sábado, 26 de janeiro de 2013

Da Imagem no Espelho... (Parte 3)


A manhã trouxe-me menos conforto que eu esperava. Por precaução, ao sair da minha pequena ‘cela de reclusão’, evitei olhar-me não somente nos espelhos. Desviei-me de todas as possíveis fontes de reflexos da casa, caminhando de cabeça - e olhos - baixos, na direcção do quarto. 

Já com a porta trancada, telefonei à diarista para que viesse urgentemente, mesmo não sendo seu dia de fazer a limpeza do apartamento. Ela aceitou, meio contra sua vontade e quando entrou, não questionou o motivo da colcha estar amontoada sobre os cacos de vidro, ainda ao chão, quando eu podia ter facilmente recolhido os mesmos. Ela sabia que eu não costumava deixar as coisas fora do lugar.

Seu olhar de surpresa, misturado com uma certa irritação, mudou para preocupação, assim que viu-me encolher na cama, enquanto ela recolhia, com uma vassoura e uma pá, os resquícios da guerra travada na noite anterior. 

Por prevenção, solicitei à mulher que também cobrisse todos os espelhos da casa com lençóis e toalhas e que mantivesse as cortinas do apartamento totalmente cerradas.

Ela olhou-me séria e cumpriu a tarefa, sem mais perguntas. Seu olhar, porém, buscava respostas que eu não estava preparado, nem disposto a dar. Quando paguei-lhe o serviço e dei-lhe uma quantia extra, pedindo que só voltasse quando a chamasse novamente, examinou-me com certa estranheza e perguntou se eu estava bem. Deve ter detectado um pouco da loucura que estampava-se na minha face. Eu, todavia, não queria correr riscos desnecessários. 

Despachei-a, com um pouco convincente ‘está-tudo-bem-sim-não-se-preocupe’ e voltei a trancar-me no quarto.

Sem o grande espelho pendurado na parede oposta à cama, eu estava - momentaneamente - livre das visitas dominadoras da noite. Aquele estratagema devia funcionar, por uns tempos, até que pudesse pensar em algo mais efectivo… 

Precisava de alguma pequena trégua para organizar minhas ideias e pensar em uma forma de resolver aquele dilema. Minha opressora, com certeza, não devia estar disposta a dar-me alguma paz, para que eu pudesse usar aquele intervalo a preparar-me para um combate contra ela.

Para facilitar minha vida, tomei algumas decisões desesperadas. Usei a máquina de cortar cabelos, deixando-os extremamente curtos, de modo a não precisar penteá-los. Também evitei barbear-me, não por relaxamento, mas por necessidade. Defendia-me, com aqueles paliativos, de todas as formas do uso de qualquer espelho da casa. Se fosse necessário, até tomar banho com as luzes apagadas, não ia constituir-se nenhum grande drama.

Mas nem tudo haveria de ser tão linear como eu pensara. As coberturas colocadas pela empregada apresentavam algumas falhas, como eu já devia ter desconfiado desde o início. As pequenas aberturas deixadas passaram a ser parte do meu martírio diário, pois tinha pouca coragem de aproximar-me dos espelhos, tampos de vidro ou das vidraças, distribuídos ao longo do apartamento, quando ia de um lado a outro.

Minha pior surpresa foi quando abri a porta do banheiro e vi que a protecção colocada sobre o espelho, que revestia meia parede, havia caído sobre a pia. Senti minha respiração acelerar e fui invadido por uma onda de pânico. 

Numa passada rápida de olhos, examinei-me a mim mesmo e vi que não apresentava um aspecto melhor, aparentando estar cada vez mais doentio. Acossado, drenado e sem energia, já não sabia o que fazer. Eu vinha definhando em velocidade deveras acelerada. Por sorte, minha mente ainda estava sóbria o suficiente, para perceber o grande erro que cometera, intempestivamente, mesmo que o reconhecimento não representasse nenhum alívio naquele momento.

Antes mesmo que eu recolocasse a cobertura sobre o meu reflexo, senti sua presença por perto e não fiquei surpreso ao vê-la recostada na esquadria da porta. Seu corpo nu, esguio e extremamente pálido, parecia fatigado e macilento. Seus cabelos negros, caindo em desalinho sobre o rosto - que escondia de mim, com a cabeça levemente abaixada - já não tinham o brilho de antes. Pareciam desmazelados, um tanto ensebados e sujos, como se ela tivesse perdido todo o cuidado com sua anteriormente bela aparência física. A mulher, dantes tão sensual, já não tinha o frescor e o encanto sem igual que apresentava quando a vi reflectida no elevador - o que de certa forma me surpreendeu - mas não por completo. 

Eu, sinceramente, não esperava que fosse desleixar-se de seu tão nobre aspecto físico… o mesmo aspecto que fez-me ficar tão fascinado por ela.

Aparentemente minha estratégia estava, de alguma forma, a funcionar, afinal. Embora eu não me sentisse mais forte, ela também não tinha por onde alimentar-se de energia, se não conseguisse aproximar-se o suficiente da fonte… 

Sua fúria, contudo, parecia haver aumentado, provavelmente por perder parte do completo controlo que ela tinha sobre mim. 

Aquela havia sido uma das poucas vezes em que me deixara olhá-la, por tempo suficiente de perceber que ela esboçou aquele sorriso sarcástico que eu conhecia. Com as duas mãos, puxou os cabelos um pouco para trás, de modo a deixar seus olhos bem à vista, fixando-os nos meus. Suas pupilas encolheram. Eu senti um arrepio percorrer-me o corpo todo e desviei o olhar, enquanto tentava, apressada e desajeitadamente, recolocar um lençol sobre a superfície reflectora. Tinha medo que ela se adiantasse e que eu ficasse encurralado outra vez...

Meus olhos procuraram, rapidamente, algo suficientemente sólido, que pudesse ser usado, em caso de emergência. O grande frasco de vidro sobre a mesa da pia, contendo chumaços de algodão, devia servir ao propósito. Se algo desse errado – ou sentisse que ela fosse atacar-me, já estava preparado para quebrar mais um espelho. Seria outra atitude desesperada, mas efectiva, pelo menos momentaneamente. 

Uma força, que de alguma forma controlava a minha vontade, fez-me tornar a observar a cena que se desenrolava dentro do espelho. A imagem do animal gravemente ferido me olhava ameaçadoramente, daquele mundo paralelo, que se apresentava numa estranha tela cinematográfica, disposta na parede do meu próprio banheiro. Sem mover-se, pois sabia ler-me muito bem, ela fez, então, questão de pronunciar a palavra… devagar e de modo a não deixar dúvida nenhuma sobre suas verdadeiras intenções…

- Vingança!
 
Uma sombra passou-me pelo semblante e ela sorriu ao perceber. Sua cartada era poderosa. Uma mão cheia… 

Aquela mulher sentia o cheiro do medo que atormentava-me a mente e fazia questão de deixar claro que sabia perfeitamente como jogar. Ela me conhecia muito bem. Para falar a verdade, até bem demais… 

Senti-me totalmente oprimido por sua presença envenenada. O pânico bloqueou-me o raciocínio e comandou meu cérebro imediatamente. Tomado por uma onda de terror e desespero, lancei o pesado frasco contra o espelho, com violência além do normal. O som do embate do vidro contra o vidro encheu-me os ouvidos, com uma explosão. Eu senti uma lufada de ar passar por mim. Tive a impressão de ouvir seus passos pela casa…

Antes mesmo de certificar-me que todos os cacos haviam caído, apaguei as luzes, rapidamente, fechei a porta do banheiro e tranquei-me no quarto. 

Uma brisa, causada pela porta a fechar-se, moveu a cortina que cobria a janela do quarto. Meu olhar fora atraído, quase magneticamente, pelo reflexo na brecha do vidro espelhado da janela. Aquela criatura horrenda estava lá, totalmente a postos e, apesar de bastante mirrada, parecia sentir-se mais poderosa e intimidadora que nunca – tal qual uma serpente pronta a dar um bote. Senti-me agrilhoado pela minha própria opção, tomada há um tempo atrás e que parecia naquele momento haver sido uma eternidade extremamente aflitiva. 

Ela soltou uma risadinha ameaçadora. Sabia que tinha um trunfo na manga… Enquanto me sentisse perseguido, mortificado e amedrontado, ela tinha uma chance contra mim.

Eu estava, definitivamente, à beira de um colapso… desesperado demais para sair daquela situação, com a devida coerência… Tinha certeza que estava tendo uma crise de pânico – um forte ataque de agorafobia – que me mantinha preso dentro de minha própria casa, já que o mundo lá fora era feito de metal e vidro reflector - onde eu jamais voltaria a sentir-me seguro outra vez. Sabia que se tentasse sair pela porta afora, seria atacado, com certeza, antes de chegar ao hall de entrada do prédio. 

Estava cada vez mais difícil pensar em um fim para aquele suplício mental – pelo menos naquele momento. Minha razão precisava, de todas as formas, trabalhar em alta velocidade, mas minha mente – já cansada e atormentada demais – não conseguia acompanhar…

Eu só consegui apressar-me a fechar bem as cortinas, de modo a proteger-me da superfície reflectora da janela. Ao assegurar que resguardava-me do reflexo e da força do olhar daquela criatura, um lampejo súbito acendeu uma pequena chama de esperança na minha alma já quase completamente admoestada. 

Dei-me conta que eu ainda poderia ter uma saída, se fosse rápido e esperto o suficiente. 

Eu esperava que ela não contasse com nenhuma surpresa da minha parte, nem tivesse tempo de penetrar no meu pensamento… pelo menos até eu dar cabo do desatinado plano, que nascia naquele momento, na minha mente atormentada. 

Fui até a sala de estar e abri as duas alas das cortinas que cobriam a grande janela. Ela prontamente apareceu ao fundo. Afastei-me o suficiente e, sem dar nenhum tempo para que percebesse minhas verdadeiras intenções, corri e joguei-me de cabeça e ombros contra a vidraça, em direcção ao grande vazio que havia entre o quinto andar e o chão lá em baixo. 

Ainda consegui ver a expressão de surpresa em seu rosto, reflectida nos grandes pedaços de vidro espelhado, que esfacelavam-se contra meu corpo. Pasma e sem ação, ela exprimia um inesperado assombro e um completo e impotente horror. 

Eu me libertava dela, finalmente, sem emitir um som, sem sentir qualquer traço de medo. Agora era eu quem sorria, vitorioso, vendo o piso de cimento gasto da calçada aproximar-se rapidamente de meus olhos. Mergulhara contra a morte certa e já me sentia aliviado… Ela perdia a guerra, afinal… 

Não sei se foi impressão minha ou não, mas pareceu-me ainda tê-la ouvido gritar, à distância, enquanto eu caía: “Mas eu sou feita de ti”… 

Uma forte e súbita pontada de dor cingiu-me o corpo e, então, tudo ficou escuro… Seguiu-se então, uma paz extraordinariamente silenciosa…

***

Um flash de luz muito brilhante atingiu-me o rosto. Meu primeiro pensamento foi que eu havia morrido e ido parar num mundo excepcionalmente iluminado e quase silencioso. Pisquei os olhos bem devagar. O tal mundo não era tão silencioso, afinal. Havia um bip intermitente que me incomodava. Minha visão começou a acostumar-se com o excesso de luz e pude mover um pouco a cabeça para o lado. Percebi então que havia sido apenas um raio de sol, que entrava por um espaço aberto entre as persianas e agora desenhava uma estreita faixa de luz contra a parede branca, na cabeceira de uma cama de tubos metálicos, também pintados de branco, onde eu estava deitado. 

Que lugar era aquele, afinal?

Eu estava confuso. Ao olhar à volta, percebi que não reconhecia aquele aposento onde me encontrava. Ao focar melhor minha visão sobre meu corpo, notei largas bandagens em volta do meu tórax, facto que me trouxe mais próximo da realidade. Quase automaticamente, passei a mão à cabeça e senti que boa parte dela também estava coberta de gaze. 

Ainda tentei sentar-me, mas uma não desconhecida e aguda dor no corpo impediu-me de fazê-lo, completamente. Senti uma gota de suor escorrer-me da fronte, pelo rosto, até pingar ao meu lado, no travesseiro. O esforço talvez houvesse sido demasiado... 

Foi quando vi que havia uma sonda introduzida na veia do meu braço, que o bip começou a tocar mais rapidamente…

Uma jovem mulher loira, vestida de branco, com olhos incrivelmente azuis, exibindo uma expressão adoravelmente doce no rosto, olhou-me com complacência e pediu-me que não me esforçasse demais.

- Fique calmo, disse-me ela. 

- Como eu vim parar aqui? Minha voz estava irreconhecível. Baixa e rouca, quase um sussurro, saindo com um grande esforço...

- O senhor é um homem de sorte. Esteve em coma por muitos meses. Ninguém pensava que ia sobreviver. Sofreu uma queda muito grave. Partiu muitos ossos, mas por algum milagre não foi a cabeça que bateu primeiro contra o chão e conseguiu-se recuperar o que se pode. Os médicos neurologistas vão gostar de saber que acordou. Acredito que o ortopedista também - acrescentou, com uma risadinha… o senhor sabe como aconteceu o acidente? Tem um processo de investigação correndo. A polícia veio várias vezes, mas acabaram desistindo. Já não veem. Um investigador pediu que o avisássemos se… e quando… voltasse a si.

- Investigador de polícia? Por quê?

- Não sei dizer ao certo. Deve ser por causa do tal processo. Eu sou somente uma enfermeira, o senhor sabe… Eles são óptimos para fazer muitas perguntas, mas nos informam muito pouco…

- Sei… Veio mais alguém?

- Só um agente de seguros. Que eu tenha conhecimento, mais ninguém. A esta altura, eles vão ter uma surpresa ao saber que voltou a si. 

-Oh, não, por favor. Não os chame…

- Sinto muito, senhor. São ordens estritas. Eu tenho que reportar. O seu caso deu muito o que falar por aqui. Não é possível fingir que nada mudou… é um milagre o senhor estar vivo e consciente novamente.

Fechei os olhos com força. Aquilo devia ser um pesadelo. A jovem enfermeira deve ter lido nas entrelinhas e disse que ia deixar-me descansar. No que pareceu-me cerca de alguns instantes depois, apenas, abri os olhos novamente e vi um homem de meia-idade e outro mais jovem conversando em voz baixa, ao lado da cama onde eu estava deitado, ainda sem poder mover-me propriamente. O efeito dos analgésicos devia ser forte, pois não tinha muita noção do tempo em que estive com os olhos cerrados. Pareciam minutos, mas poderiam ter sido muito mais…

- O senhor sabe como aconteceu o acidente? 

Déjà-vu. A mesma pergunta outra vez. Ou fala-se a mesma língua repetidamente por aqui, ou perdi completamente a noção de realidade. Será que minha mente está a pregar-me peças? 

O homem mais maduro iniciava a interlocução. Devia ser o tal investigador. Avaliei-o, calmamente e com cuidado. Percebi que estava trajando um blazer de tweed cinza e calças num tom mais escuro… grafite, provavelmente… mas na minha concepção a camisa deveria ser branca, não aquele tom esquisito de salmão. Deve ter sido sugestão da mulher, pensei. Vi uma grossa aliança no dedo anelar da mão esquerda. Provavelmente escolha dela também… As mulheres optam por comprar alianças grossas… pesadas… decerto para marcar bem a posse sobre os maridos, frente às outras… Como é que ainda penso nestas coisas, numa situação destas? Quase ri de mim mesmo.

- Não estou muito certo, disse eu com a voz estranha, que parecia vir da garganta de outra pessoa.

- Pense… Havia mais alguém no apartamento junto consigo? Alguém que o pudesse haver empurrado?

Eu tentei rir, mas minha cabeça doeu. Era isso, então? Tentativa de assassinato, de suicídio ou um terrível acidente… Por isso a polícia estava envolvida…

- Não havia ninguém comigo. Por que alguém iria querer me matar? Eu vivo sozinho e não tenho ninguém por mim. Esta suspeita é ridícula.
 
- O senhor tentou suicídio?

- Esta é mais ridícula ainda, investigador. Eu tenho uma vida apática e pouco colorida, mas não vejo razão para tentativa de dar cabo da única coisa que é minha, por direito. Não, eu não tentei matar-me, tampouco… Foi um acidente. Um infeliz acidente. Eu devo ter tropeçado e caído contra a janela. Não lembro bem…

- Eu não mencionei a queda contra a janela, senhor. Quer dizer que lembra-se de haver caído?

- Não consigo recordar direito. O que me vem à memória parece estar muito envolvido em uma espessa nuvem de dúvidas e incertezas – imagens desconexas, que não consigo juntar em algo coerente. Mas esta investigação não faz sentido. Arquivem isto… não há caso de polícia aqui… pelo amor de Deus… quando muito, foi um infeliz acidente.

- O senhor tem seguro de vida, mas não tem beneficiários. O valor do prémio é considerável…

Desta vez foi o homem mais moço que falou, com voz baixa. Devia ser o técnico da Seguradora.

- E onde isso nos leva? Se eu morresse, ninguém seria favorecido, não é mesmo? Mas eu estou vivo… ou não estou, afinal?

Eu estava ficando exaltado e irritado. O bip começou a ficar mais rápido. A enfermeira pediu que eles se apressassem para que eu pudesse descansar. Já havia tido muita agitação para o mesmo dia.

- Pelo visto não leva a lugar nenhum... mesmo….

O rapaz pareceu desapontado. Viu-se num beco sem saída…

Fechei os olhos. Eles desistiram, não muitos segundos depois, despachados pela jovem enfermeira que insistia que saíssem. Adormeci em seguida… um sono pesado, recheado de flashes estranhos de memórias desconexas, sob o pesado efeito dos medicamentos a gotejar, sem parar, nas minhas veias do braço já bastante perfuradas.

Passei uns tempos entre sonhos, pesadelos e uma sonolenta realidade. As semanas correram vagarosas naquela branca cama de hospital. Minhas visitas ficavam limitadas às enfermeiras e ortopedista, ao investigador de polícia e ao jovem agente de seguros. 

Estas foram espaçando cada vez mais e por fim, apenas a enfermeira de olhos azuis ainda me dispensava alguma atenção, além do ortopedista e, por fim, também de um fisioterapeuta.

Para meu alívio, havia sido esquecido, de vez, por meus não desejados visitantes usuais, que provavelmente resolveram arquivar o caso. 

Minha recuperação fora surpreendente, de acordo com os médicos, embora eu ainda sentisse algumas dores pelo corpo. Ser escravo dos analgésicos, apesar de aquilo começar a ser cada vez mais esporádico, não me preocupava. Ainda não havia podido levantar-me sem supervisão completa, mas esperava que não fosse demorar muito até voltar a ter uma vida razoavelmente normal. Quando o fiz e consegui dar uns passos, sozinho, meu andar já não era o mesmo, mas era um grande progresso – um verdadeiro milagre.

Deixei o hospital numa ensolarada manhã de sexta-feira. O apartamento estava quase do mesmo jeito que outrora. A janela destruída havia sido reposta e não havia sinais evidentes do acidente. A diarista havia estado lá, a limpar e preparar o ambiente, por minha solicitação. 

Voltar ao lar, todavia, causou-me uma certa estranheza. Estivera longe dali por muito tempo e aquilo era como recomeçar minha vida... 

Respirei fundo e percorri, vagarosa e silenciosamente, o corredor na direcção da suite. 

Já sentado na grande cama, no bem-vindo sossego do quarto, ponderei sobre minha sorte e concluí que era bom estar vivo, afinal de contas. Eu me sentia como um sobrevivente.

Estava um pouco cansado, pois não havia dormido suficientemente na noite anterior, ansioso que estava pelo dia que viria a seguir. Precisava urgente de uma boa, longa e confortável duche de água morna, coisa que não fazia, por minha inteira conta, há muito tempo. Aproveitei a ocasião e dirigi-me imediatamente ao banheiro.

Antes de entrar no chuveiro, porém, olhei-me no espelho - este, também reposto -, avaliando as grandes e profundas olheiras que me decoravam a abatida face. Não houve grande surpresa ao despir-me e observar meu corpo reflectido. O tempo de convalescença, depois de acordar do coma, preenchera um pouco meu aspecto, mas não a ponto de engordar. Apesar de bastante magro, ainda, eu estava fisicamente bem. Minha pele apresentava-se extremamente pálida, marcada por uma série de cicatrizes feitas por densos arranhões paralelos, impressas profundamente em boa parte do peito e do abdómen…

Desviei os olhos, um tanto consternado e entrei no duche. A água morna encheu-me de satisfação e fez-me relembrar de lances passados. Aquilo havia sido um descomunal - e terrivelmente longo - pesadelo. Felizmente acabara. Meu plano havia dado certo, apesar de não contar, na verdade, que eu fosse, afinal, sobreviver. Minha intenção primeira era matar-me a mim mesmo e livrar-me dela, de uma vez por todas…

Sequei-me, cuidadosamente. Ainda passei os dedos sobre as várias cicatrizes desenhadas na pele. As antigas marcaram-me a fase de loucura e desatino que me controlou por tempos. As novas registavam sinais de uma grande batalha, que estava, finalmente, vencida. Balancei a cabeça, com uma certa melancolia, pendurei a toalha no toalheiro e saí, calmamente. 

Ao cruzar a soleira do banheiro, pareceu-me ouvir uma risada… histérica… velha conhecida minha… 

Parei a meio caminho - meio desacreditando que realmente a ouvira, meio sentindo-me ainda desconfiado - … Um arrepio percorreu-me o corpo todo…

Não… deve ter sido somente impressão minha, mesmo… pensei, sem muita certeza de haver-me convencido e, sem virar-me, continuei a caminhar para o quarto, evitando - de todas as formas - voltar a olhar para qualquer espelho.

Ao sentar-me na cama, senti algo roçar-me suavemente a pele da face. Levantei os olhos e contemplei a imagem no espelho do quarto, pendurado na parede à minha frente.

Ao meu lado, sorrindo, havia uma jovem mulher loira, com olhos incrivelmente azuis, exibindo uma expressão adoravelmente doce no rosto e com o corpo estonteantemente sensual, coberta apenas por um finíssimo e transparente véu negro…



1 comentário:

  1. Finalmente, termina a história. Espero que agrade. A mim, deu bastante trabalho, mas reconheço que divertí-me muito mesmo ao escrever.

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