domingo, 28 de abril de 2013

Outros Estudos em Vermelho e Azul - Parte 1


- Tu vens aqui todos os dias, sempre às mesmas horas, rotineiramente. Eu não sei porque… ainda… mas gostaria de saber se há um motivo especial…

Ele tinha razão. Havia já algum tempo em que ela passara a frequentar aquele específico Café da esquina, a caminho do trabalho e ao final da tarde, quando ia de volta para casa.

Depois de umas poucas vezes, percebeu que o funcionário a servir-lhe era quase sempre o mesmo – um rapaz de grandes e melancólicos olhos azuis, cabelos castanho-claros, estrategicamente desalinhados e face agradável de olhar. Parecia ser mais jovem que ela, pelo menos uns dez anos. Era alto e um tanto corpulento, longe do porte puramente atlético, mas não estava nem perto de ser gordo. Na verdade, era bastante atraente a seu ver.

Ele invariavelmente a recebia com um largo sorriso quando ela entrava e dirigia-se à mesma mesa, perto da janela. Apressava-se a servir-lhe o 'espresso', sem açúcar, que ela sempre pedia e que era preparado assim que a avistava à porta.

A mesma rotina repetia-se todos os dias, há semanas e era a primeira vez que ela era interpelada pelo rapaz. Talvez o pequeno contacto que tiveram, nas mãos, quando ele pousou a chávena sobre a mesa, provocara aquela reacção.

Ela olhou-o com uma certa curiosidade, diante daquilo que pareceria um atrevimento do funcionário para com uma cliente habitual.

Em uma pequena fracção de segundos ela deu-se conta do motivo que continuava a frequentar o mesmo lugar, todos os dias.

Como poderia dizer-lhe que, dentro de tantas opções de Café, era ali que ela sentia-se mais viva, pelo simples prazer de olhar momentaneamente para aqueles magnetizantes olhos azuis, que não pareciam sorrir nunca?

O comentário, quase uma pergunta, todavia, deixara-a desconfortável, como uma adolescente flagrada a espreitar um homem proibido.

Por que não dizes o que pensas? Ele deu a linha, para te agarrares e tu o deixaste escapar. Que estás esperando?

Não soube como reagir. Aquele demoniozinho instalado em seu cérebro fazia a pergunta que ela não sabia ou não queria responder.

E como é que poderia dizer-lhe que o simples facto de olhar para aquelas grandes, brilhantes e tristes safiras, fazia seus dias mais luminosos?

Apesar de não responder-lhe com mais que um sorriso meio sem jeito, aquela pergunta dera-lhe o que pensar. Precisava fazer algo, sabia… e o quanto antes fizesse, melhor… teve medo de perder a oportunidade que ele abriu com aquela simples pergunta.

Abriu a boca, para falar, mas algo mais forte – talvez um instinto de sobrevivência – impediu-a.

Ela limitou-se a levantar, deixar o dinheiro para pagar a conta e sair, sem olhar para trás. Quando passou pela janela, ainda viu o rapaz com uma expressão aparvalhada e um leve rubor na face, a recolher as moedas de sobre a mesa.

***

- Porque não me convidas para entrar? Quanto tempo, ainda, vamos manter esta conversa aqui do lado de fora? Sinto um pouco de frio e a minha pequena folga não demora a terminar…

A mulher olhou aquele jovem homem com um misto de carinho e condescendência e convidou-o, então, a entrar no Café da esquina, perto de sua casa, onde costumava frequentar diariamente, para um ‘espresso’ forte e sem açúcar, pela manhã e um ‘capuccino’ no final da tarde.



Depois de um certo incidente, há algumas semanas, havia decidido reconsiderar o que achara um atrevimento, a princípio, mas que tornou-se uma espécie de sedução por palavras… Ela voltou na manhã do dia seguinte, mas não foi o mesmo rapaz de sempre que a serviu, tendo ficado a um canto apenas a observar, enquanto outro lhe trazia o 'espresso-nosso-de-cada-dia'.

Um tanto preocupada, mais ainda que decepcionada, a mulher pediu ao rapaz que solicitasse ao seu colega de profissão que lhe trouxesse uma nata, um doce típico, que sempre vai bem com café forte e denso, apesar de ser acostumada a comer doces àquela hora da manhã.

Ele veio e depositou o pedido sobre a mesa, sem olhá-la directamente. Sabendo que havia ferido os brios do rapaz, a mulher disse:

- Desculpe.

- Dona, eu sou um serviçal aqui. A senhora desculpe meu atrevimento de ontem. Peço imensas desculpas e prometo que não vou repetir esse comportamento inadequado.

Ele falava com formalidade, num discurso estudado, que repassara em sua cabeça muitas vezes antes daquela manhã. Temendo que ela visse quão nervoso estava, ele colocou as duas mãos nos bolsos do avental de trabalho.

Ela percebeu a agitação e disse-lhe:

- Eu preferia que fôssemos, pelo menos, amigos…

- OK, disse-lhe ele, ainda sem levantar os olhos, mas ela percebeu que ele ruborizou e esboçou um leve e acanhado sorriso. Ele virou-se, disse um educado ‘com licença’ e saiu.

Somente no outro dia, quando voltou a entrar no estabelecimento, como se fosse em um dia normal, que ela foi recebida com um sorriso, apesar de, ainda, um tanto tímido. Suspirou aliviada. A tensão havia-se, aparentemente, dissipado entre eles.

***

Ele não estava vestido para um encontro. Trajava uma jaqueta de couro, já gasta pelo uso, sobre uma malha de lã azul. Blue jeans desbotados e botinas castanhas completavam o visual atraentemente casual, que lhe caíam tão bem… pelo menos aos seus olhos. Sem o avental de uniforme por cima da roupa comum, ele passava por um cliente habitual do Café.

Ela ainda estava com a roupa do trabalho, com o casaco acolchoado e um cachecol de caxemira com listras em vários tons de cinza, simples, mas confortável. Não era propriamente a roupa para um encontro tampouco. Apesar de trabalhar para a polícia, não era em uma área onde o uniforme fosse usado obrigatoriamente, por motivos óbvios. Muitas vezes tinha que passar por uma pessoa comum, não uma policial em fardas, para conseguir informações.

Uma pausa para o “espresso” ou até o “capuccino”. Era somente o que haviam combinado. A noite fresca de fim de inverno pedia uma grande chávena de capuccino bem quente – e foi o que ela pediu. Ele preferiu um espresso – forte e sem açúcar.

Sentaram frente a frente, como dois conhecidos de longa data. No fundo, estavam somente analisando um ao outro. Precisavam de tempo para avaliar até onde poderiam chegar. Ela sabia que tinha de ter paciência. Precisavam de um pouco de segurança e um tanto de confiança para poderem se sentir mais à vontade...

Ela ouvia-o, em silêncio, tentando compreender suas razões, suas expectativas, suas preocupações. Era a primeira vez que falavam longamente. Quando se despediram, porém, sentiu uma ponta de decepção. Apenas um aperto de mãos e um ‘até mais’, quebrou suas expectativas em pequenas porções, como um bibelô de cristal que cai no chão de granito - duro, polido e frio.

Minutos depois, ao chegar em casa, decidiu que era tarde demais para qualquer outra coisa além de se preparar para deitar. Já ia a caminho do quarto, quando ouviu o “bip” característico do telefone indicar uma mensagem a entrar. Foi até a cómoda e pegou o aparelho. Leu e deu uma risada alta. Nem tudo estava perdido, afinal...

***

Os pequenos encontros na pausa do turno habitual do rapaz passaram a tornar-se frequentes. Ela começava a ficar encantada com o que ia descobrindo aos poucos sobre aquele personagem tão diferente dela.

Num ímpeto de pretenso atrevimento, ele decidiu convidá-la para jantar. Aquela deveria ser a primeira vez em que marcavam um encontro a sério. Havia uma semana que ela havia-lhe dito a causa de sempre passar no Café duas vezes por dia. Ele sentiu-se lisonjeado, mas ruborizou ligeiramente quando soube. Era sua deixa para deixar a timidez de lado e ser, mais uma vez, arrojado.

A mulher havia jogado suas melhores cartas, sabendo que podia perder o jogo, mas ao contrário de seus temores, o rapaz disse-lhe que tivera receio de levar um não, diante da ausência de resposta no outro dia. Aquela aparente insegurança tornava-o ainda mais atraente e o tímido sorriso absolutamente encantador. Ela tranquilizou-o, dizendo que também se sentia insegura, mas estava disposta a fazer uma tentativa.

- Tu és uma mulher tão sedutora… eu gostaria de ver-te vestida de uma forma mais feminina, fora do contexto pré e pós-laboral, com essas roupas usuais de trabalho. Elas dão-te um ar muito… ahn… sério…

Ele fora educado. Aquela hesitação fê-la pensar que talvez quisesse dizer que a roupa de trabalho deixava-a masculinizada. Riu-se da proposta dele, antecipando seu desconforto em voltar a vestir-se como uma ‘dama’, depois de muito tempo, mas aceitando o desafio. No mínimo poderia ser uma experiência divertida.

- Teu corpo é tão atraente… devias mostrar-te um pouco mais…

Ele começava a passar dos limites… Decidiu que era melhor parar com aquela conversa logo… antes que ela perdesse a compostura… e o beijasse ali mesmo, na frente de todos…

Levantou-se e saiu, meio às pressas, quando ele riu do rubor que apareceu-lhe subitamente a decorar-lhe a face…

***

Achou, num cantinho esquecido no guarda-roupa, um ‘pretinho básico’, como costumava-se chamar, em seus áureos tempos. Seu único vestido, pouquíssimas vezes usado era uma peça inteira, em malha de algodão com Lycra, que colava-se ao corpo de uma maneira que deixava muito pouco para a imaginação. Duas finíssimas alças deixavam os ombros à mostra, fazendo-a sentir praticamente despida - o que não era exactamente uma verdade - mas era como se sentia. Usou um curto bolero de renda preta, a fim de cobrir-lhe a parte de cima do corpo.

De frente ao espelho, analisou-se, cuidadosamente, da cabeça aos pés. Sentiu-se como se estivesse dentro do corpo de uma pessoa que não era ela, realmente. Começava a achar que não havia sido boa ideia, afinal, aceitar o desafio…

Falso pudor? Ela riu-se da ironia.

Apesar de muito pouco acostumada com maquilhagem, usou um pouco de ‘gloss’ transparente nos lábios e um leve retoque nos cantos externos dos olhos, com um lápis escuro. Não sabia ir além daquilo e não queria parecer o que não era.

Embora não estivesse à vontade dentro de um vestido como aquele, viu que os olhos do rapaz sorriram, pela primeira vez, antes mesmo que seus lábios, assim que a viu. Suas dúvidas logo dissiparam-se. Depois de tanto tempo, sentiu-se atraente.

- Hoje vamos cozinhar juntos.

- Já sei quem vai ter que lavar a louça suja, disse-lhe ela, sorrindo.

Ele piscou o olho, maroto, e deu uma gargalhada. Ela apaixonou-se imediatamente pela risada dele – tão solta e espontânea – como de um menino que não tem nada a temer, nada a perder... cheio de vida e de esperança no futuro… ou pelo menos foi a impressão que o rapaz lhe passou.

Ele conduziu-a à cozinha. Enquanto cortava os legumes para uma sopa que preparava, como entrada, conversava animadamente sobre música e sobre sua vida, antes de se conhecerem, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Fascinada a ouvir-lhe, a mulher aproximou-se dele com cuidado e tocou-lhe a mão, de leve. Ele parou de fazer a tarefa e, com naturalidade estudada, juntou os legumes picados, com suas duas mãos em concha, e deitou-os na água, que já fervia na panela. Temperou com um cubo de caldo de legumes, mexeu bem, provou o resultado e, em seguida, voltou-se de frente para ela.

Aquele homem olhou-a de um jeito que poucos até então haviam-na olhado. Ele não só tinha os olhos fixos nela, mas seu interesse ia muito além de simplesmente observar… era como se conseguisse ver através dela… e sentiu que aquilo era assustadoramente sensual.

Adiantou-se e tirou-lhe o bolero, colocando-o cuidadosamente no encosto da cadeira. Beijou-lhe um ombro, depois o outro, enquanto empurrava com os dedos as alcinhas do vestido para os lados. Enquanto abria o fecho, vagarosamente, continuava a beijar-lhe as costas. Ao soltar o negro tecido do seu pálido corpo, descobriu a tatuagem impressa ao lado esquerdo, que estendia-se até próxima à virilha. Perguntou-lhe se tinha algum significado especial.

- ‘Vitória’ - disse-lhe ela.

Ele beijou a imagem – pintada em preto somente - de um alongado dragão japonês, estampada indelevelmente em sua pele, antes de voltar a percorrer-lhe o corpo com seus lábios.

Sua atenção aos mínimos detalhes causava-lhe arrepios, apesar do calor suave que vinha de sua boca. Fechou os olhos e deixou-se levar por suas carícias tépidas e tão bem-vindas. Quando sua boca aproximou-se dos seios, ela segurou-lhe firme e ternamente o rosto com ambas a mãos e trouxe-o até a altura de sua face, olhando-o firmemente no fundo dos olhos azuis.

Beijou-o com carinho… levemente… cuidadosamente. Ele fechou os olhos e entregou-se àquela mulher, como um verdadeiro amante.

Brincaram ali mesmo na cozinha, enquanto a sopa cozia, no fogão atrás deles. Ele levantou-a do chão com um forte abraço, enquanto a beijava com uma paixão à qual ela não estava acostumada e sentou-a sobre o balcão. Beijou-lhe o pescoço, os seios, o ventre e desceu. Ela fechou os olhos, quando ele tocou o ponto mais sensível de seu corpo e gemeu, baixinho.

O menino transformara-se em um experiente homem e fez dela a mulher mais especial que alguma vez ela havia sido. Seu corpo era tudo que ela precisava. Suas carícias, tudo que desejava - mesmo sem ter uma firme consciência daquilo.

Ferveu a volta dele, como se fosse um vulcão em plena actividade, explodindo repetidas vezes, ao sabor do calor que emanava de todos os recônditos do seu corpo.

Quando já havia passado o fogo para chama baixa, ele olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

-Os momentos passados contigo são, para mim, os mais belos.

Naquele momento, a mulher que estava adormecida tanto tempo dentro dela, sentiu nele uma enorme força e uma doçura sem igual, ainda que de uma maneira muito inocente e espontânea.

Ele acrescentou:

- Eu gosto tanto da tua ‘tatoo’ e do teu corpo… é tão perfeito…

A mulher perguntou-lhe por que razão dissera aquilo e ele respondeu que sentiu que tinha de expressar o que se passava naquele momento. Ele, que sempre pisava com cautela estudada o terreno sobre o qual aventurava-se a entrar, tornara-se bravo o suficiente para enfrentar seus próprios receios, diante do que havia acontecido entre eles, poucos minutos antes.

Foi quando ele, por sua vez, perguntou-lhe o que sentia, quando o via, que ela disse… não somente tudo o que sentia, mas também o que pensava. Ele percebeu que ela não temia expor-se. Abriu-lhe um sorriso de criança, meio acanhado e agradavelmente provocante, colocando uma canção a tocar, logo em seguida. Costumava desviar o assunto quando se sentia desconfortável ou intimidado a responder algo que não desejava.

“I believe I can fly, I believe I can touch the sky, I think about it every night and day, spread my wings and fly away”… (R. Kelly)

Usou aquele momento para dizer algo, sem precisar falar. Por um breve instante, pareceu, a ela, que os melancólicos olhos azuis do rapaz sorriram-lhe outra vez, mas aquela impressão passou muito rapidamente.

As palavras cantadas mexeram com suas reacções, fazendo-a contemplá-lo com um carinho sem igual, mas ele desviou o olhar, ruborizando um pouco, quase timidamente. Incrível como, em questão de minutos, ele passara de um ousado e experiente amante, que sabia explorar todos os seus sentidos e voltara a ser aquele menininho tímido, novamente. Um animalzinho, que se escondia em sua casca protectora, foi a imagem que ela visualizou imediatamente.

Decidiu escolher outra canção, como se aquela não estivesse expressando tudo o que ele queria.

Fingiu estar ocupado, escondendo os olhos – lindamente azuis - quando a voz rouca de Bryan Adams começou: “Look into my eyes, you will see what you mean to me…  e continuou: Everything I do, I do it for you”…

Ela escreveu aquela frase num pedaço de papel e mostrou a ele, que sorriu, divertido, baixando os olhos mais uma vez.

Ela aproximou-se e beijou-lhe, de leve, um ponto no pescoço, na região atrás da orelha… Seu corpo estremeceu todo, quando viu-lhe a pele arrepiar, como se uma carga de electricidade houvesse ligado uma reacção no corpo do amante.

Ele virou-se e beijou-a novamente… a começar pelos olhos e foi descendo, enquanto ouvia os gemidos da mulher, que já sentia um vulcão prestes a entrar em nova erupção, em todas as tonalidades de vermelho, dentro dela.

Os olhos, de um dos mais impressionantes matizes de azul-safira, brilharam ao reencontrar com os dela. Ela perdeu o controlo completamente, abraçada ao corpo dele, como um náufrago que agarra-se à sua tábua de salvação…

quarta-feira, 10 de abril de 2013

A Visita


Eu tinha a cabeça recostada ao grande travesseiro que jazia, desalinhado, na cabeceira da cama. Meus olhos estavam cerrados, mas eu não havia adormecido ainda. Havia um leve perfume de alfazema no ar.

Na taciturna penumbra do quarto, minha intuição alertou-me que não estava sozinho. Foi como se a atmosfera à minha volta houvesse mudado. Senti sua forte presença, muito próxima de mim. Sabia, com uma certeza absoluta, que ela estava ali e que só poderia abrir meus olhos se tivesse permissão para tal. Por incrível que pareça, são esses instintos que sempre flutuam na minha cabeça, naqueles tipos de ocasiões. Eu não precisava de mais certeza que aquela.

Senti seu rosto repousar sobre minha cabeça, com suavidade… leve e carinhosamente... quase um toque de pluma. E ela disse, baixinho:

- Eu precisava vir…

Sem abrir os olhos, eu falei:

- Quero te ver.

Ela sussurrou, incerta:

- Mas eu estou diferente.

- Não tem importância, disse-lhe eu.

Ao que ela respondeu:

- Tenho medo.

- Eu também...

Minha afirmação era uma verdade incontestável. Minha razão receava que, ao abrir os olhos, um sentimento negativo assolasse meu espírito e o medo ou decepção a afastasse de mim.

Ela havia mantido seu silêncio, como se os meus temores fossem também os dela. Foi então que decidi que devia abrir meus olhos e enfrentar o que visse e viesse. Era necessário mais que coragem naquele momento – era preciso uma atitude arrojada, que derrubasse barreiras e juízos pré-concebidos…

Abri os olhos devagar.

Sua face realmente estava diferente, mas ela me olhava do mesmo jeito – aquela maneira meio triste, como se estivesse sentindo uma certa apreensão em relação à minha possível reacção. Os ossos da face pareceram-me mais acentuados e ela tinha aquela melancolia incerta no semblante… Minha mãe parecia mais jovem, todavia, que da última vez que a vira.

Toquei-lhe a face com delicadeza, como uma criança faria e vi que ela fechou os olhos ao meu contacto, como se aquele leve roçar de meus dedos sobre sua pele lhe fizesse algum bem. Foi então que eu chorei. Não por medo, nem por angústia… chorei por nostalgia, por sentir uma saudade enorme...

O relógio despertou-me, apagando de imediato meus pensamentos, chamando-me à realidade e à vida. Levantei-me de um salto e fui ao duche, entrando automaticamente na rotina diária.

Ela havia vindo a mim em um sonho, como não podia deixar de ser; um sonho cujos detalhes não lembrei imediatamente, ao despertar. Foi somente quando voltei ao quarto, para vestir-me, antes de sair para trabalhar, que as imagens vieram como num filme.

Foi como se acordasse, naquela hora, a memória de poucos minutos antes. Meu peito apertou-se, diante da tristeza gigantesca que me tomou os pensamentos. Daquela vez meus olhos inundaram com lágrimas incontroláveis e eu chorei mais… muito mais que no sonho. Sentado à beira da cama, enterrei o rosto nas mãos e me deixar levar por aquela emoção estranha, que misturava dor e saudade – uma saudade impossível de matar com uma viagem programada ou um telefonema de longa distância...

Como já era costume, Tiger entrou no quarto, mas ao ver-me soluçar, chegou-se, deu-me a tradicional cabeçada na perna e sentou-se a observar-me, quieto e com fixa atenção. Somente quando viu-me composto novamente, o astuto gato saiu do quarto… ainda em absoluto silêncio. Aquele respeito tácito fazia-me ter grande consideração pelo animalzinho que soube cativar-me tão bem e exercer tão marcante presença na minha vida.

Durante aquele dia, muitas vezes senti ondas de tristeza irem e virem, comprimindo-me o peito, incontrolável e inconsolavelmente. Por várias vezes tive de engolir, a seco, a vontade de chorar, para não parecer tolo, nem ter que explicar o inexplicável, para quem olhasse e percebesse o estado em que eu me encontrava.

Quando voltava para casa, vinha a pensar no que me acontecera durante o dia ou em coisas que me afectaram o humor, incidentes pessoais ou mesmo pensamentos aleatórios, engatilhados pela música que tocava no momento. Foi então que compreendi…

Em meu pequeno mundo, sua ausência ainda é sentida e um certo inconformismo diante do facto de não haver podido dizer-lhe adeus, propriamente, faz-me pensar, de vez em quando, nas últimas palavras que trocamos.

- A gente se fala na semana que vem…

Nem mais, nem menos. Entre nós existia aquela espécie de comunicação que sempre indicava continuidade. Quando ainda estava por perto, era a mim que ela esperava nos fins-de-semana para ir à farmácia, ou ao supermercado, ou ao shopping center comprar algo que necessitasse ou desejasse. Era o meu telefonema que ela aguardava sempre aos domingos, às 3:00h da tarde, estivesse no Brasil ou longe de lá.

No fundo, dizer que ia ligar-lhe na semana seguinte foi a melhor despedida que pude fazer. Era um simples “até breve”, que ficara entre nós… e agora ela vinha, em um sonho, apenas ver se tudo estava bem comigo… matar um pouco daquela saudade que ficou arranhando o peito… que gesto assustadoramente bonito!

- Até breve, então, mãe…


terça-feira, 19 de março de 2013

A Heart of Steel



Wondering if there was a key

To unlock that door

That would consent one to go

Into the heart

You said is made of steel,

I asked myself if

There was a place

In your fearless soul,

A smile to open up,

A touch

And a whisper,

That would allow me

To glimpse

What was behind the disguise

You wore

Over your true

And concealed self.

And when that song

Played again,

I saw your eyes

Shining bright

And your grin

Revealing how sweet

You could be

-Even more than you ever tried

To admit to anyone.

You held your chin,

You looked away

And pretended not to care,

But your smile

Undoubtedly showed me

What was truly going on

Through your wandering mind.

And when you looked

At me, again,

My own heart

– Uncontrollably –

Melted away

And I dared

To ask myself

How could I ever resist you?

And knowing all of these,

It was impossible for me

To believe

Your heart was made

Of anything even close

To the hard,

Unbreakable

And cold steel?

domingo, 3 de março de 2013

O Que Passar Pelo Meu Coração… (Whatever Walks In My Heart)1








A conexão perdida, por atraso e irresponsabilidade de uma companhia aérea, dias perdidos em fila de espera, até finalmente conseguir lugar em um voo cheio, mas garantido, haviam dado cabo de qualquer sinal de tolerância e educação que ele alguma vez tivera. 

O homem de meia-idade - cabelos castanho-claros, levemente ruivos, cortados curtos e cuidadosamente penteados – ajustou os óculos de aro de metal, que escorregavam lentamente de seu nariz. Aparentemente alheio aos outros expectantes sentados à sua volta, no movimentado hall do aeroporto internacional, aguardando a hora de, finalmente, viajar de volta ao bem-vindo conforto de seu pequeno lar, nunca pensara que fosse desejar tanto estar em outro lugar, que não ali, naquele momento. Ele só queria mesmo que aquele dia passasse o mais rápido possível… 

Seu humor estava pior a cada hora que passava. Além de abominar as infindáveis horas entre as conexões, considerava cada viagem intercontinental, em si, uma verdadeira perda de tempo e um teste à sua parca tolerância. Até chegar de volta à casa, cerca de vinte e quatro horas ter-se-iam passado, numa situação normal. Aquela jornada, porém, já gastara praticamente mais de meia semana de seu tempo… e sua paciência já havia passado do limite aceitável. 

Chegar em casa… aquele era um conceito estranho. “Home is where your heart is”2 (Lar é onde teu coração está)… E onde estava seu coração, afinal? Entre dois países, entre aquilo que parecia como se fossem duas vidas diferentes, separadas por um imenso oceano, ele já não sabia mais exactamente onde ficava o lugar que pudesse chamar de lar

Sentado à desconfortável cadeira plástica, por muito tempo, ele estava inquieto e se irritava com qualquer coisa que ouvia ou lia. Ao invés de ficar contente por finalmente ter as coisas alinhadas, ainda remoía os dias passados e as dificuldades que tivera para chegar ao ponto em que estava. A certa altura, mesmo a música a tocar nos fones de ouvido tivera que ser desligada e devidamente guardada, pois ao invés de acalmá-lo, estava a deixá-lo mais tenso. Seu único consolo, naquele momento, era o vôo ser nocturno, o que se constituía uma vantagem, pois tencionava dormir durante boa parte do tempo.

Até então, não percebera que também era alvo dos olhares e da curiosidade de outros viajantes, acomodados ali à sua volta, à espera do mesmo que ele: entrar no grande avião, que os levaria, por mais de dez horas, ao destino comum - um pequeno país da velha Europa. 

Passou os olhos à volta, esquadrinhando as faces dos desconhecidos vizinhos, já que não havia muito mais a fazer e ainda tinha muitos minutos de sobra, até a hora do embarque. Sua atenção voltou-se, por uma fracção de segundos, para um rapaz de cabelos e olhos claros, sentado ali perto, ainda que sem causar mais que um simples interesse momentâneo - daqueles que se tem por uma pessoa que considera agradável e sabe que nunca mais encontrará em nosso caminho - aquelas pequenas distracções que a gente tem, ao encontrar estranhos, de passagem, em lugares igualmente desconhecidos. 

Às vezes, generalizar os eventos simples que se sucedem em nossas vidas, pode levar a um grande engano. E ele ia perceber isso naquela mesma situação, apenas um pouco mais tarde. 

‘Nada acontece por acaso’, havia-lhe sido dito, naquela mesma tarde, em conversa informal com o motorista do táxi - um visionário, provavelmente - quando iam a caminho do aeroporto.

Em triste consequência da paranóia deixada pelos atrasos e confusão até então acontecidos naquela viagem, perdeu o interesse em praticamente tudo – a não ser o de alojar-se na sua poltrona - do momento em que entrou na fila de embarque, até sentar-se, finalmente, no seu lugar. A partir dali, já menos preocupado, ficou a observar as pessoas passarem, à procura de seus assentos. Algumas pareciam meio perdidas - provavelmente marinheiros de primeira viagem; outras vinham a caminhar, indiferentes, ao longo da grande nave - com certeza os chamados “frequent flyers”

Quando estava inspirado, em viagens normais, enquanto observava, fazia análises mentais rápidas, tentando construir uma pequena história para um e outro passageiro, que lhe parecessem mais singulares. Pessoas constituíam-se materiais interessantes para um espectador imaginativo como ele. Naquele dia, contudo, nada lhe era muito atractivo. Estava cansado…

Um jovem que aproximava-se pelo lado esquerdo, a procurar, com os olhos, o número de seu lugar, parou ao lado do homem sentado junto ao corredor, na mesma fileira que ele. Acomodou sua pequena mochila de lona parda no compartimento acima das poltronas, abriu um largo e simpático sorriso e pediu licença para sentar-se a seu lado. Reconheceu-o como o tal rapaz que havia-lhe chamado a atenção um pouco antes, na sala de espera do aeroporto. Daquela vez, observou-lhe, detalhadamente, cada pormenor. 

Tinha estatura mediana, penetrantes olhos azuis, cabelos claros cortados curtos e um corpo vigoroso, em contraponto às mãos quase pequenas, não exactamente delicadas. Ele, que tinha um interesse acima do normal por mãos – esteticamente - observou-as tão longamente quanto pode. Eram firmes, pareciam um pouco calejadas pelo trabalho árduo e tinham, ao mesmo tempo, forma e graça genuínas. Passaram-lhe a ideia de uma força generosa e destemidamente disponível.  

Já devidamente acomodado no assento a seu lado, apresentou-se polidamente e começaram a conversar. Muito inversamente ao que lhe era de costume em viagens como aquela, a prosa fluiu livre a noite inteira, como se fossem conhecidos de longa data. Esqueceu o sono e outras distracções habituais - os filmes, revistas e livros - naquela noite e dormiu o mínimo possível… A jornada, afinal, acabara transcorrida rápida demais. 

Apesar da tenra idade, o rapaz apresentava uma maturidade incomum para um homem tão jovem e, quando ria, parecia uma criança – tão aparentemente inocente e livre de qualquer preconceito… tão cheio de um frescor sem igual e tão aberto para a vida. Era como se vivesse num mundo muito diferente do seu – o mundo de um razoavelmente bem sucedido executivo de meia-idade - o que era, de certa forma, a mais pura verdade.

Quando se olharam, quase acidentalmente, um nos olhos do outro, o homem sentiu-se quase desconfortável e fora de contexto, como um menino que experimentava as estranhas emoções do primeiro dia na escola. O rapaz exibia uma postura, perante à vida, que o fez sentir-se bastante mesquinho e materialista. Ele ficara encantado com aquela visão de mundo e com outras prioridades existenciais - absolutamente tão díspares das suas próprias. Sentia-se como se fosse uma desengonçada, lenta e sombria lagarta a contemplar, invejoso, aquele ser já tão completamente provido de asas… e que asas enormes ele tinha!!!  

Dizer adeus, foi mais difícil que ele poderia alguma vez sequer imaginado. Suas vidas tomavam destinos bastante separados a partir dali. Por algum estranho motivo, porém, aquele aperto de mãos, na despedida, mostrou-lhe que sua emoção havia sido seriamente afectada por aquele encontro que pareceu tão casual - no início - mas na verdade, abriu-lhe os olhos para realidades que ele não estava acostumado a vislumbrar.

Não chegou a questionar-se o que acontecia com suas emoções. Aceitou de peito aberto aquela sensação nova, que se apossava dele, com a celeridade, o carinho e o aconchego de um bem-vindo e forte abraço. Era o Universo fazendo-o contradizer as impressões que tivera apenas algumas horas atrás.

Quando saiu pela porta giratória do aeroporto, o ar fresco da manhã esfriou seu corpo e sua alma, numa cruel onda de choque, que lhe fez vir, imediatamente, lágrimas aos olhos. 

Estava de volta ao mundo real, que passava em alta velocidade pela janela do táxi e o levava de volta à sua vidinha medíocre que, de repente, pareceu-lhe extremamente fria, melancólica e até um tanto obscura. No bolso, guardado como um pequeno tesouro, um pedacinho de papel trazia, escrito numa letra miúda e singular, o que parecia uma frágil âncora com a esperança: um endereço de e-mail. 

O despojamento que invejou naquele homem – provavelmente vinte anos mais jovem que ele - detectado numa conversa breve, de apenas algumas horas, passou a assumir instintiva e gradualmente em sua vida, a partir daquele momento. 

Sentia necessidade daquela transformação – natural -, motivado por influência da exuberância e da forte presença daquela criatura, que não pareceu ter noção do profundo e extremo efeito que causara em sua vida e em seu comportamento. 

Era como se fosse um filho que houvesse ensinado, com o seu simples exemplo, uma grande lição de vida a seu pai que, mais agradecido que surpreso, decidira mudar seu próprio comportamento, tentando ser um homem melhor dali para diante. 

Não somente por educação, uma mensagem de contacto fora imediatamente respondida, para sua completa surpresa. A cortesia foi retribuída com pedaços desastrados de emoção – pequenos poemas, escritos com exclusividade. Iniciava-se ali um período de contactos bastante frequentes, apesar da grande distância física que os separava.

Quando conversavam, por e-mail, Messenger ou telefone, ele perdia a noção do tempo e abria completamente sua alma. Falavam sobre assuntos que ele não costumava discutir com qualquer outra pessoa. Percebeu também que não era o único a sentir-se tão à vontade. De sua parte, teve a certeza que seu coração havia-se transformado num lugar melhor. 

Foi a primeira vez que as palavras de carinho fizeram-lhe algum sentido. Acreditou piamente no significado e valor delas e na sinceridade do interlocutor. Absorvido pela simpatia e afeição que recebia, não pensava em futuro: só queria estar naquele momento presente, naquele estado e, com certeza quase absoluta, em outro lugar – desde que fosse mais perto do jovem que lhe abrira os olhos. No conforto de um abraço, onde nunca esteve, ele se imaginava aquecido e protegido.

Foi tomando conhecimento, aos poucos, de sua história de vida e de algumas de suas maiores angústias e desilusões. Seu espírito estilhaçou-se em milhares de pedaços, quando o rapaz lhe disse, certa vez que, no começo de sua vida, procurava alguém que amasse, depois contentou-se apenas em ser amado e, mais tarde, ficava feliz em ter alguém que não o fizesse sofrer… 

Aquela triste constatação - vinda de uma alma tão jovem - atingiu, como um tiro certeiro, seu pobre e frágil coração - distante demais para ajudá-lo ou ampará-lo… Ouvir seu desabafo era o melhor que ele podia fazer. Não era por ele que o rapaz sofria, mas era a ele que recorria. Que mais podia-se esperar da vida?
 
Separados por mais de um continente, embora desejasse, de alguma forma, protegê-lo de qualquer sofrimento, o máximo que conseguia oferecer-lhe era sua disponibilidade para ouvir seus lamentos e chorar junto com ele, ao telefone, por minutos incontáveis...

Sabe quando a gente gosta tanto de alguém, que chega a doer?

Ele rezava, todas as noites, para que o jovem fosse feliz e para que os céus lhe enviassem anjos protectores, cada vez que ele se sentisse só ou triste. Seu maior desejo passou a ser de defendê-lo de todos os perigos que pudessem aparecer. “Almost hope you’re in heaven, so no one can hurt your soul”3 (Quase desejo que estivesses no Paraíso, de modo que ninguém pudesse machucar tua alma) …
 
Mas, como já devia esperar, os contactos começaram a escassear. Não era exactamente por culpa de nenhum deles. As circunstâncias de suas vidas, tão separadas e tão distantes, bem como os pequenos – e também os grandes - problemas diários, não os favoreceram…

A distância aumentava com o passar de semanas sem as notícias - que ele procurava insistentemente - dia após dia, quando chegava em casa. O silêncio tornara-se profundo e sombrio, como os mistérios do mar. O tempo dilacerava-lhe as entranhas e turvava-lhe a memória, com seu punhal lento e perverso, a cortar-lhe a alma, sem piedade nenhuma, enquanto um veneno corria-lhe pelas veias, intoxicando-lhe o discernimento e causando-lhe delírios de insegurança.

Mesmo assim, sem forma de favorecê-lo com sua espontânea protecção, ele continuava a rezar, insistentemente, para que o outro se encontrasse… que fosse feliz… que não sofresse… Seus primeiros pensamentos do dia e também os últimos da noite eram, invariavelmente, dirigidos para ele. 

Para compensar a ausência e a distância que os separava, ele procurava aqueles olhos em outros rostos, tentando reacender a memória e resgatar pedaços perdidos dele mesmo, sabendo que estava se iludindo, para diminuir a dor da saudade que sentia. Tentava convencer-se que aquilo tudo era uma outra realidade, criada em sua mente, para manter-se vivo, enquanto finíssimos grãos de areia dourada corriam, incessantes, na grande - e rebuscadamente decorada - ampulheta da existência. 

Decidiu que tinha que dar-se espaço e tempo, para que aquela espécie de obsessão não sufocasse seu incomum relacionamento. Temia, porém, que estivesse cometendo suicídio ou compensando sua débil paixão, com uma falsa esperança. 

Para apaziguar seu coração e dirimir todas as dúvidas e incertezas, convenceu-se que precisavam se reencontrar. Não seria uma tarefa fácil. Tentou organizar-se de muitas maneiras, em várias ocasiões. Alguma coisa sempre dava errado, na última hora, para seu grande desespero. Ou o Universo - ou o rapaz - estavam lutando contra sua vontade.

Desconfiado que fosse uma combinação de ambos, quase desistiu, mas por uma feliz coincidência, foi surpreendido pelo acaso do destino, mais uma vez. Acabaram por combinar almoçarem juntos, num domingo de verão. Pegou a estrada bem cedo pela manhã, enquanto o sol ainda não castigava demais o longo caminho de asfalto. A viagem devia levar cerca de três horas. Estava ansioso… e inseguro, ao mesmo tempo. 

A educação e gentileza que o jovem lhe dirigiu foram sem precedentes e ele deixou-se ficar à vontade desde o primeiro instante em que se viram. Passaram o dia a conversar, rir, almoçaram juntos e contaram histórias, como dois grandes amigos de longa data. Com um forte abraço de despedida, o encontro acabou… assim, educadamente.

Enquanto tuas asas
De luz
Refrescavam a febre
Que eu sentia
Em minha alma,
O calor
De teus braços
Aquecia o frio
No meu coração...6

O homem mais velho ficou um pouco preocupado, ao voltar mais uma vez à sua vida. Embora tivesse sido extremamente controlado, pensou que talvez sua ansiedade acabara por decepcioná-lo. Na viagem de volta, ao final da tarde, em meio aos imensos congestionamentos de fim de praia, foi pensando no que acontecera, revivendo os momentos, os sorrisos, as palavras… vezes e vezes incontáveis…

Reflectiu, por muito tempo, sobre o que aconteceu naquele dia. Ele, que tinha tantas expectativas, viu-se um tanto perdido, tendo percebido que tudo passou-se tão serena e educadamente. Não fora, de maneira alguma, decepcionante. Fora, somente, morno demais… certinho demais…

Teria ele esperado mais que realmente merecia? Teria o outro cedido a encontrar-se, apenas por educação, para que o deixasse, finalmente, em paz – pelo menos por uns tempos? 

Ele nunca iria ter respostas para aquelas questões… e talvez não as quisesse respondidas, de qualquer forma…

O tempo confirmou que estava certo em preocupar-se. Teve que aprender a aceitar que a condição de se ter de estar longe aniquila os relacionamentos, mesmo com a proximidade que a tecnologia ‘on line’ traz hoje em dia. Ele achava que a distância diminuiria, mas estava enganado, pois nada resiste à força do tempo, associada à frieza cruel do afastamento. 

O objecto da sua autêntica afeição foi espaçando as notícias, mais que anteriormente. Talvez ele tenha, mesmo, sido apenas educado e cedido aos seus apelos de revê-lo, afinal…

Sentia que ia, aos poucos, abandonando seu pobre coração que, aconselhado pela razão, foi-se conformando com aquela ausência, aceitando a distância e o silêncio, com uma naturalidade que, em outras épocas, até seria fora do normal. 

Aqueles olhos, porém, seguiram-no por mais tempo que esperava. Eram muitas feridas que fechavam demasiadamente vagarosas, deixando profundas cicatrizes, daquelas que não se apagam jamais. Ele ainda mantinha uma palhinha de esperança, embora soubesse, desde o começo, que não acreditava em milagres. Sentia como se não quisesse - ou devesse - preencher aquela lacuna deixada em seu coração.

Procurava, entrementes, aqueles olhos e sorriso nos rostos de outras pessoas, tentando compensar uma tão sentida ausência. Tudo o fazia lembrar daquele jovem… Algumas vezes era aquela curvinha nas extremidades do sorriso largo, às vezes os olhos, extremamente azuis. Seus pequenos detalhes decoravam outras faces, outras personagens que cruzavam seu caminho. Até mesmo o rapaz que trabalhava no prédio ao lado, com seus olhos cor de safira, cabelos claros e corpo semelhante, faziam seu coração pular de alegria, quando passava pela janela, a caminho do restaurante.

Por um bom tempo ainda, suas orações foram para que o rapaz fosse feliz, mesmo que não tivesse mais quase nada com a sorte do outro. Ele queria, mas sabia que não devia, procurar mais contactos, pois acreditava que todas as pessoas têm o direito de ter sua privacidade assegurada. Têm também o direito de não se comunicarem com quem não desejem. 

Era assim que via aquela falta de contacto: sua muito pouca vontade de falar, comunicar, ver…. Uma preservação da espécie. E neste caso, ele se sentia como um verdadeiro predador. E que sensação estranha era!

Embora nunca houvesse sequer falado sobre isto, outras pessoas sempre lhe diziam que nenhum relacionamento resiste à distância, por muito tempo… nem ao silêncio. Ele não queria aceitar o óbvio: que as pessoas tinham razão, afinal de contas. Perguntava-se, porém, por que seu coração não se conformava de vez e tocava a vida adiante, sem sofrer mais que o necessário. Sabia que era o único responsável pela sua própria aflição. 

Mas era um homem maduro com espírito de menino e este, na sua simplicidade, entregava-se sem restrições às emoções a que se via enfrentar. Era difícil aceitar as perdas e ele não queria sentir-se derrotado. Pelo caminho, ia-se enganando de foco, tentando ajustar suas miras, procurando acertar o ritmo da sua vida, que não se conformava em se manter prático e gostar somente de quem gostasse dele. Pelo caminho, ia tentando não sofrer, dançando com seus fantasmas e sua dor, na tentativa de confortar sua razão, com pedaços alquebrados de emoção. 

What is love, but the strangest of feeling? A sin you swallow for the rest of your life? You´ve been looking for someone to believe in and love you until your eyes run dry…”4 (O que é o amor, senão o mais estranho dos sentimentos? Um pecado que tu engoles pelo resto da tua vida? Tens procurado por alguém em quem acreditar e que te ame até teus olhos secarem) …

Depois de vários meses de silêncio, como por encanto ou brincadeira do destino, o jovem voltou a aparecer no messenger. Parecia ser a mesma pessoa de sempre, com os mesmos problemas e a mesma conversa adorável de tempos atrás - a mesma pessoa que havia ganho seu coração e sua atenção, sem restrições. Daquela vez, todavia, sua emoção reagiu diferente da sua razão. Alguma coisa no fundo de sua lógica gritou em estado de alerta.

A dor da solidão, a decepção e o abandono amadurecem e enrijecem a alma de uma pessoa de uma maneira um tanto desumana. Sentiu que já não era mais o mesmo que havia sido… infelizmente. Seu coração passara a ansiar por uma reconciliação consigo mesmo e, para alcançá-la, precisava ficar longe de novas… e também de velhas… desilusões. Ele se preparava para que outras emoções pudessem tomar o espaço que fora deixado aberto em sua alma ainda não completamente cicatrizada... 

Há não muito tempo, estaria de cabeça baixa e procurando vestígios da presença do outro, em cada espaço e tempo, em cada olhar que cruzasse com o seu. Naquela ocasião, porém, seu peito abria-se e permitia-se querer ser independente, libertando-se - com desprendimento, mas deixando marcas de um carinho imenso, que sentira desde sempre por aquele airoso personagem - que invadiu sua vida, sem querer - e que ensinou-o a ser melhor que alguma vez já houvesse sido. 

 Never mind I’ll find someone like you… I wish nothing but the best for you too… Sometimes it lasts in love, but sometimes it hurts instead…”5 (Não tem problema, eu encontrarei alguém como tu… Eu desejo nada mais que o melhor para ti também… Algumas vezes o amor permanece e, outras, entretanto, dói) …

Ele passara a esperar que outras pessoas pudessem tomar sua atenção, de uma maneira mais leve... e tencionava poder divertir-se com aquilo. Embora anteriormente suas emoções fossem como as águas do oceano, num vai e vem infinito, à beira da praia, agora ele precisava estabilizar as marés e ser como um lago de águas mais calmas, ainda que, mesmo assim, profundas e um tanto obscuras… Seu espírito ansiava por alguma paz e, talvez, independência. 

Tinha necessidade de ser um novo homem – original e mais leve – que não revivesse sofrimentos e que lembrasse apenas das coisas boas que ficaram gravadas no seu coração, para seu bem e para a preservação da sua estimada sanidade. 

Apesar de sentir falta das palavras que nunca mais ouvira, tinha, definitivamente, que seguir adiante. Era sua vida e ele estava disposto a enfrentar o que viesse pela frente.

- Me abandonar,
Me deixar levar –
Ser um pensamento
Solto
No vento;
Ser sempre uma lembrança
Daqueles pequenos momentos,
Que nunca duram
O suficiente,
Para ser demais:
As pequenas eternidades
Do coração…6

Desejou-lhe felicidades, em alta voz, como se falasse ao vento do mar e abriu-se para o mundo.

Atravessou, então, a rua e o destino, com as mãos nos bolsos do casaco, sentindo uma brisa refrescante a desalinhar-lhe os cabelos e pensou, enquanto esboçava um sorriso um tanto triste: é tão bom estar vivo… e livre… mas desta vez, “Whatever walks in my heart will walk alone*…” 1 (O que passar pelo meu coração, passará sozinho) …



Notas:
1. *De Nightwish: “Forever Yours”
2. De “ O Mágico de Oz”;
3. De Within Temptation: “Somewhere”;
4. De Razorlight: “Wire to Wire);
5. De Adele: “Someone Like You; 
6. De. Em Anjos… (http://aquarelasdepalavras.blogspot.pt/2010/01/em-anjos.html)

domingo, 17 de fevereiro de 2013

To Be One with the Sea (Για να είναι ένα με τη θάλασσα = Gia na eínai éna me ti thálassa)


- Do you see that large and dark stripe beyond the lights ahead?

- Yes, I do.

- That’s the sea.

- Oh, dear. I love the sea… I feel so at home when I’m close to the ocean…

- I will take you there one of these days. It’s a promise…

I was looking out of the window to the glimmering city lights, not so distant from where we were staying. The late autumn evening was pretty cold, so we decided not to go out, for obvious and also for not so obvious reasons. He was standing behind me and I did not know exactly what he was up to until I heard the next thing he said.

- This one song is dedicated especially to you…

He put it to play from the notebook computer on top of a small desk placed on one of the corners of the living room. He had chosen a song especially to be the soundtrack of that moment and had bestowed it to me. I was flattered, not only by his spontaneous gesture, but by the beauty and harmony of the tune.

Still standing by the window and looking out beyond the city lights through the double layered glass, I did not move away. He stepped closer to where I was and embraced me from behind. I closed my eyes, listening to the music playing softly in the ambience and felt the warmth of his body getting even closer to mine. His hands caressed the bare skin underneath my sleeveless tee-shirt and I was already experiencing the heated blood flowing through my veins down to a certain part of my body.

He carefully kissed a sensitive known spot behind my ear. A chill went down my spine in an immediate reaction and he laughed at the sensation his fingertips experienced. His lips were soft and warm when they affectionately touched my neck less than a second later. He gently turned my body around with his strong arms and made me face him straight and look deep into his hazel eyes.

I was emotionally touched not only by the sweet strange female voice singing passionately - the Greek words I could not understand properly – but also for the way his tender touch made me feel that moment. It was then that he noticed my eyes were wet.

I detected a kind of oddness in his stare when he glimpsed the sign of tears, but we did not say a single word. He just kissed my eyebrows, my front, my face and my lips. His kiss was as soft and gentle as snowflakes falling down from the sky and landing on the surface of my skin, except that they were warmer.

He rubbed his cheek onto mine very lightly and I felt the peculiar sensation of the contact of his almost harsh unshaved beard. He then tasted my lips very slowly, touching them with his own. The tip of his tongue carefully tasted my slightly open mouth, smoothly forcing its way through to find the tip of mine ready and waiting for his.

I felt as if I was going to faint – my senses left me completely. His strong arms were around me and held me while I let myself be kissed by that man who I met first time not long before and who instinctively knew already so much of how to make me surrender to his delicate infatuation. I felt our bodies, legs and arms entangled into each other’s and I quietly whispered in his ear:

- Take me now, my sweetest friend. I want to be yours and yours only in this right moment.

He just said:

- I am ready for you, my dear. Maybe I have always been...

I closed my eyes and he took the lead and control over the situation like an authentic master. His strength was irrefutably tender. He was patient from the beginning and I interpreted that as a sign of careful consideration and interest towards my body reactions, which he seemed to be studying warily and attentively. He was unquestionably evaluating my senses... slowly... watchfully... kind-heartedly.

I allowed myself to be touched, smelled, kissed and tasted... endlessly... as if my body was his playground and at the same time his testing field.

While his fingertips made their way exploring every little inch of my skin, I was burning in lust and felt my whole body blooming like a flower. My muscles tensed a bit when his contact became stronger and his mouth started its way kissing in between my thighs. I bent my head behind and arched my upper body in an uncontrolled movement, entirely abandoned to his skilled mastery. He put his arms around my waist and heaved my body bonding it to his. I laced my arms around his neck and kissed him passionately.

His mouth was as hungry for mine as mine was for his. His muscles hardened when I made my way from his mouth to his neck, down to his chest and then to his stomach. His body was lean and muscular, not excessively, but extremely handsome to my eyes and touch... my own wonderland to play on and in for that moment and onward...

I stopped a while to stare at the manly beauty of his whole body. He was ready... and so was I.

***


- I feel so at home in your arms and in your body. Did I ever say how much I like your body, my dearest?

He lied down on his back, his shiny deep hazel eyes half closed and he seemed quite relaxed. His grin was gorgeous and his face handsomely masculine. His hands were still lightly placed on the curve of my hips as if he was afraid I was going to fly away from his grasp. Part of my body was still resting over his and my fingers were distractively playing with his chest hairs.

His statement made me feel so good and although his question was still unanswered, I did not say anything, just let a silly giggle come out and kissed him again, bringing his body closer to mine in a rather clumsy embrace. He smiled, moaned slightly and encircled his arms around me for the hundredth time that night. I just let myself go on riding the waves of his sweet yearn once again...

We ended up sleeping like lovers in the arms of one another with my back spoon-clenched in his warm body.

***

“λιμάνι για ν΄ αράξεις             (You reach for the port

περίμενες τον άνεμο                And wait for the wind

μαζί του να πετάξεις “ *          To fly with it)

*(free translation from “Να `σουν θάλασσα” by John Kalpouzos & Christopher Germenis in the voices of Natasha Theodoridou & Sarbel).


- Take me to the sea, please, my dear. I need to be where I feel as good as in your arms – a cosy and welcoming sense of being home... I really need this...

He drove me to our favourite beach, where we used to go when we needed to recharge our batteries. That was a choice he made, stating it was his preferred spot, where he used to go in search of peace and silence. And then that turned out to be our secret hiding place, away from everyone and everything. The beach was secluded and deserted when we reached it, quite late in the morning. The day was pretty warm, in spite of being still wintertime.

As soon as we reached the shoreline, I took my walking shoes off. The sand was incredibly sallow, soft, fine and almost warm when we strode along the water’s edge. The sea water itself was appealing and amazingly blue.

Accepting Nature’s quiet invitation, I let myself go from his side and walked into the ocean. The sensation was of a somewhat tepid tongue licking my toes and the thought made me smirk. He looked at me with his impressively inquisitive hazel eyes and smiled slightly.

He knew me already too well to know that I had thought of naughty things. He came closer and played with the water around my feet, touching me as if it was occasionally but we both knew that was a kind of non-verbal code to have me hugged.

I pretended not to notice his intentions and walked into the sea a little further on. He pulled me back, holding my arm and setting his feet firmly in the sand. My body lost balance and hit his while his arms surrounded me, firm and solid, like a Greek Ionic column standing proudly in one of the front sides of the temple.

His well-built, lean body turned out to be both a divine and a profane shrine for me... not only for the beauty and sturdy simplicity and perfection, but also for the vigour and welcoming feeling of being sheltered in his balmy embrace, allied to the lusty fountain of delight he provided me with.

In my mind, a strange sense of obsession switched a red light on. Should I be afraid or should I let myself be addicted to his presence and his welcoming bliss?

We were nothing but two lonely souls floating in love and in life like two cruising ships sailing adrift and looking for a safe port to dock. Standing there with my feet in the sea waters, feeling held by the arms of that gentle and sweet, although strong man, I felt like my ship was finally coming to a safe harbour.

He turned my body around to look me in the eyes, the way he used to and enjoyed doing and said:

- We are like the sea, aren’t we?

An old song came immediately to mind and I said, almost singing:

- “...But your heart is like the ocean, mysterious and dark”... (Bob Dylan: ‘One more cup of coffee’).

He chuckled and corrected me, trying not to waste the moment or miss the rhyme:

- Our hearts are like the ocean, mysterious and warm.

I smiled and nodded. He was correct. We were definitely like the sea – mystifying, deep, sometimes gloomy and yet so extraordinarily warm. And although we had so much in common there was still so much yet uncovered in our lives.

Buried pasts, forgotten secrets, options made in lieu of the anguish suffered and choices made so not to repeat mistakes - all of those were parts of us and of our past experiences and we had decided to let them go to the bottom of the deep blue sea of our souls, never to be recollected again. Our own private past histories were unimportant for the moment we were living together then.

Immense white sails had been unfurled then, greeting with warm welcome the powerful winds of oblivion and opening new routes and horizons, flowing freely from our minds, paying their dues to our private and secret pasts. It was time for new lands to be discovered, new voyages to be taken and new domains to be embraced...

- I’m gonna miss you, my dear... so very much...

His arms were strongly tied around me. I buried my face in his chest and said nothing. He just held me tighter...

***

Standing barefoot on the waterfront pier, looking at the distant line where the blue sky and the sea merge into each other, beyond the point of possible sight, I felt my body being suddenly surrounded by a gentle wind and I could not avoid but think of his powerful embrace. My sight became suddenly blurred.

I closed my eyes trying to hold the tears I felt flooding up off them, but they were faster to come out than I was to hold them in.

My spirit was already falling into a chasm of loneliness and nostalgia... More than one year had gone by since I had to depart away from him and from the land that made me find myself in the arms of the man who opened my life to his gentle kindness and loving care. So much had already passed and there was still so much to live and experience. I was yielding to the winds of change, but they were not giving me any comfort at all.

In an almost automatic gesture, I put the music to play on in the little mp3 player attached to my jeans beltless waistband and was not really surprised to hear the sound of a familiar Greek female voice singing those odd pronounced words - words that for a strange reason meant so much to me. A warm breeze surrounded my body as if welcoming my sorrow with kind tenderness and inviting me to fly... with it.

For a moment I had the impression I heard his voice whispering in my ears:

- “We are so very much like the sea, aren’t we?”

Inside my mind I felt my soul was blaring out loud my loneliness without sending a single sound out of my mouth. Those warm and quiet tears of bittersweet nostalgic melancholy fell freely down my face, dripped off my chin and ended up intermingling with the cold sea waters playing quietly underneath my bare feet.

I looked down at the tide repeatedly and relentlessly washing the sand underneath the dark wood logs where I was standing on and took a deep breath. I was entirely worn out and did not need to play the strongest ring of the chain to anyone else. I could not hold it any longer so I let myself cry... openly and in profound distress...

The Universe likes playing with my heart - or so it seemed - when another song started coming from the earplugs in my ears, inside my head and teasing my mind, as if mocking my already frayed emotions...


“σαν δυο σταγόνες νερού, κομμάτια εμείς τ' ουρανού

πεσμένα πάνω στη γη,

για πάντα μαζί, για πάντα μαζί...”

(San dyo stagónes neroú, kommátia emeís t' ouranoú

pesména páno sti gi,

gia pánta mazí, gia pánta mazí…)


(Like two water drops, we are pieces of sky
 
Fallen on earth,

Forever together, forever together…)

*Giorgos Mazonakis * San dyo stagones vroxis* (Music and lyrics: Phoebus)



My body shuddered as I slowly sat down, still weeping. I felt like I was, for some incomprehensible reason, tenderly caressing my own pain. My pale toes were slightly touched by the fresh and smooth tidal waves so close down under the quay. The sensation was unexpectedly comforting and really soul-soothing.

My so dearly and cherished grief had definitely become one with the sea. Those teardrops were undeniably crucial to wash my soul clean and away. They slowly diluted in the immense vastness of the great and immeasurable ocean, fading into the waters as soon as they trickled down from my eyes.

The invisible arms of the wind embracing my body and probably my soul and the refreshing tickle of the sea, leisurely fondling my feet, made me feel somewhat comfortable, just by being there, by the ocean, completely forgotten by the problems of existence. I realized I had unquestionably done my best, given my best and received the finest...

I have lived a life with a lot to be proud of and not so much to complain about. My past experiences had prepared my heart to fully live the present with conscious satisfaction and gratitude.

It was time to welcome a fresh zest for new days to open right ahead in time...

The sensation of having my body being wrapped up by somewhat powerful wings, made me close my eyes and allow myself being taken... completely... by a challenging and fearless fruition.

I was ready for the future after all... thanks to my past... unquestionably!!!



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A Hundred and One



I dreamed a hundred dreams,

I’ve seen a hundred places

And crossed a hundred bridges

Over a hundred flowing streams…

I fought a hundred fights

In a hundred different foreign lands

And sailed a hundred ships away

In search of one single land

On a lonely

And distant seashore…

A million smiles I lost,

For a million times I tried

And a million days I waited,

Till a million doubts vanished away,

When a single gathering

Held one tiny gap in time

- Just that one little instant -

When a million worries were forgotten,

A million years did not count anymore

And a million fears faded away,

For all that really mattered

Was that one moment itself,

When my soul

- Not only my body -

Perfectly merged

Into yours…

sábado, 26 de janeiro de 2013

Da Imagem no Espelho... (Parte 3)


A manhã trouxe-me menos conforto que eu esperava. Por precaução, ao sair da minha pequena ‘cela de reclusão’, evitei olhar-me não somente nos espelhos. Desviei-me de todas as possíveis fontes de reflexos da casa, caminhando de cabeça - e olhos - baixos, na direcção do quarto. 

Já com a porta trancada, telefonei à diarista para que viesse urgentemente, mesmo não sendo seu dia de fazer a limpeza do apartamento. Ela aceitou, meio contra sua vontade e quando entrou, não questionou o motivo da colcha estar amontoada sobre os cacos de vidro, ainda ao chão, quando eu podia ter facilmente recolhido os mesmos. Ela sabia que eu não costumava deixar as coisas fora do lugar.

Seu olhar de surpresa, misturado com uma certa irritação, mudou para preocupação, assim que viu-me encolher na cama, enquanto ela recolhia, com uma vassoura e uma pá, os resquícios da guerra travada na noite anterior. 

Por prevenção, solicitei à mulher que também cobrisse todos os espelhos da casa com lençóis e toalhas e que mantivesse as cortinas do apartamento totalmente cerradas.

Ela olhou-me séria e cumpriu a tarefa, sem mais perguntas. Seu olhar, porém, buscava respostas que eu não estava preparado, nem disposto a dar. Quando paguei-lhe o serviço e dei-lhe uma quantia extra, pedindo que só voltasse quando a chamasse novamente, examinou-me com certa estranheza e perguntou se eu estava bem. Deve ter detectado um pouco da loucura que estampava-se na minha face. Eu, todavia, não queria correr riscos desnecessários. 

Despachei-a, com um pouco convincente ‘está-tudo-bem-sim-não-se-preocupe’ e voltei a trancar-me no quarto.

Sem o grande espelho pendurado na parede oposta à cama, eu estava - momentaneamente - livre das visitas dominadoras da noite. Aquele estratagema devia funcionar, por uns tempos, até que pudesse pensar em algo mais efectivo… 

Precisava de alguma pequena trégua para organizar minhas ideias e pensar em uma forma de resolver aquele dilema. Minha opressora, com certeza, não devia estar disposta a dar-me alguma paz, para que eu pudesse usar aquele intervalo a preparar-me para um combate contra ela.

Para facilitar minha vida, tomei algumas decisões desesperadas. Usei a máquina de cortar cabelos, deixando-os extremamente curtos, de modo a não precisar penteá-los. Também evitei barbear-me, não por relaxamento, mas por necessidade. Defendia-me, com aqueles paliativos, de todas as formas do uso de qualquer espelho da casa. Se fosse necessário, até tomar banho com as luzes apagadas, não ia constituir-se nenhum grande drama.

Mas nem tudo haveria de ser tão linear como eu pensara. As coberturas colocadas pela empregada apresentavam algumas falhas, como eu já devia ter desconfiado desde o início. As pequenas aberturas deixadas passaram a ser parte do meu martírio diário, pois tinha pouca coragem de aproximar-me dos espelhos, tampos de vidro ou das vidraças, distribuídos ao longo do apartamento, quando ia de um lado a outro.

Minha pior surpresa foi quando abri a porta do banheiro e vi que a protecção colocada sobre o espelho, que revestia meia parede, havia caído sobre a pia. Senti minha respiração acelerar e fui invadido por uma onda de pânico. 

Numa passada rápida de olhos, examinei-me a mim mesmo e vi que não apresentava um aspecto melhor, aparentando estar cada vez mais doentio. Acossado, drenado e sem energia, já não sabia o que fazer. Eu vinha definhando em velocidade deveras acelerada. Por sorte, minha mente ainda estava sóbria o suficiente, para perceber o grande erro que cometera, intempestivamente, mesmo que o reconhecimento não representasse nenhum alívio naquele momento.

Antes mesmo que eu recolocasse a cobertura sobre o meu reflexo, senti sua presença por perto e não fiquei surpreso ao vê-la recostada na esquadria da porta. Seu corpo nu, esguio e extremamente pálido, parecia fatigado e macilento. Seus cabelos negros, caindo em desalinho sobre o rosto - que escondia de mim, com a cabeça levemente abaixada - já não tinham o brilho de antes. Pareciam desmazelados, um tanto ensebados e sujos, como se ela tivesse perdido todo o cuidado com sua anteriormente bela aparência física. A mulher, dantes tão sensual, já não tinha o frescor e o encanto sem igual que apresentava quando a vi reflectida no elevador - o que de certa forma me surpreendeu - mas não por completo. 

Eu, sinceramente, não esperava que fosse desleixar-se de seu tão nobre aspecto físico… o mesmo aspecto que fez-me ficar tão fascinado por ela.

Aparentemente minha estratégia estava, de alguma forma, a funcionar, afinal. Embora eu não me sentisse mais forte, ela também não tinha por onde alimentar-se de energia, se não conseguisse aproximar-se o suficiente da fonte… 

Sua fúria, contudo, parecia haver aumentado, provavelmente por perder parte do completo controlo que ela tinha sobre mim. 

Aquela havia sido uma das poucas vezes em que me deixara olhá-la, por tempo suficiente de perceber que ela esboçou aquele sorriso sarcástico que eu conhecia. Com as duas mãos, puxou os cabelos um pouco para trás, de modo a deixar seus olhos bem à vista, fixando-os nos meus. Suas pupilas encolheram. Eu senti um arrepio percorrer-me o corpo todo e desviei o olhar, enquanto tentava, apressada e desajeitadamente, recolocar um lençol sobre a superfície reflectora. Tinha medo que ela se adiantasse e que eu ficasse encurralado outra vez...

Meus olhos procuraram, rapidamente, algo suficientemente sólido, que pudesse ser usado, em caso de emergência. O grande frasco de vidro sobre a mesa da pia, contendo chumaços de algodão, devia servir ao propósito. Se algo desse errado – ou sentisse que ela fosse atacar-me, já estava preparado para quebrar mais um espelho. Seria outra atitude desesperada, mas efectiva, pelo menos momentaneamente. 

Uma força, que de alguma forma controlava a minha vontade, fez-me tornar a observar a cena que se desenrolava dentro do espelho. A imagem do animal gravemente ferido me olhava ameaçadoramente, daquele mundo paralelo, que se apresentava numa estranha tela cinematográfica, disposta na parede do meu próprio banheiro. Sem mover-se, pois sabia ler-me muito bem, ela fez, então, questão de pronunciar a palavra… devagar e de modo a não deixar dúvida nenhuma sobre suas verdadeiras intenções…

- Vingança!
 
Uma sombra passou-me pelo semblante e ela sorriu ao perceber. Sua cartada era poderosa. Uma mão cheia… 

Aquela mulher sentia o cheiro do medo que atormentava-me a mente e fazia questão de deixar claro que sabia perfeitamente como jogar. Ela me conhecia muito bem. Para falar a verdade, até bem demais… 

Senti-me totalmente oprimido por sua presença envenenada. O pânico bloqueou-me o raciocínio e comandou meu cérebro imediatamente. Tomado por uma onda de terror e desespero, lancei o pesado frasco contra o espelho, com violência além do normal. O som do embate do vidro contra o vidro encheu-me os ouvidos, com uma explosão. Eu senti uma lufada de ar passar por mim. Tive a impressão de ouvir seus passos pela casa…

Antes mesmo de certificar-me que todos os cacos haviam caído, apaguei as luzes, rapidamente, fechei a porta do banheiro e tranquei-me no quarto. 

Uma brisa, causada pela porta a fechar-se, moveu a cortina que cobria a janela do quarto. Meu olhar fora atraído, quase magneticamente, pelo reflexo na brecha do vidro espelhado da janela. Aquela criatura horrenda estava lá, totalmente a postos e, apesar de bastante mirrada, parecia sentir-se mais poderosa e intimidadora que nunca – tal qual uma serpente pronta a dar um bote. Senti-me agrilhoado pela minha própria opção, tomada há um tempo atrás e que parecia naquele momento haver sido uma eternidade extremamente aflitiva. 

Ela soltou uma risadinha ameaçadora. Sabia que tinha um trunfo na manga… Enquanto me sentisse perseguido, mortificado e amedrontado, ela tinha uma chance contra mim.

Eu estava, definitivamente, à beira de um colapso… desesperado demais para sair daquela situação, com a devida coerência… Tinha certeza que estava tendo uma crise de pânico – um forte ataque de agorafobia – que me mantinha preso dentro de minha própria casa, já que o mundo lá fora era feito de metal e vidro reflector - onde eu jamais voltaria a sentir-me seguro outra vez. Sabia que se tentasse sair pela porta afora, seria atacado, com certeza, antes de chegar ao hall de entrada do prédio. 

Estava cada vez mais difícil pensar em um fim para aquele suplício mental – pelo menos naquele momento. Minha razão precisava, de todas as formas, trabalhar em alta velocidade, mas minha mente – já cansada e atormentada demais – não conseguia acompanhar…

Eu só consegui apressar-me a fechar bem as cortinas, de modo a proteger-me da superfície reflectora da janela. Ao assegurar que resguardava-me do reflexo e da força do olhar daquela criatura, um lampejo súbito acendeu uma pequena chama de esperança na minha alma já quase completamente admoestada. 

Dei-me conta que eu ainda poderia ter uma saída, se fosse rápido e esperto o suficiente. 

Eu esperava que ela não contasse com nenhuma surpresa da minha parte, nem tivesse tempo de penetrar no meu pensamento… pelo menos até eu dar cabo do desatinado plano, que nascia naquele momento, na minha mente atormentada. 

Fui até a sala de estar e abri as duas alas das cortinas que cobriam a grande janela. Ela prontamente apareceu ao fundo. Afastei-me o suficiente e, sem dar nenhum tempo para que percebesse minhas verdadeiras intenções, corri e joguei-me de cabeça e ombros contra a vidraça, em direcção ao grande vazio que havia entre o quinto andar e o chão lá em baixo. 

Ainda consegui ver a expressão de surpresa em seu rosto, reflectida nos grandes pedaços de vidro espelhado, que esfacelavam-se contra meu corpo. Pasma e sem ação, ela exprimia um inesperado assombro e um completo e impotente horror. 

Eu me libertava dela, finalmente, sem emitir um som, sem sentir qualquer traço de medo. Agora era eu quem sorria, vitorioso, vendo o piso de cimento gasto da calçada aproximar-se rapidamente de meus olhos. Mergulhara contra a morte certa e já me sentia aliviado… Ela perdia a guerra, afinal… 

Não sei se foi impressão minha ou não, mas pareceu-me ainda tê-la ouvido gritar, à distância, enquanto eu caía: “Mas eu sou feita de ti”… 

Uma forte e súbita pontada de dor cingiu-me o corpo e, então, tudo ficou escuro… Seguiu-se então, uma paz extraordinariamente silenciosa…

***

Um flash de luz muito brilhante atingiu-me o rosto. Meu primeiro pensamento foi que eu havia morrido e ido parar num mundo excepcionalmente iluminado e quase silencioso. Pisquei os olhos bem devagar. O tal mundo não era tão silencioso, afinal. Havia um bip intermitente que me incomodava. Minha visão começou a acostumar-se com o excesso de luz e pude mover um pouco a cabeça para o lado. Percebi então que havia sido apenas um raio de sol, que entrava por um espaço aberto entre as persianas e agora desenhava uma estreita faixa de luz contra a parede branca, na cabeceira de uma cama de tubos metálicos, também pintados de branco, onde eu estava deitado. 

Que lugar era aquele, afinal?

Eu estava confuso. Ao olhar à volta, percebi que não reconhecia aquele aposento onde me encontrava. Ao focar melhor minha visão sobre meu corpo, notei largas bandagens em volta do meu tórax, facto que me trouxe mais próximo da realidade. Quase automaticamente, passei a mão à cabeça e senti que boa parte dela também estava coberta de gaze. 

Ainda tentei sentar-me, mas uma não desconhecida e aguda dor no corpo impediu-me de fazê-lo, completamente. Senti uma gota de suor escorrer-me da fronte, pelo rosto, até pingar ao meu lado, no travesseiro. O esforço talvez houvesse sido demasiado... 

Foi quando vi que havia uma sonda introduzida na veia do meu braço, que o bip começou a tocar mais rapidamente…

Uma jovem mulher loira, vestida de branco, com olhos incrivelmente azuis, exibindo uma expressão adoravelmente doce no rosto, olhou-me com complacência e pediu-me que não me esforçasse demais.

- Fique calmo, disse-me ela. 

- Como eu vim parar aqui? Minha voz estava irreconhecível. Baixa e rouca, quase um sussurro, saindo com um grande esforço...

- O senhor é um homem de sorte. Esteve em coma por muitos meses. Ninguém pensava que ia sobreviver. Sofreu uma queda muito grave. Partiu muitos ossos, mas por algum milagre não foi a cabeça que bateu primeiro contra o chão e conseguiu-se recuperar o que se pode. Os médicos neurologistas vão gostar de saber que acordou. Acredito que o ortopedista também - acrescentou, com uma risadinha… o senhor sabe como aconteceu o acidente? Tem um processo de investigação correndo. A polícia veio várias vezes, mas acabaram desistindo. Já não veem. Um investigador pediu que o avisássemos se… e quando… voltasse a si.

- Investigador de polícia? Por quê?

- Não sei dizer ao certo. Deve ser por causa do tal processo. Eu sou somente uma enfermeira, o senhor sabe… Eles são óptimos para fazer muitas perguntas, mas nos informam muito pouco…

- Sei… Veio mais alguém?

- Só um agente de seguros. Que eu tenha conhecimento, mais ninguém. A esta altura, eles vão ter uma surpresa ao saber que voltou a si. 

-Oh, não, por favor. Não os chame…

- Sinto muito, senhor. São ordens estritas. Eu tenho que reportar. O seu caso deu muito o que falar por aqui. Não é possível fingir que nada mudou… é um milagre o senhor estar vivo e consciente novamente.

Fechei os olhos com força. Aquilo devia ser um pesadelo. A jovem enfermeira deve ter lido nas entrelinhas e disse que ia deixar-me descansar. No que pareceu-me cerca de alguns instantes depois, apenas, abri os olhos novamente e vi um homem de meia-idade e outro mais jovem conversando em voz baixa, ao lado da cama onde eu estava deitado, ainda sem poder mover-me propriamente. O efeito dos analgésicos devia ser forte, pois não tinha muita noção do tempo em que estive com os olhos cerrados. Pareciam minutos, mas poderiam ter sido muito mais…

- O senhor sabe como aconteceu o acidente? 

Déjà-vu. A mesma pergunta outra vez. Ou fala-se a mesma língua repetidamente por aqui, ou perdi completamente a noção de realidade. Será que minha mente está a pregar-me peças? 

O homem mais maduro iniciava a interlocução. Devia ser o tal investigador. Avaliei-o, calmamente e com cuidado. Percebi que estava trajando um blazer de tweed cinza e calças num tom mais escuro… grafite, provavelmente… mas na minha concepção a camisa deveria ser branca, não aquele tom esquisito de salmão. Deve ter sido sugestão da mulher, pensei. Vi uma grossa aliança no dedo anelar da mão esquerda. Provavelmente escolha dela também… As mulheres optam por comprar alianças grossas… pesadas… decerto para marcar bem a posse sobre os maridos, frente às outras… Como é que ainda penso nestas coisas, numa situação destas? Quase ri de mim mesmo.

- Não estou muito certo, disse eu com a voz estranha, que parecia vir da garganta de outra pessoa.

- Pense… Havia mais alguém no apartamento junto consigo? Alguém que o pudesse haver empurrado?

Eu tentei rir, mas minha cabeça doeu. Era isso, então? Tentativa de assassinato, de suicídio ou um terrível acidente… Por isso a polícia estava envolvida…

- Não havia ninguém comigo. Por que alguém iria querer me matar? Eu vivo sozinho e não tenho ninguém por mim. Esta suspeita é ridícula.
 
- O senhor tentou suicídio?

- Esta é mais ridícula ainda, investigador. Eu tenho uma vida apática e pouco colorida, mas não vejo razão para tentativa de dar cabo da única coisa que é minha, por direito. Não, eu não tentei matar-me, tampouco… Foi um acidente. Um infeliz acidente. Eu devo ter tropeçado e caído contra a janela. Não lembro bem…

- Eu não mencionei a queda contra a janela, senhor. Quer dizer que lembra-se de haver caído?

- Não consigo recordar direito. O que me vem à memória parece estar muito envolvido em uma espessa nuvem de dúvidas e incertezas – imagens desconexas, que não consigo juntar em algo coerente. Mas esta investigação não faz sentido. Arquivem isto… não há caso de polícia aqui… pelo amor de Deus… quando muito, foi um infeliz acidente.

- O senhor tem seguro de vida, mas não tem beneficiários. O valor do prémio é considerável…

Desta vez foi o homem mais moço que falou, com voz baixa. Devia ser o técnico da Seguradora.

- E onde isso nos leva? Se eu morresse, ninguém seria favorecido, não é mesmo? Mas eu estou vivo… ou não estou, afinal?

Eu estava ficando exaltado e irritado. O bip começou a ficar mais rápido. A enfermeira pediu que eles se apressassem para que eu pudesse descansar. Já havia tido muita agitação para o mesmo dia.

- Pelo visto não leva a lugar nenhum... mesmo….

O rapaz pareceu desapontado. Viu-se num beco sem saída…

Fechei os olhos. Eles desistiram, não muitos segundos depois, despachados pela jovem enfermeira que insistia que saíssem. Adormeci em seguida… um sono pesado, recheado de flashes estranhos de memórias desconexas, sob o pesado efeito dos medicamentos a gotejar, sem parar, nas minhas veias do braço já bastante perfuradas.

Passei uns tempos entre sonhos, pesadelos e uma sonolenta realidade. As semanas correram vagarosas naquela branca cama de hospital. Minhas visitas ficavam limitadas às enfermeiras e ortopedista, ao investigador de polícia e ao jovem agente de seguros. 

Estas foram espaçando cada vez mais e por fim, apenas a enfermeira de olhos azuis ainda me dispensava alguma atenção, além do ortopedista e, por fim, também de um fisioterapeuta.

Para meu alívio, havia sido esquecido, de vez, por meus não desejados visitantes usuais, que provavelmente resolveram arquivar o caso. 

Minha recuperação fora surpreendente, de acordo com os médicos, embora eu ainda sentisse algumas dores pelo corpo. Ser escravo dos analgésicos, apesar de aquilo começar a ser cada vez mais esporádico, não me preocupava. Ainda não havia podido levantar-me sem supervisão completa, mas esperava que não fosse demorar muito até voltar a ter uma vida razoavelmente normal. Quando o fiz e consegui dar uns passos, sozinho, meu andar já não era o mesmo, mas era um grande progresso – um verdadeiro milagre.

Deixei o hospital numa ensolarada manhã de sexta-feira. O apartamento estava quase do mesmo jeito que outrora. A janela destruída havia sido reposta e não havia sinais evidentes do acidente. A diarista havia estado lá, a limpar e preparar o ambiente, por minha solicitação. 

Voltar ao lar, todavia, causou-me uma certa estranheza. Estivera longe dali por muito tempo e aquilo era como recomeçar minha vida... 

Respirei fundo e percorri, vagarosa e silenciosamente, o corredor na direcção da suite. 

Já sentado na grande cama, no bem-vindo sossego do quarto, ponderei sobre minha sorte e concluí que era bom estar vivo, afinal de contas. Eu me sentia como um sobrevivente.

Estava um pouco cansado, pois não havia dormido suficientemente na noite anterior, ansioso que estava pelo dia que viria a seguir. Precisava urgente de uma boa, longa e confortável duche de água morna, coisa que não fazia, por minha inteira conta, há muito tempo. Aproveitei a ocasião e dirigi-me imediatamente ao banheiro.

Antes de entrar no chuveiro, porém, olhei-me no espelho - este, também reposto -, avaliando as grandes e profundas olheiras que me decoravam a abatida face. Não houve grande surpresa ao despir-me e observar meu corpo reflectido. O tempo de convalescença, depois de acordar do coma, preenchera um pouco meu aspecto, mas não a ponto de engordar. Apesar de bastante magro, ainda, eu estava fisicamente bem. Minha pele apresentava-se extremamente pálida, marcada por uma série de cicatrizes feitas por densos arranhões paralelos, impressas profundamente em boa parte do peito e do abdómen…

Desviei os olhos, um tanto consternado e entrei no duche. A água morna encheu-me de satisfação e fez-me relembrar de lances passados. Aquilo havia sido um descomunal - e terrivelmente longo - pesadelo. Felizmente acabara. Meu plano havia dado certo, apesar de não contar, na verdade, que eu fosse, afinal, sobreviver. Minha intenção primeira era matar-me a mim mesmo e livrar-me dela, de uma vez por todas…

Sequei-me, cuidadosamente. Ainda passei os dedos sobre as várias cicatrizes desenhadas na pele. As antigas marcaram-me a fase de loucura e desatino que me controlou por tempos. As novas registavam sinais de uma grande batalha, que estava, finalmente, vencida. Balancei a cabeça, com uma certa melancolia, pendurei a toalha no toalheiro e saí, calmamente. 

Ao cruzar a soleira do banheiro, pareceu-me ouvir uma risada… histérica… velha conhecida minha… 

Parei a meio caminho - meio desacreditando que realmente a ouvira, meio sentindo-me ainda desconfiado - … Um arrepio percorreu-me o corpo todo…

Não… deve ter sido somente impressão minha, mesmo… pensei, sem muita certeza de haver-me convencido e, sem virar-me, continuei a caminhar para o quarto, evitando - de todas as formas - voltar a olhar para qualquer espelho.

Ao sentar-me na cama, senti algo roçar-me suavemente a pele da face. Levantei os olhos e contemplei a imagem no espelho do quarto, pendurado na parede à minha frente.

Ao meu lado, sorrindo, havia uma jovem mulher loira, com olhos incrivelmente azuis, exibindo uma expressão adoravelmente doce no rosto e com o corpo estonteantemente sensual, coberta apenas por um finíssimo e transparente véu negro…