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sábado, 26 de janeiro de 2013

Da Imagem no Espelho... (Parte 3)


A manhã trouxe-me menos conforto que eu esperava. Por precaução, ao sair da minha pequena ‘cela de reclusão’, evitei olhar-me não somente nos espelhos. Desviei-me de todas as possíveis fontes de reflexos da casa, caminhando de cabeça - e olhos - baixos, na direcção do quarto. 

Já com a porta trancada, telefonei à diarista para que viesse urgentemente, mesmo não sendo seu dia de fazer a limpeza do apartamento. Ela aceitou, meio contra sua vontade e quando entrou, não questionou o motivo da colcha estar amontoada sobre os cacos de vidro, ainda ao chão, quando eu podia ter facilmente recolhido os mesmos. Ela sabia que eu não costumava deixar as coisas fora do lugar.

Seu olhar de surpresa, misturado com uma certa irritação, mudou para preocupação, assim que viu-me encolher na cama, enquanto ela recolhia, com uma vassoura e uma pá, os resquícios da guerra travada na noite anterior. 

Por prevenção, solicitei à mulher que também cobrisse todos os espelhos da casa com lençóis e toalhas e que mantivesse as cortinas do apartamento totalmente cerradas.

Ela olhou-me séria e cumpriu a tarefa, sem mais perguntas. Seu olhar, porém, buscava respostas que eu não estava preparado, nem disposto a dar. Quando paguei-lhe o serviço e dei-lhe uma quantia extra, pedindo que só voltasse quando a chamasse novamente, examinou-me com certa estranheza e perguntou se eu estava bem. Deve ter detectado um pouco da loucura que estampava-se na minha face. Eu, todavia, não queria correr riscos desnecessários. 

Despachei-a, com um pouco convincente ‘está-tudo-bem-sim-não-se-preocupe’ e voltei a trancar-me no quarto.

Sem o grande espelho pendurado na parede oposta à cama, eu estava - momentaneamente - livre das visitas dominadoras da noite. Aquele estratagema devia funcionar, por uns tempos, até que pudesse pensar em algo mais efectivo… 

Precisava de alguma pequena trégua para organizar minhas ideias e pensar em uma forma de resolver aquele dilema. Minha opressora, com certeza, não devia estar disposta a dar-me alguma paz, para que eu pudesse usar aquele intervalo a preparar-me para um combate contra ela.

Para facilitar minha vida, tomei algumas decisões desesperadas. Usei a máquina de cortar cabelos, deixando-os extremamente curtos, de modo a não precisar penteá-los. Também evitei barbear-me, não por relaxamento, mas por necessidade. Defendia-me, com aqueles paliativos, de todas as formas do uso de qualquer espelho da casa. Se fosse necessário, até tomar banho com as luzes apagadas, não ia constituir-se nenhum grande drama.

Mas nem tudo haveria de ser tão linear como eu pensara. As coberturas colocadas pela empregada apresentavam algumas falhas, como eu já devia ter desconfiado desde o início. As pequenas aberturas deixadas passaram a ser parte do meu martírio diário, pois tinha pouca coragem de aproximar-me dos espelhos, tampos de vidro ou das vidraças, distribuídos ao longo do apartamento, quando ia de um lado a outro.

Minha pior surpresa foi quando abri a porta do banheiro e vi que a protecção colocada sobre o espelho, que revestia meia parede, havia caído sobre a pia. Senti minha respiração acelerar e fui invadido por uma onda de pânico. 

Numa passada rápida de olhos, examinei-me a mim mesmo e vi que não apresentava um aspecto melhor, aparentando estar cada vez mais doentio. Acossado, drenado e sem energia, já não sabia o que fazer. Eu vinha definhando em velocidade deveras acelerada. Por sorte, minha mente ainda estava sóbria o suficiente, para perceber o grande erro que cometera, intempestivamente, mesmo que o reconhecimento não representasse nenhum alívio naquele momento.

Antes mesmo que eu recolocasse a cobertura sobre o meu reflexo, senti sua presença por perto e não fiquei surpreso ao vê-la recostada na esquadria da porta. Seu corpo nu, esguio e extremamente pálido, parecia fatigado e macilento. Seus cabelos negros, caindo em desalinho sobre o rosto - que escondia de mim, com a cabeça levemente abaixada - já não tinham o brilho de antes. Pareciam desmazelados, um tanto ensebados e sujos, como se ela tivesse perdido todo o cuidado com sua anteriormente bela aparência física. A mulher, dantes tão sensual, já não tinha o frescor e o encanto sem igual que apresentava quando a vi reflectida no elevador - o que de certa forma me surpreendeu - mas não por completo. 

Eu, sinceramente, não esperava que fosse desleixar-se de seu tão nobre aspecto físico… o mesmo aspecto que fez-me ficar tão fascinado por ela.

Aparentemente minha estratégia estava, de alguma forma, a funcionar, afinal. Embora eu não me sentisse mais forte, ela também não tinha por onde alimentar-se de energia, se não conseguisse aproximar-se o suficiente da fonte… 

Sua fúria, contudo, parecia haver aumentado, provavelmente por perder parte do completo controlo que ela tinha sobre mim. 

Aquela havia sido uma das poucas vezes em que me deixara olhá-la, por tempo suficiente de perceber que ela esboçou aquele sorriso sarcástico que eu conhecia. Com as duas mãos, puxou os cabelos um pouco para trás, de modo a deixar seus olhos bem à vista, fixando-os nos meus. Suas pupilas encolheram. Eu senti um arrepio percorrer-me o corpo todo e desviei o olhar, enquanto tentava, apressada e desajeitadamente, recolocar um lençol sobre a superfície reflectora. Tinha medo que ela se adiantasse e que eu ficasse encurralado outra vez...

Meus olhos procuraram, rapidamente, algo suficientemente sólido, que pudesse ser usado, em caso de emergência. O grande frasco de vidro sobre a mesa da pia, contendo chumaços de algodão, devia servir ao propósito. Se algo desse errado – ou sentisse que ela fosse atacar-me, já estava preparado para quebrar mais um espelho. Seria outra atitude desesperada, mas efectiva, pelo menos momentaneamente. 

Uma força, que de alguma forma controlava a minha vontade, fez-me tornar a observar a cena que se desenrolava dentro do espelho. A imagem do animal gravemente ferido me olhava ameaçadoramente, daquele mundo paralelo, que se apresentava numa estranha tela cinematográfica, disposta na parede do meu próprio banheiro. Sem mover-se, pois sabia ler-me muito bem, ela fez, então, questão de pronunciar a palavra… devagar e de modo a não deixar dúvida nenhuma sobre suas verdadeiras intenções…

- Vingança!
 
Uma sombra passou-me pelo semblante e ela sorriu ao perceber. Sua cartada era poderosa. Uma mão cheia… 

Aquela mulher sentia o cheiro do medo que atormentava-me a mente e fazia questão de deixar claro que sabia perfeitamente como jogar. Ela me conhecia muito bem. Para falar a verdade, até bem demais… 

Senti-me totalmente oprimido por sua presença envenenada. O pânico bloqueou-me o raciocínio e comandou meu cérebro imediatamente. Tomado por uma onda de terror e desespero, lancei o pesado frasco contra o espelho, com violência além do normal. O som do embate do vidro contra o vidro encheu-me os ouvidos, com uma explosão. Eu senti uma lufada de ar passar por mim. Tive a impressão de ouvir seus passos pela casa…

Antes mesmo de certificar-me que todos os cacos haviam caído, apaguei as luzes, rapidamente, fechei a porta do banheiro e tranquei-me no quarto. 

Uma brisa, causada pela porta a fechar-se, moveu a cortina que cobria a janela do quarto. Meu olhar fora atraído, quase magneticamente, pelo reflexo na brecha do vidro espelhado da janela. Aquela criatura horrenda estava lá, totalmente a postos e, apesar de bastante mirrada, parecia sentir-se mais poderosa e intimidadora que nunca – tal qual uma serpente pronta a dar um bote. Senti-me agrilhoado pela minha própria opção, tomada há um tempo atrás e que parecia naquele momento haver sido uma eternidade extremamente aflitiva. 

Ela soltou uma risadinha ameaçadora. Sabia que tinha um trunfo na manga… Enquanto me sentisse perseguido, mortificado e amedrontado, ela tinha uma chance contra mim.

Eu estava, definitivamente, à beira de um colapso… desesperado demais para sair daquela situação, com a devida coerência… Tinha certeza que estava tendo uma crise de pânico – um forte ataque de agorafobia – que me mantinha preso dentro de minha própria casa, já que o mundo lá fora era feito de metal e vidro reflector - onde eu jamais voltaria a sentir-me seguro outra vez. Sabia que se tentasse sair pela porta afora, seria atacado, com certeza, antes de chegar ao hall de entrada do prédio. 

Estava cada vez mais difícil pensar em um fim para aquele suplício mental – pelo menos naquele momento. Minha razão precisava, de todas as formas, trabalhar em alta velocidade, mas minha mente – já cansada e atormentada demais – não conseguia acompanhar…

Eu só consegui apressar-me a fechar bem as cortinas, de modo a proteger-me da superfície reflectora da janela. Ao assegurar que resguardava-me do reflexo e da força do olhar daquela criatura, um lampejo súbito acendeu uma pequena chama de esperança na minha alma já quase completamente admoestada. 

Dei-me conta que eu ainda poderia ter uma saída, se fosse rápido e esperto o suficiente. 

Eu esperava que ela não contasse com nenhuma surpresa da minha parte, nem tivesse tempo de penetrar no meu pensamento… pelo menos até eu dar cabo do desatinado plano, que nascia naquele momento, na minha mente atormentada. 

Fui até a sala de estar e abri as duas alas das cortinas que cobriam a grande janela. Ela prontamente apareceu ao fundo. Afastei-me o suficiente e, sem dar nenhum tempo para que percebesse minhas verdadeiras intenções, corri e joguei-me de cabeça e ombros contra a vidraça, em direcção ao grande vazio que havia entre o quinto andar e o chão lá em baixo. 

Ainda consegui ver a expressão de surpresa em seu rosto, reflectida nos grandes pedaços de vidro espelhado, que esfacelavam-se contra meu corpo. Pasma e sem ação, ela exprimia um inesperado assombro e um completo e impotente horror. 

Eu me libertava dela, finalmente, sem emitir um som, sem sentir qualquer traço de medo. Agora era eu quem sorria, vitorioso, vendo o piso de cimento gasto da calçada aproximar-se rapidamente de meus olhos. Mergulhara contra a morte certa e já me sentia aliviado… Ela perdia a guerra, afinal… 

Não sei se foi impressão minha ou não, mas pareceu-me ainda tê-la ouvido gritar, à distância, enquanto eu caía: “Mas eu sou feita de ti”… 

Uma forte e súbita pontada de dor cingiu-me o corpo e, então, tudo ficou escuro… Seguiu-se então, uma paz extraordinariamente silenciosa…

***

Um flash de luz muito brilhante atingiu-me o rosto. Meu primeiro pensamento foi que eu havia morrido e ido parar num mundo excepcionalmente iluminado e quase silencioso. Pisquei os olhos bem devagar. O tal mundo não era tão silencioso, afinal. Havia um bip intermitente que me incomodava. Minha visão começou a acostumar-se com o excesso de luz e pude mover um pouco a cabeça para o lado. Percebi então que havia sido apenas um raio de sol, que entrava por um espaço aberto entre as persianas e agora desenhava uma estreita faixa de luz contra a parede branca, na cabeceira de uma cama de tubos metálicos, também pintados de branco, onde eu estava deitado. 

Que lugar era aquele, afinal?

Eu estava confuso. Ao olhar à volta, percebi que não reconhecia aquele aposento onde me encontrava. Ao focar melhor minha visão sobre meu corpo, notei largas bandagens em volta do meu tórax, facto que me trouxe mais próximo da realidade. Quase automaticamente, passei a mão à cabeça e senti que boa parte dela também estava coberta de gaze. 

Ainda tentei sentar-me, mas uma não desconhecida e aguda dor no corpo impediu-me de fazê-lo, completamente. Senti uma gota de suor escorrer-me da fronte, pelo rosto, até pingar ao meu lado, no travesseiro. O esforço talvez houvesse sido demasiado... 

Foi quando vi que havia uma sonda introduzida na veia do meu braço, que o bip começou a tocar mais rapidamente…

Uma jovem mulher loira, vestida de branco, com olhos incrivelmente azuis, exibindo uma expressão adoravelmente doce no rosto, olhou-me com complacência e pediu-me que não me esforçasse demais.

- Fique calmo, disse-me ela. 

- Como eu vim parar aqui? Minha voz estava irreconhecível. Baixa e rouca, quase um sussurro, saindo com um grande esforço...

- O senhor é um homem de sorte. Esteve em coma por muitos meses. Ninguém pensava que ia sobreviver. Sofreu uma queda muito grave. Partiu muitos ossos, mas por algum milagre não foi a cabeça que bateu primeiro contra o chão e conseguiu-se recuperar o que se pode. Os médicos neurologistas vão gostar de saber que acordou. Acredito que o ortopedista também - acrescentou, com uma risadinha… o senhor sabe como aconteceu o acidente? Tem um processo de investigação correndo. A polícia veio várias vezes, mas acabaram desistindo. Já não veem. Um investigador pediu que o avisássemos se… e quando… voltasse a si.

- Investigador de polícia? Por quê?

- Não sei dizer ao certo. Deve ser por causa do tal processo. Eu sou somente uma enfermeira, o senhor sabe… Eles são óptimos para fazer muitas perguntas, mas nos informam muito pouco…

- Sei… Veio mais alguém?

- Só um agente de seguros. Que eu tenha conhecimento, mais ninguém. A esta altura, eles vão ter uma surpresa ao saber que voltou a si. 

-Oh, não, por favor. Não os chame…

- Sinto muito, senhor. São ordens estritas. Eu tenho que reportar. O seu caso deu muito o que falar por aqui. Não é possível fingir que nada mudou… é um milagre o senhor estar vivo e consciente novamente.

Fechei os olhos com força. Aquilo devia ser um pesadelo. A jovem enfermeira deve ter lido nas entrelinhas e disse que ia deixar-me descansar. No que pareceu-me cerca de alguns instantes depois, apenas, abri os olhos novamente e vi um homem de meia-idade e outro mais jovem conversando em voz baixa, ao lado da cama onde eu estava deitado, ainda sem poder mover-me propriamente. O efeito dos analgésicos devia ser forte, pois não tinha muita noção do tempo em que estive com os olhos cerrados. Pareciam minutos, mas poderiam ter sido muito mais…

- O senhor sabe como aconteceu o acidente? 

Déjà-vu. A mesma pergunta outra vez. Ou fala-se a mesma língua repetidamente por aqui, ou perdi completamente a noção de realidade. Será que minha mente está a pregar-me peças? 

O homem mais maduro iniciava a interlocução. Devia ser o tal investigador. Avaliei-o, calmamente e com cuidado. Percebi que estava trajando um blazer de tweed cinza e calças num tom mais escuro… grafite, provavelmente… mas na minha concepção a camisa deveria ser branca, não aquele tom esquisito de salmão. Deve ter sido sugestão da mulher, pensei. Vi uma grossa aliança no dedo anelar da mão esquerda. Provavelmente escolha dela também… As mulheres optam por comprar alianças grossas… pesadas… decerto para marcar bem a posse sobre os maridos, frente às outras… Como é que ainda penso nestas coisas, numa situação destas? Quase ri de mim mesmo.

- Não estou muito certo, disse eu com a voz estranha, que parecia vir da garganta de outra pessoa.

- Pense… Havia mais alguém no apartamento junto consigo? Alguém que o pudesse haver empurrado?

Eu tentei rir, mas minha cabeça doeu. Era isso, então? Tentativa de assassinato, de suicídio ou um terrível acidente… Por isso a polícia estava envolvida…

- Não havia ninguém comigo. Por que alguém iria querer me matar? Eu vivo sozinho e não tenho ninguém por mim. Esta suspeita é ridícula.
 
- O senhor tentou suicídio?

- Esta é mais ridícula ainda, investigador. Eu tenho uma vida apática e pouco colorida, mas não vejo razão para tentativa de dar cabo da única coisa que é minha, por direito. Não, eu não tentei matar-me, tampouco… Foi um acidente. Um infeliz acidente. Eu devo ter tropeçado e caído contra a janela. Não lembro bem…

- Eu não mencionei a queda contra a janela, senhor. Quer dizer que lembra-se de haver caído?

- Não consigo recordar direito. O que me vem à memória parece estar muito envolvido em uma espessa nuvem de dúvidas e incertezas – imagens desconexas, que não consigo juntar em algo coerente. Mas esta investigação não faz sentido. Arquivem isto… não há caso de polícia aqui… pelo amor de Deus… quando muito, foi um infeliz acidente.

- O senhor tem seguro de vida, mas não tem beneficiários. O valor do prémio é considerável…

Desta vez foi o homem mais moço que falou, com voz baixa. Devia ser o técnico da Seguradora.

- E onde isso nos leva? Se eu morresse, ninguém seria favorecido, não é mesmo? Mas eu estou vivo… ou não estou, afinal?

Eu estava ficando exaltado e irritado. O bip começou a ficar mais rápido. A enfermeira pediu que eles se apressassem para que eu pudesse descansar. Já havia tido muita agitação para o mesmo dia.

- Pelo visto não leva a lugar nenhum... mesmo….

O rapaz pareceu desapontado. Viu-se num beco sem saída…

Fechei os olhos. Eles desistiram, não muitos segundos depois, despachados pela jovem enfermeira que insistia que saíssem. Adormeci em seguida… um sono pesado, recheado de flashes estranhos de memórias desconexas, sob o pesado efeito dos medicamentos a gotejar, sem parar, nas minhas veias do braço já bastante perfuradas.

Passei uns tempos entre sonhos, pesadelos e uma sonolenta realidade. As semanas correram vagarosas naquela branca cama de hospital. Minhas visitas ficavam limitadas às enfermeiras e ortopedista, ao investigador de polícia e ao jovem agente de seguros. 

Estas foram espaçando cada vez mais e por fim, apenas a enfermeira de olhos azuis ainda me dispensava alguma atenção, além do ortopedista e, por fim, também de um fisioterapeuta.

Para meu alívio, havia sido esquecido, de vez, por meus não desejados visitantes usuais, que provavelmente resolveram arquivar o caso. 

Minha recuperação fora surpreendente, de acordo com os médicos, embora eu ainda sentisse algumas dores pelo corpo. Ser escravo dos analgésicos, apesar de aquilo começar a ser cada vez mais esporádico, não me preocupava. Ainda não havia podido levantar-me sem supervisão completa, mas esperava que não fosse demorar muito até voltar a ter uma vida razoavelmente normal. Quando o fiz e consegui dar uns passos, sozinho, meu andar já não era o mesmo, mas era um grande progresso – um verdadeiro milagre.

Deixei o hospital numa ensolarada manhã de sexta-feira. O apartamento estava quase do mesmo jeito que outrora. A janela destruída havia sido reposta e não havia sinais evidentes do acidente. A diarista havia estado lá, a limpar e preparar o ambiente, por minha solicitação. 

Voltar ao lar, todavia, causou-me uma certa estranheza. Estivera longe dali por muito tempo e aquilo era como recomeçar minha vida... 

Respirei fundo e percorri, vagarosa e silenciosamente, o corredor na direcção da suite. 

Já sentado na grande cama, no bem-vindo sossego do quarto, ponderei sobre minha sorte e concluí que era bom estar vivo, afinal de contas. Eu me sentia como um sobrevivente.

Estava um pouco cansado, pois não havia dormido suficientemente na noite anterior, ansioso que estava pelo dia que viria a seguir. Precisava urgente de uma boa, longa e confortável duche de água morna, coisa que não fazia, por minha inteira conta, há muito tempo. Aproveitei a ocasião e dirigi-me imediatamente ao banheiro.

Antes de entrar no chuveiro, porém, olhei-me no espelho - este, também reposto -, avaliando as grandes e profundas olheiras que me decoravam a abatida face. Não houve grande surpresa ao despir-me e observar meu corpo reflectido. O tempo de convalescença, depois de acordar do coma, preenchera um pouco meu aspecto, mas não a ponto de engordar. Apesar de bastante magro, ainda, eu estava fisicamente bem. Minha pele apresentava-se extremamente pálida, marcada por uma série de cicatrizes feitas por densos arranhões paralelos, impressas profundamente em boa parte do peito e do abdómen…

Desviei os olhos, um tanto consternado e entrei no duche. A água morna encheu-me de satisfação e fez-me relembrar de lances passados. Aquilo havia sido um descomunal - e terrivelmente longo - pesadelo. Felizmente acabara. Meu plano havia dado certo, apesar de não contar, na verdade, que eu fosse, afinal, sobreviver. Minha intenção primeira era matar-me a mim mesmo e livrar-me dela, de uma vez por todas…

Sequei-me, cuidadosamente. Ainda passei os dedos sobre as várias cicatrizes desenhadas na pele. As antigas marcaram-me a fase de loucura e desatino que me controlou por tempos. As novas registavam sinais de uma grande batalha, que estava, finalmente, vencida. Balancei a cabeça, com uma certa melancolia, pendurei a toalha no toalheiro e saí, calmamente. 

Ao cruzar a soleira do banheiro, pareceu-me ouvir uma risada… histérica… velha conhecida minha… 

Parei a meio caminho - meio desacreditando que realmente a ouvira, meio sentindo-me ainda desconfiado - … Um arrepio percorreu-me o corpo todo…

Não… deve ter sido somente impressão minha, mesmo… pensei, sem muita certeza de haver-me convencido e, sem virar-me, continuei a caminhar para o quarto, evitando - de todas as formas - voltar a olhar para qualquer espelho.

Ao sentar-me na cama, senti algo roçar-me suavemente a pele da face. Levantei os olhos e contemplei a imagem no espelho do quarto, pendurado na parede à minha frente.

Ao meu lado, sorrindo, havia uma jovem mulher loira, com olhos incrivelmente azuis, exibindo uma expressão adoravelmente doce no rosto e com o corpo estonteantemente sensual, coberta apenas por um finíssimo e transparente véu negro…



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Da Imagem No Espelho... (Parte 2)


Deitado no quarto, a olhar para o escuro à minha frente, eu tentava assimilar o que se passara, de modo a resolver, aceitar ou mesmo livrar-me daquela situação a que fora envolvido, mas não via como chegar a nenhuma saída. Eu estava aborrecido e intrigado com os estranhos incidentes da noite anterior. Meu peito ainda ardia bastante. Os músculos do pescoço estavam rijos e formigavam, numa sensação muitíssimo desconfortável, quase a queimar.

Passei a mão no rosto e senti, ainda a latejar, o calor da bofetada merecida que levei e aquilo me fez sentir vergonha, muita raiva e, por incrível que pudesse parecer, uma vontade de rir daquilo tudo, numa mistura de sentimentos que se contradiziam naquele momento.

Um pensamento bizarro passou-me pela mente e eu não cheguei a estranhar tê-lo deixado formar-se completamente. Estaria eu a gostar do inusitado encontro com aquela estranha mulher que, surgindo do nada, resolvera seduzir-me, saciar-me e, ao mesmo tempo, assustar-me com uma ameaça à minha liberdade de escolha?

‘Não. Não podia ser.’

Sacudi a cabeça, como se aquela atitude pudesse desfazer o pensamento amalucadamente conclusivo que acabara de ter.

‘Estava realmente esgotado. Devia ser isso’.

Ainda tentei organizar as ideias, procurar uma explicação, uma forma de enfrentar minha desvairada aparição, mas o cansaço venceu-me o propósito e acabei adormecendo em pouco tempo, sem que alguma resolução acendesse uma luz à qual pudesse me apegar.

Ao acordar, na manhã seguinte, se não fossem as marcas dos arranhões ainda a decorar a pele do meu peito e tórax, teria deixado o incidente passar em branco. Acreditava que os afazeres do dia ocupariam minha cabeça e em pouco tempo tudo seria esquecido. A realidade e a rotina quase me enganaram.

À noite, já recostado confortavelmente em grandes travesseiros, na cama king size, eu folheava uma revista, pois não tivera paciência para assistir TV e não conseguia concentrar-me suficientemente para ler algum livro. Estava praticamente preparado para dormir o sono dos justos. O ‘abat-jour’ sobre o criado mudo ainda estava aceso, mas as demais luzes do apartamento estavam apagadas e a música no computador devidamente desligada.

Por algum inexplicável motivo, meu olhar desviou-se para o espelho. A cena era, de uma maneira única, completamente fascinante. Como numa janela para outro mundo, eu via a mim próprio recostado na cama, mas não estava só. Uma mulher morena, bela como somente ela podia ser, entrava em cena e aproximava-se, aconchegando-se ao meu lado. Vi-a abrir um sorriso, naquela sua maneira encantadora e, achegando-se mais, beijar-me a face. Seu beijo era suave como um leve sopro sobre a minha pele. Não escondi o prazer que senti, com um baixo gemido e fechei os olhos, por um momento.

Ela, então, tomou as rédeas do meu controlo, meu desejo e minha vontade. Percebia que eu gostava do que me fazia, mesmo que eu o quisesse negar. O espelho dava-lhe vida e minha aceitação estimulava-lhe a ousadia. Ela foi paciente, atrevida e uma verdadeira mestra na arte da sedução... até além do que eu podia esperar.

Admiti secretamente que aquela novidade me atraía e ela aproveitou-se da nem-tão-pequena brecha que abria em minha sanidade. Parecia ler minha mente com precisão e sua arte garantia um crescendo de sensações no meu corpo.

Eu sabia, com certeza, que aquela aparição estranha, que me visitava e, sem pedir permissão, tomava posse do meu prazer e da minha vontade, desmantelando - entretanto -completamente a minha coerência, fazia-me um certo bem e trazia-me um invulgar conforto.

Não sabia, entretanto, se era a aventura, o gosto pelo desconhecido, o inusitado da situação ou a loucura que se apossava de mim, que a fazia sentir-se bem-vinda para invadir minha noite, uma vez mais e para bagunçar, completamente, minha parca, mas ainda resguardada, saúde mental.

Eu caía num abismo perigosamente sombrio, voluntariamente. Aquela demência parecia competir bravamente contra minha razão, levando já uma vantagem de mais de um corpo inteiro e tomava conta, a largos passos, da minha tão preservada sobriedade…

A partir dali, deixei-me levar pelas visitas nocturnas da mulher morena. Passei a ter duas vidas separadas. Uma no silêncio do apartamento, em que apreciava a dilecta companhia de minha linda, trigueira e sensual abantesma e outra, da porta para fora, quando enfrentava um mundo real, sem muita graça e sem coloração definida, além de uma tonalidade levemente desbotada e monocromática de luz e sombra sépia... e pelo meu entendimento, pouca luz e muita sombra…

Eu já havia vivido sozinho por demasiado tempo, com minhas – não poucas - manias e neuras, algumas vezes criando novas e outras aferrando-me às antigas, transformando minha tranquila vida de outrora num exercício de puro distúrbio obsessivo compulsivo. Havia experimentado, até então, uma vida comum e sem grandes emoções. Minha rotina era absolutamente previsível. Por trás daquela aparente insipidez, entretanto, tinha um extremo cuidado com meu corpo e havia assumido atitudes cada dia mais hedonistas, narcisistas e egocêntricas, que alguma vez havia tido. Do lado de fora, o que fazia era vestir uma couraça protectora, afastando influências não desejadas à minha existência, sabendo que era o único a prezar pelo meu próprio bem e pela minha privacidade.

Dei-me conta que não tinha com quem dividisse minhas preocupações, caso algo ruim me acontecesse, mas também não tinha com quem celebrar minhas vitórias e alegrias, se eu porventura as tivesse.

A concha onde me refugiava era bastante sólida e resistente e, embora não fosse desmedida, tinha um enorme espelho pendurado numa parede vazia, numa ampla sala de estar, onde me examinava com cuidado e com olhos excessivamente perfeccionistas.

O espelho, todavia, tinha seu próprio segredo… vivo e vívido demais para ser ignorado. Era como um universo separado, uma outra dimensão, um filme que desenrolava-se lá dentro, no qual eu era um dos dois - únicos - personagens. Da minha parte, eu, com certeza, não estava determinado a colocar rédeas naquele mundo secreto de prazeres.

Passadas algumas semanas daquela loucura, minha obsessão estava cada vez mais acentuada e eu deixava os dias passarem quase em branco, rotineira e desinteressadamente. Recebi uma reprimenda do chefe pela pouca consistência e capricho no trabalho que fazia e pela falta de comprometimento que eu passara a ter nos últimos tempos. Fingi ficar aborrecido com aquilo e prometi ser mais cuidadoso.

Mentia para ele e, para mim, fazia de conta que acreditava no que dizia, mas resolvi tomar mais cuidado, para não perder o emprego, que era o único que eu tinha e que ainda sustentava minha vidinha insossa.

Minhas noites, entretanto, passaram a ser cada vez mais quentes e já não havia mais censura para o meu desejo, que assumia proporções nunca dantes atingidas. Eu me deixava levar pela sensualidade impudente de uma personagem que tomava cada vez mais tempo e espaço dentro da minha vida. Algumas vezes, nem me preocupava em alimentar-me direito, pela urgência que sentia em buscar aquele prazer libertino. Estava, irremediável e decididamente, viciado….

Certo dia, como passara a ser rotina aos funcionários de mais de quarenta anos de idade, fui chamado ao consultório do médico que atendia a empresa. Eu sabia que aquele tipo de consultas não levava à muita coisa, pelo tipo de Plano de Saúde que tinha. Fui tranquilo ao apontamento marcado para o final do expediente. Ao chamar-me, o médico levantou uma sobrancelha, como quem desconfia de algo. Não me intimidei e entrei no consultório, respondi às perguntas regulares, sobrevivi bem aos exames habituais e saí com uma lista de outros a fazer, para apresentar os resultados uma semana depois.

Passado aquele tempo e já com os papéis em mãos, voltei a sentar-me em frente ao homem vestido de branco, que trazia um auscultador sempre pendurado no pescoço, como se fosse uma medalha de honra ao mérito. Ele examinou cuidadosamente os documentos mais que uma vez. Levantando o sobrolho - um tique que eu aprendera a perceber, como sinal de desaprovação - ele pigarreou e disse-me que, sinceramente, esperava um resultado diferente.

- Diferente em quê?

Minha pergunta fora ingénua. Ele deu um longo suspiro.

- Esse seu aspecto físico actual pareceu-me esconder um grave problema a nível glandular ou algo como diabetes, mas os resultados estão perfeitamente normais. Eu estou preocupado…

- Não percebi por que, doutor…

- O senhor está muito magro e pálido. Parece-me bastante adoentado. Vou solicitar uma bateria mais completa…

Eu não o deixei acabar a frase. As suspeitas eram absurdas e somente eu sabia a verdadeira razão. Até então eu não havia me dado conta do que o médico chamara-me à atenção. Muito pálido e magro… logo eu, que sempre fui tão saudável... Do que ele suspeitava, afinal?

- Eu nunca estive melhor! Sinto-me rejuvenescido e bastante activo fisicamente. Nem me questione como me sinto sexualmente, doutor… Nunca estive melhor!

Ele olhou-me meio incrédulo. Acomodando-se melhor na cadeira, colocou as mãos cruzadas sobre a mesa e falou baixo, mas firmemente.

- Não é o que me parece, nem o que seu chefe me disse. O seu trabalho está aquém do esperado e sua apatia cada vez maior. Foi o que me foi pedido que verificasse, pelo menos a nível físico. Se não há um problema físico, existe algo que o incomoda psicologicamente?

E agora? Digo algo... ou mantenho a farsa? Se disser a verdade, ele vai mandar-me ao manicómio, com toda a certeza…

- É somente uma fase, doutor. O stress do trabalho tem-me afectado… e o calor não ajuda, tampouco.

Menti descaradamente. Olhei-o sério e com firmeza, como um grande actor. Queria que ele desistisse, mas o sobrolho continuava levantado. Resolvi que precisava dar uma cartada decisiva.

- Vamos fazer um acordo. Eu prometo que vou alimentar-me melhor, tomar umas vitaminas, andar ao sol e caprichar no trabalho. Em um mês, volto aqui e conversamos sobre minha saúde. Que tal?

Ele desistiu. Colocando as duas mãos abertas sobre a mesa, disse-me, com um tom impaciente o suficiente para me deixar em alerta:

- Feito! Mas não pense que isso vai passar em branco. Vou receitar umas vitaminas e um fortificante…

- Remédio para crianças, doutor?

Ele não sorriu da minha ironia. Apenas rabiscou umas garatujas no bloco próprio, entregou-me a prescrição e levantou-se, adiantando a mão para despedir-se. O apontamento estava terminado, para meu alívio. Saí o mais rápido que pude, sem estender-me mais em qualquer tentativa de conversa.

O consultório ficava no décimo segundo andar. Ao entrar no elevador, olhei-me com atenção no espelho do mesmo. Incrível como a maioria dos elevadores modernos tem um espelho, pelo menos, como parede…

Pela primeira vez em algum tempo e por um momento consideravelmente longo, prestei atenção ao que via em mim. Perguntei-me, silenciosamente, há quanto tempo olhava sem realmente ver… O médico tinha razão. Eu estava pálido e muito emagrecido, parecendo adoentado. Não foi à toa que ele mandou-me fazer tantos exames. Aquele homem que eu via em mim, anteriormente, quando tinha uma preocupação extrema com o corpo, havia-se transformado em uma descorada imagem, com aparência nada saudável. Eu estava drenado de energia, sem o viço de outrora nos cabelos e na pele e apresentando profundas olheiras escuras, para meu próprio assombro…

Minha avaliação e surpresa foram interrompidas pela chegada ao andar térreo, quando a porta abriu-se e algumas pessoas me olharam, esperando que eu saísse, para que pudessem entrar. Ao caminhar para fora, pareceu-me haver ouvido uma risada feminina conhecida…

Não foi preciso uma análise crítica muito detalhada, para dar-me conta que minha vitalidade só podia ser drenada pelas tais visitas nocturnas. Enquanto eu parecia cada vez mais debilitado, ela parecia mais deslumbrante cada vez que a via. Alimentava-se do meu vigor, com certeza – uma energia que eu cedia-lhe gratuita e voluntariamente e, ainda, com o maior prazer.

Mas meu aspecto visual incomodara-me, não somente pelo acordo que fizera com o médico, mas pelo susto que levara ao enxergar-me, como deveria, depois de tanto tempo. Era como se uma venda houvesse sido retirada de meus olhos. Eu reconhecia, naquela hora, que precisava tomar uma atitude séria… e tinha que ser urgentemente.

Naquela mesma noite alguma coisa mudou. Não senti o prazer de sempre em nosso encontro. Pelo espelho pendurado na parede do quarto, vi que ela estava estonteante, linda, viçosa e ousada, mas eu apenas reagi fisicamente – preocupado que ainda estava pelo abrir de olhos que havia tido logo após a consulta médica.

Ela percebeu a diferença no meu comportamento e perguntou-me se havia algo errado. Disse-lhe apenas que estava muito cansado. Adormeci, pesadamente, sem dar-lhe muito mais conta do que se passava.

Sonhei que alimentava, com meu próprio sangue, uma fonte de energia ligada ao corpo de um monstro em forma de mulher. Parecia um filme de horror de terceira categoria, em preto e branco, numa abominável e estranha versão de um Frankenstein feminino. O sonho incomodou-me a noite inteira, especialmente, quando mostrou-me que a tal fonte de energia secava rapidamente, ao alimentar a pujança do monstro, que levantava-se da mesa de experiências e atacava seu criador enfraquecido…

Foi quando ouvi as gargalhadas histéricas dela ecoarem nas paredes da casa, que acordei em alvoroço, suando muito. Confesso, sem vergonha de admiti-lo, que senti medo.

Eu, particularmente, não acredito no poder destrutivo nem torturante dos pesadelos. Todavia, um homem tem que saber perceber seus próprios mecanismos mentais de comunicação subconsciente e os sonhos fazem parte destes. Se era um reflexo do meu desespero, desejo de atenção ou uma latente psicose, eu não tinha certeza, mas aquilo começava a afectar-me o equilíbrio e o controlo.

Tentei voltar a dormir, mas demorei a pegar no sono outra vez, numa madrugada que pareceu interminável e cheia de reflexões preocupantes sobre o meu futuro. Ao desvendar a mensagem, quase por acaso, percebi que aquela havia sido bastante clara…

Na manhã seguinte, ao ficar de frente ao espelho para barbear-me, avaliando meu aspecto cada vez mais decrépito, vi que ela aproximou-se e recostou a cabeça sobre meu ombro, olhando-me com seus olhos de triunfo e desejo. Franzi a testa, mostrando uma certa irritação, ainda pensando no sonho que tivera, mas ela disse, com voz baixa e melosa, muito próxima de meu ouvido:

- Vamos lá. Não fique assim. Nós nos damos tão bem… Tu sabes quem eu sou. Posso não ter um corpo fisicamente palpável e ser somente uma imagem no espelho, mas tu sabes que meu único prazer é te dar prazer… Tu me vês como tu queres. Sou o mais real reflexo de um desejo teu. Eu sou parte de ti…aquela mais obscura e secreta que há… Eu sou totalmente feita de ti… e para ti...

A sintaxe engraçada me fez rir e ela aproveitou-se da deixa.

Passou-me os lábios no pescoço, provocante. Fechei os olhos, sentindo um conhecido calafrio percorrer-me a pele. Ela me controlava e sabia perfeitamente como fazê-lo. Passou o braço pela minha cintura e puxou-me de encontro a ela. Beijou-me com volúpia. Meu corpo respondeu imediatamente ao contacto com o dela. Ela me conduziu ao chuveiro, onde usou todos os seus talentos de sedução, deixando-me quase sem fôlego e sem determinação para sair de onde estávamos. Exercia novamente uma cruel e lúbrica soberania sobre minha vontade e minhas reacções – todas elas, tanto as voluntárias quanto as involuntárias.

Fechei os olhos e passei apenas a usufruir das sensações que meu corpo enviava ao cérebro que, por sua vez, passava a um estranho estado de consciência, entre delírio e realidade e que culminava em um prazer espasmódico e fisicamente descontrolado.

Atrasei-me, obviamente, para o trabalho, o que colocou-me em situação bastante delicada novamente. Ao invés de uma de suas costumeiras broncas, o chefe perguntou-me o que estava acontecendo comigo, dizendo-se preocupado com a conversa que tivera com o médico a meu respeito.

‘Aquele dedo-duro’, pensei comigo mesmo. Aleguei-lhe, então, que precisava de descanso e que seria adequado tirar uns dias de folga. Sob o pretexto que precisava mesmo cuidar da saúde, pedi férias ao meu superior hierárquico. Ele concordou que era a melhor solução por ora.

Na visita daquela noite, eu disse-lhe que não a queria. Menti-lhe que não estava disposto. Estava cansado, preocupado e um tanto irritado. Lutei contra meus próprios desejos e minha total ausência de controlo. Senti que suas mãos estavam-se bastante frias, enquanto brincavam em meu corpo. Embora estivesse decidido a resistir… pelo menos o máximo que eu pudesse ou conseguisse, meu corpo traiu-me, com uma clara evidência a olhos... e todo o resto... nus.

Aquela mulher não era nada tola e sabia quando tinha uma disputa vencida. Com as pernas abertas e ajoelhando-se à minha volta, alojou-se sobre meu corpo, provocantemente. Pelo reflexo, vi sua belíssima face transmutar-se com uma expressão de puro deboche, que exibiu, por sentir-se senhora absoluta da ocasião. Então, deu uma gargalhada estranhamente insana.

Foi aquele toque de crueldade pouco subtil que me fez comportar contrariamente às reacções evidentes de meu corpo. A batalha não estava perdida… ainda…

Daquela vez, ao invés de sentir prazer, eu senti um misto de pânico e repulsa… e ela notou imediatamente, quando evitei sua tentativa de beijo.

Quando sentiu que eu manifestara uma pouco disfarçada ojeriza pela sua presença, seu toque frio e sua estranha performance, sua cólera aflorou e ela transformou-se num animal ferido e portanto, fustigado e perigoso. Ainda visualizei, pela imagem no espelho, a mulher levantar a mão direita, com suas unhas afiadas em riste…

Ao vê-la preparar-se para atacar-me, saltei da cama e, com um gesto rápido e ao mesmo tempo desesperado, passei a mão no ‘abat-jour’ ainda aceso e joguei-o contra o espelho. O candeeiro soltou-se da tomada,  atingiu e partiu o alvo em muitas dezenas de pedaços. O som do vidro a espatifar-se contra o piso do quarto não me deteve. Instintivamente, mesmo envolto em quase completa escuridão, corri para o único cómodo onde não havia espelhos na casa: a cozinha.

Ofegante e ainda sem acender a luz, fiquei a ouvir, atento e com os nervos à flor da pele, os estranhos sons na casa.

Outra gargalhada histérica ecoou em alto e bom som pelas paredes. Passos, sons de unhas a arranhar o vidro, respiração arquejante, risadinhas intimidadoras… a casa parecia ter ganho vida contra mim.

Empurrei a porta da cozinha e tranquei-me lá dentro. Ela deu um grito esquisito e então tudo ficou em silêncio… um silêncio torturante e ameaçador, ao mesmo tempo.

Acocorado a um canto, alojei-me no escuro aposento - atormentado e assustado demais que estava, para sair dali. Meu cansaço, entretanto, abria brechas em minha vigília, de vez em quando e eu cochilava, para em seguida acordar-me em sobressalto, com a impressão de estar sendo atacado. Esperava que o amanhecer trouxesse um pouco mais de segurança, de modo que pudesse sair da minha reclusa cela.

Eu estava sitiado em meu próprio território – minha valiosa zona de conforto – ou o que meu apartamento havia sido até então…

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Da Imagem No Espelho (Parte 1)


Parado no hall, em frente à porta dupla de metal cinzento, eu tinha os pensamentos tão longe quanto pudessem estar, enquanto acompanhava distraidamente, com os olhos, o display a mostrar a contagem regressiva dos andares por onde o elevador passava.

Em dias normais evitava usar aquela caixa, que eu considerava minúscula, fria e claustrofóbica, puxada apenas por alguns cabos de aço, num sombrio fosso rectangular, para subir até o escritório em que trabalhava. Costumava subir os quatro andares a pé, para garantir o mínimo de exercício diário, além de me sentir bem mais à vontade ao utilizar as escadas.

Os últimos dias vinham transcorrendo extremamente corridos no escritório e eu já demonstrava visíveis sinais de cansaço. Começara a reconhecer que estava à beira de um colapso físico e mental, quando os sinais de uma conhecida enxaqueca começaram a se manifestar. Não por preguiça, mas por conveniência, decidira, desta vez, usar o meio mais fácil, apesar de sentir-me bastante inseguro e desconfortável dentro dele.

Com um som característico, a porta abriu-se à minha frente. A parede do fundo, oposta à entrada do elevador era coberta por um espelho que ia do teto à meia parede, em oposição ao restante do compartimento, de aço inoxidável escovado - moderno, fácil de limpar, mas completamente impessoal.

Minha primeira reacção, antes de entrar, foi de olhar ao espelho, instintivamente, como se verificasse se estava apresentável. Mas, para minha surpresa, outra visão chamou-me a atenção, quando meus olhos fixaram-se na imagem reflectida.

Parada em pé, por trás de mim, havia uma mulher morena, trajando um vestido negro muito justo ao corpo bem formado. Os cabelos negros, presos em um coque ao alto da cabeça, por dois palitos laqueados em preto, decorados com pequenos detalhes coloridos, salpicados em branco, vermelho e dourado, em estilo japonês, fulgiam à luz que entrava pela janela acima da parede do hall de entrada.

Até aquele momento, talvez por estar absorvido demais em meu pequeno mundo e em meus próprios problemas, não havia sequer tomado consciência de que não estava só. Com um passar rápido de olhos avaliei a imagem reflectida ante meus olhos. A mulher era bela e extremamente sensual à primeira vista. Tentei não fixar o olhar, por tempo demasiado longo, para não parecer pouco polido, mas notei que ela me observava com atenção, como se eu fosse um produto exposto numa vitrina. O tecido do vestido acentuava suas curvas e um generoso decote atraía meu olhar, magneticamente e sem decoro nenhum. Apesar daquela análise preliminar acontecer em nada mais que umas poucas fracções de segundos, o tempo registado em minha mente pareceu-me longo suficiente para captar aquela série de pequenos detalhes. Senti-me como naquelas cenas em câmara lenta dos filmes românticos de décadas passadas. Adiantei-me e entrei, sem hesitar, como já era costume, esperando cumprimentá-la assim que estivéssemos a sós.

A porta, porém, logo fechou-se às minhas costas, deixando-me um pouco decepcionado por ter ficado sozinho, já que ela não fez menção de entrar. Talvez o tempo em que fiquei hesitante em entrar tenha sido longo demais, afinal. De uma coisa eu estava absolutamente certo: nunca antes a havia visto por ali, pois uma mulher daquelas não era de passar despercebida. Num gesto de gentileza estudada e com uma pontinha de esperança a cobrir minha decepção, apertei o botão para abrir a porta, pois achei que a mesma fechara rapidamente demais e a deixara sem tempo para entrar.

Ao abrir-se vi que já não havia mais ninguém no hall, onde antes ela estivera. Comecei a desconfiar que o tempo estava contra mim.

Um homem de meia-idade, trajando um distinto e impecável blazer em tweed cinza escuro sobre as calças em tecido liso, no mesmo tom formal, entrou às pressas, enquanto eu escondia meu desapontamento, como um adolescente contrariado, olhando para minhas próprias mãos.

Desci no quarto andar, onde fui logo engolido pelo stress do quotidiano, pois antes de chegar ao meu posto de trabalho, meu chefe já me aguardava com uma série de planilhas a revisar, com uma sequência adicional de colunas de cálculo estatístico. O dia correu normalmente e sem grandes surpresas, no escritório de Contabilidade, onde o trabalho era basicamente previsível e repetitivo, como os minutos que somam-se para completar as horas. Uma rotina bicromática e monótona, como se fosse uma frase sem graça, escrita a giz branco num quadro negro na parede de uma escola de subúrbio.

O incidente do elevador fora totalmente esquecido, em meio aos números e fórmulas das planilhas de cálculos, no decorrer das longas e extenuantes horas do expediente no escritório. O único acontecimento diferente naquele dia fora um breve telefonema de uma amiga, convidando-me a sair e tomar um café, logo depois de sair do trabalho.




A pequena mulher de cabelos loiros, em corte curto, cuidadosa e propositadamente desalinhado, sentada a fumar tranquila e confortavelmente à minha frente, na esplanada do Café, não muito longe de onde trabalhava, sorria naturalmente enquanto contava acontecimentos corriqueiros de seu dia. Seus inquisidores olhos, de um tom interessante de azul-cobalto, pousavam sobre mim de uma maneira divertida, com um interesse dissimulado, que eu fingia não perceber.

Éramos algo próximo a bons parceiros, que desfrutávamos de uma intimidade natural. Nos bons tempos, costumávamos ir ao cinema, teatro, jantar juntos. Nossos encontros eram mais ou menos frequentes, mas careciam do calor de um relacionamento feito para aprofundar-se em alguma raia de romance – mais por minha culpa que dela. Fazíamos boa companhia um ao outro - na pior das hipóteses – o que nos bastava naquele momento... ou, pelo menos, era o que eu considerava.

O agradável aroma do café espresso, denso e forte, preenchia o ar, enquanto discorríamos em um pouco de conversa fútil, comum e sem qualquer profundidade, contando nossos problemas do dia-a-dia, naquele nosso breve encontro de fim de tarde de Outono. Marcamos outro contacto, para uma próxima ocasião e nos despedimos, como de costume e sem demonstração de excessivo calor. Eu voltava à realidade. Preocupei-me com o pão e o café com leite “nosso de cada dia” e fui-me pela vida afora, de volta à casa e à proteção reclusa da minha pequena concha.



Sonhos sempre constituíram materiais de interesse para mim, pois os considerava, na melhor vertente Jungiana, que traziam importantes mensagens do meu subconsciente. Por um bom tempo estudei-os, lendo as teorias dos meus autores favoritos, em vários livros especializados.

Alguns dias haviam passado e, numa certa madrugada, tive a sensação que algo tocou-me, de leve, a pele do pescoço. Acordei meio em sobressalto, crendo ter sido tocado por algum insecto, já que não havia outra criatura viva no apartamento. Acendi as luzes e procurei, em vão, a fonte do incómodo. ‘Devo ter sonhado’, pensei, ao voltar para a cama, adormecendo logo em seguida. Se fora um sonho, não consegui lembrar-me de muitos detalhes do mesmo mais tarde.

Algumas semanas depois, sentindo já o frio de inverno e devidamente aconchegados do lado de dentro do Café onde costumávamos nos encontrar, decidimos ir à casa, preparar algo mais substancioso para comer. Uma garrafa de vinho tinto foi aberta, para bebericarmos enquanto eu preparava uma pizza, a solução mais rápida, aceite de comum acordo, naquele momento.

Por algum motivo inexplicável, deixei-me levar por uma demonstração de afecto que recebi, enquanto aguardávamos a refeição ficar devidamente assada. Talvez o álcool tenha contribuído para baixar minhas guardas e a ocasião fora devidamente aproveitada pela mulher de olhos azuis e face francamente harmoniosa, parada de pé ao meu lado. Um olhar lânguido dirigido a mim, seguido por um sorriso meio matreiro em resposta, de minha parte, foram suficientes...

Ela aproximou-se com cautela estudada, cheirou-me a região do pescoço e enlaçou-me o corpo com delicadeza. Movi a cabeça para trás, tocando a dela, de leve, quase de brincadeira e virei-me de frente, devagar. Um segundo depois estávamos a nos olhar no fundo dos olhos, sem dizer nada, mas sentindo que era inevitável o que iria se seguir. O beijo foi morno, suave e sem pressa. Senti meu corpo reagir ao leve toque dos meus lábios nos dela, aumentando a pulsação e a temperatura da pele.

O apito intermitente e quase desesperado do forno, bem na hora em que minhas mãos puxavam o corpo miúdo, quase frágil, de encontro ao meu, interrompeu o curso dos acontecimentos e quebrou um pouco do encanto do ensejo. O jantar estava pronto. Nossos apetites confundiam-se com nossos desejos de outros sentidos, mas o aroma do queijo derretido, gratinado, venceu a batalha, que mal começara.

Mais tarde, sob o efeito desinibidor de mais de uma garrafa inteira de vinho tinto, ficamos abraçados a ouvir música, enrolados num cobertor sobre o sofá da sala. Não foi preciso muito para nos deixarmos levar, como em um barco à deriva, no balanço das ondas da sedução. A face delicada, os lábios rosados, os profundos e grandes olhos azuis, fixos nos meus e o corpo bem proporcionado, iniciaram um processo que não pode ser interrompido, antes de devidamente concluído.

Depois que a nau já estava ancorada em porto seguro, fechei os olhos e respirei fundo, sentindo-me satisfeito com o que tinha naquele momento. Com a cabeça recostada no meu peito e envolta pelos meus braços, a pequena mulher aconchegou-se, passou seu delicado braço pelo meu corpo e adormeceu em seguida. Eu deixara-me levar pela ocasião, impulsionado pelo néctar de Baco e pelo calor sensual do momento. Agora a leve embriaguez e a música suave a tocar, ainda, embalavam-me ao sono, num relaxamento confortavelmente profundo… afundando no sofá, como um corpo que cai no vazio.

Pouquíssimo tempo depois senti que minha face fora tocada por alguma coisa muito suave. Ao passar a mão sobre a pele, não distingui nada que me pudesse dar aquela sensação. Pensando haver adormecido e sonhado, fechei os olhos novamente, confortado e relaxado. Naquele momento eu quase acreditava que podia deixar a relação evoluir a um passo adiante. A mesma estranha e suave sensação a me roçar a face me perturbou, desta vez. Instintivamente passei a mão sobre o rosto, sem tocar em nada, além de minha própria pele.

Intrigado, abri os olhos e, quase por acaso, olhei para o espelho na parede. Sentada acima de nós, sobre o encosto do sofá, sorrindo provocadoramente para mim, havia uma mulher morena. Ela aproximou-se e beijou-me a face ligeiramente. Sua cabeça estava encoberta por um véu negro, muito fino e leve, quase transparente, deixando suficientemente à mostra todos os atributos de sua atraente beleza. Examinei o espaço à minha volta, para certificar-me do que vira, mas não havia nada. Pensei haver delirado. Ao olhar de volta para o espelho, entretanto, percebi que o enredo parecia ser outro, completamente diferente, onde eu a via novamente achegar-se e beijar-me a face, docemente, como se quisesse certificar-se que eu compreendia o que acontecia. A sensação era incrivelmente confortante, delicada, morna e, por incrível que pareça, muito bem-vinda.

A face semi-escondida pelo finíssimo véu negro pareceu-me encantadora, apesar de ter-me sido revelada apenas no reflexo do espelho na parede da sala. Ela então levantou a cobertura da cabeça, com um gesto sensualmente provocante, sem tirar os olhos de mim, revelando de maneira segura, sua face perfeita.

Era uma jovem mulher de lábios sensualmente carnudos e pele morena impecavelmente livre de quaisquer defeitos, com luzentes cabelos negros, lisos e presos em um coque à japonesa, no alto da cabeça, por duas hastes em forma de ‘chopsticks’ negros, decorados com uma delicada sequência abstracta de cores contrastantes, sobre os delgados palitos pintados de um cintilante esmalte escuro.

Desvencilhei-me, com cuidado, da mulher que ainda dormia. Levantei-me, ainda meio incrédulo, ante o surrealismo daquela situação e fui até o espelho, quase que numa espécie de transe, sem tirar os olhos do filme que via passar-se lá dentro.

A mulher morena levantou-se de onde estava e, sorrindo, veio em minha direcção. Ao se aproximar, encostou o corpo morno por trás de mim e passou os braços em volta do meu corpo, enquanto beijava-me o rosto novamente.

Ao meu ouvido, sussurrou:

- Gostas?

Eu suspirei, quase num esforço a resistir e gemi baixinho. Ela passou as delicadas mãos na região do meu peito, acarinhando-me sensualmente. Meu corpo reagiu momentaneamente… Um arrepio me desceu pela espinha. Ela deu uma risadinha e afastou-se um pouco.

Com os olhos ainda fixos no seu rosto perfeito, reflectido à minha frente, foi somente então que reconheci a mulher que havia visto de relance no espelho do elevador semanas atrás. Ela leu o reconhecimento em meus olhos e abriu um largo sorriso, com dentes perfeitos e brancos.

Vi que ela voltou ao sofá, calma e provocantemente. Pousou os olhos em mim, passou os braços em volta do pescoço da mulher que estava ainda deitada a dormitar, sufocando-a devagar e firmemente, fazendo-a engasgar, sentindo falta de ar e arregalando os olhos, sem compreender exactamente o que se passava.

Aflito com o que vi acontecendo, corri para tentar impedir que ela sucedesse em seu plano estranhamente mal-intencionado, mas não consegui tocar o corpo etéreo e invisível da mulher morena, agarrando o ar ao invés de qualquer presença física. Ela riu… uma gargalhada que começara quase normal, mas que inesperadamente tornou-se insana e quase histérica… e, então, falou pausadamente, para ser bem ouvida e deixar claro que tipo de intenções tinha.

- Tu és meu… só meu!!!

Uma sombra de apreensão estampou-se em meu rosto e eu gritei-lhe que parasse.

- Antes, prometa que vais ser só meu… Prometa!

Ela expunha um desequilíbrio que me preocupava, alternado com seu toque provocante de sedução. No tom estranho de sua voz, ela mostrava, além de uma certa demência, também o que era capaz de fazer. Eu via a vida de minha amiga por um fio ante meus olhos, agredida por uma algoz invisível e intocável, à qual eu tinha  que impedir,de alguma forma, que fosse além das medidas, antes que fosse tarde demais.

Olhando de volta ao espelho para tentar perceber a situação por completo, mesmo com muito pouco controlo sobre ela, cedi. 

- Ok. Eu prometo! Eu prometo, mas deixe-a em paz... pelo amor de Deus!

Ela percebeu uma certa impaciência, misturada com alguma preocupação, na minha forma de falar. Então, apertou um pouco mais, até que sentiu a mulher desfalecer e meu desespero manifestar-se em lágrimas de impotência ante aquela situação bizarra. Libertou, então, sua vítima e com seu corpo delgado e sua face extremamente bela, mas com uma expressão de puro e assumido deboche, aproximou-se de minha face e disse, baixinho, com a voz arrastada, mas suficientemente nítida:

- Tens que te convencer que tu és meu… de mais ninguém. Nunca te esqueças disso.

A mensagem havia sido absoluta e perigosamente directa e clara.

Chamei a emergência imediatamente. Quando os paramédicos chegaram, a pobre mulher já estava voltando a si, sem compreender o que havia acontecido. Não havia marcas em seu pescoço ou no corpo, para meu alívio. Aquilo parecia uma perigosa brincadeira em que eu me metera, às cegas.

Os exames preliminares não detectaram nada que pudesse ter ocasionado o desmaio. Diagnosticaram uma provável queda brusca de pressão e solicitaram observação, uma consulta ao especialista e uma bateria de exames. Ela me olhava incrédula, sem saber o que fazer e sem saber o que dizer.

Eu estava lívido, triste e quase desesperado, temendo que ela me fizesse alguma pergunta que eu não queria nem poderia responder. No reflexo do vidro da porta eu via a face morena, cujos olhos me vigiavam atentamente, fiscalizando meus movimentos e tudo que eu pudesse dizer ou fazer. Eu estava encurralado. Desviei o olhar, envergonhado.

- É melhor descansar. Eu te levo para casa. 



À noite, sozinho no quarto, senti algo tocar-me a pele. Acendi as luzes, mas não via nada. Meio desnorteado pelo cansaço e sono, eu me perguntei: sonhei ou estarei enlouquecendo?

Pelo espelho na parede via que minha opressora se sentava sobre meu corpo, tomando posse do que não era seu por direito e contorcendo-se de prazer, provocadora, ante meus olhos quase cépticos. Ela estava mais ousada, agindo como se tivesse obtido uma vitória. Eu tinha que reconhecer que seu corpo, coberto apenas pelo véu negro e transparente que agora trazia, era belíssimo e sensual – desejavelmente perfeito para os meus padrões. A voz era firme e atraentemente sensual, apresentando um matiz quase rouco e grave, sem ser, de forma alguma, masculinizada. Quase num sussurro, ela disse-me:

- Tu me tens. Não sou suficiente boa para ti? Por que necessitarias de outra? Eu posso te dar tudo o que quiseres… e até mais que isso.

Joguei a cabeça para trás e semi-cerrei os olhos, sentindo o movimento de seus quadris sobre os meus, devagar, ritmado, lascivo… Não resisti. Deixei-me levar lentamente, sem pressa, na volúpia do momento e no prazer que ela me proporcionava. Ela conhecia meus desejos e minhas necessidades físicas. Eu não podia negar que ela havia-me envolvido completamente.

Quando vi um flash de luz violeta iluminar o quarto, como por mágica, explodi em mim mesmo… com um brado abafado pela boca de minha amante. Se aquilo era um delírio, eu estava completamente envolvido na loucura.

O quarto pareceu escurecer repentinamente. Olhei à volta. Devo ter mesmo delirado ou sonhado. Não havia ninguém por perto. Meu corpo, todavia, ainda mostrava as evidências do que havia-me acontecido segundos atrás.

Olhei para o espelho. Sobre meu corpo havia outro, feminino, pálido, coberto com um véu negro. Ela levantou a cabeça, jogou os cabelos negros para trás com um movimento provocante, exibiu um sorriso zombeteiro e esquisito, quase num esgar, passou as unhas vagarosamente sobre o meu peito, levantou-se e deixou-me. Uma estranha sensação de ardência ficou latejando em minha pele. Exausto, cedi ao sono.


Ao acordar-me, já em hora adiantada na manhã, senti que precisava urgentemente de um banho. Ao entrar no banheiro, meu olhar foi atraído pela minha própria imagem reflectida no espelho e pude perceber claramente as profundas marcas vermelhas dos arranhões que ela deixara sobre meu corpo. Lavei-me e enxuguei-me com cautela, evitando piorar o estado dos ferimentos. Vesti a camisa com cuidado, depois de passar uma fina camada de pomada com anti-inflamatório sobre os arranhões. Ao sair, penso ter ouvido o que parecia ser uma risada, mas resolvi não dar atenção. Tinha certeza que havia imaginado aquilo.

- Acho que estou enlouquecendo mesmo, pensei.

Durante o dia não conseguia me concentrar no trabalho, especialmente quando involuntariamente o tecido da camisa roçava a pele tão recentemente ferida.

À noite, fui visitado por minha amiga, que veio ver-me em casa. Eu não me senti confortável, mas não quis levantar suspeita. Ela se aproximou e encostou-se no meu peito, na sua maneira carinhosa de saudar-me. Uma espécie de arrepio e uma retracção natural me percorreram a pele. Ela percebeu que minha respiração entrecortou por um breve momento e me perguntou o que havia de errado. Minha resposta não a convenceu, especialmente quando me tocou novamente e sentiu que eu fiquei tenso. Desconfiada, abriu-me rapidamente a camisa e olhou-me com um misto de surpresa e repulsa.

- Mas o quê…

Sem esperar mais resposta, esbofeteou-me com força e saiu porta afora, indignada. Eu não reagi. Não havia o que eu pudesse dizer que a convencesse a me olhar novamente, diante da evidência ostentada em meu corpo.

Fechei a porta, com um empurrão enfurecido. Por trás de mim ouvi o som de uma risada conhecida a fazer pouco caso de mim. Ela vencia a batalha, mas ainda não vencia a guerra.

Atravessei o corredor, sem tirar os olhos do chão. Evitei todos os possíveis reflexos em uma casa cheia de superfícies de vidro e espelhos distribuídos em vários aposentos. Não acendi nenhuma luz, enquanto me dirigia ao quarto.

Eu via somente duas alternativas: ceder ou enfrentá-la.

Era teimoso demais para ceder. Estava cansado demais para lutar.

Atirei-me na cama, profundamente irritado. Meu corpo todo doía, de tensão muscular.