- Ela estava
comigo. Quando o telefone tocou, ela inventou uma desculpa. Teve que inventar… Sentiu-se
culpada, mas já não havia o que fazer.
- Ela não faria
isso comigo…
Mas
uma pontada de dúvida e dor abriu caminho na mente sofrida do jovem rapaz.
- Mas fez. Estava
carente e a oportunidade apareceu. Todas as pessoas são assim. Não tentes
enganar-te… sabes bem que sim…
Misha
sorriu. E seu sorriso pareceu muitíssimo sarcástico.
- Por que estás
fazendo isso?
- Como eu já havia
dito, para provar um ponto. As coisas e as pessoas não são o que parecem.
O
rapaz, visivelmente afectado pela notícia, quase deixou cair a louça que havia
recolhido da mesa, alguns instantes antes. Sentiu-se sozinho, usado… e traído.
Um peso enorme caiu-lhe sobre os ombros e ele sentiu-se, subitamente, cansado.
Virou-se para sair na direcção da cozinha, quando o outro disse-lhe:
- Traga-me uma
daquelas natas, que me parecem tão frescas e apetitosas, por favor. De repente
senti uma vontade enorme de comer uma delas.
Misha
sorriu outra vez; um sorriso aberto e enganador; calculado, como as suas estudadas
acções de sedução.
Aquele
sorriso pareceu, ao outro, uma grande provocação. O rapaz saiu, sem dizer nada
mais.
-
Que se fodam as natas…
O
imprecativo saiu sem censura de sua mente, enquanto levava a louça suja para a
cozinha do Café. Que outro se
encarregasse de servir-lhe as natas…
(Grande filho da
puta!)
***
- Senti-me mal e
culpada. Fui fraca e deixei-me levar por uma situação, que podia facilmente
controlar.
- Estavas carente e
insegura...
- Não diminui a
minha responsabilidade, nem o sentimento de culpa. Que burra eu fui!!! Olha só
no que deu…
A
terapeuta tentou não rir-se da atitude dela.
- Culpar-te, não
vai resolver nada, nem trazer ninguém de volta. Sabes disso.
- É. Eu sei muito
bem…
- Então, aceita e
toca a vida adiante. Concentra-te no que seja importante, neste momento…
- Na morte… e no
mistério que ficou…
Os
olhos da investigadora pareceram levá-la para longe dali. A terapeuta
observou-a franzir o cenho, como se estivesse vendo algo que não havia
percebido antes…
***
- Como é que ele soube?
A
mulher, visivelmente alterada, mostrava a mensagem no visor do telefone: “Dói. Muito!”
- Não sei. Por que tu achas que
eu tenho alguma coisa a ver com isso?
- Não sejas, cínico, Misha. O que
foi que tu disseste a ele?
- Eu disse-lhe que podia acabar
com a sua dor… se ele deixasse…
- O quê?
- Mas ele não quis ouvir-me.
Disse que não queria nada de mim… nem comigo…
- És louco, ou o quê?
- Por quê? Ele até que era bem interessante…
Misha
riu. Estava a provocar a mulher, que parecia não gostar, nem um pouco, da
brincadeira.
- Deixe de ser asqueroso! Ele não
é da tua estirpe!
- Não?!? Tens certeza disso? Olha
que ele não foi tão indiferente ao beijo que eu dei…
Ela
levantou a mão e ia dar-lhe uma sonora bofetada, mas ele foi rápido o
suficiente para segurar-lhe o pulso, antes que fosse atingido. Chegou bem perto
da face dela e riu-se. Olhou-a nos olhos e disse, bem devagar:
- Eu teria me
divertido muito com ele, assim como diverti-me contigo. Aqueles olhinhos
tristes iam ter uma alegria, que ele nunca imaginara ter… mas ele... digamos
que desistiu, antes de saber.
- Solte-me, seu
grande… porco! Sacana idiota!!!
Ela
levantou o joelho, num gesto defensivo e atingiu-o numa parte delicada, entre o
alto das duas pernas, levando-o a perder o controle e cair ao chão, urrando e
contorcendo-se de dor.
- Vaca!
- Vá para o
inferno, seu filho da puta!
A
mulher saiu, fumegando, pela porta afora, com o peito arfando, cheia de asco e
revolta, deixando o agressor jogado no meio da sala.
Ao
cruzar a soleira e puxar a porta atrás de si, ainda ouviu um misto de gemido de
dor com uma gargalhada de deboche, do rapaz loiro e de olhos azuis, tão
profundos quanto o Oceano Pacífico, mas com a alma tão fútil quanto a de um anjo
caído.
- Vais pagar por
esta…
***
- O que tu queres
aqui? Vá embora!
- Vim trazer-te uma
garrafa da melhor vodka russa que há. Ajuda a aliviar a dor.
- Por que tu achas
que eu quero alguma coisa, que venha de ti? Já não fizeste mal suficiente?
Ainda não estás contente? Tens que destruir tudo que tu tocas?
- Deixa-me entrar e
conversamos.
Ele
abriu aquele seu sorriso estudado e segurou o braço do rapaz que estava a
bloquear sua entrada no pequeno apartamento onde morava. O outro reagiu
imediatamente.
- Saia já daqui!
Levantou
o punho e deu um soco contra o vazio, pois Misha conseguiu esquivar-se
rapidamente. Quase imediatamente, aproveitou-se da vantagem, deu um golpe
certeiro, com a mão cheia e aberta, no peito do rapaz, que perdeu o equilíbrio
e caiu, por cima da perna, que Misha colocara à frente, propositadamente. Meio
corpo caído para dentro do apartamento foi o suficiente para permitir que entrasse,
sem dificuldade, com a garrafa de vodka, cheia, na mão. A porta fechou-se,
assim que o outro levantou-se, ainda meio desnorteado.
***
- É melhor vir aqui
urgentemente… acho que estávamos bastante enganados.
- Como assim?
Enganados?
- O resultado da
autópsia saiu. A ‘causa mortis’… não foi o que pensamos
inicialmente.
- Já estou a
caminho.
A
mulher desligou o telefone e entrou no carro, apreensiva. Em sua cabeça,
milhares de perguntas, sem resposta, iam-se formando, enquanto conduzia, quase
instintivamente, até o laboratório da Polícia.
Pela
janela, as imagens iam passando, num show de slides vivos, enquanto em sua
mente as impressões, sensações e sentimentos atropelavam-se, como se quisessem
manifestar-se todas ao mesmo tempo.
Sombra…
Crianças correndo... Sol... Árvore... Vidro e concreto... Muro... Hidrante…
Sombra... Carro parado… Meninas, vestidas com uniforme da escola, a rir alto...
Semáforo... Vermelho... Dor… Céu azul… Muita dor… Avenidas… Aço, concreto e
vidro… ângulos rectos… esquinas e cruzamentos com sinais em vermelho… Sangue… Morte…
Suicídio? … Homicídio? … Acidente?... Por quê?
***
- Nunca vamos
conseguir provar que foi crime. O nível de álcool no organismo dele era
demasiadamente alto. Estás a ver esta marca?
Ela
confirmou, ao ver a marca de uma batida na têmpora do rapaz morto. O médico
legista apontava uma grande lesão, causada por uma superfície em ângulo recto,
como numa quina de algo.
- Ele caiu, bateu
com a cabeça, enquanto ia em queda e estatelou-se na calçada. Encontramos uma
marca de sangue numa das sacadas da escada de incêndio. Pelo jeito, é mais que
uma simples teoria. Só não conseguimos saber se houve intervenção de alguém… se
foi empurrado ou algo assim. Não há nenhuma evidência no corpo, que demonstre
isso. Procurei em tudo, mas não encontrei absolutamente nada. Jamais saberemos
a verdade, pelo que pude deduzir…
Mas
algo nela dizia que alguém tinha mais a ver com o ocorrido, que as evidências
conseguiam demonstrar cientificamente.
***
Quando
a mulher entrou no “Templo”, já era o
final da tarde. A iluminação dentro do grande salão trouxe-lhe memórias de um
tempo que pareceu-lhe, de repente, tão distante. Uma estranha nostalgia fê-la
olhar tudo com outros olhos. Era, agora, uma investigadora de polícia, em busca
de respostas. Não estava convencida da inocência de ninguém… nem da dela mesma…
Dirigiu-se
ao bar, no centro e perguntou ao servente, que já conhecia:
- Tens visto Misha?
- Faz algum tempo
que não aparece por aqui. Dizem que voltou para o lugar de onde veio, mas quem
poderá dizer com certeza?
***
Sentado
à minúscula janela, o rapaz de olhos azuis olhava para fora, atento aos
movimentos na pista do aeroporto. Temia que a qualquer momento a polícia
invadisse a nave e o levassem para uma sala de interrogatório. Apesar de a
temperatura estar regulada para cerca de 21 graus, Misha suava.
Quando
as portas fecharam de vez e o avião ganhou a pista, em alta velocidade e
levantou voo, deixando para trás a terra em que viveu por uns bons anos, Misha
fechou os olhos e expirou, aliviado.
Em
seus olhos, a imagem do rapaz, visivelmente bêbado e fragilizado, sentado no
chão da sala, ainda estava bastante vívida. Seus braços estavam enlaçados a
volta daqueles ombros, enquanto o outro chorava, angustiado, como uma criança.
Misha aproveitou-se do momento e beijou-lhe, delicadamente, os lábios. O rapaz
não o rejeitou, a princípio. Deixou-se levar por uns poucos segundos…
- Teus lábios são
mais doces e macios que os dela…
O
jovem afastou-se, indignado, passando a manga da camisa sobre a boca. Enojado,
tanto pelo que acabara de fazer, quanto pelo que ouvira, saiu pela porta que ia
até a sacada. Misha seguiu-o, agindo naturalmente, como se fora a coisa mais
natural do mundo.
- Não há nada de
errado com isso. Foi somente um beijo...
- Afasta-te de mim.
Já não basta o mal que causaste? Tens que destruir tudo que tocas, até o mais
ínfimo detalhe?
Misha
estendeu a mão, mas o outro reagiu com violência e um tanto de asco. Ele insistiu
em se aproximar. Ao tentar afastar-se, sem ter consciência exacta de onde pisava,
o rapaz chegou-se para trás, tropeçou num pequeno degrau e perdeu o equilíbrio,
batendo contra a grade de ferro que protegia – muito mal – quem estivesse na pequena
sacada. O efeito do álcool impediu-o de segurar-se, fê-lo perder o controle e
cair… da sacada do quinto andar, contra o cimento frio e duro da calçada,
batendo, durante a queda, na escada de incêndio.
Uma poça de sangue começou a formar-se à volta da cabeça do rapaz caído.
Uma poça de sangue começou a formar-se à volta da cabeça do rapaz caído.
Misha
abriu os olhos. A comissária de bordo vinha pelo corredor, com o carrinho de bebidas.
- O senhor deseja
alguma bebida?
- Sim. Por favor.
Uma vodka.
- Gelo?
- Não. Pura!
***
Fim
de tarde à beira do rio. Debruçada no ‘guard
rail’, a mulher olhava um ponto distante, sem realmente ver, além da outra
margem, onde uma construção com estranhas janelas coloridas erguia-se,
distinguindo-se das outras edificações à volta. O vento, que soprava contra sua
face e jogava-lhe os cabelos para trás, secava-lhe, ao mesmo tempo, as lágrimas
recém-choradas.
Uma
dor corroía-lhe por dentro, sem piedade… a dor que misturava ódio, culpa,
saudade e impotência, diante do maior algoz da vida: a própria morte. A terapia
havia-a ajudado a passar aquela fase de perda e culpa, mas não conseguira fazê-la
deixar de pensar no grande erro que cometera.
Em
sua cabeça, a recordação daquela última noite, ainda estava muito viva. Os
detalhes, ela lembrava que os revivera, inúmeras vezes. As lembranças estavam
tão nítidas, como se estivessem acontecendo naquele momento. Ela fechou os
olhos. Um leve ruído a fez voltar a cabeça.
- Desculpe. Sabe
onde fica o “Templo”?
Ela
virou-se automaticamente, saindo de uma espécie de transe. Quase sem perceber,
olhou directamente nos olhos azuis do rapaz, que vestia uma t-shirt vermelha e que estava em pé, ao seu lado, exibindo
um estranho sorriso nos lábios… A sensação de borboletas, batendo as asas em
seu estômago, lançou-lhe um sinal de alerta, que ela decidiu ignorar.
O
rapaz repetiu a pergunta:
- Sabe onde fica o
“Templo”?
Ela
simplesmente respondeu, sorrindo:
- Sei…
A historinha termina aqui. Perdoem-me os imprecativos, mas tentei ser o mais fiel possível, aos sentimentos que me vieram à cabeça, ao escrever a acção...
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