- Como assim, pedras grandes?
- Itá, em Tupi-Guarani, significa pedra e gûasu, significa grande…
- Foram os índios que deram esse nome?
- Não sei ao certo, mas faz sentido. O mais engraçado é a lenda local.
- Que lenda?
- Das bruxas…
Seu interesse aumentou.
- Conta, vai. Quero saber a lenda.
- Diz que as bruxas da ilha queriam fazer uma grande festa e escolheram
aquela praia por ser a mais linda da região. Convidaram todos os seres
fantásticos…
- Quem eram estes?
- Os lobisomens, os vampiros, a mula sem cabeça e, até, o Curupira, Boitatá
e todos os outros seres do folclore local…
- Uau!
- Mas não convidaram, de propósito, o diabo.
- Por quê?
- Porque o diabo cheirava mal, a enxofre e, porque, na sua arrogância
de superioridade, o bicho sempre fazia as bruxas lhe beijarem o rabo, para
demonstrar submissão a ele.
- Uff! Que nojo!
- Pois é.
Dei uma gargalhada e continuei. Eu adorava a plateia de uma pessoa só.
- Quando a festa estava em alta e todos se divertiam a valer, adivinha
quem aparece, de surpresa e muito irritado, a trovejar sua ira desaprovadora…
- O diabo?
- Exatamente. Ele estava muito enfurecido mesmo e, para castigar as
bruxas, por terem deixado de lado sua majestosa figura, lançou uma maldição e transformou-as
em pedras… grandes… que ficaram presas ao local, desde então.
- Oh!
- Por isso, o nome do lugar é justamente este: Itaguaçu, ou pedras
grandes.
- Isso não é verdade, é?
- É uma lenda… É mitologia. Claro que acredita quem quiser, mas é uma
história engraçada e interessante.
Ouvi um trovão. Aparentemente
teríamos chuva naquela noite quente.
Com o clarão dos raios, seus
olhos ficaram meio arregalados, assim meio perdidos, como se estivesse a
imaginar a história, em detalhes. Deixei que sua imaginação voasse solta.
Outro raio. Aquele caiu mais perto,
pois o estrondo foi maior e o tempo, entre o raio e o trovão, muito curto.
Lembrei das aulas de ciências, na escola.
- Vamos entrar. A chuva não tarda.
- Vamos.
Entrou com pressa, como se
estivesse com medo. Eu ri.
Os trovões continuaram e em pouco
tempo tivemos uma tempestade de verão, daquelas poderosas. Eu, para falar a
verdade, gostava das tempestades de verão, pois elas limpavam o ar e
refrescavam a terra.
Um clarão, mais forte que os
anteriores, foi seguido de um estrondo muito forte. Aquele caiu muito próximo
de nós e levou a energia eléctrica da rua inteira. Provavelmente havia atingido
um poste, ali na redondeza. Já não era tão cedo, por isso decidi que iria para
a cama, ao invés de esperar que a energia voltasse. Pela manhã, já estaria tudo
normal.
Adormeci quase de imediato, assim
que deitei a cabeça no travesseiro. Não pensava que estivesse com tamanho
cansaço.
Tive um sonho estranho, com as
pedras grandes da praia. No meu sonho, uma das pedras havia sido atingida por
um raio e havia aberto ao meio. A rocha era oca e tinha o formato de uma pessoa
escavado por dentro da mesma. Achei aquilo muito peculiar. Eu ainda examinava o
interior da pedra, quando alguém, atrás de mim, disse:
- Esperei tanto tempo por este momento.
Eu virei-me e vi aquela mulher muito
magrinha, vestida de negro, com os cabelos brancos desalinhadamente presos por
um lenço de cabeça, também negro. Lembrava uma daquelas figuras eu havia visto,
quando criança, de uma carpideira. A pele era tão enrugada, que parecia um
pergaminho.
- Qual momento?
- Não foi justo. Não foi nada justo.
Ela repetiu a frase, sem me
responder, mas apertou os olhinhos escuros, como para ver-me melhor. Ela
levantou a esquelética mão e tocou-me a face. Seus dedos eram assustadoramente
frios.
- Não foi nada justo. Não foi, não.
Ela balançou a cabeça e
virando-se, começou a caminhar pela praia, na direção oposta à minha casa. Eu
ainda a ouvia murmurar aquela frase estranha, enquanto ia-se embora, absorta em
seu mundo próprio e a balançar a cabeça, de forma desconsolada, com o corpo
levemente curvado para a frente.
- …Nada justo… nada justo…
***
- Tive um sonho estranho.
- Eu também…
- Deve ter sido por causa da conversa de ontem e da tempestade.
- Pois…
Seus olhos pareceram viajar.
Devia estar a lembrar-se do sonho.
Pegou a caneca de café
recém-passado e foi até a varanda, a observar a praia. Ficou por uns minutos a
olhar numa única direcção, como se observasse, atentamente, algo que se passava.
Eu fui até ao seu lado e olhei na mesma direcção.
Um grupo de homens, ao longe,
parecia ocupado com algo na beira da água. Eles estavam de pé, formando um
círculo, à volta daquilo que eu julguei ser um animal morto, provavelmente
arrastado pelo mar até a praia, depois da tempestade da noite anterior.
- Deve ser algum animal, trazido pela maré.
- Pois. Mas não é para aquilo que eu estou a olhar. Olha mais adiante,
um pouco, aquela figura atrás da outra rocha, como se estivesse a esconder-se
dos homens.
- Onde?
Apontou o dedo para a área atrás
de uma das grandes pedras, justamente aquela que tinha o formato mais humano,
com uma cabeça, formada por uma pedra redonda, que jazia em cima daquela maior,
que parecia constituir o corpo.
- Lá!
Por detrás da grande rocha,
estava uma pessoa, meio encurvada e vestida com roupas escuras. A impressão que
tinha era que estava a esconder-se dos homens, por algum motivo. O que tornava
a figura mais estranha era a semelhança com a personagem com a qual sonhara na
noite anterior. Mas minha surpresa ainda estava por tornar-se maior, a partir
do momento em que ouvi:
- Parece com aquela velha que eu sonhei na noite passada…
- O quê?
Como seria possível que nós dois
tivéssemos sonhado com a mesma personagem, na mesma noite?
- A sério? Eu também sonhei com uma figura assim…
- Isto é tudo muito estranho! Ou, então, é uma grande coincidência. Vamos
até lá!
- Vamos!
***
- Algo não está certo.
- O quê?
- Não sei. Sinto uma tristeza tão grande…
- Ainda tens o amuleto?
- Sim. Por quê?
- Joga fora. Atira-o ao mar.
- Mas ela disse…
- Não interessa o que ela disse. Joga-o fora. É isso que te está a
influenciar. É o poder da sugestão.
- Nós a ajudamos e ela deu-mo de presente. Não posso fazer isso.
- Então eu faço. Foi um presente envenenado, isso sim. Ela encheu tua
cabeça de sandices.
Arranquei-lhe o amuleto da mão e,
indo até a beira d’água, atirei-o mar adentro. Pela força que eu usei, ia ser
praticamente impossível resgatá-lo, se por algum motivo quisesse. As águas da
baía estavam calmas e o facto de atirar o objeto para além da zona de formação
das ondas, iria dificultar qualquer busca, se houvesse, mais ainda. Voltei para
dentro, com um ar de satisfação estampado no rosto.
- Não foi justo. Não foi nada justo…
- O quê?
Olhou-me de uma maneira muito
estranha, como se uma possessão tivesse tomado conta de seu corpo. Balançou a
cabeça de forma desconsolada, olhando através de mim, com o corpo levemente
encurvado para a frente.
- Nada justo… nada justo…
***