terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Indomável como o Vento... (Parte 1)


- Deve ser, pelo menos, a terceira vez que ouves esta canção, nesta mesma sequência. Estás a olhar para além da janela e além do mar já há algum tempo.

- Desculpe. Nem havia dado conta…

- Estás saudoso?

Eu senti um estranho, inesperado e familiar aperto no peito e engoli em seco.

- Nostálgico, talvez…

- Algum arrependimento?


Ela aproximou-se e tocou-me o ombro, por trás. Voltei-me e olhei bem dentro daqueles olhos que eu tanto conhecia. Pareciam mais verdes e brilhantes, com a luz do dia, que entrava pela janela. Suas pupilas dilataram-se quando nossos olhares encontraram e eu sabia muito bem o que aquilo significava.

Reconheço que eu seja uma pessoa difícil de lidar e uma vez que tenha tomado uma decisão, dificilmente volto atrás ou demonstro qualquer sinal de pesar. Talvez eu, simplesmente, tenha aprendido, com a vida, a tornar-me um homem fatalista demais.

- Jamais me arrependeria… Meu coração continua como sempre foi, por isso não há razão para quaisquer arrependimentos. Eu sou, praticamente, o mesmo de antes… como e quando tu me conheceste. 

- Eu já não sei se és o mesmo de antes. Eras tão livre e tão indomável…

- Como o vento…

- Como a canção repete sem parar… 

- Como a minha cabeça repete sem parar…

E eu deixei-me levar pelas lembranças… 

***

- Quem é que precisa ficar, tanto tempo, sozinho? 

Eu ri. Admitia que realmente passava muito tempo sozinho e sentia aquela necessidade, como do ar para respirar. Não esperava que alguém compreendesse, apenas que aceitasse. Também sabia que era provocação, por isso respondi:

- Eu!

- Tu és mesmo uma aberração. Mas nem vou discutir, nem tentar entender…

Falou aquilo rindo, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Sabia que era batalha vencida e não queria, nem iria lutar por algo que não pudesse vencer. Mas ela sabia contornar situações, quando desejava algo. Eu era um desafio ao seu poder de persuasão e criatividade. E ela adorava desafios… especialmente os difíceis.

A canção tocava no CD Player do carro e eu impostei a voz e cantei os versos conhecidos, junto com a voz de veludo e sempre surpreendente do cantor. 

Ela olhou-me, parecendo um tanto intrigada, mas não disse nada. Deve ter pensado algo muito horrível, mas limitou-se a rir… da minha postura de cantor “cool”… Eu parei de cantarolar e limitei-me a murmurar as notas e algumas palavras, quase resistindo a vontade de soltar a voz a plenos pulmões. Ela olhou para o outro lado, como se apreciasse a paisagem, mas eu percebi que tentava, a todo custo, conter as risadas. 

Quantas pessoas conseguem valorizar o poder de fazer a outra sorrir? Pelo menos está a divertir-se, mesmo que às minhas custas’, pensei eu…

Uma ampla vista do oceano abria-se à nossa frente, quando o carro começou a descer o íngreme morro. A via principal serpenteava até próxima da praia, onde uma estradinha escondia um de nossos recantos favoritos.

***

Havíamo-nos tornado grandes amigos, antes e acima de tudo, desde os tempos da Universidade. Tanto as pequenas, quanto as grandes aventuras, faziam parte da nossa amizade. Desde as discussões sobre nossos livros favoritos, que líamos uns atrás dos outros, para depois discutir os detalhes, fazendo nossas críticas e discussões sobre as partes favoritas, até os discos, músicas, filmes e comida… tudo era notavelmente parte de nossa história. Ela tinha todos os discos de Alice Cooper e Supertramp. Eu era fã de Bowie e Led Zeppelin e fazia um esforço enorme para economizar algum dinheiro e completar minha coleção. 

Viajávamos, sempre que conseguíamos, praticamente sem destino, pelo país afora… mesmo com pouco dinheiro, o que era a parte mais gostosa das nossas aventuras.

Andávamos juntos sempre que podíamos e as pessoas perguntavam se ali havia mais que uma simples amizade. Nós sempre negávamos. No fundo, ir além daquilo, podia estragar aquela amizade tão inocentemente cultivada. O tempo mostrou que aquele medo era completamente infundado.

Saíamos em aventuras sem destino, pela praia, pelo país, pela vida. Nada era pequeno para nós, nem grande o suficiente para nos parar. Éramos como cavalos selvagens: livres e aventureiros. Éramos como gaivotas, sempre prontos a voar alto e longe, com os olhos além dos horizontes, cheios de vida e de adrenalina. 

- Achas que essa amizade vai, um dia, arrefecer?

- Por que isso me preocuparia? Eu gosto do que nós temos… apesar das aventuras e das loucuras, é tão tranquilo. Quem pode dar-se ao luxo de estar com uma pessoa e não precisar dizer nada, por longos minutos e, ainda assim, parecer que disse muito?

- Eu sei

Ela ficou em silêncio por uns instantes, a olhar o céu, pintado com pinceladas azuis e brancas, entre as folhas e os longos e pendentes galhos do imenso salgueiro, plantado à volta do lago. Estávamos deitados na relva, lado a lado, sem tocarmos um no outro. Era nosso lugar favorito, longe de todos e de tudo.

- É tudo muito intenso, mas…

- O que é que te preocupa? Tens receio que aconteça algo?

- Acho que já está acontecendo…

Eu levantei o torso, apoiado nos cotovelos e olhei-a, preocupado com o que ela iria dizer. Senti um súbito desconforto no peito.

- Como assim?

- E se aparecesse alguém na minha vida, que quisesse mais que amizade de mim? 

- Se isso te fizesse feliz…

Ela olhou-me de frente. 

- E se isso mudasse a nossa amizade e isso que nós temos? Não quero perder a tua amizade.

- Não vai mudar nada. A não ser que que nós deixemos. E não vamos deixar, vamos?

Ela olhou-me nos olhos. Suas pupilas dilataram-se, quase a cobrir aquelas incomuns íris, tão mais verdes, com a luz do sol.

- Eu tenho receio de perder…

Num tolo ímpeto de insanidade, eu aproximei-me mais ainda dela e, pela primeira vez, em tanto tempo, senti que ela estremeceu e calou-se. Uma sensação estranha apossou-se de mim. Quando dei conta, nossos lábios estavam colados e nossos braços fechados à nossa volta

Foi um beijo simples e carinhoso, não exatamente sensual. Mas ambos percebemos que era sinal de uma grande mudança em nós Era um marco importante naquela amizade. 

Não dissemos nada, apenas nos afastamos devagar, sérios e olhando para lados diferentes. Deitei-me na relva novamente e fechei os olhos. Talvez houvesse estragado tudo. O que passou-se pela minha cabeça? Ela acabava de falar em um outro e em uma possível relação e eu fizera aquela asneira… 

‘Que burro! Estúpido!’

Eu amaldiçoava a minha atitude impensada, agora com receio de haver posto tudo a perder. Ainda de olhos fechados e sentindo vergonha, eu falei:

- Peço imensas desculpas. Eu…

Engasguei. As palavras, simplesmente, não saíram. Cobri o rosto com as mãos. Eu senti-me um invasor. E se ela me odiasse, dali para frente, por estragar a beleza da nossa amizade? 

O vento soprou os galhos pendentes da árvore à nossa volta. Era como se fosse o vento da mudança, anunciando o fim da nossa inocência… 

Deixei meus braços caírem para os lados, sentindo-me triste e impotente para fazer o tempo voltar atrás, nem que fossem, apenas, uns poucos segundos …

Foi quando senti que ela estava muito mais perto de mim, que eu julgava. Seus lábios tocaram os meus, suavemente, porém, desta vez, com mais sensualidade que quando eu forcei o primeiro beijo. 

Sem pensar muito, eu correspondi a aquele toque, desajeitadamente, no começo, mas relaxei as defesas e entreguei-me a ela, de corpo e alma, ali mesmo, à sombra do salgueiro, cujas folhas e galhos escondiam-nos do mundo que girava à nossa volta, sem perceber o que acontecia naquele minúsculo pedaço protegido de universo…

***

- Faz tanto tempo assim?

- Desde aquela vez? 

Acedi com a cabeça, um pouco entristecido e pensativo.

- Claro que sim.

- Lembras como as pessoas costumavam invejar o que nós tínhamos? 

- Até aquele dia…

- Deixa o passado lá atrás, onde ele pertence. Já cometemos tantos erros e já corrigimos alguns… Não pensemos mais nisso. 

Eu voltei-me e olhei-a nos olhos, como tantas vezes antes daquela. Ainda havia aquela centelha que acendia, quando nossos olhares cruzavam. 

Questionei-me por qual razão nós havíamos deixado o receio intervir no que havia entre nós. 

Tanto tempo perdido… dois beijos, duas vezes o mesmo erro… e aquela amizade, antes tão inocente, estragada, pelo calor do momento e por um sentimento de culpa descabido e inconveniente… que nos separou por tempo longo demais. 

Nossas vidas continuaram separadas, como não poderia deixar de ser. Dois casamentos, dois divórcios… um de cada… tanta história a ser contada ou esquecida…

O meu divórcio havia sido há tanto tempo, que eu já nem lembrava mais como era conviver com alguém. Voltara a ser o homem solitário e selvagem de tanto tempo atrás, vivendo segundo minhas próprias regras e cada vez mais distante dos relacionamentos e das pessoas… 

Quem poderia dizer, porém, que aquela mesma canção, depois de tanto tempo, iria nos aproximar uma vez mais?

***

domingo, 24 de janeiro de 2016

Café da Manhã e Brincadeiras


Hey.

Brinca comigo… Eu sei que fiz bagunça no quarto de trás, quando derrubei o ferro de passar roupa, mas eu não fiz por mal. Eu só queria saber o que estava por trás da caixa. Foi um acidente. Eu também levei um susto. Aquilo faz muito barulho quando cai…

Hoje, quando já passava das sete da manhã, pelo menos uns trinta segundos e a luz do dia já entrava pela janela, fiquei preocupado. Por que ainda estavas deitado? Pensei que era dia de trabalho e havia algo errado. Também estava na minha hora e eu tinha fome. Até resolvi dar-te uma cutucada, para ver se reagias. O relógio havia despertado havia bastante tempo e parecia que tinhas, simplesmente, ignorado. Pensei que podias estar doente. Mas, não. Foi só quando sorriste, depois que cheirei teu rosto, que eu fiquei mais aliviado. Eu ia voltar a insistir, mas tu resmungaste um pouco e levantaste em seguida. Eu até pensei:

E vamos nós! Hora do café! Iupi! Já não aguentava mais…

Às vezes eu penso que te esqueces… ou distrais-te… das coisas importantes. Se não sou eu, aqui, nesta casa, a lembrar os horários da comida, a hora de deitar, de brincar, de limpar a caixa de areia, até parece que tu deixas as coisas passarem. Isso não pode ser! É muita responsabilidade para mim…

Ouvi-te dizer que hoje é feriado, seja lá o que isso signifique. Pelo jeito vamos, os dois, ficar em casa e eu vou aproveitar da presença e dos mimos. Tomara que seja um dia de sol, para poder deitar-me lá fora, um pouco. Os invernos são chatos, quando não faz um pouquinho de sol, para estirar-me preguiçosamente e aquecer-me na varanda, ou na janela, pelo lado de dentro. Um calorzinho sempre é bom.

Se não tiver sol, em compensação, vou deitar-me em baixo do edredão, como faço à noite, encostadinho na tua barriga, ou na almofada da cadeira, atrás de ti… É tão agradável e tão quentinho… principalmente se colocares aquela música suave para ouvirmos. A música ajuda-me a relaxar.

Mas antes disso, vou brincar até cansar. Afinal, estou sentindo muito vigor e preciso gastar um pouco disto. Acumulei muita energia nas dezasseis horas que dormi ontem.

Eu sou um gato de casa, agora, por sorte e estou bem protegido e salvo dos perigos que já passei lá fora, antes de ser resgatado, medicado e adotado, mas preciso de atenção e brincadeiras…. Algum exercício físico também é bom…

Eu trouxe a bolinha, para jogarmos… só não vou prometer que vou ser discreto ao correr pelo assoalho. O meu peso não pode ser disfarçado facilmente, quando corro pelo piso de madeira…

Ah, eu não gosto quando dizes que eu pareço um cavalinho a correr pela casa. Não é nada bonito rir de mim, só porque estou um pouco gordito! Não é culpa minha… somente…

Opa! Acho que vou adiar a brincadeira. Ouvi um som muito agradável na cozinha. Meu pratinho fez o som característico, quando foi colocado na pia. É um ótimo sinal.

Adoro meu iogurte, de manhã. À noite, prefiro o peixinho, obviamente. Afinal é a janta…. E janta é sempre uma refeição importante…

É… a brincadeira fica para depois… Agora vamos tratar de manter este meu corpinho bem alimentado…

Mas não esqueci que hoje é dia para brincar bastante... e eu vou cobrar!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O Poema


Quando o telefone tocou, eu distraía-me com a leitura de um dos novos livros adquiridos, como só é possível fazer, tranquilamente, no período das férias. Não pensei muito ao estender a mão para alcançar o aparelho. Quando vi o nome a piscar no visor, meu coração deu um salto involuntário.
Era a primeira vez que eu viajava para longe e ficávamos sem conversar ao telefone, diariamente, como havia-se tornado, naturalmente, hábito nosso. Até então, tudo parecia muito normal, porque mesmo uma simples rotina pode ser viciante e estranhamente agradável. Sabíamos que íamos estar longe por quase um mês e que nossa “resistência” ia ser posta à prova. 
Já havíamos trocado algumas mensagens de texto, desejando as boas festas, no modo mais tradicional da época e eu não esperava mais que aquilo, pelo menos até a minha volta. Um telefonema, assim inesperado, era-me uma clara e agradável surpresa.
Eu, entretanto, não contava que minha emoção fosse sobrepor minha razão. Quando ouvi a voz conhecida, dei graças por estar só, no quarto. Minha própria voz simplesmente não saiu. Queria falar, mas não conseguia. Do outro lado, ouvia chamar-me uma… duas… três vezes... Fiz um esforço enorme para controlar-me. O som que saiu de minha garganta não era nada parecido com a minha voz. Foi mais um grunhido, que soou muito estranho, para minha vergonha. Em meio a meia dúzia de palavras trocadas, quase todas truncadas, eu perdia o controlo novamente e a voz falhava ou, quando saía, vinha carregada daquela emoção, que eu não conseguia conter.
E eu chorei… de saudades e, também, de um pouco de carência.
Estava rodeado por muitas pessoas conhecidas, naqueles dias, mas sentia-me surpreendentemente só. Sentia falta da atenção que vinha tendo, havia pouco menos de um ano. Aquele telefonema, assim simples, curto e espontâneo, fez-me ver, à distância e sob outros prismas, as coisas que vinham acontecendo em minha vida, especialmente naquele ano.
Olhei para fora e deixei a mente viajar completamente livre de quaisquer amarras.
Os pardais a fazerem algazarra no jardim, a leve brisa de verão a entrar pelas janelas abertas e aquela distância imensa em espaço e em tempo, fizeram-me sentir vontade de voltar, imediatamente. Tentei ocupar-me com outras coisas, mas meus pensamentos voltavam sempre ao mesmo ponto... ou ao mesmo lugar… de onde havia partido…
Resolvi, então, escrever algumas palavras, pois precisava externar, de alguma forma, aquela emoção. Os versos de um pequeno poema* vieram quase fáceis, como de costume, mas não o considerei terminado. Mantive-o comigo até dar-me por satisfeito com a harmonia e o sentido que queria dar às palavras; até convencer-me que dizia tudo que se passava comigo, naqueles momentos; até saber que meu peito estava em paz.
Esperei até o último instante… Até estar de volta à minha vida e à aquela quase rotina… e estarmos mais perto, fisicamente. Só então enviei o ‘link’ para o poema, sem saber, ao certo, o efeito que ia causar.
...E enquanto, assim,
Tão distante de ti,
E suspenso
Entre o delírio,
A saudade
E o desejo
De te rever,
Sinto,
Por vezes,
Que já nem pertenço
- Mais -
A mim somente…

Um par de horas depois, no que pareceu uma infinita espera, recebi uma resposta à minha breve mensagem. Num ímpeto de ansiedade, eu abri, li e sorri. Depois, não resisti e, perdendo o controlo novamente, chorei.
Então, o telefone tocou...  

- Estou a caminho!



terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A História


- Conta a história outra vez. Por favooooor.

Olhei-a com autêntico carinho, mais uma, entre tantas milhares de vezes, desde que a conheci, recém-nascida. Parecia tão frágil e, no entanto, provou-se tão forte. Quando queria algo, ela pedia ‘por favor’, esticando a vogal da última sílaba, sabendo que ia ter um efeito irresistível sobre mim, que nunca recusava-lhe nada. Aqueles olhos grandes e curiosos brilhavam de excitação, na antecipação da história que ia ouvir, mais uma vez. A boca sempre rosada e sorridente, os cabelos claros e caindo em cachos pela cabeça tão bem desenhada, davam-lhe um ar angelical e absolutamente adorável. No dia em que foi-me dito que eu seria pai, senti-me o homem mais feliz do mundo, numa emoção espontânea, como nunca havia sentido antes. Ela era a minha primeira e única filha. Era, definitivamente, a dona do meu coração. Ponto final. 

Nos últimos tempos eu havia mudado bastante. Ela continuava a ser aquela criança adorável e ia, sempre, a meu ver, sê-lo. Eu, porém, tornara-me um homem amargo e descrente de tudo que não pudesse ser comprovado por factos. Era um cientista quase niilista, muito longe do crente que eu, alguma vez, fora, na minha pré-adolescência. Eu aprendera a acreditar somente em evidências e em provas cientificamente atestadas. 

Para ela, entretanto, eu contava histórias… Contos e alegorias. Coisas que faziam sua imaginação viajar para além dos horizontes conhecidos e acreditar em sonhos e fantasias, com o coração de criança que ela sempre teria. 

Daquela vez, porém, eu decidira contar a mesma história, de uma maneira diferente, mais próxima da realidade, preparando-a para ter uma mente mais crítica, quando o tempo de ser científica chegasse, afinal. 

- Vem até a varanda comigo. Vou mostrar-te uma coisa.

Ela saltou da poltrona, onde estava sentada e veio até a varanda comigo. A noite estava clara e o céu estrelado. Perfeito para o que eu queria mostrar-lhe.

- Eu gosto das estrelas. Onde estão as Três-Marias? 

Eu apontei para as estrelinhas alinhadas acima de nossas cabeças. 

- Estão lá. Vês aquela estrela grande, bem à frente delas? Aquela é Sirius, a estrela que mais brilha nesta época e que inspirou a história. As Três-Marias, no outro lado do mundo, são chamadas de Três-Reis. Sabes porquê?

- Não. Por quê? 

- Porque os antigos precisavam de uma grande história, para explicar as coisas que não conseguiam compreender e, assim, faziam associações com o que viam, inventavam uma narrativa convincente, que contavam uns para os outros, passando de uma geração à outra. Depois de uns tempos, já ninguém questionava. Criava-se um mito que passava a ser parte da vida e que todos aceitavam, sem questionar as origens… 

- Hummm… Acho que entendi… 

Ela fez carinha de quem percebia, mas não sei quanto daquilo era verdade. Talvez, em sua cabeça, aquilo fosse a explicação que ela quisesse, mas que não compreendia ao todo. Ela queria ouvir a história, fosse de que jeito fosse, por isso deixava-me viajar nas palavras…

- Pois bem, no dia 22 de Dezembro o sol está no seu ponto mais baixo no horizonte e, por isso, o Inverno começa neste dia, que é chamado de Solstício de Inverno. É a noite mais longa do ano e, portanto, o dia mais curto. Os antigos tinham medo que aquela noite durasse para sempre e que ela vencesse o dia, por isso faziam rituais, onde acendiam velas, faziam fogueiras, enchiam as casas e as ruas de luz, para lutar contra a escuridão. Quando o dia nasce, eles descansam, pois o sol é o salvador, a fonte de vida e de luz.

- Hummmm… 

Eu queria manter o interesse dela na história, por isso continuei.

- Naquela noite, as três estrelinhas alinham-se com Sirius, como se estivessem seguindo aquela estrela mais brilhante e o conjunto aponta na direção onde o sol estará. Entendeste o significado?

Ela olhou-me, meio incerta.

- Pensa no sentido das palavras: os três Reis seguem a estrela mais brilhante, para chegar até onde o Salvador nasce. Na verdade, o sol permanece naquela posição por três dias e, no dia 25 de Dezembro, move-se um grau para cima, recomeçando a trajectória de volta, como se renascesse. Por isso o dia do nascimento é celebrado naquele terceiro dia do Solstício. 

Ela olhou-me, fascinada. Os olhos grandes brilhavam, sinalizando o interesse a crescer dentro dela. 

- Então está certo. O dia 25 de Dezembro é o dia do nascimento do menino…

- Está. Era o dia perfeito para celebrar o nascimento do Salvador. Mas já era festejado por cerca de mil e duzentos anos, antes de Cristo! 

Ela arregalou os olhos e pôs a mãozinha na boca. 

- Oh! Como podia?

- O ritual é bem mais antigo que o que conhecemos. Naquele mesmo dia era comemorado o nascimento de um menino-deus chamado Mitra. Haviam outros, que eram festejados da mesma maneira, mas o culto a Mitra foi o que mais se aproximava daqueles que foram adotados pela igreja romana, que copiou e acolheu os mesmos. O objetivo era não criar conflitos com os pagãos persas e romanos e seus rituais e também para unificar as religiões do império, sem chocar ninguém, mantendo a tradição do nascimento do “Sol Invicto”, que foi como o dia ficou conhecido, quando o decreto que instituía a criação da igreja católica foi oficializado. 

- E o Papai Noel? 

Eu ri. Ela sabia conduzir a conversa. 

- Existem várias versões, envolvendo São Nicolau, por ser um homem caridoso, que cuidava dos pobres e das crianças necessitadas, distribuindo pão e oferendas. É a mais tradicional e também a mais reconhecida, mas a que eu mais gosto é a outra versão, bem mais antiga.

- Eu sei. É a que eu mais gosto também. 

- Menina esperta. Percebes como é interessante saber sobre os ritos de passagem dos rapazes nórdicos… 

Ela deu uma risada e apertou as mãozinhas. Eu sempre a via como um anjo a proteger-me e fazer-me sentir melhor. Eu continuei a contar a história, porque sabia que era onde ela queira que eu chegasse, com a conversa. Todos os anos nós fazíamos a mesma coisa, como se fosse um ritual só nosso.

- O pinheiro era a única árvore que permanecia verde durante todo o inverno. Era comum, nos três dias do solstício, que os xamãs, homens sábios e especialistas em alquimia, rituais mágicos e de cura das aldeias vikings se reunissem sob o pinheiro. Eles acendiam velas nos ramos das árvores, faziam pedidos e desejavam que luz vencesse a escuridão. Percebes a ligação?

Ela apressou-se a fazer que sim, com a cabeça. Os olhos pareciam estrelas, de tão fulgurantes.

- Eles então escolhiam um rapaz com idade de passagem da adolescência para a idade adulta. Ele tinha que ser forte e destemido, para ir à caça de um urso branco, que representava a força viking. A intenção era caçar o animal e voltar, usando a sua pele vestida sobre o corpo. Às vezes ficava muitos dias e a barba crescia e ficava coberta de neve. Como o inverno era muito rigoroso, ele usava a parte da pele branca virada para dentro, de modo a manter-se aquecido. O lado de fora da vestimenta, nada mais era que a parte de dentro do urso, ainda vermelha de sangue, que avistava-se de longe, quando o jovem homem retornava, vitorioso, cumprindo o ritual de passagem. 

- Ugh! 

Ela fez uma carinha estranha e olhou-me. Eu ri e abracei-a. A história estava contada, mais uma vez, entre tantas outras, nos últimos anos, para sua satisfação e fascínio.

A noite estava calma e fresca. Nós dois ficamos, sentados na varanda a olhar o céu, acima de nós, quietos, por um longo tempo. Ela deitou-se no banco de madeira, protegido por umas fofas almofadas e aninhou a cabeça no meu colo.

- Pai?

- Uhn?

- Eu sei que tu não gostas muito desta época, porque traz lembranças tristes, mas eu adoro o Natal. 

- Eu sei, meu amor. Eu sei. O Natal e todos os outros dias do ano só são lindos porque tu existes, minha vida! 

Ela sorriu e ficou a olhar as estrelas, em silêncio, até adormecer, ali mesmo, deitada no meu colo. Eu olhei para ela e duas lágrimas quentes, rolaram pelas minhas faces. Eu questionei-me, em silêncio.

- (Como uma criatura tão pequena e tão frágil pode, ao mesmo tempo, ser tão forte e tão adorável?)

Ela era minha referência e a razão de eu querer ser forte, sempre. 

No fundo, eu sabia que ela era jovem demais para lembrar daqueles detalhes todos das histórias que eu contava e ia sempre pedir para contá-las muitas vezes, nos anos seguintes. 

Eu, porém, estava muito enganado. Ela nunca esqueceu daquela noite, nem das histórias que eu contei…

sábado, 19 de dezembro de 2015

A Mensagem...


É Natal. É época de renascimento… É tempo de repensar... De refazer. O Natal é a ocasião certa para fazer diferente e diferença. Não é difícil. São pequenos gestos que podem significar grandes feitos e gerar grandes resultados. Senão, vejamos:

Ouça mais música. Dance muito. Cante mais. Assobie, se não conseguir cantar. Aja como adulto, mas mantenha o coração de criança. Passe mais tempo com sua família. Telefone, se não puder estar perto, mas mostre que se importa com eles. Faça planos e sonhe, mas tenha, pelo menos, um dos pés firmes no chão. Organize-se. Dê atenção a aqueles que têm menos. Faça um gesto de caridade. Faça uma limpeza no seu armário e na sua casa. Livre-se de tudo o que não lhe servir mais e dê para quem precisa. Faça uma limpeza na sua vida. Fique mais leve. Viva mais leve. Livre-se de conceitos antigos e, também, dos pré-conceitos ou conceitos pré-concebidos. Preocupe-se mais com sua vida. Preocupe-se menos com as vidas dos outros. Cuide mais de si. Exercite-se. Alimente-se bem. Faça uma dieta mais saudável. Ouça mais. Fale menos. Pense antes de falar. Critique menos. Siga sua intuição. Converse mais e mande menos mensagens de texto. Leia mais livros e menos as páginas policiais dos jornais. Assista menos televisão.

Acredite mais nas pessoas. Dê-lhes mais hipóteses. Medite. Reze. Agradeça mais. Peça menos. Conheça-se melhor. Faça algo diferente. Estude. Aceite-se. Cuide-se bem. Conheça suas emoções. Emocione-se, sem medo do que os outros vão pensar de si. Chore mais de alegria e de saudades e menos de frustração, tristeza ou de raiva. Passeie mais. Viaje mais. Caminhe descalço. Molhe os pés nas águas do mar e do rio. Ria. Sorria. Não magoe as pessoas. Não destrua a natureza. Não deprede o que não construiu. Não seja cruel nem injusto com os outros, nem com os animais. Não aceite que sejam cruéis ou injustos consigo. Não inveje o que os outros têm. Não sinta ciúmes. Mire-se no exemplo dos melhores. Siga os passos de quem admira. Não idolatre ninguém, nem nada. O que importa é a sua espiritualidade, consciência e integridade, não a religião que você segue. Ame, incondicionalmente. Abrace mais, beije mais. Namore mais. Caminhe de mãos dadas. Mostre que isso é importante para si. Diga mais vezes: eu gosto de ti ou amo-te. Mas diga, somente, se for de verdade. Seja autêntico e transparente. Não tenha medo de dizer a verdade. Seja bom, mas não deixe que tirem vantagem de sua bondade. Seja puro, mas não seja ingénuo.

Preocupe-se com o que faz. Assuma suas responsabilidades. Faça sempre o seu melhor. Dê o melhor de si… em tudo o que puder. Não aceite menos do que merece. Não passe por cima de ninguém. Não use o fracasso dos outros para sua promoção. Aceite suas derrotas como lições de vida. Amanhã é outro dia. Aprenda com o passado, faça planos para o futuro, mas viva o presente. Não faça promessas que sabe que não vai cumprir. Elogie o bom trabalho. Seja paciente com os erros dos outros. Se não tiver nada de bom para dizer, pense bem antes de emitir um comentário. Coloque-se no lugar de quem vai ouvi-lo. Se sentir que não irá gostar do que vai ouvir, não fale. Viva cada dia como se fosse o único: com intensidade e alegria. Pinte a sua vida com as cores que mais gosta. Seja luz na escuridão. Aprenda a voar. Plante uma semente.

Aprenda a fazer silêncio. Escute sua voz interior. Seja paciente e tolerante consigo mesmo. Perdoe-se e aos outros. Aceite que ninguém é igual à ninguém. Ame-se e às suas qualidades. Aceite seus defeitos ou faça algo para mudá-los em seu benefício. Não viva para as expectativas dos outros. Não viva à sombra de ninguém. Não espere demais das pessoas. Não espere pelos outros, nem dependa de ninguém para ser feliz. Todos nós somos especiais e únicos. Somos os verdadeiros milagres da vida.

O verdadeiro Espírito de Natal é caridoso e paciente. Que ele nunca deixe de existir em nossos corações.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Receios & Desencontros


- Olha para mim. Olha para mim. Só um bocadinho. Um segundo que seja...

Isso...  Tu não tens ideia do que se passa, não é? 

Eu venho cá todos os dias, à mesma hora, sento-me à mesma mesa e espero ansiosamente pela tua chegada. Tu me olhas, mas não me vês, como se eu fosse transparente… e eu sou… completamente transparente. Basta veres como os talheres escapam-me das mãos, cada vez que teus olhos cruzam os meus. 

Às vezes tu sorris, quando me olhas e pensas que eu não noto, mas basta eu te olhar e tu desvias e disfarças, como se a minha invasão te ferisse. 

Tenho medo de ferir-te. Tenho medo de ferir-me, na tentativa de não ferir-te. 

Receio que teu riso seja de troça e que o desvio de teu olhar seja por impaciência. Receio dirigir-te a palavra. Tenho medo da rejeição. Prefiro que troces de mim e rias do meu mau-jeito do que nunca mais me olhes ou evites minha presença desajeitada. 

Só queria ter mais coragem e cumprimentar-te, mas este pensamento assusta-me.  

Já não consigo engolir a comida. Já não consigo organizar meus pensamentos. Já nem consigo tirar os olhos de ti. 

Droga! Corei. 

E se fugires, ao perceberes, impaciente, que eu passei do limite, corando deste jeito?  

Devo ir, antes que faça uma vergonheira. Meu coração está destroçado, mas meu orgulho está intacto. Mas nem ficaria triste se meu orgulho deixasse minha coragem entrar em cena… em grande! 

Não me olhes agora. Tenho as faces afogueadas. Meu corpo inteiro arde. Apesar do frio, sinto um calor infernal. 

É verão dentro de mim… Mas teus olhos não perceberão. Tuas mãos não sentirão. Teus lábios não tocarão. 

Tenho que ir, antes que caia à tua frente e peça-te para falares comigo. Antes que eu perca o controlo e te diga como me sinto. 

Tenho medo de mim. Melhor sair correndo, já que, se ficar, dói-me o peito. Adeus. Amanhã volto cá e faço este filme todo outra vez. Quem sabe o destino aja a meu favor e faça-te sentar perto de mim… Se isso acontecer, não serei capaz de almoçar. 

Melhor que fiques longe de mim... Assim, numa distância segura, onde nossos olhos possam olhar e cruzar, sem que nossos outros sentidos sejam afetados, assim, no meio da multidão. 

Vou-me, que meu peito dói muito. Minha cabeça dói. Minha garganta está seca. Melhor eu ir… já… antes que seja tarde demais...
 
***

- Oh! Foi-se... Como todos os dias...

Daria tudo para ter certeza que aquele olhar tão tímido volte amanhã. Passo os dias a pensar naquele olhar e tentar perceber porque deixa cair os talheres cada vez que eu olho naquela direção. 

Às vezes sorrio, desajeitadamente, só para ver se recebo, pelo menos, um traço de resposta, mas qual nada! Só desvias o olhar. E quando isso acontece, meu peito dói e minha cabeça diz-me para esquecer, de vez, que aquele olhar, tão magnético, poderia, um dia, olhar-me para sempre, admirar-me, desejar-me, como eu desejo. 

Tenho medo. De machucar-me. De magoar-te. 

Não consigo tirar meus olhos de ti, por mais que tente, mas não consigo sustentar tua timidez com a minha. Vejo-te enrubescer e sinto que invadi tua tão salvaguardada privacidade. Mas ficas tão bem, assim, com esse rubor a decorar-te as faces pálidas. 

Quem me dera ter coragem para dizer-te olá. Queria tanto sentir teu cheiro, o calor da tua pele, o toque de tua boca. Queria sentir a força das tuas mãos a apertar as minhas e fazer-te as promessas que tenho medo de ouvir. 

Por que a coragem falta-me justamente quando mais devia dar-me incentivo? Tenho que seguir-te. 

Tenho que chegar perto de ti, mas tenho medo que rias de mim. Tenho receio que ao ver-me, assim tão perto, chames a segurança e levem-me para longe de ti. 

Tenho medo de mim. Tenho medo de não conseguir controlar-me amanhã, quando sentar à mesa à tua frente, tão cuidadosamente escolhida por mim, para não perder-te de vista... naqueles poucos minutos em que estamos frente a frente... tão perto e tão distantes...

 Sinto um calor quando levantas e sais. Depois, minha alma congela, por sentir tanto tua falta perto de mim. 

Passas, sem olhar-me. Meus olhos, desejosos de ti, não te perdem, jamais, de vista. 

Amanhã tenho que tomar coragem. Não consigo mais viver assim, sem poder chegar mais perto de ti. Quem sabe, amanhã, eu consiga dizer-te algo estúpido, só para ter tua atenção e para ouvir tua voz... 

Quem sabe até sorrias para mim e respondas com algo mais estúpido ainda... e aquilo nos faça rir do ridículo da situação... e nos aproximemos... e... 

Amanhã... Quem sabe, amanhã não fujas de mim, como foges todos os dias... 

Amanhã... 

Hoje... infelizmente... já perdi-te... mais uma vez!

*** 


domingo, 22 de novembro de 2015

Espirais (Epílogo)


O rapaz, que fora apreendido em flagrante, numa área à qual não deveria sequer ter tido acesso, em princípio, foi agressivamente retirado do local pelos seguranças do sumo-sacerdote. Os dois foram, então, levados de volta e mantidos no quarto da porta sem maçaneta e sem nenhum direito de acesso às outras instalações do grande edifício. Estavam encarcerados outra vez... e desta vez tinham plena consciência da razão pela qual voltavam àquela prisão.

- Aonde tinhas a cabeça? Sabes muito bem que foste extrema e completamente imprudente e negligente. Se antes nós corríamos perigo, agora o risco será muito maior. Temos que sair daqui o quanto antes… antes que nos façam mal maior…

O rapaz de óculos sabia que o outro tinha razão e não respondeu. Ele odiava quando aquilo acontecia, porque ficava sem contra-argumentos. Pôs as duas mãos na cabeça, sentindo-se cair num poço sem fundo, frio e escuro. Jogou-se de costas sobre a cama e fechou os olhos. Uma dormência tomou conta dele, quase que imediatamente. O outro também sentiu seus olhos pesarem e quase não teve tempo de sentar-se, antes de perder a consciência. Haviam sido drogados.

***
- Aquilo foi uma infeliz coincidência. Um acidente, que acabou salvando nossas vidas. Não somos nada especiais… apenas tivemos a sorte de não estar na superfície, quando as explosões ocorreram. Foi a estrutura do ‘bunker’ que nos manteve a salvo, fora da área de radiação.

- Eu não acredito.

- Pode acreditar. Nós somos dois comuns mortais. Nada além disso. Isso tudo não passou de um grande engano. Nós nem devíamos estar lá, naquele momento…ou aqui… agora…

- Amanhã, assim que o sol nascer, serão sacrificados. Se for verdade o que dizem, não haverá consequência…. Além da vossa morte, é claro. Se estiverem mentindo, vosso poder será meu. De todas as formas, eu saio ganhando e vocês perdem…


Em meio ao medo e à raiva que sentia, o rapaz de óculos gritou um imprecativo, mas em vão. O homem da cabeça rapada já havia saído, ignorando qualquer súplica e divertindo-se com o que acabara de dizer aos dois soldados prisioneiros. Eles já não tinham nenhum uso. Pelo menos serviriam de comida aos grandes animais, que eles usavam como farejadores de caça…

- Ora, ora… Que grande ideia… tornar o sacrifício de dois inúteis soldados num jogo de caçadores e caçados…

O homem sorriu, satisfeito por haver tido aquele lampejo de imaginação. Tinha que fazer uns arranjos para a manhã seguinte. Aquilo ia ser, mesmo, muito divertido…

Quando a porta foi trancada, um suave e conhecido perfume começou a impregnar o quarto e os dois começaram a sentir-se sonolentos.

Desta vez, porém, protegeram os narizes e as bocas com a almofada, levantaram as cobertas das camas, formando uma grossa camada protetora, como uma cabana e ficaram quietos, na esperança que o opiáceo não penetrasse entre as fibras das cobertas. Tinham que manter-se alertas, sem perder a consciência. Sabiam o perigo que corriam e não podiam deixar mais nenhuma ponta solta, ou seriam vítimas muito fáceis dos soldados a serviço do insano sumo-sacerdote.

O tempo parecia não passar. Algumas horas depois, ouviram o barulho de alguém a mexer no ferrolho da porta e entrar no quarto.

Os dois jovens soldados fingiram estar a dormir, tentando não respirar muito profundamente, para não absorver a droga que havia sido lançada no ambiente. Uma lufada de ar fresco entrou no quarto, assim que dois homens armados cruzaram a porta. Estavam acompanhados pela mocinha, filha do sumo-sacerdote, aquela que havia encantado o jovem soldado, que ainda fingia dormir.

Ela aproximou-se da cama e olhou-o bem de perto. Ele sentia o perfume da pele e dos cabelos dela, quase a roçar em suas narinas. Ele não resistiu e abriu os olhos, enquanto ela dava um gritinho nervoso, que chamou a atenção dos dois seguranças. O outro soldado percebeu a deixa e empurrou os dois seguranças contra a parede, com toda a força que conseguiu e gritou:

- Corre!

O rapaz de óculos agarrou a mão da mocinha e saiu correndo pelo corredor, logo atrás do outro, aproveitando-se da confusão deixada, enquanto os seguranças tentavam, sem sucesso, sair do quarto que fora trancado pelo lado de fora.

Os dois jovens soldados correram pelos labirintos que levavam ao andar de baixo, sabendo que tinham que achar, urgentemente, uma saída daquele lugar. Passaram por uma série de corredores até alcançarem um hall, que levava, através de um pórtico, ao lado de fora, onde uma varanda com muros muito altos impedia-os de sair. Voltaram para dentro, correndo.

Ao retornarem, depararam com outro corredor, que levava até uma outra sala, completamente desprovida de móveis, com o piso de mármore puro e muito limpo. No centro daquela, uma enorme árvore erguia-se, imponente, como se fosse senhora do lugar e passando por uma abertura no teto, ainda crescia, como se não tivesse limites, até quase perder-se de vista. Um par de círculos concêntricos estavam pintados no imaculado chão de mármore, como se decorassem, em vermelho (a vida) e dourado (a realeza), o início da vida que ela representava.

Uma grossa liana subia em espiral por toda a extensão do tronco, das raízes até muito acima do teto do edifício.

Ao perceberem que os seguranças aproximavam-se rapidamente, os fugitivos utilizaram-se daquela improvisada escada, para escaparem pela abertura acima deles, mas a mocinha foi alcançada pelos homens do sumo-sacerdote, sem sequer conseguir subir atrás deles…

***

- Não se assustem. Não vos queremos mal. Não é sempre que alguém escapa da grande fortaleza.

Os homens, vestidos de uma forma mais comum, apressavam-se a tirar os dois jovens soldados da água do rio. Tentavam tranquilizá-los, já que um dos rapazes parecia bastante assustado e não demonstrava confiança cega em ninguém. O outro parecia mais aliviado. Deviam ter passado por uns maus bocados na fortaleza, rio acima, com os homens do sumo-sacerdote ou com o próprio…

Os dois foram levados para uma base, no meio da floresta, fortemente protegida e guardada por homens armados. Depois de trocarem as roupas molhadas, em aposentos militares, desprovidos de qualquer luxo, como o anterior, onde eram prisioneiros, os jovens soldados foram apresentados ao comandante, um homem com ar distinto e que os recebeu com um largo sorriso.

- Folgo em saber que dois homens bravos conseguiram escapar da fortaleza e da insanidade daquele homem. Sinceramente, não esperava que fossem tão jovens, mas vejo que estão bem.

- Nós somos soldados de elite, treinados pelo exército…

- Soldados treinados, hein? Não parece-me que sejam mais que dois jovens aventureiros. E como vieram parar aqui neste buraco, no meio do nada, a mercê de um louco como aquele?


Os dois mostraram as plaquetas de identificação do exército que traziam, ainda, penduradas nos pescoços, em correntes de aço e contaram, brevemente o que lhes acontecera.

- Fomos sequestrados, na saída do aeroporto. Estávamos numa viagem de férias.

O comandante ouviu-os com atenção, sem fazer perguntas. Quando terminaram, disse-lhes que descansassem, que ele ia verificar com seus contactos para tirá-los de lá, antes mesmo que os homens do sumo-sacerdote dessem conta que eles estavam naquela base. A presença deles poderia desencadear um conflito entre os dois lados.

- Por favor, entretanto, estejam à vontade, mas não saiam da área do acampamento, por ser mais prudente. Eu vou tentar ser o mais breve possível. 

Ele tomou nota dos números de identificação dos dois soldados e saiu.

O jovem, que perdera os óculos na queda contra o rio, mantinha um ar bastante preocupado. O outro compartilhou a inquietação do amigo, quando os olhos dos dois encontraram-se. Algo parecia estar fora do lugar…

***

Naquela noite, o comandante mandou acender uma fogueira no meio do acampamento e eles tiveram uma refeição ali mesmo, sentados em improvisados assentos de troncos, e mesas feitas de pedaços de madeira cortada a facão. Tudo muito rústico, mas interessante, ao mesmo tempo. Os soldados lembraram-se de quando acampavam juntos, antes de a tragédia acontecer. Os homens contavam histórias sobre o que acontecia por ali, das pessoas que haviam sido mortas e jogadas às feras, das quedas no rio - quase todas fatais - e dos mutilados corpos que iam dar às margens do rio, perto do acampamento. Eles comeram e beberam como se estivessem de férias, com os amigos à volta de uma fogueira, num acampamento de verão.

Pela primeira vez em dias, os rapazes dormiram bem, sem estarem drogados. No dia seguinte, assim que amanheceu, um estranho silêncio colocou os guardas em estado de alerta. Algo não ia bem. Os pássaros costumavam estar sempre em algazarra, assim que o sol nascia, anunciando que a vida continuava normal, não importando o que havia acontecido no dia anterior. Um dos cães, que estava sentado junto ao dormitório, levantou-se e correu para o meio do mato, a latir ferozmente. Os homens seguiram o animal, de armas nas mãos e sem muito pensar. Agiam por puro reflexo.

Um berro, um estranho urro e um curto ganido foi tudo o que conseguiram ouvir, antes do céu vir abaixo, dentro do acampamento. No meio da correria, da confusão e dos tiros, os rapazes perderam-se. Não tinham armas, estavam completamente alheios ao que acontecia, quando uma cabeça apareceu na entrada da tenda e gritou:

- Venham! Depressa!

O comandante pulou num jeep e girou a chave na ignição. Os rapazes mal tiveram tempo de entrar no veículo, que não demorou uma fração de segundo para sair pelo meio do mato, numa trilha mal aberta, em alta velocidade, sem cuidar muito por onde passava. Atrás deles ouviam-se tiros e berros, como se grandes animais estivessem em luta com humanos. Eles não queriam imaginar quem iria vencer aquela estranha batalha.

- Mantenham as cabeças baixas. Vamos sair daqui sem demora. Os homens e as feras do louco invadiram o acampamento. Devem ter sabido que vocês estavam lá.

E pela densa mata o jeep rumava, sem parar, com os três homens mudos e concentrados apenas no que viam pela frente. Só parou, muitos quilómetros à frente, depois de atravessar uma longa trilha e de chegar à uma cidade. O comandante entregou os dois ao quartel-general, deixando-os sob a proteção do exército local. Deu instruções para serem escoltados até o aeroporto e só retornarem quando o avião houvesse partido. Os dois iam embarcar como soldados a serviço do exército, com passaportes arranjados às pressas. O comandante deixou-os, praticamente sem despedir-se e voltou para a base.

***

- Eu nunca mais saio da base militar… para nada! Não adianta tentar convencer-me do contrário. Eu nunca mais saio de lá!

- Não digas isso… Não estás sendo coerente.


Ao passar pelo hall do aeroporto, já em território natal, uma moça de grandes olhos muito azuis, que vinha pelo corredor, fixa o olhar no do rapaz que sentia falta de seus óculos, para poder enxergar melhor… Ele se distrai, tropeça na mala e quase cai. Quando levanta a cabeça, não vê ninguém com aquelas características. O amigo olha-o com uma expressão questionadora, mas ele ficou com vergonha de mencionar o que vira. Ele volta a olhar em todas as direções, à procura da moça, mas em vão. Sacode a cabeça, convencido estar enganado, resmungando para si mesmo.

- Deve ter sido impressão minha…

Por trás de uma banca de venda de comida, dois grandes olhos muito azuis observavam, enquanto os dois soldados dirigiam-se para a saída. Um deles vinha à frente, com o passo firme e pesado, enquanto o outro seguia-o, balançando a cabeça, desconsolado.

Na calçada, do lado de fora do aeroporto, uma van escura vinha chegando, sem ser percebida pelos dois jovens, que já iam a caminhar um tanto longe, na direção oposta.

Um par de soldados entrava naquele momento, ainda vestindo seus uniformes de gala, onde traziam insígnias do exército especial e medalhas de bravura, recentemente agraciadas, ostensivamente reluzindo em seus peitos. Não perceberam que a porta lateral da van abriu-se naquele momento e um homem vestido de negro saiu de lá, mantendo os olhos fixos nos soldados, que dirigiam-se à área de ‘check in’, subindo as escadas em espiral, erguidas no centro do movimentado hall do aeroporto…

***