sábado, 13 de setembro de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 4: Veneno)


- Onde estão? Quero saber onde estão!

- Não estão comigo. Já te disse!

O homem de cabelos castanhos estava numa grande sala, construída numa área escura e fétida. Sentia o cheiro forte de humidade e de algo pútrido no ambiente. Também ouvia o ruido de água a gotejar perto de onde estavam e, um pouco mais além, também a correr, como se houvesse um córrego, não muito longe. Deviam estar nos subterrâneos de alguma construção.

À sua frente, tinha, aos berros, uma mulher muito alta, magra e pálida, com cabelos negros, bastante compridos e que, apesar de lisos, não pareciam haver, jamais, sido penteados, o que dava-lhe um aspecto aterrador. Tinha olhos castanhos muito claros, quase da cor do mel e estava sentada numa cadeira de espaldar alto. Ela aproximou o rosto macilento do seu, tentando obter a informação que ele não possuía e, aparentemente, procurava ler-lhe os pensamentos, pela forma que olhava no fundo dos seus olhos. Seu hálito era horrível. O homem prendeu a respiração o mais que pode, para não empestar seu organismo. Ele estava sendo seguro por dois tipos estranhos, cada qual de um lado, vestidos com casacos escuros de couro, por sobre roupas também escuras. Outros dois, vestidos da mesma forma, observavam a cena, mas sem interferir. Provavelmente seriam chamados, se e quando fossem necessários. Ele já os havia visto antes, mas não naquele lugar.

- Revistem-no!

À ordem da Sibila, os dois homens começaram a revistá-lo, com pouca destreza, arrancando-lhe parte da roupa e tentando encontrar o que ele, felizmente... ou infelizmente... já não tinha consigo. Pela violência e falta de jeito com que eles o examinavam, julgou que talvez devesse ter algo que lhes dar, mas estava com roupas que nem suas eram, naquele momento. Ele ainda conseguiu gritar, no meio da confusão em que estava:

- Eu não tenho nada comigo! Já disse! Deixem-me em paz!

Os homens terminaram a revista, balançaram a cabeça e largaram-no. Um deles empurrou-o para o chão, aos pés da mulher. Não havendo encontrado nada, deixaram-no de lado, sabendo que sua mestra já tinha planos bastante definidos para ele.

A pitonisa colocou as mãos extremamente magras e pálidas nos braços da cadeira, com o intuito de levantar-se. Estava evidente que havia perdido a calma completamente, por não haver conseguido o que queria. Seu corpo retorceu-se diante dos olhos dos presentes e a cor de sua pele pareceu transmutar-se, assim como sua forma original. Seu corpo alongou-se e ela ficou muito mais alta que as outras pessoas na sala. Sua fúria fez os olhos flamejarem, parecendo mudar a forma, mostrando pupilas menos redondas, como as dos répteis. Os homens fizeram um movimento na direção do prisioneiro, mas logo pararam, quando ela soltou um brado esquisito e deu uma investida, contra ele, já metamorfoseada em seu corpo longo, pálido e horrendo, de uma escamosa serpente. Investiu contra o homem, com um movimento muito rápido e com a boca aberta, como se tentasse cravar-lhe os dentes. Ele ainda ouviu seu grito meio sibilado.

- Afastem-se! Ele é meu!!!

Meio sem pensar, com forças que nem sabia existirem, ele conseguiu ser mais ágil que ela e deu um salto para trás, bem no momento em que viu a cara da cobra chegar perto demais. Foi uma atitude tomada mesmo a tempo de evitar a picada venenosa da mulher-serpente. Ela bateu contra o chão, com um estrondo. Sacudiu a cabeça e voltou a atacá-lo, desta vez, com muito mais fúria.

Ele tinha que ser rápido a pensar numa saída.

Se conseguisse alcançar o portal antes de ser atingido, talvez tivesse uma hipótese de livrar-se dela, quase ileso, embora não conhecesse o lugar em que estavam. Decidiu não correr em linha reta, pelo menos enquanto estivesse na grande sala. Com a forma física em que aquela louca encontrava-se, ele poderia ter alguma vantagem, se ela não percebesse seu intento, de imediato. Era sua única possibilidade e ele lutava contra o tempo. Passou por trás de uma coluna, tentando certificar-se que ela vinha ao seu encalço, depois deu uma volta grande, cruzou por trás de outra coluna e então correu como um desesperado, sem olhar para trás. Os homens ficaram confusos com aquela estratégia esquisita, mas ela era bem mais esperta e percebeu logo que ele tentava fazê-la atrapalhar-se, num emaranhado, com seu próprio corpo.

Soltou um grito, quando percebeu o intento e veio, com uma velocidade que o homem não acreditava ser possível para uma serpente. Já estava a poucos metros da saída, quando sentiu uma fisgada na perna direita, ao mesmo tempo que foi puxado para trás, violentamente, caindo pesadamente contra o chão duro. Embora tentasse, desesperadamente, não conseguiu agarrar-se à nada, para impedir de ser arrastado como uma presa vulnerável, pelo piso sujo e escorregadio, direto para a boca do monstro.

Sentiu que não ia escapar daquela. Seu pavor aumentou imensamente quando uma dormência começou a tomar conta de sua perna e espalhar-se pelo seu corpo. Logo percebeu que um poderoso veneno havia sido injetado em sua corrente sanguínea e que distribuía-se, quase instantaneamente, pelo seu organismo. A adrenalina corria pelas suas veias, mas não suficientemente rápida para minimizar o efeito daquela dormência. Seu pavor aumentou com a sonolência que tomava conta de si. Era tarde demais para conseguir resistir. Ainda lembrou-se de haver lido, uma vez, que quanto mais rápido o veneno se distribui pelo corpo, mais rápido os anticorpos reagem contra ele, mas um caleidoscópio de cores muito vivas turvou-lhe a visão clara do que acontecia e, embora em meio a um estado de alucinação, perdeu a consciência completamente, antes mesmo de pensar em qualquer coisa mais.

***

Uma sensação de cobras a arrastarem seus corpos frios sobre a sua pele e a fazer uma pressão constritora sobre seu corpo, incomodava-o e sufocava-o. Ele não tinha certeza se ainda estava alucinando ou se, realmente, em meio a um covil de serpentes. Estava tudo muito escuro e mal conseguia mover-se. Sentia seus membros praticamente imobilizados, sem reação. Seu corpo parecia arder, como se tivesse com uma espécie de febre, que intensificava aquela sensação de delírio. Tentou mexer-se e retirar os répteis de cima de si, mas seus braços não tinham movimento suficiente para obedecer ao comando de seu cérebro. Uma dor de cabeça insuportável, já conhecida sua, incomodava-o, quase impedindo-o de pensar. Seu peito começou a arfar e a respiração a ficar ofegante e difícil. Uma palpitação no coração impedia-o de inalar o ar propriamente. Sua garganta estava extremamente seca. Estava a ter um ataque de pânico.

De repente, um pequeno raio de luz entrou por uma abertura e atingiu-lhe o rosto. Desviou o olhar e viu que estivera realmente delirando. Seus braços estavam presos por cordas, que contornavam também parte do seu pálido torso e seu corpo estava todo coberto de suor. Ele estava vestido com suas cuecas e mais nada. Uns poucos instantes depois ouviu um ruído de metal a roçar contra metal e a porta abriu-se, em seguida.

Uma mulher alta e magra entrou, seguida de dois homens também bastante altos, porém muito corpulentos. Ela aproximou-se dele e ordenou que os homens o desamarrassem. Os brutamontes obedeceram e arrastaram-no para fora, atrás da mulher. Ele tentava resistir, mas estava com uma espécie de paralisia, com o corpo sem obedecer os comandos de seu cérebro. Tentou gritar, mas a voz não saía direito. Não articulava nada coerente. Achou que estava tendo um AVC.

- Deixem-no aí!

Estavam de volta à sala escura. Os homens largaram-no no chão, com pouco cuidado e ele caiu com o rosto no chão sujo e frio. Ela abaixou-se e segurou-lhe a cabeça, olhando-o nos olhos e, com um sorriso irónico, disse:

- Já não preciso mais de ti. Já sei tudo o que precisava saber. Que doce veneno! Que maravilha ele faz…

Com um esforço enorme, conseguiu articular a única frase possível, embora monossilábica.

- Quê?

Ela deu uma gargalhada vitoriosa, provavelmente por ver tamanha confusão na face do prisioneiro agora moribundo, que encontrava muita dificuldade em falar ou mover-se. Ele estava mesmo mal. O esforço para manter-se sóbrio era enorme e ele sentia que só piorava…

- No teu delírio, sob o efeito do meu veneno, disseste tudo que eu queria saber. Esta fase de confusão e paralisia é somente o começo do teu fim. Agora que já és descartável, servirás de diversão e alimento para minhas serpentes de estimação.

Ele não soube exatamente o que pensou, mas o pavor devia estar evidentemente estampado na sua face, porque ela pareceu divertir-se em torturá-lo, ao proferir sua sentença de morte.

- Joguem-no no fosso. Agora!

Ela virou-se e saiu. Os homens agarram-no e arrastaram-no para fora da sala, até um grande córrego, que corria por toda a extensão do subterrâneo onde estavam. Com um empurrão foi jogado na água turva do fosso e começou a afundar. O som do que assumiu serem as tais serpentes de estimação a mergulharem imediatamente na água e virem no seu encalço, encheram-no de pavor. Aquele não era o fim que ele, alguma vez na vida, imaginara para si. Fechou os olhos e aceitou o inevitável. Seu fôlego estava-se esvaindo depressa e ele sabia que não tinha saída, senão deixar-se perecer.

O que aconteceu em seguida, ele não ia conseguir lembrar ao certo. Seus pulmões começaram a encher de água e ele perdeu os sentidos, sufocado pela falta de ar. Teve a impressão de haver ouvido muitos sons na água, como de algo a debater-se e, até mesmo, uma série de guinchos, antes de perder os sentidos completamente, mas devia ser apenas parte de um delírio precursor da morte.

Um súbito calor, a envolver-lhe o corpo, trouxe-lhe uma resignada serenidade. Estava morrendo e já não sentia qualquer desespero…

***

Uma sensação de alívio e um morno conforto faziam-no crer que havia, realmente, passado daquela existência para outra. Nunca esperou que houvesse vida após a morte, por isso aquele bem-estar era mesmo uma novidade. Abriu os olhos devagar e só conseguia ver uma luz muito forte sobre si. Devia ser a tal luz, que os crentes acreditam que se veja, a caminho da “outra vida”.

- (Morrer não é tão ruim, afinal.)

O pensamento parecia estranho, vindo de um homem que havia sido sempre tão científico como ele. De repente, sua cabeça deu um sinal inesperado. Algo estava errado. Nunca pensou que os mortos sentissem uma fisgada de dor na cabeça. Piscou os olhos e tentou focar em algo à sua volta, para certificar-se que estava errado… ou não…

- Ainda bem que acordaste. Pensamos que te havíamos perdido.

A voz era baixa, calma, suave. Devia ser de algum anjo ou de um guardião, talvez. O homem virou-se na direção de onde pensou ouvir a voz e viu um homenzinho vestido com roupas castanhas, a olhar para ele, com ar preocupado. Ele sorriu ao ver que havia sido reconhecido.

- O que foi isso?

O homem estava evidente e completamente confuso. Nada daquilo fazia sentido. O homenzinho falou, já com uma expressão de alívio e um pouco de cor a decorar-lhe as bochechas enrugadas.

- Tu escapaste de uma boa… mas por muito pouco! Tivemos que ser bastante rápidos. Só há um antídoto satisfatoriamente eficaz contra o veneno da poderosa serpente: o soro feito com seu próprio veneno, depois de injetado na corrente sanguínea do mangusto. O reagente funciona eficientemente bem, mas tem que ser usado pouco tempo depois de a vítima haver sido inoculada. No teu caso, foi muita sorte haver funcionado. Pensamos que não iríamos conseguir e ainda não estamos muito certos das consequências que possas sofrer.

- Como foi que isto aconteceu?

O homenzinho sorriu, brandamente. Sabia que o outro devia estar bem, pois já começara a fazer perguntas.

***

Durante o incidente no horto, quando haviam sido perseguidos pelos estranhos capangas da Sibila, o velho homem somente deu-se conta que estava sozinho, quando chegou de volta aos fundos do edifício. Sabia que era uma daquelas situações de ‘salve-se quem puder’, mas não esperava perder um homem adulto numa fuga daquelas, afinal cada um deveria poder cuidar de si, pelo menos, aparentemente. Voltou atrás, quando deu pela falta do outro, mas já não o encontrou. Preocupado, convocou os seus dois melhores guardiães e, acompanhados por alguns mangustos, saíram à procura do hóspede, em todos os cantos do horto e na região em volta, mas sem qualquer sucesso.

Procuraram-no por várias horas, quase desistindo, até que o grupo avistou uma entrada de um longo túnel, por onde desembocava um córrego que, aparentemente, corria por baixo da cidadela. Havia uma calçada de pedra, ao longo do fluxo da água, com cerca de um metro de largura e que ia na direção oposta, para dentro do túnel.

Entraram pela extensa galeria, que levava a um emaranhado de passagens, o que levantou suspeita no homenzinho, pois desconhecia a existência daquela parte oculta da fortaleza. Um pouco adiante, ouviram sons de passos num dos corredores e trataram de esconder-se. Um grupo de homens, vestidos com casacos escuros e com um característico passo apressado, seguia por uma das galerias. Seguiram-nos e chegaram a uma espécie de calabouço, com uma série de celas, cujas portas tinham um pequena abertura na altura dos olhos. Ao espiar por uma delas, viram um homem seminu amarrado por grossas cordas, caído no chão. A porta estava trancada e eles não tinham nada, em mãos, que pudesse servir para forçar o fecho e entrar. Olharam à volta, procurando uma haste qualquer, mas antes de conseguir algo para quebrar a fechadura, ouviram a voz da serpente, que vinha a arrastar-se pelo corredor, seguida pelos homens que haviam avistado anteriormente.

O grupo tratou de esconder-se, aguardando uma oportunidade para entrar em ação. A Sibila era perigosa e não deveria ser confrontada em seu habitat natural. Fazê-lo, seria cometer suicídio. Além do mais, estavam em desvantagem, por estarem em menor número e os homens da Sibila eram verdadeiros brutamontes.

Quando os homens seguiram a Sibila, arrastando o corpo praticamente inerte do prisioneiro, pelos corredores até onde estava o fosso, o homenzinho sentiu que era a sua única deixa. Só tinham que contar que a atenção jamais voltasse para eles. Quando a serpente deu a ordem para o ataque e saiu, vitoriosa, seguida pelos guarda-costas, eles viram que era o momento ideal para entrar em ação. Viram uma dezena de serpentes entrarem na água e mergulharam no fosso. Os mangustos, que vinham a acompanhar o homenzinho, apressaram-se a ir ao encalço das cobras. Ele, por estar protegido pela ação dos guardiães, que atacavam os algozes, agora transformados em presas, mergulhou também e resgatou a vítima inconsciente, já em vias de afogar-se. Seu corpo estava gelado, por isso a ação de recuperação teve que ser imediata.

***

- Ela quer a caixinha e fará tudo para obtê-la. Temos que ter cuidado. Vamos ter que nos proteger…

- Acalma-te. Não estás em condições de sair ainda. Precisas recuperar as forças, para enfrentarmos a Serpente. Quando souber que tu escapaste e que ela perdeu os seus animaizinhos rastejantes de estimação, vai ficar furiosa e virá atrás de nós.

O velho homem parou, ensimesmado, por uns instantes e falou:

- Por outro lado, acho que acabo de ter uma ideia…

***

A pequena caixa de metal, decorada com arabescos de prata batida, jazia sobre uma mesa, encostada na parede oposta à cama, no quarto de hóspedes, que estava trancado, por medida de segurança. Um homem de meia-idade, bastante pálido, dormia pesadamente. Caíra num sono profundo, mas não propriamente tranquilo. 

Uma leve e fria bruma começou a entrar por baixo da porta, invadindo, aos poucos, todo o aposento e baixando a temperatura lá dentro. Um silvo muito baixo e o som de um suave deslizar pelo piso de grandes lajotas cerâmicas, era quase imperceptível. A bruma adensou-se em volta da cama e o homem encolheu-se, tomando uma defensiva posição embrionária, envolvendo seu corpo com os braços. A sensação térmica era a mesma do ar de inverno, à beira do rio.

Uma grande serpente branca subiu, vagarosamente, pelo lado da cama e começou a enrolar-se, subtilmente, à volta do corpo do homem, aumentando a sensação de frio que sentia, envolto pelo corpo extremamente gélido do réptil. Ela continuou a enlear-se à sua volta e passou parte do corpo pelo pescoço, com o intuito de apertar, sufocando-o e impedindo-o de gritar, mas aparentemente sem a intenção de matá-lo ali. Ele abriu os olhos e viu que era arrastado pelo quarto e, através da porta aberta, para fora, pelo corredor liso e impecavelmente limpo. Ainda conseguiu ver que o homem que montava guarda à porta, jazia inconsciente, no chão.

A serpente deslizou até o grande hall, onde puxou-o até a borda do poço e, dali, mergulhou na água fria, levando-o consigo cada vez mais fundo. Ele tentava gritar, mas o som não saía de sua garganta, que ia-se enchendo de água e aumentando a agonia em que se encontrava. Começou a debater-se, em desespero, mas a ação constritora do corpo do réptil aumentava e impedia-o de safar-se. Ele só via água e o escamoso corpo, branco e roliço, contorcendo-se contra o seu e puxando-o cada vez mais para baixo. Pensou que aquele era, definitivamente, seu fim. O ar que ainda havia em seus pulmões saiu, pela última vez, numa sucessão de bolhas, que subiram até a superfície da água…

Um raio de luz acendeu-se repentinamente. O homem pensou tratar-se de uma alucinação. Seu corpo foi sacudido violentamente e ele começou e sentir espasmos incontroláveis. Agora era mesmo a morte...

***

sábado, 6 de setembro de 2014

Bem Mais Que 365


A minha história com Thomas começou há pouco mais de um ano atrás. 

Ele havia sido uma das vítimas de um infortunado destino, daqueles que são enganados facilmente pela aparência das coisas. Se bem percebi a situação, ele havia sido oferecido como presente à alguma criança, quando ainda era pequenino, mas ao crescer, naturalmente, deixou de ter o mesmo aspecto engraçadinho e brincalhão que os gatinhos pequenos têm. Como deixou de ser interessante, por haver mudado, como tudo e todos, o pobre bichinho foi maltratado, adoeceu, chegou a desenvolver uma infecção urinária, provavelmente causada pela situação de stress a que esteve exposto e foi, finalmente, abandonado pela família que o tinha. 

Talvez tudo o que ele pudesse ter desejado, fosse ser amado e respeitado, mas tal fato não aconteceu. Teve azar, como tantos outros animaizinhos que são maltratados e/ou abandonados... o que não é incomum, especialmente nesta terra.

Sua situação havia sido, enfim, reportada e ele recolhido da rua, pelas voluntárias da ‘Bichanos do Porto’, para ser oferecido para adoção, em caráter de urgência. Três meses haviam-se passado, desde então. Neste tempo, ele havia sido devidamente tratado da infecção e vencido aquela batalha. Parecia estar bem.

Meu Tiger partiu desta vida no auge do verão do ano de 2013. Eu tinha o coração bastante entristecido pela dor e pelo vazio causado por aquela perda. Sabia que precisava de tempo para aplacar o pesar que minha alma sofria, mas o destino, por vezes, é bastante brincalhão e atropela minhas decisões, de maneiras que eu não compreendo totalmente… pelo menos no início.

Não foi exatamente por acaso que eu vi aqueles seus olhos verdes, tão tristes e assustadiços, numa foto no blog da ‘Bichanos do Porto’. Por alguma razão estranha, eu senti meu coração comover-se pronta e especificamente por aquela criaturinha.

Racionalmente eu acreditava qua ainda era muito cedo para ter outro companheiro de quatro patas mas, emocionalmente, eu sabia que estava apenas sendo teimoso ou, mesmo, desnecessariamente cuidadoso. Pensei, seriamente, por uns dias e decidi que era hora de assumir uma postura radical em relação àquela infeliz condição a que ele estava submetido. Em menos de uma semana, após uns poucos contactos com a pessoa que estava responsável pelo bichinho, ficou acertado que eu iria conhecê-lo pessoalmente e, talvez, servir de família de acolhimento temporário – uma operação paliativa, criada para ajudar as pessoas e as associações que fazem este trabalho, voluntariamente.

Ele chegou numa caixa de transporte flexível e estava bastante assustado e tenso pela viagem. Pelo jeito, não gostava nada de passear de carro.

Quando saiu da caixa e ficou mais à vontade no hall de entrada do meu apartamento, eu vi que ele estava muito bem tratado e demonstrava uma confiança incomum ao ingressar no novo ambiente. Tinha um porte bastante robusto e sua pelagem apresentava um brilho saudável, apesar do que havia passado.

Eu deixei-o avaliar-me e perceber, sozinho, que era bem-vindo ao seu novo lar e à minha vida. Ele, então, aproximou-se, inclinando-se para que eu o tocasse. Fiquei feliz em ver que ele me aprovava e dava uma demonstração enorme de confiança, especialmente para uma pessoa com a qual entrava em contato pela primeira vez.

Formou-se, naquele momento, uma conexão única entre nós e eu soube que jamais o deixaria sair de perto de mim, se dependesse da minha vontade. Aquele primeiro contacto transformou-se numa ligação cada vez mais forte entre nós, dois seres tão diferentes um do outro, mas com necessidades tão similares. Éramos como duas almas solitárias, um servindo de apoio ao outro, para tentar amenizar a carência de companhia e, talvez, também de afeto. O que era para ser um lar de acolhimento temporário nunca assim o foi.

Mas ainda havia uma componente muito grande de medo a assombrar-lhe e esta era mais forte que qualquer outro sentimento. Ele ainda demonstrava ser um gato assustadiço e inseguro, que havia perdido aquela tranquilidade que seria de se esperar de um ser nascido e criado em ambiente doméstico. Muitas vezes reagia de maneira incomum ao ouvir-me sacudir sacos plásticos, ou usar o ‘spray’ de água para molhar as plantas, ou até mesmo quando ouvia crianças a falar no corredor do prédio. Estas e outras coisas deixavam-no em estado de alerta, pronto a correr e esconder-se, se necessário fosse. Eu não compreendia suas razões, mas aceitava que tinha de ser paciente e dar-lhe tempo para ambientar-se e ganhar confiança, para poder viver serenamente no seu novo território.

Por isso mesmo, aquela demonstração de confiança que deu, ao conhecer-me, foi surpreendente e inesperada. Talvez houvesse sentido, no ar, que estava mais bem protegido, de alguma forma, ali naquele novo meio, com aquele novo amigo de coração tão mole, que tinha os olhos cheios de lágrimas, cada vez que pensava no que aquele pobre ser poderia haver passado até ali.

Eu prometi-lhe, secretamente, que faria de tudo ao meu alcance para que jamais voltasse a sofrer ou sentir qualquer tipo de insegurança ou medo novamente. Não fosse o seu azar com os seus primeiros donos, eu não teria a sorte de comover-me com sua triste e trágica situação anterior e de trazê-lo para viver comigo, modificando, assim, a sua... e também a minha... história a partir do primeiro instante em que nos conhecemos.

Até o presente momento, tenho cumprido minha parte daquele secreto pacto de amor e tenho certeza que ele reconhece meu esforço, pela forma como dá demonstrações de confiança, de afeição e de respeito pelo meu espaço, assim como eu tenho pelo dele. Hoje, sinto que o conforto que sente e a amizade que demonstra são evidências claras que está, definitivamente, sentindo-se perfeitamente ambientado na casa que é, agora, também, sua. Dou-lhe atenção, carinho, companhia e espaço para sentir-se seguro e nunca mais pensar que sua história precisa de um outro final, de alguma forma, mais feliz, como se espera em contos de fadas ou em grandes romances.

Nossa convivência tem, agora, um ano e uns poucos dias. Com certeza, terá bem mais que isso, no que depender de mim. Eu assumi, secretamente, para meu coração e, para ele, em voz alta, que faria tudo ao meu alcance para que tivesse uma vida digna, confortável e tão longa e saudável quanto possível. 

Ele, entretanto, não precisa prometer-me nada. Já dá-me mais do que preciso. Tê-lo presente em minha vida é muito mais que eu podia esperar. E que não se pense que ele ‘é só um gato’. Somente quem nunca teve um animal de estimação pode achar que ‘é só um gato’. Ele é uma parte bastante importante da minha vida. A confiança que tem manifestado, ao longo do tempo, dá-me boa convicção de que eu tomei a decisão certa ao adotá-lo. Claro que tenho cuidado excessivo em relação ao seu bem-estar, às suas necessidades e também ao tempo que ele necessita, tanto para ficar só, quanto para conviver, especialmente nos fins-de-semana e quando chego em casa, após o trabalho.

Thomas é um gato de constituição bastante forte, com o dorso de pelagem malhada de cinza e preto e a parte de baixo, bem como as patas, de um branco muito puro. Aqueles seus olhos verdes estão sempre atentos a tudo que se passa à sua volta.

É um animal muito bonito, brincalhão, carinhoso e superinteligente. Aprende as coisas com rapidez e percebe facilmente o ambiente à sua volta. Sua confiança nas pessoas, porém, está mais ligada a mim, que a qualquer outro fator. Ele só a demonstra, se perceber a minha aprovação. Exemplo disso foi com a empregada, que faz a limpeza no apartamento onde vivemos. Como ela não foi “apresentada” a ele, por mim, cada vez que entrava no apartamento, o bichano corria e escondia-se por trás da cortina do quarto, para não ser perturbado. Ele não se deixava tocar por ela, de maneira alguma, por isso era considerado muito desconfiado e arisco, o que não deixava de ser a mais pura verdade. Somente no dia em que cheguei cedo à casa e a empregada ainda lá estava, foi que ele chegou perto e deixou-se tocar, não sem antes ter a certeza que eu conversava amigavelmente com a mulher.

Posso afirmar, com toda certeza, que a evolução no relacionamento que tivemos, dentro destes mais de 365 dias, é manifesta e salta aos olhos. Ele reconhece muito bem as minhas palavras e as intenções por trás delas. Coisas como: ‘Vamos comer?’; ‘Venha cá’; ‘Vem comigo’; ‘Senta’; ‘Bom dia’; ‘Dá-me um cheiro’; são todas bem compreendidas e geram uma ação, de sua parte.

Thomas mia muito raramente e, quando o faz, é baixinho, quase imperceptivelmente. Seu ronronar também é discreto e quando quer atenção, ele torna-se insistente e bastante carinhoso, como quem dá algo, mas que quer também uma justa parcela em troca. Hoje está muito mais tranquilo, dentro do ambiente familiar em que está inserido. Não se assusta facilmente, nem se comporta de maneira mais estranha que qualquer outro felino. Está confortável. Tem seus gostos e suas preferências. Gosta de ouvir música comigo. Gosta de comer quando estou na cozinha, fazendo-me companhia. É também meu ‘controller’. Quando passa das onze da noite, hora oficial de dormir, ele vem até onde estou e fica a rodear, até que eu desligue a TV ou o computador, apague as luzes e vá deitar-me. Na maioria das vezes, segue-me e aninha-se aos meus pés, especialmente se a temperatura estiver mais fresca.

Neste momento está a brincar com uma das 19 bolinhas de papel alumínio amassado que gosta de esconder em baixo do sofá da sala. Sim, eu contei, enquanto as resgatava. Em pouco tempo todas elas lá estarão de volta e ele virá pedir-me para levantar o móvel e retirá-las novamente, para o processo, então, repetir-se, até ele cansar-se… ou não.

Minha vida é mais tranquila porque ele faz parte dela. Eu o observo com muito cuidado e atenção e copio alguns de seus comportamentos também. Tenho tido mais estabilidade e equilíbrio, aprendi a melhorar minha postura, a fazer alongamento, a espreguiçar-me, a ser mais carinhoso e a olhar sempre por onde ando, para não esbarrar, inadvertidamente, nele…

Também aprendi a reservar um tempo  para dar-lhe atenção total. Suas exigências são muito poucas e muito simples. Posso muito bem diminuir o ritmo frenético que sempre estou, para dar-lhe carinho, conversar com ele, ficar à varanda ao seu lado, olhando as pessoas passarem, ou, então, sentado no tapete da sala, a coçar-lhe o queixo, alisar-lhe o pelo, acariciar-lhe atrás das orelhas… Estes pequenos gestos não me custam nada e a satisfação que recebo, em troca, é impagável.

Ele ensina-me que, por vezes, é importante parar um pouco e simplesmente ouvir música, brincar por uns instantes ou relaxar despreocupadamente.  E que a vida passe por nós, sem que sintamos qualquer coisa que não seja o prazer simples da companhia um do outro, por uns breves momentos.


Thomas tornou-se, neste pouco mais de um ano, um companheiro excepcional e um grande suporte para mim. Já não sei ver a vida longe dele. Estou sinceramente apaixonado pelo meu pequeno...

Ele é um presente, sempre presente, no meu presente!


Este video mostra apenas uma pequena parte de como ele é adorável!







sábado, 30 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 3: Perseguição)


Agarrado à mão da mocinha de olhos verdes muito claros, o homem tentava não perder o contacto com ela, enquanto mergulhavam, num imenso e escuro vazio, para além do fundo do baú. Os dois caíram por uns milésimos de segundos e, depois, como se sugados por um poderoso aspirador, foram arrebatados para cima, com uma violência extraordinária, na direção de uma luz muito fraca, à uma boa distância de onde estavam.

A ‘queda’, porém, foi amenizada, após uns poucos segundos, como se houvesse um campo de força que controlasse, convenientemente, a velocidade com que viajavam. Ele logo percebeu que estavam a chegar perto do seu destino. Olhou para cima e deu-se conta que uma grande sombra surgia sobre as cabeças deles, por trás da ténue luminosidade.

A sombra definiu-se melhor e ele percebeu que, acima deles, erguia-se uma cidade completa, totalmente invertida. Sentiu-se com se estivessem caindo, em câmera lenta, no meio da mesma.

Ao atingir o solo, num amplo pátio de formato retangular, teve a impressão que todas as coisas invertiam, como se fosse normal aquela mudança na órbita. Talvez, se pudessem ser vistos de fora, eles ainda estivessem de cabeça para baixo, mas ele já não tinha certeza de nada…

- O que aconteceu?

A mocinha riu.

- É assim mesmo. Não há explicação plausível e coerente, do ponto de vista do mundo onde vives, mas tens que abrir a mente, porque o que vais ver por aqui, vai contra muitas coisas em que acreditas…

Ele não tinha ideia do que ela estava a dizer, mas tinha a forte impressão que devia preparar-se para muito mais surpresas. Ajudava-lhe o facto de ser imaginativo, mas ele sabia que sua natureza não seria suficiente firme e forte para o que viria a seguir.

Os dois atravessaram o pátio e chegaram a um edifício, que tinha uma fachada ladeada por dois grupos de colunas em formato clássico grego, no rebuscado estilo coríntio, no alto de uma série de degraus de pedra bege polida. Um grande portal exibia uma pesada e escura porta, que abriu-se automaticamente com a chegada deles, mas sem escancarar mais que o suficiente para passarem. Ele mal havia percebido que a moça trazia um pingente, de pedra azul, talvez de lápis-lazúli, no pescoço e que este exibiu uma luz – um flash momentâneo, que apagou-se muito discretamente.

- Daqui para frente tu deves seguir sozinho. Já não sou mais necessária por cá. Eu ainda sou uma aprendiz de guardiã. Tenho outras tarefas a executar, agora.

Ela virou-se e deixou-o no grande hall minimalista também da mesma pedra bege da escada do lado de fora, praticamente sem nenhuma decoração, a não ser as figuras esculpidas na porta ainda entreaberta, pela qual saiu silenciosamente. O homem olhou à volta e avaliou o local com olhos curiosos, tentando captar algum detalhe, que pudesse passar despercebido, mas não via nenhum. À sua frente, no fundo do hall, havia uma outra porta, com os mesmos detalhes esculpidos, incrustada num pequeno portal de passagem, como se fosse a entrada de um corredor. Devia ser por lá que ele tinha que passar.

Deixado sozinho, ao caminhar, seus passos ecoaram como se estivesse num grande templo. Sentiu um súbito desconforto no estômago, mas continuou com firmeza. Quando chegou à porta, percebeu que não havia maçaneta, nem batedor. Esquadrinhou, à procura de uma abertura, um ponto onde percebesse uma chave ou coisa parecida, mas não havia nada. Resolveu que o melhor deveria ser bater, para fazer-se anunciar.

Estava com a mão levantada e fechada, pronto a bater com os nós dos dedos na madeira esculpida, mas um leve sibilo chamou-lhe a atenção e ele deu um passo para trás. Foi então que percebeu que a sala toda, ao redor dele parecia ter o chão coberto por uma fina névoa branca. Seus pés já estavam escondidos pela estranha nuvem de vapor, que começava a ganhar o ambiente por completo. Ele não sentia cheiro de qualquer composto químico, mas sabia que aquilo poderia ser muito mais perigoso que ele pudesse prever. À sua volta pouco se via claramente e a temperatura havia baixado momentaneamente. Seu coração estava acelerado e ele deu-se conta que havia caído numa armadilha. 

Decidiu que tinha de voltar pela porta por onde entrara. Começou a percorrer o caminho de volta, com passos ligeiros e sentindo que a nuvem espessava cada vez mais. Já não via mais nada à sua frente, mas seu instinto dizia que tinha que alcançar aquela porta, a todo custo. Ouviu outro sibilo atrás de si e teve medo. Acelerou o passo, tentando controlar o desespero que crescia de maneira exponencial dentro de seu peito. Apurou os ouvidos e desconfiou que alguma coisa arrastava-se pelo chão, como se estivesse ao seu encalço. Ele estava em perigo e não conseguia ver a porta, no meio da névoa na qual estava imerso.

Alguma coisa passou por ele, movendo a névoa e formando um redemoinho ao seu lado. Seu coração deu um salto. Ele já devia ter alcançado a porta…

Parou.

Tateou o espaço à sua frente, com medo que fosse chocar-se contra a parede sólida. Ouviu, então, o sibilo mais alto, só que desta vez bem à sua frente. Algo muito frio roçou a ponta dos seus dedos e ele, encolhendo-se, deu um passo atrás. Já não era somente impressão sua. Havia alguma coisa a mover-se bem próximo dele. Virou-se e pôs-se a correr, na direção oposta e como se sua até então insossa vida dependesse somente daquilo - o que era a mais pura verdade...

Correu desesperadamente, mesmo sem conseguir ver nada à sua frente. De repente, bateu com a ponta do pé em alguma coisa e caiu para a frente, sentindo o chão faltar-lhe completamente por baixo de si e ele a cair num imenso vazio.

***

Caiu por uns longos segundos, sem conseguir ver muito à sua volta, até que sentiu o impacto contra o que pareceu-lhe ser a superfície da água e seu corpo ser envolvido completamente por uma fria sensação. Como não caiu com os pés juntos, mas com o corpo meio de frente, o choque na água foi bastante doloroso e ele sentiu-se a afundar. Entrou em desespero. Sabia que tinha de voltar à tona, o quanto antes, por isso começou a debater-se para ir na direção da luz que via por cima de si.

Por sorte, não pareceu-lhe haver-se machucado… mas sentia-se todo dolorido. Um gosto estranho invadiu-lhe a boca, como há muito não sentia. Lembrou-se de uma ocasião, na sua infância, quando caiu da janela da sala, sobre o cimento da calçada. O gosto que sentiu e aquela sensação de confusão e atordoamento, eram os mesmos. Devia ser sabor a sangue ou outra defesa qualquer do corpo. Tinha que apressar-se a sair dali. O oxigênio em seus pulmões já praticamente não existia.

Quando alcançou a superfície, sua aflição era evidente e ele inspirou com força e com um brado de desespero. Teve mesmo muito medo de não conseguir sair da água com vida.

- (A queda foi grande...)

O pensamento era quase ingênuo.

De repente sentiu-se puxado pelos braços e ser largado no piso de granito, ao lado de um poço, de boca bastante larga, no meio de uma estranha e enorme sala, ladeada por uma série de colunas, no mesmo estilo daquelas que já havia visto. A luz era muito parca naquele lugar.

- (Lugar estranho para ter-se um poço...)

Ao fundo via o que parecia ser uma abertura para um longo corredor.

Ainda estava a tentar localizar-se, quando ouviu um murmúrio. Era uma voz calma, mas aparentemente conhecida. Pensou estar delirando…

- Podes levantar-te sozinho?

- Ahn? Acho que sim…

Respondeu por instinto, tentando focar seus olhos na figura agachada à sua frente, que estendeu a mão, para ajudá-lo, mas o homem levantou-se, devagar, sem auxílio.

O homenzinho sorriu. O outro reconheceu os detalhes do rosto e da boca, assim que conseguiu vê-lo bem. Era o personagem que havia visto anteriormente no bar, no incidente com a borboleta.

- Eu já devia saber.

Ele balançou a cabeça, afirmativamente, ainda sorrindo.

- Não esperava outra coisa de ti. Tivemos que dar uma volta grande, para trazer-te cá, mas acreditamos que foi para o melhor e para levantar menos desconfianças.

O homem ainda estava meio confuso. Não tinha a mínima ideia do que o estranho homenzinho quereria dizer, mas lembrava-se bem porque cruzara o portal. Ou o Universo brincava consigo, ou o acaso havia sido muito bem manipulado por alguém ou alguma coisa, para trazê-lo até aquele lugar. Um quase profano e paranoico pensamento formou-se em sua mente e ele apressou-se em expressá-lo.

- Foi tudo uma grande artimanha, para trazer-me cá, não foi? Nada do que aconteceu foi por acaso, não é mesmo? Vocês plantaram estas pistas todas, propositalmente, para conseguir com que eu viesse cá e trouxesse o que vocês queriam, afinal, não foi? Até aquela entrada estranha e a perseguição na sala cheia de névoa…

- Não exatamente. Quase tudo foi proposital. Não contávamos com a névoa e a perseguição, mas por sorte, caíste no poço. Assim estás a salvo, por enquanto. Mas ela não vai descansar enquanto não vier ao teu encalço. Temos que tentar proteger-te…

- Ela? Ela quem?

- A Sibila. Ela sabia que tu vinhas e estava mais preparada que pensamos. E ela quer o mesmo que nós. Conseguiste trazer o que te foi pedido?

Ele olhou o homenzinho, sem responder e a pensar na conversa que havia tido com outros dois personagens, há uns dias atrás.

***

Sua curiosidade costumava colocá-lo em situações inconvenientes, quando era mais jovem. Por uns tempos, achou que havia controlado sua tendência, mas pelo jeito tinha tido uma recaída, pois não conseguia controlar-se e afastar-se, antes de meter-se em complicações – o que fatalmente acontecia…

- O preço pode parecer baixo, mas vais ter que levar pessoalmente, pois nós não podemos chegar até aquele lado... ainda mais com isso...

O homem de casaco cinzento e olhos azul-acinzentados apontou para a mão do outro que, na hora, pensou que a tarefa seria fácil, afinal não ia custar-lhe mais que alguns minutos da sua vida. E ainda ia poder fazer uma viagem, no mínimo, inusitada. Já havia decidido tirar uns dias de férias e não tinha grandes planos. Pensou que a “aventura” ia ser providencial e aceitou o desafio, quase sem pensar.

- A viagem pode não ser tão breve e nós não podemos fazê-la agora. Não estamos totalmente seguros. Corremos sério perigo e podemos star sendo vigiados. Tem que ser alguém que não levante suspeitas...e que nos permita controlar o tempo entre a saída e a entrega...

- Mas eu também não estou totalmente seguro… Ou pelo menos acho que não. Eu não tenho a mínima ideia de como chegar lá. Como posso estar pronto para fazer uma viagem destas, afinal?

Eles se entreolharam e sorriram. Desta vez não havia sido impressão sua. Foi quando ele percebeu que seu destino estava a ser manipulado.

- O mapa servirá bem para mostrar a entrada. Nós temos que garantir que chegas até lá e que ninguém.. ou nada... interfira até que seja feita a entrega.

Algo não estava bem explicado naquela história. Ele sentiu um incômodo no estômago.

***

O homenzinho parecia exultante. Estendeu a mão na direção do outro, à espera que lhe desse o que o trouxera a aquele lugar. O homem meteu a mão no bolso da calça e tirou dali uma pequena caixa metálica, decorada com detalhes de prata batida, que entregou ao seu anfitrião.

- Espero que não se tenha perdido nada. Não contava com a queda no poço…

Disse-lhe aquilo e olhou para suas roupas completamente molhadas. Sentia-se desconfortável e com o nariz a pingar. Deu um espirro e disse que precisava livrar-se daquelas roupas molhadas ou aquecer-se, urgentemente. O homenzinho assentiu e conduziu-o para um corredor, até onde havia uma série de portas, uma das quais dava para uma espécie de quarto de hóspedes.

Ele deixou-o só, por tempo suficiente para trocar de roupas por outras que haviam sido deixadas no aposento, numa espécie de armário. Havia ainda uma cama e uma casa de banho com banheira. Parecia um pequeno apartamento de hotel: limpo, confortável, mas bastante simples. O homem despiu-se das roupas molhadas, pendurou-as na casa de banho, secou-se e saiu de volta para o quarto. Sentiu-me subitamente cansado. A cama convidava-o, mas ele tinha que resistir. 

Um click na direção da porta fê-lo voltar à realidade. O homenzinho entrou, com a caixinha na mão. Estava sorridente e com os olhos a brilhar.

- Está em perfeito estado…. E o conteúdo também. A água, felizmente, não estragou nada.

- Fico feliz em saber. Minha parte do acordo está cumprida.

Ele sorriu.

- Gostaste do aposento? Estás mais confortável?

O homem percebeu que o outro não respondeu e desviou do assunto, mas fingiu entrar no jogo dele, ao invés de mostrar-se incomodado.

- Sim. Se não tivesse passado pelo que passei há uns minutos atrás, diria que estava num hotel comum, mas sei que as coisas aqui podem não ser o que aparentam à primeira vista.

Olhou para a caixinha na mão do seu anfitrião, que não desviou os olhos dos seus.

- É assim mesmo. Não há explicação para tudo, mas tens que abrir a mente, porque o que vais ver por aqui, vai contra muitas coisas em que acreditas…

- Dèja vu?

O homem pensou na frase que já ouvira quando teve o primeiro contacto com aquele mundo. Mas o homenzinho foi um pouco mais adiante e continuou.

 - …Mas podes ter certeza que teu cérebro logo habitua-se com esta nova realidade… Nem tudo é o que aparenta ser…

Por incrível que pudesse parecer, aquela era uma verdade incontestável. O homenzinho abriu a tampa da caixinha e, com as pontas dos dedos, tomou um dos pequenos objetos contidos nela.

O outro preparava-se para aceitar, quase de bom grado, algumas coisas que pareceriam absurdas, anteriormente, no mundo de onde viera.

***

Quando saíram de volta ao corredor, o homenzinho vestido de castanho-escuro tinha um sorriso largo na face e os olhos a brilhar, de satisfação. A parte principal da tarefa havia sido cumprida e ele exultava.

Faltava ainda a contraparte, que o outro homem esperava que também fosse cumprida pelo seu anfitrião. 

Viraram para o lado oposto de onde inicialmente havia chegado e ele foi conduzido por um outro grande hall que não tinha nenhuma decoração, além de mais colunas num estilo grego e que abriam-se para uma espécie de jardim, na parte de trás. Ele tinha a impressão que havia passado por um lapso de tempo. O minimalismo na decoração do edifício contrastava com a pulcritude e a riqueza diversificada e pujante do jardim. 

Havia uma espécie de trilha, que fazia uma curva pelo lado esquerdo e que conduzia até uma área coberta, que lembrava uma estufa erguida no centro de um horto botânico.

Uma vez lá, o homenzinho depositou a caixinha sobre uma mesa e, sem olhar para o outro, abriu-a e despejou o conteúdo da mesma sobre a madeira nua. Sua satisfação era evidente.

Um ruido por trás da vegetação chamou-lhes a atenção e o homem de cabelos castanhos voltou-se, bastante assustado.

- São mangustos. Não há nada a temer.

- Mangustos? Aqui?

Ele riu, um tanto sem jeito, depois disse, com ar mais sério:

- Servem de guardiães deste local. Esta área é protegida, mas nunca se sabe os perigos que podemos enfrentar. Já foram encontrados muitos destes completamente destruídos e o equilíbrio depende deles. Os seguidores da Sibila são perigosos e traiçoeiros.

- Foi por esta razão que eu tive que trazê-los?

- A devastação coloca em risco nossa espécie e nosso mundo. Olhe aquilo.

O homenzinho puxou a folhagem para o lado e mostrou uma área bastante devastada, para a surpresa do outro, à uma distância muito próxima de onde estavam. Um outro ruído assustou-o. No meio da vegetação à volta deles, algo pareceu arrastar-se e ele ouviu um silvo já conhecido seu. 

Os mangustos correram para o meio da área e pareceram atacar alguma coisa. Seguiu-se um guincho mais alto, como se fosse de dor e ele viu os olhos do homenzinho apertarem. Um dos guardiães foi jogado perto dos pés dos dois homens, com um ferimento a sangrar no pescoço. O homenzinho recolheu os pequenos casulos e retornou-os à caixinha metálica, puxando o outro pelo braço e correndo por dentro do horto, na direção do edifício, com a esperança na palma da mão e apertando-os contra o peito.

- A segurança foi violada. Estamos em perigo. Corra!

O homenzinho era mais rápido que o homem da cidade e tinha mais motivos para correr. O outro foi atrás, tentando manter-se o mais próximo dele que pode. Antes que chegasse de volta ao jardim do edifício, ouviu o silvo muito próximo de si e olhou para trás. Uma sombra pareceu esconder-se na folhagem. Ele virou-se e correu, desesperadamente. Aqueles poucos segundos em que distraiu-se foram suficientes para perder seu anfitrião de vista.

- (Ele devia estar bem aqui à minha frente...)

Mas ele estava enganado em seu pensamento.

Ouviu muitos ruídos misturados no meio da vegetação e começou a entrar em pânico. Tropeçou numa raiz e caiu, com as mãos na sua frente, a tentar proteger o rosto. Levantou-se o mais rápido que pode e pôs-se a correr, mas já era tarde. 

Alguma coisa enlaçou-se nas suas pernas e ele caiu novamente, desta vez com o rosto contra o chão e perdeu toda a noção do que acontecia, quando a luz apagou-se completamente à sua volta.


***

sábado, 23 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 2: Estranhos)


Da penumbra da escada onde estava escondido, o homem podia observar bem o que acontecia no piso térreo, mas ao mesmo tempo tinha dúvidas se estava mesmo a ver ou se estaria imaginando coisas.

O velho homenzinho estava de pé, próximo a uma porta quase imperceptível, quase camuflada, na parede oposta à saída principal,  por trás do lance de escadas, onde o outro espreitava, com interesse e espanto. Ele, então, levantou a machadinha à altura do rosto e segurou-a, concentradamente, próximo à boca.

Em seguida, abriu a boca, que alargou-se enormemente, como o homem nunca havia visto ninguém fazer antes, abocanhou a lâmina da machadinha, por completo e, quando retirou-a, aquela estava limpa, já sem nenhum sinal do inseto que nela jazia há poucos segundos atrás.

- (Que diabos está acontecendo ali? Como é que ele conseguiu fazer... Aquilo não pode ser nada normal...)

O homem deixou aquela reflexão formar-se em silêncio e sufocou sua admiração, tentando não gritar, mas deixou escapulir um som abafado. O estranho levantou a cabeça e olhou para onde ele estava semiescondido, mas já não incógnito.

Ele saiu da sombra da escada e deixou-se ser visto, sem falar nada. O homenzinho, então, disse, sorrindo e com um genuíno ar benevolente, ao perceber que o outro parecia bastante perplexo:

- Ah! Eu sentia que não estava sozinho...

Mas o homem teve um certo medo do estranho homenzinho, que tinha uma característica tão incomum. As coisas não estavam correndo muito bem para o seu lado. Sem saber o que dizer, ele desculpou-se, mais por temor do que por educação.

- Eu sinto muito. Não quis ser indiscreto. O que vi, foi, realmente, um acidente...

- Não te preocupes. Não há realmente um problema em conheceres o meu segredo!

Aparentemente o velho não estava nada preocupado em haver-se revelado ao estranho que o mirava, sem realmente compreender. O que aquela aparente tranquilidade significava, entretanto, o homem de cabelos castanhos não sabia exatamente. Começava a desconfiar que podia não ser nada bom para si.

Secretamente, lá no fundo de sua mente, o homem perguntou-se que novo personagem seria aquele.

- (Que tipo de criatura seria aquele homenzinho estranho? Será que estava imaginando coisas? Teria sido, de alguma maneira, o efeito do vinho?... E eu nem bebi mais que uma taça daquele vinho verde, nem sinto-me minimamente bêbado...).

O velho ainda sorria, olhando para ele, com ar interessado e, provavelmente, ainda a estudar as suas reações.

Um ruído, vindo do topo da escada, porém, desviou-lhe os pensamentos e a atenção da cena ainda a desenrolar-se à sua frente. Alguém, com passos bastante pesados, começava a descer o primeiro lance de degraus. O homenzinho olhou o outro e disse, com a voz calma e baixa, mas em tom de aviso, antes de sair pela porta lateral, quase escondida por trás de uma pilha de barricas.

- Tome bastante cuidado... tenha muito cuidado mesmo! Eles não são, definitivamente, o que parecem ser. De alguma estranha maneira, creio que ainda nos voltaremos a encontrar…

Para falar bem a verdade, o homem de cabelos castanhos já nem tinha certeza do que realmente era e do que apenas parecia, naquele momento.

Quis seguir o velhinho, mais para proteger-se do que propriamente ir atrás dele, mas a abertura, pela qual o bizarro personagem passou, não tinha maçaneta e fechou-se muito rapidamente. Ficou sem saber o que fazer, a não ser esconder-se, para não ser visto. Esgueirou-se por trás das prateleiras e das barricas - umas de azeite, outras de vinho - no fundo do piso, por trás da pesada e escura escada e esperou, com os olhos atentos à porta da saída principal.

Sabia que sua presença ali só poderia levantar suspeitas e uma série de questionamentos, para os quais ele não tinha explicação plausível, além de sua curiosidade fora do normal e da sua tendência de meter-se em situações confusas e complicadas, inadvertidamente.

De onde estava, observou que o homem que passara era bastante forte e vestia um casaco feito de uma espécie de couro muito escuro de réptil, talvez crocodilo, mas ele não tinha certeza, já que não era adepto daquele tipo de material para casacos ou, mesmo, para roupas de qualquer espécie. O tal brutamontes era o mesmo homem que o havia encarado e não tinha ares de bons amigos. Desejou, secretamente, que o estranho de pele azeitonada e ar hostil não o visse.

O homem, porém,  ao chegar à porta principal, empurrou-a, olhou para os dois lados, como se procurasse por alguém e saiu. Atrás de si, desceram os outros três e, sem falar, saíram para fora, seguiram o líder e foram pela calçada afora, provavelmente na direção do carro.

O homem, assustado, esperou ainda alguns minutos até certificar-se que já haviam-se afastado bastante, com os ouvidos muito atentos ao som dos passos, que desvanecia na distância. Saiu com cautela e, já do lado de fora, decidiu que tinha tido aventura demais por uma noite e sentiu um certo receio de ser confrontado pelos homens estranhos, uma vez mais. Apressou-se a dirigir-se ao seu carro, que estava um pouco distante. Procurou, mas já não viu o veículo preto, dos homens estranhos, no estacionamento. Ainda olhou, com atenção, à volta, para certificar-se que estava mais a salvo e seguiu, pronto a sair dali o quanto antes.

Estava com a chave na mão, quando ouviu o som de passos apressados atrás dele. Seu sangue gelou, mas ao virar-se viu apenas uma mocinha, com olhos verdes muito claros, a vir na sua direção. Ela disse, apontando para o bosque:

- Entra no carro, depressa. Aquele homem tem respostas e a indicação de como podemos sair daqui.

Reagiu meio por instinto, antes de pensar que já a havia visto antes. Era a mesma que havia esbarrado em sua cadeira e sorrido, há uns minutos antes, na esplanada na ribeira. Ele não tinha a mínima ideia do que ela queria dizer com ‘sair daqui’, quando entrou e sentou-se ao seu lado, no banco da frente, mas não perguntou nada. Contornou o estacionamento e foi na direção onde haviam avistado o tal homem, que parecia ter estado a procurar alguma coisa nos galhos dos pinheiros. Parou, no espaço entre o complexo de lojas e o estranho bar e esquadrinhou o local perto das árvores, com cuidado, pois já não o via. A mocinha fazia o mesmo.

Uma batida no vidro de sua janela deu-lhe um susto descomunal. Um homem, com olhos de um tom azul-acinzentado, estava ao seu lado, fazendo uns gestos, pedindo para entrar. Ele abriu, instintivamente, a porta traseira e deixou-o acomodar-se no banco atrás de si.

O estranho, realmente, tinha informações a dar. Além de reafirmar-lhe para ter cautela, repetindo o que já dissera, anteriormente, o homenzinho da roupa castanha, ele mostrou-lhe um item muito interessante, que tirou do bolso do velho casaco cinzento, que vestia. O homem teve a leve impressão que, apesar do calor, aquela devia ser a 'noite dos casacos', mas não mencionou nada.

O tal item era uma caixinha metálica, decorada com delicados arabescos de prata batida, que continha um velho pergaminho amarelado. Nele estava impresso um antigo mapa, que mostrava uma marca muito característica, bem onde havia um desenho, representando uma velha árvore, aparentemente oca, no meio de um bosque. Ao lado do desenho do centro, haviam uns números escritos a lápis, em vermelho. Aquelas últimas anotações deviam ter sido acrescentadas recentemente, pois estavam bastante vivas no papel visivelmente envelhecido e amarelado.

Por um instante pensou haver visto uma troca de olhares entre o homem e a mocinha sentada ao seu lado, mas poderia ter sido somente sua usual paranoia e desconfiança, causando-lhe uma estranha impressão. Ele estava completamente tomado pela curiosidade acerca do objetivo daquela estranha situação e queria saber até onde o tal mapa poderia levá-lo.

Mas o mapa tinha um preço, obviamente. O homem  ficou bastante surpreso quando o estranho lho disse.

Aquela, porém, era apenas uma das razões que o traziam ali…

***

Estavam no meio do bosque, procurando seguir as indicações contidas no mapa. O homem tinha o GPS de mão e procuravam a tal árvore oca que, no pergaminho, estava marcada com as coordenadas de localização, que haviam sido anotadas à mão, recentemente. Não deveria ser difícil chegar ao nosso destino em breve, pois a aparelho indicava que estava localizado há poucos metros, bem à frente deles.

A árvore, uma velha figueira, erguia-se sobre um pequeno elevado, coberto de relva e folhas secas, numa linha á esquerda de onde estavam, fora de uma trilha quase nunca usada, por onde haviam seguido. De onde estavam, não viam nada demais, mas ao contornarem, viram uma abertura, quase não suficientemente grande para um homem do seu tamanho passar. Estava coberta por umas lianas e muito musgo, tornando-a quase impercetível. Afastou a cortina natural com as mãos e passou pela abertura, sendo seguido pela mocinha.

O tronco era realmente todo oco e, por dentro, parecia bem maior que percebido por fora. A cerca de uns 45 graus à esquerda, via-se um pequeno declive, com uma abertura para um pequeno portal, bem no final do mesmo. Uma outra mocinha, também de olhos verdes muito claros, aguardava-os, logo que atravessaram o limiar do portal. Ela tomou-lhe a mão e disse-lhe que o Mestre precisava falar com ele. O homem não sabia quem era o tal Mestre, nem o que ele poderia querer, mas tentou convencer quem o havia trazido até ali a continuar aquela estranha jornada consigo até o fim.

- Vem comigo, por favor.

- Não posso, ainda… Deves ir com ela.

Havia uma longa caverna, que ia abrindo e ficava um pouco mais alta à medida que desciam. O homem percebeu que a mocinha devia conhecer muito bem o local, pois sabia exatamente em quais galerias entrar. Sacudiu a cabeça, como se tentasse apagar o pensamento, pois era mais que evidente que ela sabia para onde estava a conduzi-lo. Depois de caminharem por muitos minutos, entraram por uma das pequenas aberturas laterais.

Após uma leve curva na caverna, num nicho quase imperceptível, havia um velho baú, depositado no chão, escondido num canto. Era de madeira castanho-escura e tinha um trinco de metal batido, representando o que pareceu-lhe ser alguma espécie desconhecida de réptil, em alto-relevo. A mocinha puxou o ferrolho para cima e levantou a tampa do mesmo. 

Antes que o homem se aproximasse o suficiente para inspecionar o que havia lá dentro, ela segurou-lhe a mão com firmeza e, com uma força descomunal, para uma miúda daquela aparente delicada compleição física, puxou-o para dentro da arca, com ela. 

Foi então que ele percebeu que a tal arca não tinha fundo...

***


sábado, 16 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 1: Intro)


Uma brisa amena de final de Primavera soprava na esplanada à beira do rio, perto da foz. Ele havia saído do trabalho à hora mais ou menos certa - coisa bastante rara nos últimos tempos - e decidira beber uma taça de um suave e fresco vinho verde e relaxar um pouco, antes que o fim-de-semana começasse. Não estava interessado nos transeuntes, mas em olhar as águas a correrem na direção do mar. Aquela visão deixava-o relaxado e absorvia-lhe os pensamentos, levando sua imaginação para terras quase nunca dantes percorridas. Sentia a mente sensivelmente vazia. Não queria pensar em nada; só deixar os odores do fim da tarde preencherem suas narinas, o sabor do vinho fresco a aguçar-lhe os sentidos e os sons do anoitecer tomarem conta do ambiente à sua volta. Ele desligara a parte do cérebro que distinguia as vozes e conversas. Estava mais interessado nos outros sons, menos ouvidos na vida normal: o gralhar das gaivotas, a água a correr, um cão a ladrar ao longe, a peculiar e característica música da noite a chegar…

Um solitário saxofonista, vestindo um colete aberto preto sobre uma t-shirt branca e usando um chapéu coco, também preto, começara a tocar uma melodia bastante melancólica, cujas notas ele alongava com exímia destreza – quase como num ‘noturno’ - na calçada, bem próximo de onde o homem estava. A música sempre mexera com seus sentidos e aquela fazia sua imaginação vaguear, completamente solta e sem qualquer tipo de amarras.

Um grupo de jovens, provavelmente estudantes, aproximou-se em algazarra, rindo alto e fazendo-o voltar à terra. Uma das moças esbarrou no pé da sua cadeira, ao passar e, voltando-se, pediu desculpas, sorrindo e ficou a olhá-lo, sem seguir adiante. Tinha olhos muito claros e um sorriso encantador. Ele sorriu de volta e ficaram a olhar-se, por uns pouquíssimos segundos, até que alguém a chamou pelo nome.

- Elena! Vamos!

Ela voltou para o grupo e ele ficou a observar enquanto os jovens afastavam-se, ainda às galhofas. A maioria das pessoas trajava roupas leves, camisas de mangas arregaçadas, t-shirts ou blusinhas de mangas curtas. A temperatura estava por volta dos 23 graus Centígrados - o que, para o homem de meia-idade, bastante pálido e com ralos cabelos castanhos, já há muito tornando-se brancos à altura das têmporas, ainda era bastante calor – especialmente àquela hora do dia.

Levantou-se, pagou a conta e decidiu caminhar até o parking, que ficava a uma boa distância de onde estava, quase no outro extremo da movimentada ribeira. Uma fina faixa de luz ainda tingia o horizonte com cores quentes e fortes, mas o céu acima dele já exibia fortes matizes de índigo, salpicado de minúsculos pontos brilhantes. 

Quando desceu a rampa, já onde estava o carro estacionado, viu que um pequeno grupo de homens, vestidos com casacos escuros, que iam até a altura dos joelhos, caminhava na sua frente. Estranhou as vestimentas, já que não estava nem um pouco frio. Eles caminhavam, sem olharem uns para os outros e sem conversarem.

Alguém passou por ele, bateu contra seu braço e passou adiante, sem ao menos pedir desculpas. Viu que era um outro homem vestido da mesma maneira dos outros que caminhavam à sua frente e que apressava-se em juntar-se ao grupo. O estranho foi que eles não o cumprimentaram quando ele aproximou-se, nem ele, tampouco, ao grupo. Apenas continuaram a caminhar, lado a lado, sem se olharem, até um carro preto estacionado perto do seu. Os quatro estranhos entraram, quase ao mesmo tempo e quase automaticamente, cada um por uma das portas do veículo.

O homem olhava-os de uma maneira distraidamente interessada, se é que isto era, de alguma maneira, possível. Chegou ao seu carro mesmo a tempo de ver o outro veículo passar por ele e pela primeira vez percebeu o tipo que estava ao volante, já que era a única janela aberta e os outros vidros estavam levantados e eram cobertos por uma película escura. O condutor tinha cabelos muito negros e pele azeitonada, sem ser bronzeada e olhos parcamente emoldurados por quase inexistentes sobrancelhas. Ainda conseguiu ver que o outro homem, sentado ao seu lado, tinha características físicas bastante similares, mas não se pareciam um com o outro. Deviam ser da mesma origem étnica, pensou.

Um calafrio correu-lhe pela espinha quando percebeu que o motorista virou-se para fitá-lo, ao passar. Era o mesmo homem que esbarrara no seu braço, mas tinha uma expressão ameaçadora no olhar. O estranho havia reduzido a marcha ao aproximar-se e, assim que olhou o outro, acelerou e foi em direção à saída do estacionamento. O homem apressou-se em entrar no carro, já resolvido a sair dali o quanto antes. Seu sensor de perigo já estava a girar em amarelo.

Apesar de um pouco assustado pelo que vira, ele estava, também, um tanto intrigado com o incidente, afinal havia sido abalroado pelo sujeito e ele ainda decidira encará-lo, como se quisesse ameaçá-lo ou intimidá-lo. O sangue subiu-lhe à cabeça, quando pensou naquilo. Viu o veículo parado no semáforo à sua frente, mas o condutor furou o sinal, assim que percebeu não vir nenhum outro carro das ruas adjacentes.

Deviam estar com pressa, pensou. Com aquele tipo de condução, não admiraria se causassem um acidente e, entre dentes e em voz alta, desejou mesmo que se envolvessem em um. Era sua veia vingativa falando mais alto que ele. Observou-os subir a rua, esperou o sinal abrir e seguiu seu caminho, já entretido com suas músicas favoritas a tocar no CD player.

A alameda estava iluminada por fortes luzes amarelas, o que dava uma atmosfera surrealista ao local. Por uns instantes, esqueceu do sucedido há poucos minutos, pois adorava passar por entre as árvores, naquela região, a caminho de casa. Seu estômago roncou e ele deu-se conta que havia passado do horário usual do jantar. Havia estado a tarde toda em reunião e não tinha tido tempo de comer nem uma fruta. Estava com fome. Ele, agora, pensava somente no que iria preparar para comer, quando chegasse em casa.

De repente, um vulto saltou à frente do carro e passou correndo do lado esquerdo para o direito da rua. Ele pisou no freio, automática e violentamente. Por sorte não vinha ninguém atrás de si, que pudesse causar um inconveniente acidente de viação. Se o que cruzara seu caminho era um gato, devia ser um animal enorme, pensou o homem, ainda com o coração acelerado. Olhou para o lado direito, tentando distinguir se avistava qualquer sinal dele, quando viu o veículo preto estacionado num pequeno complexo de edifícios comerciais, ao qual nunca havia prestado atenção anteriormente.

Sua curiosidade acendeu-se novamente e, apesar de saber que não era a coisa mais certa a fazer, resolveu ir até lá, estacionando o mais longe possível do tal veículo preto. Por sorte, seu carro não era mais que um modelo dos mais populares, de cor bastante comum, que passaria quase despercebido, no meio dos outros ali estacionados, muitos da mesma cor cinzenta. Havia uma loja de conveniência, um pequeno restaurante ‘take-away’, uma lojinha de equipamentos informáticos e outras menores, perto de uma razoavelmente maior, de móveis e uma farmácia. Bem ao fundo, um tanto separado das lojas, havia uma construção diferente das outras, um pouco mais escura e rústica. Devia ser algum restaurante típico ou talvez até mesmo um bar. Perguntou-se por que razão nunca havia-se dado conta da existência daquele lugar. Percebeu que o conglomerado de estabelecimentos estava construído ao pé de um pequeno bosque, que havia no lado oeste e que dava, ao complexo, um certo ar de tranquilidade.

Estava ainda a olhar para o fundo e para o edifício escuro, quando viu o grupo de homens a caminhar com passos firmes e apressados, naquela direção. Ainda estavam vestidos com os casacos escuros, o que destoava dos outros transeuntes, que usavam trajes mais leves. A indumentária tornava-os bastante chamativos e inconfundíveis, como um grupo de pinguins a caminhar sobre o gelo extremamente branco.

Esperou que entrassem pela escura porta de madeira e foi atrás, um pouco hesitante, mas cheio de curiosidade . A construção era, por dentro, ainda mais sombria e rústica, que vista por fora. Era feita de madeira bruta e tinha dois lances de escadas firmes, separados um do outro por uma curva em noventa graus, com tábuas muito espessas, suportadas por fortes vigas de troncos brutos e cilíndricos, de cor muito escura, como se pintadas com um pigmento de sépia queimada. Ele subiu, com cuidado e constatou que no andar de cima havia uma espécie de bar.

Aparentemente, os personagens que havia seguido conversavam com um outro homem, que ele não conseguia ver claramente, já que os quatro estavam de costas voltadas para a porta, formando uma barreira à sua visão e o outro estava de frente para eles. Lembrou-se da forma com que o motorista havia olhado para si, com evidente hostilidade e decidiu que não podia deixar-se revelar. Eles estavam em maior número, de qualquer forma. Resolveu que o melhor a fazer, era mesmo sair dali o quanto antes. Deu meia volta e desceu as escadas, apressado, mas com cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível. Sua fuga foi subitamente protelada antes de chegar à porta de saída, lá em baixo, pois viu que alguém entrava por uma quase invisível porta lateral. Encostou-se na parede e pôs-se a observar, da penumbra, sem deixar-se ser visto.

Um homenzinho, visivelmente velho e vestido com roupas castanho-escuras, bastante surradas, acabara de entrar. Tinha a pele espessa e marcada, como a de um ancião, que trabalha ao sol, como os agricultores ou pescadores. Tinha olhos escuros, sobrancelhas muito espessas e lábios finos, quase inexistentes, numa boca larga. Trazia, pendurada do cinto, uma espécie de machadinha de lâmina estreita e chata.

Ele puxou-a do cinto e, sobre a lâmina, colocou uma pequena borboleta azul, morta, com as asas abertas, que estava embrulhada num papel pardo, que tirou de um dos bolsos do casaco de couro castanho.

O homem de cabelos castanhos, que ainda estava escondido, franziu a testa e arregalou os olhos, pois aquilo pareceu-lhe, realmente, muito estranho. 

Mas ele não estava minimamente preparado para o que veria na sequência dos acontecimentos. O que o homenzinho fez, então, deixou-o completamente boquiaberto… isso para dizer o mínimo.

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