos do outro, o homem sentiu-se quase desconfortável e fora de contexto, como um menino que experimentava as estranhas emoções do primeiro dia na escola. O rapaz exibia uma postura, perante à vida, que o fez sentir-se bastante mesquinho e materialista. Ele ficara encantado com aquela visão de mundo e com outras prioridades existenciais - absolutamente tão díspares das suas próprias. Sentia-se como se fosse uma desengonçada, lenta e sombria lagarta a contemplar, invejoso, aquele ser já tão completamente provido de asas… e que asas enormes ele tinha!!!  

Dizer adeus, foi mais difícil que ele poderia alguma vez sequer imaginado. Suas vidas tomavam destinos bastante separados a partir dali. Por algum estranho motivo, porém, aquele aperto de mãos, na despedida, mostrou-lhe que sua emoção havia sido seriamente afectada por aquele encontro que pareceu tão casual - no início - mas na verdade, abriu-lhe os olhos para realidades que ele não estava acostumado a vislumbrar.

Não chegou a questionar-se o que acontecia com suas emoções. Aceitou de peito aberto aquela sensação nova, que se apossava dele, com a celeridade, o carinho e o aconchego de um bem-vindo e forte abraço. Era o Universo fazendo-o contradizer as impressões que tivera apenas algumas horas atrás.

Quando saiu pela porta giratória do aeroporto, o ar fresco da manhã esfriou seu corpo e sua alma, numa cruel onda de choque, que lhe fez vir, imediatamente, lágrimas aos olhos. 

Estava de volta ao mundo real, que passava em alta velocidade pela janela do táxi e o levava de volta à sua vidinha medíocre que, de repente, pareceu-lhe extremamente fria, melancólica e até um tanto obscura. No bolso, guardado como um pequeno tesouro, um pedacinho de papel trazia, escrito numa letra miúda e singular, o que parecia uma frágil âncora com a esperança: um endereço de e-mail. 

O despojamento que invejou naquele homem – provavelmente vinte anos mais jovem que ele - detectado numa conversa breve, de apenas algumas horas, passou a assumir instintiva e gradualmente em sua vida, a partir daquele momento. 

Sentia necessidade daquela transformação – natural -, motivado por influência da exuberância e da forte presença daquela criatura, que não pareceu ter noção do profundo e extremo efeito que causara em sua vida e em seu comportamento. 

Era como se fosse um filho que houvesse ensinado, com o seu simples exemplo, uma grande lição de vida a seu pai que, mais agradecido que surpreso, decidira mudar seu próprio comportamento, tentando ser um homem melhor dali para diante. 

Não somente por educação, uma mensagem de contacto fora imediatamente respondida, para sua completa surpresa. A cortesia foi retribuída com pedaços desastrados de emoção – pequenos poemas, escritos com exclusividade. Iniciava-se ali um período de contactos bastante frequentes, apesar da grande distância física que os separava.

Quando conversavam, por e-mail, Messenger ou telefone, ele perdia a noção do tempo e abria completamente sua alma. Falavam sobre assuntos que ele não costumava discutir com qualquer outra pessoa. Percebeu também que não era o único a sentir-se tão à vontade. De sua parte, teve a certeza que seu coração havia-se transformado num lugar melhor. 

Foi a primeira vez que as palavras de carinho fizeram-lhe algum sentido. Acreditou piamente no significado e valor delas e na sinceridade do interlocutor. Absorvido pela simpatia e afeição que recebia, não pensava em futuro: só queria estar naquele momento presente, naquele estado e, com certeza quase absoluta, em outro lugar – desde que fosse mais perto do jovem que lhe abrira os olhos. No conforto de um abraço, onde nunca esteve, ele se imaginava aquecido e protegido.

Foi tomando conhecimento, aos poucos, de sua história de vida e de algumas de suas maiores angústias e desilusões. Seu espírito estilhaçou-se em milhares de pedaços, quando o rapaz lhe disse, certa vez que, no começo de sua vida, procurava alguém que amasse, depois contentou-se apenas em ser amado e, mais tarde, ficava feliz em ter alguém que não o fizesse sofrer… 

Aquela triste constatação - vinda de uma alma tão jovem - atingiu, como um tiro certeiro, seu pobre e frágil coração - distante demais para ajudá-lo ou ampará-lo… Ouvir seu desabafo era o melhor que ele podia fazer. Não era por ele que o rapaz sofria, mas era a ele que recorria. Que mais podia-se esperar da vida?
 
Separados por mais de um continente, embora desejasse, de alguma forma, protegê-lo de qualquer sofrimento, o máximo que conseguia oferecer-lhe era sua disponibilidade para ouvir seus lamentos e chorar junto com ele, ao telefone, por minutos incontáveis...

Sabe quando a gente gosta tanto de alguém, que chega a doer?

Ele rezava, todas as noites, para que o jovem fosse feliz e para que os céus lhe enviassem anjos protectores, cada vez que ele se sentisse só ou triste. Seu maior desejo passou a ser de defendê-lo de todos os perigos que pudessem aparecer. “Almost hope you’re in heaven, so no one can hurt your soul”3 (Quase desejo que estivesses no Paraíso, de modo que ninguém pudesse machucar tua alma) …
 
Mas, como já devia esperar, os contactos começaram a escassear. Não era exactamente por culpa de nenhum deles. As circunstâncias de suas vidas, tão separadas e tão distantes, bem como os pequenos – e também os grandes - problemas diários, não os favoreceram…

A distância aumentava com o passar de semanas sem as notícias - que ele procurava insistentemente - dia após dia, quando chegava em casa. O silêncio tornara-se profundo e sombrio, como os mistérios do mar. O tempo dilacerava-lhe as entranhas e turvava-lhe a memória, com seu punhal lento e perverso, a cortar-lhe a alma, sem piedade nenhuma, enquanto um veneno corria-lhe pelas veias, intoxicando-lhe o discernimento e causando-lhe delírios de insegurança.

Mesmo assim, sem forma de favorecê-lo com sua espontânea protecção, ele continuava a rezar, insistentemente, para que o outro se encontrasse… que fosse feliz… que não sofresse… Seus primeiros pensamentos do dia e também os últimos da noite eram, invariavelmente, dirigidos para ele. 

Para compensar a ausência e a distância que os separava, ele procurava aqueles olhos em outros rostos, tentando reacender a memória e resgatar pedaços perdidos dele mesmo, sabendo que estava se iludindo, para diminuir a dor da saudade que sentia. Tentava convencer-se que aquilo tudo era uma outra realidade, criada em sua mente, para manter-se vivo, enquanto finíssimos grãos de areia dourada corriam, incessantes, na grande - e rebuscadamente decorada - ampulheta da existência. 

Decidiu que tinha que dar-se espaço e tempo, para que aquela espécie de obsessão não sufocasse seu incomum relacionamento. Temia, porém, que estivesse cometendo suicídio ou compensando sua débil paixão, com uma falsa esperança. 

Para apaziguar seu coração e dirimir todas as dúvidas e incertezas, convenceu-se que precisavam se reencontrar. Não seria uma tarefa fácil. Tentou organizar-se de muitas maneiras, em várias ocasiões. Alguma coisa sempre dava errado, na última hora, para seu grande desespero. Ou o Universo - ou o rapaz - estavam lutando contra sua vontade.

Desconfiado que fosse uma combinação de ambos, quase desistiu, mas por uma feliz coincidência, foi surpreendido pelo acaso do destino, mais uma vez. Acabaram por combinar almoçarem juntos, num domingo de verão. Pegou a estrada bem cedo pela manhã, enquanto o sol ainda não castigava demais o longo caminho de asfalto. A viagem devia levar cerca de três horas. Estava ansioso… e inseguro, ao mesmo tempo. 

A educação e gentileza que o jovem lhe dirigiu foram sem precedentes e ele deixou-se ficar à vontade desde o primeiro instante em que se viram. Passaram o dia a conversar, rir, almoçaram juntos e contaram histórias, como dois grandes amigos de longa data. Com um forte abraço de despedida, o encontro acabou… assim, educadamente.

Enquanto tuas asas
De luz
Refrescavam a febre
Que eu sentia
Em minha alma,
O calor
De teus braços
Aquecia o frio
No meu coração...6

O homem mais velho ficou um pouco preocupado, ao voltar mais uma vez à sua vida. Embora tivesse sido extremamente controlado, pensou que talvez sua ansiedade acabara por decepcioná-lo. Na viagem de volta, ao final da tarde, em meio aos imensos congestionamentos de fim de praia, foi pensando no que acontecera, revivendo os momentos, os sorrisos, as palavras… vezes e vezes incontáveis…

Reflectiu, por muito tempo, sobre o que aconteceu naquele dia. Ele, que tinha tantas expectativas, viu-se um tanto perdido, tendo percebido que tudo passou-se tão serena e educadamente. Não fora, de maneira alguma, decepcionante. Fora, somente, morno demais… certinho demais…

Teria ele esperado mais que realmente merecia? Teria o outro cedido a encontrar-se, apenas por educação, para que o deixasse, finalmente, em paz – pelo menos por uns tempos? 

Ele nunca iria ter respostas para aquelas questões… e talvez não as quisesse respondidas, de qualquer forma…

O tempo confirmou que estava certo em preocupar-se. Teve que aprender a aceitar que a condição de se ter de estar longe aniquila os relacionamentos, mesmo com a proximidade que a tecnologia ‘on line’ traz hoje em dia. Ele achava que a distância diminuiria, mas estava enganado, pois nada resiste à força do tempo, associada à frieza cruel do afastamento. 

O objecto da sua autêntica afeição foi espaçando as notícias, mais que anteriormente. Talvez ele tenha, mesmo, sido apenas educado e cedido aos seus apelos de revê-lo, afinal…

Sentia que ia, aos poucos, abandonando seu pobre coração que, aconselhado pela razão, foi-se conformando com aquela ausência, aceitando a distância e o silêncio, com uma naturalidade que, em outras épocas, até seria fora do normal. 

Aqueles olhos, porém, seguiram-no por mais tempo que esperava. Eram muitas feridas que fechavam demasiadamente vagarosas, deixando profundas cicatrizes, daquelas que não se apagam jamais. Ele ainda mantinha uma palhinha de esperança, embora soubesse, desde o começo, que não acreditava em milagres. Sentia como se não quisesse - ou devesse - preencher aquela lacuna deixada em seu coração.

Procurava, entrementes, aqueles olhos e sorriso nos rostos de outras pessoas, tentando compensar uma tão sentida ausência. Tudo o fazia lembrar daquele jovem… Algumas vezes era aquela curvinha nas extremidades do sorriso largo, às vezes os olhos, extremamente azuis. Seus pequenos detalhes decoravam outras faces, outras personagens que cruzavam seu caminho. Até mesmo o rapaz que trabalhava no prédio ao lado, com seus olhos cor de safira, cabelos claros e corpo semelhante, faziam seu coração pular de alegria, quando passava pela janela, a caminho do restaurante.

Por um bom tempo ainda, suas orações foram para que o rapaz fosse feliz, mesmo que não tivesse mais quase nada com a sorte do outro. Ele queria, mas sabia que não devia, procurar mais contactos, pois acreditava que todas as pessoas têm o direito de ter sua privacidade assegurada. Têm também o direito de não se comunicarem com quem não desejem. 

Era assim que via aquela falta de contacto: sua muito pouca vontade de falar, comunicar, ver…. Uma preservação da espécie. E neste caso, ele se sentia como um verdadeiro predador. E que sensação estranha era!

Embora nunca houvesse sequer falado sobre isto, outras pessoas sempre lhe diziam que nenhum relacionamento resiste à distância, por muito tempo… nem ao silêncio. Ele não queria aceitar o óbvio: que as pessoas tinham razão, afinal de contas. Perguntava-se, porém, por que seu coração não se conformava de vez e tocava a vida adiante, sem sofrer mais que o necessário. Sabia que era o único responsável pela sua própria aflição. 

Mas era um homem maduro com espírito de menino e este, na sua simplicidade, entregava-se sem restrições às emoções a que se via enfrentar. Era difícil aceitar as perdas e ele não queria sentir-se derrotado. Pelo caminho, ia-se enganando de foco, tentando ajustar suas miras, procurando acertar o ritmo da sua vida, que não se conformava em se manter prático e gostar somente de quem gostasse dele. Pelo caminho, ia tentando não sofrer, dançando com seus fantasmas e sua dor, na tentativa de confortar sua razão, com pedaços alquebrados de emoção. 

What is love, but the strangest of feeling? A sin you swallow for the rest of your life? You´ve been looking for someone to believe in and love you until your eyes run dry…”4 (O que é o amor, senão o mais estranho dos sentimentos? Um pecado que tu engoles pelo resto da tua vida? Tens procurado por alguém em quem acreditar e que te ame até teus olhos secarem) …

Depois de vários meses de silêncio, como por encanto ou brincadeira do destino, o jovem voltou a aparecer no messenger. Parecia ser a mesma pessoa de sempre, com os mesmos problemas e a mesma conversa adorável de tempos atrás - a mesma pessoa que havia ganho seu coração e sua atenção, sem restrições. Daquela vez, todavia, sua emoção reagiu diferente da sua razão. Alguma coisa no fundo de sua lógica gritou em estado de alerta.

A dor da solidão, a decepção e o abandono amadurecem e enrijecem a alma de uma pessoa de uma maneira um tanto desumana. Sentiu que já não era mais o mesmo que havia sido… infelizmente. Seu coração passara a ansiar por uma reconciliação consigo mesmo e, para alcançá-la, precisava ficar longe de novas… e também de velhas… desilusões. Ele se preparava para que outras emoções pudessem tomar o espaço que fora deixado aberto em sua alma ainda não completamente cicatrizada... 

Há não muito tempo, estaria de cabeça baixa e procurando vestígios da presença do outro, em cada espaço e tempo, em cada olhar que cruzasse com o seu. Naquela ocasião, porém, seu peito abria-se e permitia-se querer ser independente, libertando-se - com desprendimento, mas deixando marcas de um carinho imenso, que sentira desde sempre por aquele airoso personagem - que invadiu sua vida, sem querer - e que ensinou-o a ser melhor que alguma vez já houvesse sido. 

 Never mind I’ll find someone like you… I wish nothing but the best for you too… Sometimes it lasts in love, but sometimes it hurts instead…”5 (Não tem problema, eu encontrarei alguém como tu… Eu desejo nada mais que o melhor para ti também… Algumas vezes o amor permanece e, outras, entretanto, dói) …

Ele passara a esperar que outras pessoas pudessem tomar sua atenção, de uma maneira mais leve... e tencionava poder divertir-se com aquilo. Embora anteriormente suas emoções fossem como as águas do oceano, num vai e vem infinito, à beira da praia, agora ele precisava estabilizar as marés e ser como um lago de águas mais calmas, ainda que, mesmo assim, profundas e um tanto obscuras… Seu espírito ansiava por alguma paz e, talvez, independência. 

Tinha necessidade de ser um novo homem – original e mais leve – que não revivesse sofrimentos e que lembrasse apenas das coisas boas que ficaram gravadas no seu coração, para seu bem e para a preservação da sua estimada sanidade. 

Apesar de sentir falta das palavras que nunca mais ouvira, tinha, definitivamente, que seguir adiante. Era sua vida e ele estava disposto a enfrentar o que viesse pela frente.

- Me abandonar,
Me deixar levar –
Ser um pensamento
Solto
No vento;
Ser sempre uma lembrança
Daqueles pequenos momentos,
Que nunca duram
O suficiente,
Para ser demais:
As pequenas eternidades
Do coração…6

Desejou-lhe felicidades, em alta voz, como se falasse ao vento do mar e abriu-se para o mundo.

Atravessou, então, a rua e o destino, com as mãos nos bolsos do casaco, sentindo uma brisa refrescante a desalinhar-lhe os cabelos e pensou, enquanto esboçava um sorriso um tanto triste: é tão bom estar vivo… e livre… mas desta vez, “Whatever walks in my heart will walk alone*…” 1 (O que passar pelo meu coração, passará sozinho) …



Notas:
1. *De Nightwish: “Forever Yours”
2. De “ O Mágico de Oz”;
3. De Within Temptation: “Somewhere”;
4. De Razorlight: “Wire to Wire);
5. De Adele: “Someone Like You; 
6. De. Em Anjos… (http://aquarelasdepalavras.blogspot.pt/2010/01/em-anjos.html)