segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017
domingo, 22 de janeiro de 2017
Revisitando Dragões (Parte 5 - Amuleto)
Nos olhos do rapaz, aquela
mistura de ódio e mágoa deixavam claras as suas intenções. Ele tinha uma missão
– uma tarefa a cumprir, para concluir seu rito de passagem, que havia iniciado
com uma batalha sangrenta, não muito antes de chegar ao seu último destino.
Não era apenas uma transição para
a idade adulta. Era mais uma confirmação de que havia passado, definitivamente,
para o lado do guerreiro de negro. Uma vez que ele estivesse do lado de lá, não
haveria volta e ele sabia. Era com isso que seu mentor e senhor de todo o mal
contava.
Avançando contra o velho, que
mantinha-se impávido, sem demonstrar nenhuma intenção de mover-se, ainda com o
dragão verde-azulado desacordado a seus pés, o jovem guerreiro descarregava seu
desgosto contra a injustiça que acreditava ter sido feita, quando seus antigos
amigos deixaram de procurá-lo.
Ele havia sacrificado sua
infância e boa parte de sua adolescência, para proteger seu pai, sua família e seus
amigos que, afinal, deixaram-no à mercê do mal e de seus mais poderosos asseclas.
Agora, passado tanto tempo, sentia que o sacrifício havia sido em vão, pois nunca
existira uma contrapartida. O mal o havia acolhido e adotado, como quem o faz à
uma criança órfã.
Felizmente ele era, agora, um
guerreiro bem treinado em batalhas contra grandes e poderosos inimigos, sem
medo de nada e dominado pelas forças do mal. Aquelas características tornavam-no, não somente poderoso, mas, também, totalmente temerário por onde passava.
O mais perigoso tipo de guerreiro
não é o que sabe melhor empunhar uma espada ou outra arma qualquer nas lutas,
mas aquele que não respeita as regras, não teme a morte, nem sente pesar por
quem quer que seja. Estes são capazes de tudo, pois não têm nada a perder.
Ele não tinha nada a perder e nem
temia a nada… nem a ninguém.
O velho fechou os olhos e
esperou. Chegou a sentir a ponta da lâmina a tocar seu peito, no mesmo lugar
onde uma antiga cicatriz ainda latejava, por vezes. Mas a espada não penetrou
seu corpo. Ele sentiu o frio contacto do metal na pele e esperou pelo golpe
fatal. No fundo, quase desejava por aquele destino. Sentia-se culpado por não
haver procurado o rapaz, mais insistentemente, até conseguir trazê-lo de volta para o mundo ao qual pertencia. No fundo achava-se merecedor de um castigo e sentia que não devia lutar contra aquela sentença. Era sua conta a pagar…
O homem abriu os olhos e fitou os
daquele que outrora havia sido seu protegido, mas que agora agia como seu
carrasco. Eles tinham um brilho estranho. A face trazia um misto de rancor e angústia.
A boca estava estranhamente contorcida. Mas a mão do guerreiro tremia, como se
hesitasse ou fosse impedido de dar o empuxo final. Ele sentia a lâmina a
arranhar sua pele e um pequeno corte abrir-se, deixando um estreito fio de
sangue quente e viscoso a escorrer-lhe vagarosamente pelo torso abaixo.
Foi então que o mundo pareceu-lhe
revirar completamente ante seus olhos. A espada foi atirada para cima com
tamanha violência, que o rapaz perdeu o equilíbrio e caiu para trás. Uma grande
e escamosa pata verde-azulada pousou sobre seu peito, imobilizando-o
completamente, com um peso descomunal e causando-lhe sufocamento, por falta
de ar.
O velho olhou para o lado, já prevendo a
reação do grande dragão pardo, mas aquele estava cercado por seis outros
dragões, cada um de uma cor distinta. Atrás dos mesmos, uma face conhecida
surgia, com armas de combate nas mãos e correndo em sua direção.
O recém-chegado olhou o rapaz
caído no chão e perguntou ao velho:
- Quem é este, afinal?
O velho respirou fundo e disse:
- Aquele que pensávamos estar morto, mas que nunca devíamos ter desistido
de procurar: teu filho mais novo!
***
Apesar de amarrado e de estar sob
cuidadosa vigilância, o rapaz não parecia sentir-se derrotado. Havia nele uma
certa arrogância, como se soubesse de algo que os outros não sabiam. Que trunfo
ele possuía, era um mistério que os dois homens não conseguiam perceber.
O pai estava com sentimentos
divididos entre a culpa e o amor, tentando perdoar a investida do filho e
arranjar desculpas para aquela mudança tão radical. Tinha esperança que o amor
que o abandonara fosse mais forte que o mal que o acolhera, mas também sabia
que teria muito trabalho para convencer o rapaz a entender seus motivos. Os
filhos e os pais quase nunca conseguem entender as razões que movem as ações de
um e do outro.
O velho estava assustado. Tinha
medo que a imprevisibilidade do rapaz colocasse as vidas dos outros dragões em
risco. O verde-azulado já havia sofrido seu tanto e não era merecedor daquilo. O
pobre animal precisava apenas de alguma paz, naquela fase de sua longa e
atribulada vida, não de mais conflitos e sofrimento.
O rapaz havia mudado profundamente
e aquela transformação era extremamente perigosa… para todos.
Os devaneios dos dois homens
foram interrompidos por uma grande barulheira do lado de fora. Os dois correram
até a clareira, onde o grande dragão pardo havia sido acorrentado firmemente.
Não foi nenhuma surpresa que o
dragão aprisionado houvesse escapado e que os outros estivessem tão
estupefactos quanto os dois homens. Dois dos dragões, o prateado e o vermelho, haviam
sido feridos pela grande fera e estavam a ser acudidos pelos outros, que
decidiram ser uma melhor atitude do que perseguir o inimigo, pois sabiam não
ter a mínima hipótese de alcançá-lo.
- Isso complica, demasiadamente, as coisas…
- Muito mesmo! Melhor nós verificarmos o nosso ‘prisioneiro’. Eu sabia que algo estava errado.
O rapaz sorria. Era um sorriso
estranho. Malicioso. Triunfante.
Embora não tivesse presenciado o
que ocorrera lá fora, tinha consciência da fuga do dragão e das consequências que
aquele acontecimento teria. Ao chegar sozinho ao seu destino, o animal seria
porta-voz das más notícias ao seu senhor. Era de esperar que houvesse uma
reação imediata, por parte do guerreiro de negro, um homem extremamente
poderoso e vingativo.
Era premente, entretanto, tratar
dos animais feridos, antes que o outro voltasse com reforços. Todas as forças
do bem tinham que estar preparadas para a retaliação do mal, o que não seria um
combate fácil de travar.
***
Não era de estranhar que o rapaz parecesse
tão fora de contexto como naquela ocasião. Sabia que estava preso, mas mantinha
uma atitude presunçosa e longe de parecer derrotista. Ele tinha uma missão,
afinal, que somente ele e seu protetor sabiam. A esperança de ser liberto e
salvo pelo guerreiro de negro era grande e quase uma certeza de sua parte. Se
ele o fosse, porém, todos sabiam que ele estaria total e definitivamente
voltado para o lado do mal.
Para o pai e também para seu
velho amigo, ele era instável e perigoso como um animal selvagem, aprisionado e
prestes a enfrentar a tudo e a todos para salvar sua pele. Ainda severamente magoado
pelos acontecimentos do passado, era capaz de tudo.
Veio a noite e, com ela, a densa
e imprevisível escuridão. Toda e cada hora, minuto e segundo, eram preciosos e
imponderáveis. Tudo podia acontecer de um momento para o outro, por isso uma cuidadosa
vigília era indispensável.
Os dragões tomaram turnos à porta
da caverna, onde o rapaz era mantido prisioneiro.
A madrugada demorava a chegar e
ele era atormentado por expectativas, como as que tinha quando esteve prisioneiro
do senhor de todo o mal. Ele não dormia um sono tranquilo. Era acordado muitas
vezes por qualquer ruído mínimo que atingisse seus ouvidos treinados. Ele
levantou a cabeça e olhou para fora, tentando focar a vista na entrada da
caverna, onde uma silhueta recortou-se contra a faixa muito ténue de luz que
subia por trás do laranjal, anunciando a chegada do dia. À aquela, juntaram-se
outras duas, muito semelhantes.
Ele sentou-se e ficou quieto a
observar. Quando conseguiu acostumar a visão à pouca luz, percebeu que os três
dragões mais jovens, encarregados da vigília daquela noite, estavam ocupados a
bicar um objeto conhecido dele. O dragão negro, conseguiu quebrar o pequeno
lacre de cera que havia na empunhadura da espada que pertencia ao jovem
guerreiro, revelando um pequeno objeto oculto por baixo daquele, numa pequena
cavidade feita com o propósito de esconder, de tudo e de todos, um amuleto, que
eles lhe haviam dado, ao que parecia haver sido há uma eternidade atrás.
Com a ponta da unha, o dragão
recolheu o pequeno amuleto e estendeu ao rapaz, através da grade à porta da
caverna. O rapaz segurou-o na palma da mão e lembrou, pela primeira vez, desde
muito, por qual razão havia escondido o presente recebido para sua proteção.
Ele fechou os olhos e ficou em silêncio por uns momentos. Depois abriu os olhos
e a mão, novamente, olhou para fora e atirou o minúsculo objeto para longe de
si. O dragão recolheu o amuleto do chão e devolveu-o ao seu legítimo dono, mais
uma vez. Por mais que tentasse negar ou refutar, aquele pequeno presente era
seu. Por mais que ele quisesse acreditar que odiava aqueles personagens e tudo
o que vinha deles, não podia negar seu passado.
O jovem guerreiro atirou o objeto
mais uma vez para longe e mais vez o dragão recolheu-o e devolveu-o a ele. Ele
percebeu que o animal não desistiria enquanto ele não ficasse com o que lhe
pertencia. Então, para evitar repetir a ação, pendurou-o no pescoço. O dragão
negro acedeu com a cabeça e afastou-se um pouco da porta.
A luz da madrugada já fazia a
paisagem mais visível, especialmente o céu. O rapaz olhou para cima e seus
olhos avistaram, muito ao longe, uma estranha figura vindo, por detrás das
brancas nuvens, pouco iluminadas pelo sol da manhã.
Ele sorriu. Faltava pouco, agora.
***
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sábado, 17 de dezembro de 2016
Revisitando Dragões (Parte 4 - Crescer e Lutar)
Ante o olhar incrédulo do velho
amigo, o menino falou, com voz muito baixa, quase inaudível.
- Este é o homem que me tem aparecido nos sonhos, nos últimos dias…
- Então sabes porque estou aqui. Nós temos um acordo. Eu cumpro a minha
parte, na condição que tu cumpras a tua! Tu sabes os termos e as consequências
do nosso acordo, portanto não há o que decidir….
O menino acedeu, balançando a
cabeça afirmativamente e deu um passo adiante.
- Eu tenho que ir com ele, ou eles destroem tudo e matam a todos vocês.
- O quê?
- O mal sempre encontra seus próprios meios de superar as expectativas
inocentes do bem… Para uma criança nesta idade, ele sabe negociar muito bem.
Deves ter muito orgulho dele.
O velho, numa reacção normal de
lutador, tentou alcançar a arma, que estava apoiada na sua antiga armadura, mas
o guerreiro, bem mais jovem e preparado que ele, foi mais rápido e impediu-o
com um golpe de sua própria espada, derrubando o homem e imobilizando-o
completamente.
O guerreiro loiro e vestido de
negro, então, tomou o menino pelo braço e saiu com o mesmo até o lado de fora,
onde o grande dragão pardo os aguardava. Ao seu lado, o dragão verde-azulado
jazia desacordado. Havia sido surpreendido pelo outro animal, que sendo maior e
mais forte, vencera-o com facilidade, deixando-o inconsciente, por tempo
suficiente de saírem sem serem importunados ou impedidos de escapar.
Diante do olhar do pai, manietado
e sem poder de acção, o homem de negro partiu, levando o menino consigo, os dois montados no grande dragão pardo. Quando o velho conseguiu chegar ao lado de
fora, para acudir o outro homem e seu amigo alado, já era tarde demais e já não
havia sinal dos três à vista.
- Temos que ir atrás deles!
- Não sei se vai adiantar. Nunca chegaremos antes deles… e duvido que estejam
indo para o lugar mais óbvio que existe. Não os encontraremos tão facilmente.
- Mas temos que tentar… já!!!
- E nós vamos… mas precisamos de toda a ajuda que pudermos, nesta difícil
tarefa… É uma certeza que sete dragões farão uma busca mais eficiente que um,
somente.
***
A busca, realmente, não foi nada fácil,
como eles já pressentiam. Foram até ao extremo norte, nos confins da região
mais gelada, mas não encontraram quem buscavam. A terra parecia modificar-se
magicamente, de modo a impedir que fossem achados, cada vez que eles a
percorriam. Por mais que tentassem, não conseguiam encontrar nenhum dos
personagens que partiram juntos naquele dia.
No ponto mais extremo do Pólo Norte,
onde a curvatura da terra ilude o olhar, abre-se uma cratera, que leva ao reino
secreto, onde vive o senhor de todo o mal e seu fiel e gigantesco animal de companhia,
o dragão pardo. O paradeiro exacto do seu reino é impossível de ser detectado, a
não ser por quem tem permissão para tal.
Quando levou o pequeno guardião
para o seu reino, a intenção do guerreiro de negro era treiná-lo, para ser um
dos seus. O homem sabia que o poder contido naquela criança era imenso e só
aumentaria com o tempo. Ao invés de pensar em destruir, o que não seria uma
tarefa muito fácil, ele conjecturou que, se aquela capacidade pudesse ser
utilizada para combater as forças opostas, ele teria, lutando ao seu lado, o
ser mais poderoso do planeta e, talvez, com o tempo, eliminasse a carga da
profecia. Os opostos poderiam unir-se, ao invés de combaterem um contra o
outro, evitando, assim, a destruição de um ou do outro… ou de ambos... Aquele era o
princípio do equilíbrio.
O menino sabia, instintivamente,
que não deveria ser libertado tão cedo, por isso mostrou-se aberto a colaborar,
antevendo os benefícios de um treinamento com o lado oposto ao que já havia
iniciado a aprender, quando estava com seus amigos. Se conseguisse distinguir
as forças e, também, as fraquezas do mal, poderia aproveitar-se daquele
conhecimento, quando fosse necessário combatê-lo. Embora fosse apenas um
menino, sentia que já havia dentro de si um guerreiro em rápida formação. Não
tinha ideia, porém, de quão exímio poderia tornar-se.
Ele tinha a protecção do pequeno amuleto,
dado pelos dragões, que só usava à noite, quando estava a sós em seus aposentos. Além
de ser seu único contacto com a vida que deixou para trás, não por desejo, mas
por falta de opção, era também seu consolo e esperança de um dia poder voltar
aos seus amigos e família.
As forças do mal, porém, são
poderosas e muito atraentes. Muitas vezes sentiu- se tentado a abandonar a
esperança e cumprir a sina que o destino redesenhara para ele. O guerreiro de
negro satisfazia-se com o progresso do rapaz, cada vez mais, com o passar dos
tempos. Os dias tornaram-se semanas e, estas, transformaram-se em sequências de
meses… longos meses…
Os mesmos longos meses tornaram-se,
então, estações completas.
Veio o Outono, trazendo seus
ventos frios e fortes, proporcionando a limpeza da natureza. Seguiu-se o
impiedoso Inverno, a bela Primavera e o lânguido Verão… Depois a sequência
foi-se repetindo até o dia em que ele recebeu uma espada verdadeira como
presente de seu novo mentor. Era uma prova de imensa confiança do poderoso guerreiro de negro. A
lâmina da espada fora forjada no fogo das profundezas da terra e havia sido
temperada com o fogo do dragão pardo. Era uma arma poderosa e praticamente
invencível, sendo uma versão mais actual daquela que o guerreiro e senhor de todo o mal
portava. Três Invernos haviam-se passado e o rapaz tornara-se um adolescente,
com o corpo e a mente em rápida mudança.
Para conservar o poderoso amuleto
sempre junto a si, sem perder o contacto com o mesmo, o rapaz abriu uma
cavidade no cabo da espada e introduziu o pequeno objecto protector dentro dela,
cobrindo, a seguir, o espaço com cera de abelhas e uma faixa de couro negro.
Assim mantinha-se em contacto indirecto com o mesmo, pois percebeu que as forças
do mal eram extremamente poderosas e ele começou a sentir-se muito atraído pelo
lado obscuro. Com aquele gesto, tentava não afastar-se totalmente o talismã,
mas sabia que o tempo poderia fazê-lo esquecer do que representava.
Mais quatro longas sequências de
quatro estações completas passaram-se. Ele conheceu o lado mais perverso do mal
e foi sábia e extenuadamente treinado para tanto. Aprendeu a distinguir as
fraquezas e as forças do lado de lá, bem como a combater todo o bem.
Naquele Inverno, o sétimo desde
que chegara, o rapaz foi presenteado com uma armadura negra, para usar no seu
primeiro combate contra as tribos no norte. Era mais uma prova de que seu
mentor confiava nele. E ele não decepcionou seu mestre.
Na luta, os inimigos foram dizimados
facilmente. O jovem guerreiro combatia com a fúria e a destreza de um adulto
enlouquecido e movido pelo mal. Vestido na armadura negra, ele empunhou a
espada dada por seu antigo algoz - agora protector -, com toda a habilidade de
um adulto. Seus pouco mais de dezasseis anos escondiam, debaixo da camada de
músculos desenvolvidos e dos longos cabelos e barba, a antiga face da inocência,
já totalmente irreconhecível, naquele momento. A força e o poder que habitavam
no rapaz haviam aumentado sem precedentes. A ideia de trazer aquela força e
poder para o lado do mal havia sido a perfeição, o que muito comprazia o senhor
de todo o mal, que, agora, tornara-se o único mentor e protector do guerreiro mais
poderoso da terra.
O menino de outrora já não
existia e nem voltaria a ser o mesmo. Tornara-se um vigoroso jovem e devia voltar
para a terra donde nasceu e viveu até ter sido levado por longos sete anos. A
prova de fogo havia sido designada por seu treinador, para garantir seu reconhecimento
definitivo. Era seu rito final de passagem e a missão mais importante a ser
ultimada.
Ele devia voltar ao laranjal.
Montado num enorme dragão pardo, ao
chegar à clareira, ele foi confrontado pelo dragão verde-azulado, mas a fera alimentada
pelo mal era bem mais forte e, no ataque, deixou o outro gravemente ferido, com
golpes de suas garras afiadas e envenenadas.
O dragão da esperança caiu contra
o chão da clareira, desfalecendo imediatamente. Um velho homem, desesperado,
correu para acudir o amigo, sem reconhecer o guerreiro que atacou-o, montado no
grande animal alado e vestido com uma pesada armadura negra, a observá-los do
alto.
O homem amaldiçoou aos dois,
jurando que não ia descansar enquanto não os destruísse. Mal sabia ele que
fazia uma promessa que jamais teria forças ou poderes para cumprir.
O jovem guerreiro deu instruções ao
dragão para pousar, apeou e veio para perto do homem, empunhando a espada. O
dragão pardo ficou a observar, de longe.
O rapaz tocou o corpo do animal
inconsciente com a ponta da espada e sentiu que algo em seu punho estremeceu,
impedindo-o de ferir, ainda mais, o pobre animal caído. Ele, então, arrancou a
proteção que lhe cobria a cabeça e mostrou a face de um jovem maltratado pelo
tempo e pelo frio, com longos cabelos emaranhados e barba arruivada e bastante
crescida.
Uma lufada de vento soprou-lhe os
cabelos para longe dos olhos e ele observou o velho homem, com cuidado. O outro
percebeu uma familiaridade no olhar do rapaz, levantou-se de onde estava e
encarou-o, incrédulo.
- Não pode ser! Isso é realmente incrível!
***
- Passamos tanto tempo a procurar e nunca conseguimos encontrar-te. Nós
pensávamos que havias morrido. É um verdadeiro milagre!
O homem adiantou-se para abraçar
o rapaz, mas aquele manteve-se impávido e deu um passo atrás, como se a repudiar
o gesto do velho. O rapaz, então, falou, muito pausadamente.
- Sete longos anos… é muito tempo…
- Eu sei. Nós procuramos por tudo, por longos anos…até que, finalmente,
desistimos.
- Pensei que eu fosse digno do esforço… não achei que iriam desistir.
- Sempre foste digno, meu jovem amigo. Mas nunca tivemos um mínimo
sinal de vida, depois que foste embora. Nós tivemos que…
O rapaz interrompeu, bruscamente.
- Também não tiveram nenhum sinal de que havia morrido, portanto não
era motivo para desistirem. Eu esperei por anos excessivamente longos, dia após dia… Eu era apenas
uma criança. Mas já não sou mais. Nem voltarei a ser…
Havia muita mágoa nos olhos do
rapaz. Havia muita decepção na sua mente. Havia muito ódio em seu coração… e
havia muita força concentrada em seus músculos, tornando-o um jovem extremamente
perigoso.
Junto ao dragão verde-azulado,
ainda desacordado, o velho homem mantinha-se de pé, com a expressão facial um
tanto confusa, flutuando entre os sentimentos de culpa e o de verdadeiro
assombro.
O jovem guerreiro, então,
levantou a espada e avançou contra os dois.
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domingo, 4 de dezembro de 2016
Revisitando Dragões (Parte 3 - Treinamento)
- Onde ele está? Não adianta vocês o esconderem, porque
eu vou achá-lo, mais cedo ou mais tarde. Se não me disserem onde ele está, eu
vou matar a todos.
- Como assim? Então ele não está…?
A pergunta saiu num
ímpeto incontrolado, mas o homem parou a frase no meio, como se a verdade
tivesse sido percebida justa e somente naquela hora. Arrependeu-se, porém, de
ter-se deixado levar pela euforia de saber que o filho não era, afinal, refém
do representante do mal.
Os seus
companheiros, porém, logo preocuparam-se, por não saber onde poderia estar o
guardião, mas só por saber que não estava em poder do grande dragão pardo,
sentiram-se, de uma maneira estranha, esperançosos.
O grande réptil, obviamente,
percebeu o ingénuo erro e, demonstrando satisfação, deu uma espécie de assobio,
levantou o focinho ao ar e meneou a cabeça, como se a desafiar os outros personagens
ali, à sua volta.
- Só se passar por cima do meu cadáver!
O dragão abaixou a
cabeça e, aproximando-se muito do homem, disse-lhe, com uma voz baixa, calma e grave,
num tom bastante irônico:
- Será, mesmo, um prazer extra! Dois, ao invés de um…
Perfeito!
O dragão
verde-azulado tomou a dianteira e enfrentou o grande animal, mesmo sabendo que aquele
era mais forte que ele.
- Saia daqui! Não há nada mais aqui para ti…
- Ainda não. Mas haverá…
E dizendo isso, o
dragão saiu, não por medo ou respeito, mas por saber que, tanto ele quanto os
outros tencionavam procurar o mesmo, mas nenhum deles sabia por onde começar.
Seria mais fácil se
estivesse no ar, ao invés de na terra, onde seus movimentos eram mais
limitados. O enorme animal pardo abriu as asas e levantou voo, diante dos
olhares preocupados de todos.
- Onde ele poderá estar? Temos que encontrá-lo e tirá-lo
daqui antes que seja descoberto pelo nosso inimigo!
O dragão verde-azulado
dirigiu-se ao pai e perguntou se o menino costumava esconder-se em algum lugar,
em particular. Diante da negativa do outro homem, o velho disse:
- Talvez ele esteja mais perto que pensamos… Tive uma
ideia.
E, dizendo isso, atravessou
a clareira, a bater com o cajado fortemente no chão, a cada passo que dava.
***
- Eu sabia que não podias estar longe.
- Eu vi que ele andava por perto, porque ouvi os passos e
escondi-me… O primeiro lugar que eu encontrei, onde ele não podia entrar, foi a
caverna…
- E fizeste muito bem! Mas, agora, temos que proteger-te
a todo custo.
- Com todo o cuidado e com o respeito que tenho, não vejo
melhor alternativa que tirá-lo daqui o quanto antes. Temos que levá-lo para um
lugar onde seja mais difícil ser localizado. Eu tive uma ideia, mas vamos
precisar de toda ajuda que conseguirmos…
O dragão precisava
convencer o pai do menino a aceitar a triste realidade do perigo e da
necessidade do plano de emergência, mas diante do que havia acontecido poucos
minutos antes, pareceu-lhe mais fácil argumentar.
O homem, embora a
contragosto, sabia que o filho precisava ser protegido. Uma tragédia estava
iminente, mas ele não ia entregar o filho ao inimigo, mesmo que para isso
tivesse que abrir mão de tê-lo por perto. A vida era, agora, mais importante
que os laços de família.
***
Cada um dos sete dragões acrescentou um pequeno detalhe ao presente que deram ao menino, para servir-lhe de proteção contra todo o mal. Como cada um representava uma virtude, todas elas somadas faziam do pequeno amuleto um poderoso artefacto.
Com excertos da simplicidade
do dragão albino, do amor apaixonado do vermelho, da paciência do castanho, da
generosidade do dourado, da compaixão do prateado, da força de espírito do dragão
negro e da esperança do verde azulado, o guardião tornava-se não somente o mais
protegido, mas também o mais poderoso ser de toda a região.
Agora precisava ser
treinado com muita urgência. Para confundir as forças do mal, caso o dragão
pardo desconfiasse, o menino era preparado em um lugar diferente a cada lua,
por um protetor diferente. Assim, às vésperas da sétima lua nova, o dragão
verde-azulado tomou sua parte do treinamento, com o auxílio do velho
companheiro.
Com o cajado em
punho, o menino aprendeu a lutar para defender-se, após aprender tudo sobre os
pontos fortes e as fraquezas do inimigo pardo, com os outros virtuosos
personagens de cores diversas. Não era o treinamento perfeito, mas era
essencial conhecer os pontos vulneráveis da força, já que o pequeno guardião tinha
forças bastante limitadas, devido à sua juventude e ao seu reduzido tamanho.
Tanto o dragão verde-azulado
quanto o velho homem, que outrora havia sido um exímio cavaleiro campeão de
muitas contendas, estavam bastante preocupados e faziam de tudo para evitar o
confronto entre as duas forças opostas. Sabiam, entretanto, que estavam apenas
a adiar o inevitável.
Mas o inevitável
pode ser apenas adiado, nunca impedido de acontecer.
O dragão pardo
percebeu que estava sendo enganado e passou a vigiar o local onde o velho e o
dragão, que representava a esperança, costumavam encontrar-se. No laranjal, por
mais que tentassem, não conseguiriam deixar de estarem expostos. Tinham que
mudar de estratégia a cada dia, para confundir o algoz, por isso o menino nunca
deveria aparecer junto dos dois, quando estivessem por lá. O pai do menino era
informado dos progressos do filho, sempre que possível, pelo velho amigo.
O menino, porém,
sentiu saudades de casa. Sabendo que corria perigo, consultou seus protectores e
combinaram um encontro com a família, numa das noites sem lua, para diminuírem
os riscos.
A caverna estava às
escuras, os personagens escondidos e em silêncio, no fundo da mesma, onde nunca
poderiam ser tocados por uma fera do tamanho daquela que os vigiava
constantemente. Num canto de um dos compartimentos mais próximos da entrada da
caverna, a armadura parecia um vigia em atalaia, pronto a lutar para defender
quem viesse com más intenções, com a espada apoiada ao lado.
O som de passos a
aproximar-se deixou-os bastante tensos, mas como eram curtos e ligeiros, a
tensão era mais por ansiedade que por medo. Os passos extremamente cuidadosos e
um tanto hesitantes, dentro da caverna, pareciam antecipar o encontro entre os
personagens, mas todo cuidado era pouco. Um sussurro. Silêncio. Depois outro
sussurro. Estava na hora de saírem do esconderijo.
O velho e o menino
caminharam cuidadosamente até a sala improvisada. No centro daquela, a silhueta
conhecida do homem surgiu contra a abertura da caverna e eles mostraram-se,
finalmente, com alegria e entusiasmo, abraçando o visitante, mas este não os
pode retornar o entusiasmo e o abraço, pois tinha os braços amarrados às costas
e a boca amordaçada.
Atrás dele, um
outro homem, bem mais alto, vestido de negro e com cabelos longos e loiros, apareceu com uma espada em punho.
sábado, 19 de novembro de 2016
Revisitando Dragões (Parte 2 - O Guardião)
- Quem é este dragão pardo?
- Ele nasceu das forças do mal e é comandado por um inimigo nosso, que
vive muito ao norte, nas terras frias. Seu coração é mais gélido que as neves dos
extremos da terra. Além de um animal de muita força, ele é também muito
poderoso, perigoso e sabe onde o menino está. É só uma questão de tempo até cá chegar,
com o pior dos intuitos. Há uma profecia conhecida que diz que só poderá ser
destruído por um guerreiro alimentado com o poder dos sete dragões. Nós sabemos
quem este guerreiro é… ele também. O que nós temos que fazer é prepará-lo e evitar
o confronto direto, pois pode ser fatal para um dos dois. Se o dragão vencer,
será o nosso fim. E ele destruirá tudo e todos que forem contra o seu senhor. Vamos
precisar de toda a nossa inteligência em montar uma estratégia e…
O dragão fez uma pequena pausa.
- … e de tempo…, mas este talvez não seja o nosso maior problema.
- O pai… Acredito que ele possa ser um grande empecilho.
- Eu sei. Ele passou maus bocados por causa do acidente com aquela
criança. Não vai aceitar ceder assim fácil. Mas temos que falar com ele. Não
temos outra alternativa…
- Talvez tenhamos…
O dragão olhou o velho homem e
compreendeu, instintivamente, aquela mensagem.
***
- Wow! Isso é sério?
- Mais do que sério!
- Mas eu não serei capaz! Sou pequeno e fraco…
- Por isso nós devemos preparar-te e ensinar-te a lutar… para proteger
a ti e a todos…
Os olhos do menino brilharam, mas
uma sombra de preocupação seguiu-se á aquela momentânea euforia.
A armadura era, obviamente,
grande demais e, para empunhar uma espada verdadeira, ainda era muito cedo.
O velho, então, entregou-lhe um
bastão de madeira feito a partir de um pedaço de um tronco de laranjeira. O
artefacto era coberto por uma camada lustrosa e apesar de muito suave ao toque,
também aparentava ser bastante resistente.
E os ensinamentos começaram… Para
evitar maiores constrangimentos, as lições eram dadas muito cedo na madrugada
até o nascer do sol. A intenção era evitar serem vistos e o confronto iminente
com o pai do aprendiz que, invariavelmente, teria que saber de qualquer
jeito... quando o momento fosse mais propício.
O velho mostrava os princípios
básicos de combate e de como empunhar uma arma e fazer uso dela, especialmente
de maneira defensiva. O dragão ensinava-o a pensar estrategicamente, a procurar
os pontos fracos do inimigo e a explorar a velocidade do pensamento. O menino
era um excelente pupilo, sempre aberto a absorver os novos conhecimentos e era,
também, muito curioso. Apesar do que havia passado, suas pernas e braços eram
bastante ágeis e sua mente, extremamente sagaz.
O dragão observava o menino com
orgulho, enquanto este aprendia o que lhe era ensinado, com precisão e com a
habilidade de um verdadeiro guerreiro.
O velho sabia que o tempo corria
contra eles e que, mais cedo ou mais tarde, teriam que revelar, à família do
rapaz, o que estava acontecendo e o que viria a acontecer, no futuro. Ele,
todavia, evitava revelar toda a verdade, com receio que, se soubessem que o
dragão pardo queria a destruição do guardião, para poder reinar sobre toda a
terra, iriam duvidar da palavra deles, ou esconder o filho, por isso decidiram
que iriam inventar uma desculpa qualquer, se fossem vistos a treinar o rapaz.
Os pais, como seria de esperar, logo
descobriram e foram totalmente contra, proibindo aquele tipo de treinamento,
veementemente. Bastou alguns dias, porém, para os três arranjarem uma outra
forma de se encontrarem, retomando a tarefa, cada vez com mais afinco, sempre
que lhes era possível.
Uma madrugada, porém, o menino
não apareceu. Pensando tratar-se de um empecilho qualquer com o pai, o velho e
o dragão ficaram quietos, sem criar nenhum alarde, aguardando o amanhecer.
Algumas horas passaram, sem que o
aprendiz chegasse. O som de passos apressados deixou-os em estado de alerta. Os
dois esperaram, para ver o que acontecia. O caçador, pai do menino, vinha a passadas
rápidas e com uma mistura de fúria e preocupação estampada no rosto.
- Eu avisei que não queria meu filho envolvido nesta aventura,
brincadeira ou o que quer que vocês estejam tramando.
Pegos meio desprevenidos, os dois
não disseram nada, já sentindo-se culpados. O homem estava mesmo furioso.
- Onde está o meu filho? Quero saber agora!
Os dois trocaram um olhar
suspeito e preocupado e, quando se voltaram para o homem, aquele percebeu que
algo estava muito errado, pela expressão grave na face do velho homem.
- Oh, não! Não, não, não!
- Ele não está, nem esteve connosco hoje. E isso é grave; muito grave.
Temos que procurá-lo, imediatamente. Ele pode estar em grande perigo…
- E não está preparado para defender-se… ainda… O treino não foi
suficiente!
- Isso é outra das artimanhas de vocês, os dois? Mais uma vez ele corre
perigo por causa de vocês! Desta vez, não vou perdoá-los…
- Não. Ele está em perigo, porque ainda não está preparado para
defender-se. Tomara que não seja o que estamos pensando… Se for, é melhor nós
corrermos. Acho que temos que pedir ajuda aos nossos companheiros alados.
O velho, então, contou ao pai do
menino toda a verdade sobre a profecia e sobre o dragão pardo e seu plano
malévolo, o que aumentou a preocupação do homem… e a deles também.
Estava mais que na hora de trazer
os outros seis dragões para perto deles. O menino precisava ser encontrado,
antes que fosse tarde demais.
O dragão verde-azulado preparava-se para levantar voo e buscar os companheiros, quando o chão sobre os pés deles estremeceu grandemente, para surpresa de todos. Os homens olharam para o dragão, que olhava para o centro da clareira, com uma expressão ameaçadora.
Um grande animal pardo surgiu e aproximou-se deles, com a boca escancarada, pronto a atacá-los…
sábado, 12 de novembro de 2016
Revisitando Dragões (Parte 1 - Despedidas e Reencontros)
As belas escamas verde-azuladas refulgiram
contra o firmamento, pouco depois que o enorme dragão alçou seu voo, da
clareira ao pé do laranjal.
O velho homem fica a acompanhar,
com o olhar, seu sensato e alado amigo, que vai desaparecendo, na tranquilidade
do céu de Verão, enquanto ganha, aos poucos, a distância.
O homem sorri, um tanto
tristemente, já com uma certa saudade a contundir seu peito e leva a mão à
bolsa de couro, cuja alça lhe cruza o peito. Com as pontas dos dedos ele apalpa
umas poucas frutas que lá se encontram e sente-se, de uma maneira estranha,
confortado.
Atrás de si, um menino, de não
mais que nove anos e um outro homem, adulto, também observam a trajetória alada
do dragão, que vai tornando-se quase invisível, entre as finas nuvens, que mais
parecem flocos de algodão, a decorar a larga abóbada azul celeste, aberta sobre
suas cabeças.
Um fino fio de fumaça sobe do
meio da clareira e dispersa-se no ar. O velho não sabe se lamenta ou se
regozija com aquele momento em que suas vidas devem voltar ao normal, ou, pelo
menos, o mais próximo possível da normalidade. Os últimos tempos passaram por
sua mente e ele, apesar das dificuldades que superou, sentiu uma certa
nostalgia.
Ele havia mudado, com toda a
certeza. Já não era nem parecido com aquele homem que chegara há muito tempo a
aquele lugar, cansado, derrotado e com mais que seu orgulho profundamente
ferido, além de uma grande cicatriz a marcar-lhe o peito e a lembrar-lhe de sua
condição de ser humano frágil e vulnerável.
A magia daquele lugar
pareceu-lhe, de repente, haver desaparecido de vez. Restava-lhe a magia da vida
e as surpresas que o existir pode, eventualmente, esconder. O som dos regatos
gémeos, a correrem muito próximos, fê-lo sentir-se cansado e, ao mesmo tempo,
relaxado.
O velho despediu-se do homem e do
menino e caminhou para aquilo a que conseguia chamar de lar: uma caverna
adaptada, com um despojamento evidente. Ele, na verdade não precisava mais que
aquilo, mas decidiu que ia construir um casebre simples e nele viver, como um
fazendeiro normal.
No meio da clareira, onde as
cinzas de uma certa laranjeira ainda cobriam o chão, ele elevou seu novo lar,
pacientemente e sem pressa nenhuma, por semanas a fio.
Quando reinstalou-se, sentiu que
sua vida anterior fosse apenas uma memória, que ficava cada vez mais distante e
nebulosa. Ali era, agora, seu lar e era onde ele sentia-se mais aconchegado e
seguro, mas o velho sentiu que, com aquela decisão, ele estava, na verdade, a
plantar, em definitivo, suas raízes. Até bem pouco tempo atrás, esperava
ansiosamente pelo momento em que iria voltar para sua vida de cavaleiro. O
tempo passou em seu ritmo próprio e ele sentiu que estava mais próximo da vida
de agricultor que de cavaleiro, além de já não ter forças nem ânimo para
combates, banquetes ou a vida fútil que outrora vivia. De uma certa forma,
sentia-se mais útil e ligado a aquele lugar, do que em qualquer outro, mas
sentia a falta de algo, que ele não sabia descrever.
E veio a noite mais escura do
ano.
E ele pôs-se a pensar e sentiu
falta de seu amigo alado. A grande cicatriz latejou no peito. Ele tentou ignorar,
mas não conseguiu. Tentou dormir, mas não sentia sono. Resolveu levantar-se e
apanhar um pouco de ar.
Lá fora, uma brisa fresca trazia
o perfume das folhas e frutas do pomar que lhe dava sustento. Ele aspirou o ar
lenta e profundamente. A vida daquele lugar pareceu pulsar-lhe como sangue nas
veias. Ele foi à beira do ponto onde os dois regatos gémeos uniam-se e lavou o
rosto com a água fresca e límpida. A cicatriz latejou novamente. Ele passou a
mão molhada pelo peito e sentiu um pouco de alívio. Fazia tempo que ele não
experimentava aquela sensação. Sentou-se sobre uma grande pedra, como já havia
feito tantas vezes e ficou a olhar a escuridão à sua frente, ouvindo o som
tranquilo das águas dos regatos.
Estava perdido em suas tantas
recordações, quando ouviu um som atrás de si. Seus sentidos entraram,
imediatamente, em alerta. Pensando ser um animal qualquer tentando chegar à
água, ele voltou-se e esperou em silêncio.
A noite sem lua, escura como
breu, não permitia que ele visse nada, mas tinha a forte sensação que não
estava só. Seus ouvidos treinados, atentos, tentavam distinguir algum sinal.
Silêncio… Nada mais que um tenso silêncio
na escuridão da noite. Ela não podia ter-se enganado… Será que seus ouvidos o
enganaram? Era apenas mais um sinal da idade? Ou seria um desejo e um delírio
de nostalgia?
Ele resolveu que deveria voltar
para casa. Se fosse mesmo um animal sedento, ele deveria deixar o caminho livre
e permitir que a vida levasse seu curso normal, sem que ele assustasse um ser
vivo em necessidade. O regato não era seu. Ela não tinha o direito de impedir a
vida de continuar.
Saltou da rocha e começou a
caminhar de volta, convencido de estar enganado e disposto a tentar dormir. O
perfume das laranjas era familiar e evidente. Ele sorriu e apressou o passo,
sem olhar para trás.
Quando pisou no alpendre, ainda
voltou-se um pouco e tentou ouvir os sons da noite.
Nada.
Ele entrou na casa e acendeu uma
lamparina. Seus olhos pousaram sobre a fruteira no centro da mesa. Uma laranja
muito dourada, que ele conhecia muito bem, jazia por cima das outras. Ele sabia
que não a havia posto ali. A fruta era perfeita e parecia reluzir. Ele levou a
mão à fruteira e apanhou a grande laranja.
Mais por instinto que por
necessidade, ele abriu-a e comeu a metade da mesma. O sabor muito peculiar, doce
e ácido, trouxe-lhe memórias, que estavam adormecidas há muito. O homem sorriu.
Sabia o que estava fazendo e as consequências daquele ato aparentemente
inocente.
Foi então que ele ouviu um ruído
pouco familiar atrás de si. O chão pareceu estremecer por baixo de seus pés
descalços e ele sentiu o corpo ficar tenso, como se pronto a lutar, como no seu passado… pela própria
vida...
Ele olhou para trás e viu,
através da porta aberta, dois grandes fachos de luz amarela a refulgirem na
espessa obscuridade daquela noite singular. Seu coração deu um salto e ele
correu para fora.
- Olá, meu bom amigo. Senti saudades tuas...
O animal piscou, lentamente, seus
grandes olhos amarelos e aproximou-se do homem, abaixando a cabeça para ser
tocado, como se fosse o cumprimento mais natural do mundo. De facto, entre
eles, era…
O velho estendeu a mão e deu a
outra metade da laranja ao dragão, que comeu-a de imediato. A magia daquele
encontro não programado começava naquele momento…
***
- Há uma força poderosamente maléfica agindo no Universo, neste
momento. Aquele menino corre grande perigo e nós temos que protegê-lo a todo
custo.
- Mas, por que ele? É apenas uma criança…Tem pouco mais de oito anos…
- Porque ele conhece o poder dos dragões. Como foi medicado com as
lágrimas de cada um dos sete e com uma gota do meu sangue, a magia faz parte
dele, desde então. A energia que está a crescer naquela criança é inimaginável,
embora ele ainda não tenha consciência disso, mas o grande dragão pardo sabe
muito bem e, por isso, pretende destruí-lo, antes que ele se torne mais
poderoso ainda, com o passar do tempo…
O velho olhou o amigo, muito
seriamente. A lembrança clara do momento em que foi revelado ao menino o valor
que ele tinha para os dragões, veio-lhe como um raio. Uma boa dose de melancolia
fisgou-lhe o peito, onde uma cicatriz marcava o desfecho de uma batalha antiga.
No meio do laranjal, o dragão
verde-azulado dirigia-se ao menino.
- Este é o nosso outro presente. A água que tu tomaste, ali na
clareira, antes de vires para o laranjal, continha uma lágrima de cada um de
nós. Sete lágrimas foram adicionadas àquela água, para te proteger. O óleo que foi
usado na massagem em tuas pernas contém raspas de dentro do casulo que gerou o
dragãozinho negro, que simboliza a força de espírito e uma gota do sangue do
dragão que representa a esperança… Nós nos referimos a ti, particularmente, como
“o guardião” e temos muito orgulho de assim te chamar.
A mente do velho homem voltou ao presente...
- Ele tem que saber disso. Como vamos protegê-lo?
- Pensei em muitas hipóteses, mas ele precisa ser treinado. Ainda tens
a armadura?
- Deixei-a na caverna… para o caso de necessidade… mas o tamanho é muito
grande para ele…
O dragão encarou o velho homem e
falou, muito gravemente:
- Dá-se um jeito. Esta é, definitivamente, uma necessidade…
- Vou buscar a armadura e a espada…
sábado, 5 de novembro de 2016
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