O sol de verão entrava pela janela recentemente aberta, enchendo, de luz e de cor, o amplo quarto. Uma leve brisa soprou, fazendo as brancas cortinas de voal liso, bailarem sua dança esquisita e fora de ritmo. A decoração, despretensiosamente minimalista, mostrava um sóbrio bom gosto, não somente naquele aposento, mas também no restante da casa, construída numa pequena elevação, à beira mar.
Grandes quadros, dispostos em simples molduras, cobriam partes das paredes, com figuras cuidadosamente detalhadas de originais nus, desenhados a grafite, sépia e sanguínea.
Apesar de ainda cedo, a grande cama já estava arrumada, com lençóis limpos, de linho branco. A dobra do sobre-lençol, assim como as fronhas das grandes almofadas, jogadas em estudado desalinho sobre a cama, eram adornadas com delicadas papoilas vermelhas, bordadas à mão, em ponto cruz, formando um conjunto suave e harmonioso.
O homem mais jovem, recostado à soleira da porta, tinha o olhar fixo num ponto distante, para além das fronteiras da janela escancarada, a observar uma gaivota solitária, que pairava, plácida, no ar, sem nem mesmo bater as imensas asas.
Quebrou o silêncio e disse, então, ao amigo, que também olhava para fora:
Quebrou o silêncio e disse, então, ao amigo, que também olhava para fora:
- Precisamos arrumar as malas. O voo é cedo… e os meus fantasmas não podem esperar mais, para ter seu merecido descanso. É tempo de reconciliação com o meu passado... mas preciso de ti por perto.
***
Algumas horas depois, ao avistar a costa leste escocesa, pela janela da grande nave metálica, os dois amigos sentiram um súbito incómodo no peito. A sensação era de uma estranha nostalgia, ao sobrevoarem os verdes montes e as escarpas - cobertas de imensas rochas negras - que desciam até o mar.
Aventurar-se a remexer o passado enchia o coração do homem mais novo com uma desconfortável apreensão. Eles haviam entrado em acordo, sobre a necessidade de fazer as pazes com as pendências deixadas no passado e que influenciavam, por conseguinte, o comportamento de ambos, no presente. Antevia-se uma difícil batalha, prestes a começar.
O homem mais velho observou, com cuidado, o amigo. Sua face demonstrava a preocupação que o afligia, ao entrar no vagão do trem, rumo ao pequeno vilarejo, no interior do condado. Menos de uma hora depois, desciam na estação de Downies, próximos de seu destino.
***
- Eu tenho que deixar-te buscar, sozinho, o conforto da reconciliação. Essa aventura é tua…e tua somente… Vais ter que ser muito bravo, como sempre haveis sido. Mas não devo ir contigo, além deste ponto. Leva o tempo que precisares…
Com um leve toque no ombro do outro, o homem mais velho girou em seus calcanhares e saiu, pela porta entreaberta. O sol, lá fora, brilhava alto, num incomum céu de limpo e intenso azul.
Deixado só, na casa de pedra que pertencera a seus antepassados, o homem enfrentou o corredor pouco iluminado, até chegar ao último quarto, à esquerda. Por alguma razão incompreensível, a maçaneta de bronze pareceu fria demais ao toque de sua mão. Ele levantou a cabeça, respirou fundo e entrou, hesitante, no quarto iluminado pela luz natural, que vinha de uma grande janela.
A atmosfera pareceu-lhe um tanto surreal, quando fechou a porta às suas costas. Os móveis, de madeira escura e pesada, apresentavam ainda um bom estado, apesar dos muitos anos de uso. Ele reconheceu a cama, a cadeira ao lado da cabeceira e o grande guarda-roupa, cuja porta tinha um espelho que cobria-lhe quase toda a frente. Sobre a mesinha de cabeceira, um vaso de vidro, limpo e vazio, esperava flores há, provavelmente, tempo longo demais.
Um suave e familiar perfume encheu-lhe as narinas, assim que ele abriu a janela, que dava para um regato, a correr ali próximo. Os campos estavam cobertos de papoilas selvagens e tufos de alfazema, que cresciam naturalmente sobre as encostas e às margens do córrego, pintando a paisagem de diversas tonalidades de verde, pespontada com pequenos detalhes em carmesim e lilás.
Aspirar aquela conhecida fragrância trouxe-lhe, imediatamente, o passado de volta. Uma série de memórias demasiadamente vivas e nítidas bateram-lhe de frente, quase fazendo-o perder o equilíbrio. O jovem homem apoiou-se à cadeira, na qual sentou-se, em seguida, ficando a olhar, absorto, a grande cama, coberta por uma pesada colcha colorida.
***
O menino de pele muito pálida e sardenta, com desalinhados cabelos ruivos, olhos verdes e boca rosada, parecia quase desaparecer no meio das fofas cobertas. Aparentava, talvez, uns seis anos de idade. Ele espreguiçou-se e esfregou os olhos, ainda cheio de sono…
O adolescente de cerca de dezessete anos, que acabara de entrar e abrir as cortinas e a janela, riu e saudou o irmão mais novo, com um bem-disposto “bom dia”. O pequeno, então, perguntou:
- Levas-me lá fora, hoje? Adoro molhar meus pés no riacho.
- Se não chover, sem dúvidas.
- Vá lá… o céu está azul…
O menino fez uma carinha de expectativa e abriu um sorriso espontâneo, que convenceu o irmão a ceder. A leucemia estava em estado adiantado e não retrocedia, no organismo já bastante enfraquecido do menino ruivo. Ver a rapidez com que a doença havia-se espalhado no corpinho da criança, cortava a alma do irmão mais velho. O diálogo era uma espécie de brincadeira, pois ele sabia, muito bem, que jamais diria não às vontades do outro. Sabia também que era meramente uma questão de tempo até que a vida fosse ceifada dele de vez. Tentava não pensar no pior, mas o tempo não parecia estar a seu favor.
- Vem comigo…
O rapaz tomou o pequeno nos braços, com cuidado e levou-o para fora. À beira do riacho havia um pequeno cais de troncos de madeira bruta, onde eles costumavam sentar-se. Com os pálidos e frágeis pés a tocar a água fresca, o menininho parecia outro, divertindo-se com um dos prazeres mais simples que havia. A água parecia dar-lhe vida e ânimo. O irmão quase esquecia da doença, quando o via, assim, a espairecer. O vento brincava com a cabeleira ruiva, que brilhava ao sol da manhã.
- Amanhã me trazes cá outra vez?
- Só se o tempo estiver bom… Sabes que não podes apanhar chuva…
O pequeno riu, olhando o céu limpo e tendo a certeza que, no dia seguinte, voltaria a molhar os pezinhos nas águas frescas do córrego.
O sorriso triste, que seu protector devolveu-lhe, porém, não passou-lhe totalmente despercebido. Ele sabia que seus minutos de vida estavam contados e que não havia mais nada que qualquer um pudesse fazer. Ele sentia que tudo, agora, acabaria muito rápido…
O menino ruivo manteve o sorriso aberto, para mostrar-se forte e não desanimar o outro, mas, naquele momento, ao coração, pareceu-lhe faltar uma batida...