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domingo, 7 de agosto de 2016

Código de Barras (Parte 2)


- Como é que eles desapareceram daquele jeito?

- Não sei. Mas a mim pareceu-me que não é muito bom sinal. Quem são eles, afinal?

- Também não sei, mas gostaria muito de descobrir…

- Não acho que vamos voltar a encontrá-los. A não ser que…

Um pensamento perturbador passou pela mente do rapaz de óculos, interrompendo o fluxo das palavras. O outro logo percebeu o que ele queria dizer e balançou a cabeça, negativamente.

- Não… não… não… Não acredito. Não pode ser…

Coçou a cabeça, como quem procura uma razão para desfazer-se do mau pensamento.

- Ou pode?

- Nós dois estamos cansados de saber que tudo é possível… tudo mesmo!

- Só que não teremos tempo para descobrir. Temos que voltar à base amanhã... felizmente…

- Ou não…

- Ou não o quê?

***

- Fica quieta que eu vou soltar-te, devagar. Promete que não vais gritar. Não quero machucar-te... A não ser que seja necessário… e se for…

Ela acedeu. Ele afrouxou, devagar, a mão e o braço, deixando-a livre, mas sob sua cuidadosa atenção e vigilância.

- Estás maluca? Tu não podes expor-nos desta forma. Queres colocar-nos em risco, correndo no meio da multidão, daquele jeito? Sabes o perigo em que nos colocaste?

- Aparentemente quem expôs-se demais não fui eu. Olha bem para ti. Por que aqueles dois rapazes estavam a seguir-nos? Não pareceu-me que fosse ao acaso…

- Não passam de uns intrometidos. Nós podemos lidar com isso, mas não agora. Temos coisas mais importantes para tratar. A nossa tarefa é mais premente, neste momento. O tempo que nos resta é muito curto.

- Isto é mesmo essencial ou é, de facto, um grande engano? Ou, talvez, seja apenas um capricho, por não querermos aceitar o inevitável?

- Capricho? Sobreviver é um capricho, agora? E de onde vem esta dúvida, assim, do nada?

A moça olhou o homenzarrão, séria e firmemente. Seu semblante estava sombrio e um tanto desafiador. No fundo de seus olhos, porém, pairava uma triste dúvida. O certo já não lhe parecia tão certo e o óbvio já não era tão óbvio…

Seus olhos pareceram perder o foco e sua expressão mudou, de repente, de desafiadora para melancolicamente angustiada.

- Ainda não sei dizer, ao certo. Algo me diz que o sacrifício não dará o resultado esperado.

Aquela evidência de dúvida… na mente, no discurso e no comportamento da jovem mulher não eram normais e nem indicavam bons sinais…

Eles, na verdade, não estavam treinados ou programados para questionarem o propósito de uma tarefa que lhes fosse atribuída. Ou iam em frente e até a conclusão, ou colocariam em risco muito mais que o simples desígnio de uma missão considerada importante demais.

Garantir a sobrevivência, a qualquer custo, era, definitivamente, uma grande incumbência… e não somente para eles dois… só que, talvez, nunca chegasse a ser vista como tal… infelizmente…

Aquele era o heróico e triste destino dos soldados anónimos.

***

- Nosso voo é ao final da tarde. Vamos arranjar as coisas e passar no Mercado Público, uma última vez. De lá vamos direto ao aeroporto.

Embora não fosse o lugar predileto do rapaz de óculos, ele concordou. Tinha esperança de reencontrar a moça da trança negra, mas não manifestou seu desejo em alta voz. O outro estranhou a falta de protesto do amigo, mas ficou quieto. Queria aproveitar as últimas horas na ilha, antes de partirem de volta. Talvez não voltassem tão cedo… talvez nem sequer voltassem…

- Vamos fazer o ‘check out’ e sair em seguida, para aproveitar bem o tempo que nos resta aqui.

Pouco tempo depois, os amigos saíam com as mochilas às costas, em direção ao Mercado Público. Nas mentes dos dois haviam propósitos distintos, misturando-se a uma série de preocupações.

***

- É quase hora de voltarmos. Temos que partir daqui e concluir nossa tarefa o quanto antes. As duas cidades mais populosas do país já estão preparadas. Resta-nos ‘apertar o gatilho’, por assim dizer. Também já não precisaremos voltar para cá. Vamos ser levados de volta, de lá mesmo… cada um de uma delas… separados…

- Eu não quero ir. Não acredito que vamos ser bem-sucedidos numa loucura dessas...

- E desde quando tu tens esta opção?

- E se não der certo? E se…

O homem interrompeu-a, irritado.

- Se isso... Se aquilo… chega de se’s! Nós só saberemos, SE terminarmos aquilo a que viemos… Esse é o único SE que importa! Agora, vamos!

***

- Não te vires agora. Finge que estás interessado em alguma coisa lá na tua frente.

- Ok, mas diz-me o que está acontecendo…

- Código de barras diz-te alguma coisa?

O rapaz de óculos parou, como se estivesse congelado. A decepção que sentiu antes, por não  encontrar a moça no Mercado Público, desapareceu instantaneamente. Por alguma razão estranha, porém, um arrepio subiu-lhe pelas costas.

- Estão indo para portas diferentes. Acho que vão separar-se. A moça veio para o lado de cá…. Está caminhando para perto da porta. Já podes olhar, agora.

O rapaz de óculos disfarçou um pouco e olhou na direção da porta, onde os passageiros começavam a enfileirar-se, em resposta ao chamado que acabara de ser ouvido pelos altifalantes da sala de espera do pequeno aeroporto. Os dois levantaram-se e seguiram a fila, mostrando desinteresse em quase tudo, exceto na moça de cabelos muito negros, uma dezena de passos à frente dos dois.

Em pouco tempo a porta de correr abriu-se e os passageiros passaram por ela, depois de mostrar os documentos, a dirigir-se para a aeronave que acabara de preparar-se para descolar. O homem de cabeça rapada dirigiu um último olhar para a moça, que atravessava a porta e avançava em frente, sem olhar para trás. Provavelmente certificava-se que ela não desistia.  

Os dois cruzaram a porta logo em seguida, com os olhos na dona da trança negra, que mal conseguia esconder uma tatuagem incomum e intrigante. Apressaram o passo para chegarem mais perto e observarem onde ela ia sentar. Quem sabe pudessem entrar em contacto…

Ao chegarem à pequena porta do grande avião, a aglomeração lenta dos passageiros a arranjarem as bagagens de mão e à procura dos assentos, distraiu os dois.

- Boa tarde. Sejam bem-vindos. Assento, por favor… Por este lado, por favor.

A comissária orientava os passageiros e separava-os nas duas fileiras, de modo a agilizar o embarque. Os dois, agora, estavam mais preocupados em alocarem as bagagens por cima dos assentos. O rapaz de óculos apressou-se a deixar a mochila e a procurar, rapidamente, antes de sentar-se, por uma figura conhecida mais ao fundo.

- Desculpe. Com licença…

A comissária passou pelos dois a passos apressados, na direção dos fundos da aeronave. O cabelo amarrado num coque atrás da cabeça mal conseguiu esconder uma pequena marca escura… uma tatuagem…

O rapaz de óculos ficou lívido quando viu-a aproximar-se da moça de trança e entregar-lhe um pequeno pacote. A moça olhou-a com um ar incerto e sentou-se, muito séria. A outra posicionou-se na fileira de trás, de onde podia observar a passageira, bem de perto…

- Senhor, sente-se, por favor e afivele o cinto de segurança. Já vamos partir…

O rapaz sentou-se a falou, em voz baixa, ao amigo:

- Há algo muito errado aqui.

Ele contou o que viu e ambos concordaram que estavam presenciando uma estranha sequência de acontecimentos. A meio do voo, quando as coisas pareciam mais controladas, embora ainda intrigado e quando voltava do toilete, o rapaz sentiu que alguém passou por ele, esbarrando, no momento em que curvava-se para afastar o cinto de segurança do assento, antes de sentar-se. Ele chegou-se para a frente e deixou uma moça passar.

- O que é isso saindo do teu bolso?

O rapaz puxou um pedaço de papel dobrado do bolso, que não estava ali, antes. Ao desdobrar, viu uma pequena mensagem escrita com uma letra não muito comum, quase rebuscada demais.

- Espere do lado de fora do aeroporto, na chegada, junto aos táxis. Preciso de ajuda…


Por baixo, havia uma marca, que ele logo reconheceu e que o deixou mais preocupado. Ele estendeu o bilhete ao amigo e os dois se entre-olharam, sem dizer nada, ao reconhecer um pequeno código de barras como assinatura…


segunda-feira, 25 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 3 - Epílogo)


Ai, bota aqui
Ai, bota ali o seu pezinho
O seu pezinho bem juntinho com o meu
E depois não vá dizer
Que você já me esqueceu…

- Dança comigo. São dois pra lá e dois pra cá…

- Eu ainda sei dançar bolero!

Não disse aquilo com irritação, nem impaciência, mas com convicção. Eu sabia os passos de poucas danças de salão, mas bolero era fácil demais… e eu lembrava…

Estávamos casados há quase oito anos e os últimos dois haviam sido, mesmo, uma derrocada completa. Os poucos momentos que ainda partilhávamos, tanto por estarmos muito envolvidos nos nossos projetos profissionais, quanto por arranjarmos desculpas para não estarmos mais juntos que o necessário, eram, quase sempre, um grande exercício de tolerância e paciência.

Era assim que sentia naquela ocasião…

Sabíamos que não havia futuro no nosso relacionamento, o que era, por um lado, bastante triste, mas também libertador, ao mesmo tempo.

Ela, uma educadora promissora e extremamente ambiciosa, com ideias avançadas, estava mais ligada às decisões profissionais dos adolescentes, com programas que mais enquadravam-se ao estilo militar, enquanto eu desenvolvia um programa experimental para crianças, num estilo mais natural e quase ingénuo.

Eu não gostava das ideias, nem da quase insaciável sede de status e posses que ela tinha, mas nossos projetos eram independentes e iam em direções muito diferentes, praticamente opostas, por isso um não interferia nos projetos do outro, mesmo que discordássemos dos métodos que um e outro utilizávamos. Com o tempo, aquilo que fez crescer a atração entre nós - nossas tão evidentes diferenças - também nos afastou, tornando a convivência praticamente insuportável.

Aquele foi nosso último bolero.

***

Marcha soldado, cabeça de papel
Se não marchar direito, vai preso
No quartel…

As crianças falaram, por dias, a respeito do acampamento e do que viram por lá. Imaginei que, em suas casas, as famílias tiveram, também, que partilhar a excitação dos alunos e ouvir as histórias com atenção. Alguns pais comentaram que foi difícil aquietarem os filhos, mas estavam bastante satisfeitos com o sucesso do empreendimento. As crianças passaram a semana a desenhar o que viram durante a experiência. O riacho, a montanha, os animaizinhos, as tendas, os coleguinhas, a fogueira… muitos detalhes do que eles experimentaram viraram um grande painel artístico, exposto nas paredes das salas de aula. 

Os dois rapazes, entretanto, desenharam soldados e jipes do exército, o que me preocupou um pouco, pois foi o que pareceu havê-los marcado bastante. Os dois vieram conversar comigo, no intervalo do almoço. Foi justamente o tema da conversa que me causou uma inquietação maior que os desenhos dos mesmos.

***

O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou…

- O que aconteceu com o que sentíamos um pelo outro? Por que nos afastamos tanto?

- Não foi de uma hora para a outra. Foi um longo e doloroso processo, apesar das tentativas para que desse certo.

- O que houve com o que havia de bom entre nós? Aquela nossa amizade… o amor…

- Que amor? Nunca houve amor entre nós. Não se ama quem se é forçado a aceitar na casa ou na vida, por circunstâncias que não por opção espontânea. Sabes por que eu nunca te disse: eu te amo? Porque nunca senti que te amasse. Mesmo assim eu lutei pelo nosso relacionamento. Até tentei amar-te, mas tu derrubaste tudo, quando eu menos esperava e tão mais cedo que eu poderia aceitar. Aquela linha muito ténue que havia entre o amor e o ódio partiu-se, agora, de vez. Eu já não me importo contigo ou com tuas coisas, tua vida ou teus problemas. Na verdade, o que sinto por ti é mais um misto de desprezo e ojeriza, como nunca senti por ninguém…

Ela estava sentada na cama, com o computador aberto no colo e eu de pé, encostado à soleira da porta do quarto. Ao ouvir aquelas palavras, que estiveram presas na minha garganta por tanto tempo, ficou vermelha de raiva e chamou-me de covarde, por não haver levantado a discussão antes. Eu, como de tantas outras vezes antes, desliguei a parte do cérebro que se importava com a irritação… ou qualquer coisa que viesse dela… e não disse mais nada. Não valia a pena discutir, nem mesmo gastar meu tempo com qualquer tipo de preocupação ou empatia. Estava tudo acabado, mesmo, entre nós.

Virei as costas e saí, apesar de ouvir seus protestos, mas já não ia fazer diferença nenhuma. Abri a porta, entrei no carro e saí. Não voltei nunca mais…

***

- Como assim, soldados? Nosso projeto não passa por isso e seria um desperdício enorme do investimento que fizemos até agora. Mas como vocês estão quase em idade de mudar de escola, talvez seja interessante conversar com a orientadora pedagógica e avaliar as afinidades de vocês. Pode ser somente um interesse momentâneo…

- Não é só momentâneo. Nós queremos, mesmo, ser soldados…

- Vou encaminhar os dois, em separado, para a orientadora pedagógica, que é psicóloga, então… Ela saberá como avaliar as vocações e os interesses de vocês… e bem melhor que eu…

Os dois meninos sorriram. Mostravam-se satisfeitos com aquela decisão. Pareciam mesmo decididos a ir adiante com aquela ideia. Eu só rezava para que a minha ex-mulher não aparecesse por lá tão cedo, nem soubesse do tipo de interesses que começava a nascer nas cabeças de nossos alunos, devido a um incidente gerado durante uma inocente viagem de lazer.

A assustadora ideia de deixá-la aplicar seus loucos métodos de treinamento militar, em crianças tão jovens, não era pior que tê-la a vangloriar-se de que estava certa e que ela sabia o tempo todo que eu era apenas um ingénuo pedagogo, completamente fora do meu tempo… e dos processos que envolviam a educação moderna…

Será que eu havia sido tão ingénuo e estivera, mesmo, errado, o tempo todo?

***

Se eu tirasse uma pedra olê, olê, olá
Se eu tirasse uma pedra, olê, seus cavaleiros…
Uma pedra não faz mal, olê, olê, olá
Uma pedra não faz mal, olê seus cavaleiros…
Se eu tirasse duas pedras, olê, olê, olá…

- Acho que precisamos conversar. É bastante urgente!

- É sobre os meninos?

- Sim. Melhor vires à minha sala.

A orientadora pedagógica confirmou, em pouco tempo de conversa, minhas suspeitas e meus receios. Por mais que eu quisesse negar, apesar de haver dado o melhor de mim no projeto, sentia como se estivesse a perder uma batalha. Pelo menos eu deveria ficar feliz por saber que aqueles dois rapazes tinham as mentes livres de medos… o que poderia ser um grande benefício para o treinamento no exército, por torna-los destemidos e curiosos, mas não achava que era justo, depois de todo o investimento na educação deles, que o potencial criativo dos mesmos fosse usado para fins diferentes da intenção inicial.

Eu tinha que deixá-los ir adiante em suas vidas, de todo jeito, após o período em nossa escola. O que acontecesse com eles, depois que estivessem em outro estabelecimento de ensino, não era nem minha responsabilidade, nem tampouco tinha autoridade para influenciar ou mudar qualquer coisa. Sabia que quando tivessem que fazer suas decisões, em termos de carreiras, os alunos iam optar por aquelas que lhes pudessem dar um futuro promissor e sustentável.

O primeiro grupo a estar pronto para sair, formava-se naquele ano, dentro de poucos meses. Será que duas das pedras, naquela muralha de educação, comprometeriam a solidez da estrutura? Estariam eles preparados para enfrentar a decisão que haviam tomado, embora ainda muito cedo, em suas vidas?

Resolvemos que faríamos uma pequena cerimónia de formatura, para celebrar o sucesso do projeto e para encaminhá-los a outros tipos de vida escolar mais padronizados com a estrutura educacional vigente no país.

No dia da formatura daquela primeira turma, haviam muitos convidados, entre pais e outros educadores de outros colégios. As crianças estavam excitadas e alvoroçadas, como um bando de pardais. O programa havia sido elogiado pela maioria e eu estava, também, ansioso e irrequieto, como se fosse um dos alunos. Tinha os músculos do pescoço bastante tensos e temia uma surpresa desagradável…

***

Sereno eu caio, eu caio
Sereno deixai cair
Sereno da madrugada não deixou meu bem dormir
Minha vida ai ai ai
É um barquinho ai ai ai
Que navega sem leme e sem luz.
Quem me dera ai ai ai
Que eu tivesse ai ai ai
O farol dos teus olhos azuis.

- Eu sabia que tu ias fazer aquilo. Minhas suspeitas estavam certas e meu instinto avisou-me, mas não tinha como impedir-te de fazer uma das tuas, tinha?

- Claro que não! Foi uma pequena intervenção, homem. O melhor para aqueles meninos é o programa que eu desenvolvi. Eles são soldados, desde o berço…

- Tu estás cada dia mais louca!

- Deixa de te melindrares tanto. Parece que ainda estamos casados... Isso não tem nada a ver contigo. Ainda tens que aprender a separar as coisas… de uma vez por todas!

- Tens razão. Eu nunca soube separar bem as coisas. Devia ter aprendido a ler mais sabiamente os sinais, desde há muito tempo atrás. Eu cheguei a ser envolvido na tua engenhosa trama, que me levou à uma série de reveses, sem dar-me conta daquilo. Mas, no fundo e no final, mesmo tendo sido lesado na minha saúde e na minha vida, eu sobrevivi, levantei-me, lutei e venci… por minha conta e custo. Se houve uma coisa que me deu forças, foi a certeza que um dia eu ia poder olhar-te de frente e saber que não sentia mais nada por ti. Nada mesmo. Nenhuma pena, carinho ou interesse em saber como estás, nem mesmo qualquer vestígio de ressentimentos. Um dia desejei que alguém te fizesse passar pelo que eu passei e sentir o que eu senti, não por vingança, mas para saberes como é doloroso… mas, hoje, isso não tem a menor importância. Na verdade, nunca precisei disso para tornar-me quem eu sou e isso dá-me uma satisfação enorme. Maior que qualquer coisa que tu possas compreender ou imaginar e nem espero que o faças…

Ela soltou um palavrão... dos feios... virou-se e saiu. Já havia feito o mal que queria e não tinha paciência para ouvir minhas verdades.

Minha vida, desde que nos separamos, havia-se tornado muito mais simples e minhas ambições mais voltadas à educação, à arte e à criatividade, por isso o sucesso do meu projeto era uma questão de extrema importância para mim. Era como um filho que eu houvesse imaginado, concebido e ao qual dera uma bela vida. Eu só queria que crescesse e fosse bem-sucedido, para o meu bem e o daquelas crianças.

Sim, eu sabia que haveriam certas perdas, durante o percurso, mas essas sempre existiriam. Tudo era parte de um processo complexo de educação e de vida.

Do ponto de vista dos relacionamentos, o que eu precisava era manter-me sozinho e em paz. Meu trabalho absorvia boa parte dos meus dias e, o restante do tempo, tinha um projeto pessoal mais ambicioso, mas sem pressa de concluir: um livro de contos, com ilustrações em aguarelas e desenhos a carvão e sépia, feitos por mim mesmo.

***

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar…

Para os dois meninos, fascinados pelo exército, o projeto funcionou durante uns tempos. Os pais acabaram mudando para uma região muito próxima daquela onde acampamos uma única vez, afastando-os do treinamento para a vida militar, pelo menos até que vida os colocou, inusitadamente, frente a frente com uma situação bem mais crítica.

Embora a família tenha mudado o rumo das vidas deles, o destino tratou de alinhá-los, novamente, com perversidade de mestre, levando consigo o que lhes era mais caro e jogando-os de volta nos braços do exército… só que para o resto de suas vidas!

Uma base militar, secreta, para confirmar as suspeitas deles, havia, mesmo, sido construída no topo da montanha…

A descoberta da mesma foi-lhes tanto o azar, quanto a sorte deles…


domingo, 22 de novembro de 2015

Espirais (Epílogo)


O rapaz, que fora apreendido em flagrante, numa área à qual não deveria sequer ter tido acesso, em princípio, foi agressivamente retirado do local pelos seguranças do sumo-sacerdote. Os dois foram, então, levados de volta e mantidos no quarto da porta sem maçaneta e sem nenhum direito de acesso às outras instalações do grande edifício. Estavam encarcerados outra vez... e desta vez tinham plena consciência da razão pela qual voltavam àquela prisão.

- Aonde tinhas a cabeça? Sabes muito bem que foste extrema e completamente imprudente e negligente. Se antes nós corríamos perigo, agora o risco será muito maior. Temos que sair daqui o quanto antes… antes que nos façam mal maior…

O rapaz de óculos sabia que o outro tinha razão e não respondeu. Ele odiava quando aquilo acontecia, porque ficava sem contra-argumentos. Pôs as duas mãos na cabeça, sentindo-se cair num poço sem fundo, frio e escuro. Jogou-se de costas sobre a cama e fechou os olhos. Uma dormência tomou conta dele, quase que imediatamente. O outro também sentiu seus olhos pesarem e quase não teve tempo de sentar-se, antes de perder a consciência. Haviam sido drogados.

***
- Aquilo foi uma infeliz coincidência. Um acidente, que acabou salvando nossas vidas. Não somos nada especiais… apenas tivemos a sorte de não estar na superfície, quando as explosões ocorreram. Foi a estrutura do ‘bunker’ que nos manteve a salvo, fora da área de radiação.

- Eu não acredito.

- Pode acreditar. Nós somos dois comuns mortais. Nada além disso. Isso tudo não passou de um grande engano. Nós nem devíamos estar lá, naquele momento…ou aqui… agora…

- Amanhã, assim que o sol nascer, serão sacrificados. Se for verdade o que dizem, não haverá consequência…. Além da vossa morte, é claro. Se estiverem mentindo, vosso poder será meu. De todas as formas, eu saio ganhando e vocês perdem…


Em meio ao medo e à raiva que sentia, o rapaz de óculos gritou um imprecativo, mas em vão. O homem da cabeça rapada já havia saído, ignorando qualquer súplica e divertindo-se com o que acabara de dizer aos dois soldados prisioneiros. Eles já não tinham nenhum uso. Pelo menos serviriam de comida aos grandes animais, que eles usavam como farejadores de caça…

- Ora, ora… Que grande ideia… tornar o sacrifício de dois inúteis soldados num jogo de caçadores e caçados…

O homem sorriu, satisfeito por haver tido aquele lampejo de imaginação. Tinha que fazer uns arranjos para a manhã seguinte. Aquilo ia ser, mesmo, muito divertido…

Quando a porta foi trancada, um suave e conhecido perfume começou a impregnar o quarto e os dois começaram a sentir-se sonolentos.

Desta vez, porém, protegeram os narizes e as bocas com a almofada, levantaram as cobertas das camas, formando uma grossa camada protetora, como uma cabana e ficaram quietos, na esperança que o opiáceo não penetrasse entre as fibras das cobertas. Tinham que manter-se alertas, sem perder a consciência. Sabiam o perigo que corriam e não podiam deixar mais nenhuma ponta solta, ou seriam vítimas muito fáceis dos soldados a serviço do insano sumo-sacerdote.

O tempo parecia não passar. Algumas horas depois, ouviram o barulho de alguém a mexer no ferrolho da porta e entrar no quarto.

Os dois jovens soldados fingiram estar a dormir, tentando não respirar muito profundamente, para não absorver a droga que havia sido lançada no ambiente. Uma lufada de ar fresco entrou no quarto, assim que dois homens armados cruzaram a porta. Estavam acompanhados pela mocinha, filha do sumo-sacerdote, aquela que havia encantado o jovem soldado, que ainda fingia dormir.

Ela aproximou-se da cama e olhou-o bem de perto. Ele sentia o perfume da pele e dos cabelos dela, quase a roçar em suas narinas. Ele não resistiu e abriu os olhos, enquanto ela dava um gritinho nervoso, que chamou a atenção dos dois seguranças. O outro soldado percebeu a deixa e empurrou os dois seguranças contra a parede, com toda a força que conseguiu e gritou:

- Corre!

O rapaz de óculos agarrou a mão da mocinha e saiu correndo pelo corredor, logo atrás do outro, aproveitando-se da confusão deixada, enquanto os seguranças tentavam, sem sucesso, sair do quarto que fora trancado pelo lado de fora.

Os dois jovens soldados correram pelos labirintos que levavam ao andar de baixo, sabendo que tinham que achar, urgentemente, uma saída daquele lugar. Passaram por uma série de corredores até alcançarem um hall, que levava, através de um pórtico, ao lado de fora, onde uma varanda com muros muito altos impedia-os de sair. Voltaram para dentro, correndo.

Ao retornarem, depararam com outro corredor, que levava até uma outra sala, completamente desprovida de móveis, com o piso de mármore puro e muito limpo. No centro daquela, uma enorme árvore erguia-se, imponente, como se fosse senhora do lugar e passando por uma abertura no teto, ainda crescia, como se não tivesse limites, até quase perder-se de vista. Um par de círculos concêntricos estavam pintados no imaculado chão de mármore, como se decorassem, em vermelho (a vida) e dourado (a realeza), o início da vida que ela representava.

Uma grossa liana subia em espiral por toda a extensão do tronco, das raízes até muito acima do teto do edifício.

Ao perceberem que os seguranças aproximavam-se rapidamente, os fugitivos utilizaram-se daquela improvisada escada, para escaparem pela abertura acima deles, mas a mocinha foi alcançada pelos homens do sumo-sacerdote, sem sequer conseguir subir atrás deles…

***

- Não se assustem. Não vos queremos mal. Não é sempre que alguém escapa da grande fortaleza.

Os homens, vestidos de uma forma mais comum, apressavam-se a tirar os dois jovens soldados da água do rio. Tentavam tranquilizá-los, já que um dos rapazes parecia bastante assustado e não demonstrava confiança cega em ninguém. O outro parecia mais aliviado. Deviam ter passado por uns maus bocados na fortaleza, rio acima, com os homens do sumo-sacerdote ou com o próprio…

Os dois foram levados para uma base, no meio da floresta, fortemente protegida e guardada por homens armados. Depois de trocarem as roupas molhadas, em aposentos militares, desprovidos de qualquer luxo, como o anterior, onde eram prisioneiros, os jovens soldados foram apresentados ao comandante, um homem com ar distinto e que os recebeu com um largo sorriso.

- Folgo em saber que dois homens bravos conseguiram escapar da fortaleza e da insanidade daquele homem. Sinceramente, não esperava que fossem tão jovens, mas vejo que estão bem.

- Nós somos soldados de elite, treinados pelo exército…

- Soldados treinados, hein? Não parece-me que sejam mais que dois jovens aventureiros. E como vieram parar aqui neste buraco, no meio do nada, a mercê de um louco como aquele?


Os dois mostraram as plaquetas de identificação do exército que traziam, ainda, penduradas nos pescoços, em correntes de aço e contaram, brevemente o que lhes acontecera.

- Fomos sequestrados, na saída do aeroporto. Estávamos numa viagem de férias.

O comandante ouviu-os com atenção, sem fazer perguntas. Quando terminaram, disse-lhes que descansassem, que ele ia verificar com seus contactos para tirá-los de lá, antes mesmo que os homens do sumo-sacerdote dessem conta que eles estavam naquela base. A presença deles poderia desencadear um conflito entre os dois lados.

- Por favor, entretanto, estejam à vontade, mas não saiam da área do acampamento, por ser mais prudente. Eu vou tentar ser o mais breve possível. 

Ele tomou nota dos números de identificação dos dois soldados e saiu.

O jovem, que perdera os óculos na queda contra o rio, mantinha um ar bastante preocupado. O outro compartilhou a inquietação do amigo, quando os olhos dos dois encontraram-se. Algo parecia estar fora do lugar…

***

Naquela noite, o comandante mandou acender uma fogueira no meio do acampamento e eles tiveram uma refeição ali mesmo, sentados em improvisados assentos de troncos, e mesas feitas de pedaços de madeira cortada a facão. Tudo muito rústico, mas interessante, ao mesmo tempo. Os soldados lembraram-se de quando acampavam juntos, antes de a tragédia acontecer. Os homens contavam histórias sobre o que acontecia por ali, das pessoas que haviam sido mortas e jogadas às feras, das quedas no rio - quase todas fatais - e dos mutilados corpos que iam dar às margens do rio, perto do acampamento. Eles comeram e beberam como se estivessem de férias, com os amigos à volta de uma fogueira, num acampamento de verão.

Pela primeira vez em dias, os rapazes dormiram bem, sem estarem drogados. No dia seguinte, assim que amanheceu, um estranho silêncio colocou os guardas em estado de alerta. Algo não ia bem. Os pássaros costumavam estar sempre em algazarra, assim que o sol nascia, anunciando que a vida continuava normal, não importando o que havia acontecido no dia anterior. Um dos cães, que estava sentado junto ao dormitório, levantou-se e correu para o meio do mato, a latir ferozmente. Os homens seguiram o animal, de armas nas mãos e sem muito pensar. Agiam por puro reflexo.

Um berro, um estranho urro e um curto ganido foi tudo o que conseguiram ouvir, antes do céu vir abaixo, dentro do acampamento. No meio da correria, da confusão e dos tiros, os rapazes perderam-se. Não tinham armas, estavam completamente alheios ao que acontecia, quando uma cabeça apareceu na entrada da tenda e gritou:

- Venham! Depressa!

O comandante pulou num jeep e girou a chave na ignição. Os rapazes mal tiveram tempo de entrar no veículo, que não demorou uma fração de segundo para sair pelo meio do mato, numa trilha mal aberta, em alta velocidade, sem cuidar muito por onde passava. Atrás deles ouviam-se tiros e berros, como se grandes animais estivessem em luta com humanos. Eles não queriam imaginar quem iria vencer aquela estranha batalha.

- Mantenham as cabeças baixas. Vamos sair daqui sem demora. Os homens e as feras do louco invadiram o acampamento. Devem ter sabido que vocês estavam lá.

E pela densa mata o jeep rumava, sem parar, com os três homens mudos e concentrados apenas no que viam pela frente. Só parou, muitos quilómetros à frente, depois de atravessar uma longa trilha e de chegar à uma cidade. O comandante entregou os dois ao quartel-general, deixando-os sob a proteção do exército local. Deu instruções para serem escoltados até o aeroporto e só retornarem quando o avião houvesse partido. Os dois iam embarcar como soldados a serviço do exército, com passaportes arranjados às pressas. O comandante deixou-os, praticamente sem despedir-se e voltou para a base.

***

- Eu nunca mais saio da base militar… para nada! Não adianta tentar convencer-me do contrário. Eu nunca mais saio de lá!

- Não digas isso… Não estás sendo coerente.


Ao passar pelo hall do aeroporto, já em território natal, uma moça de grandes olhos muito azuis, que vinha pelo corredor, fixa o olhar no do rapaz que sentia falta de seus óculos, para poder enxergar melhor… Ele se distrai, tropeça na mala e quase cai. Quando levanta a cabeça, não vê ninguém com aquelas características. O amigo olha-o com uma expressão questionadora, mas ele ficou com vergonha de mencionar o que vira. Ele volta a olhar em todas as direções, à procura da moça, mas em vão. Sacode a cabeça, convencido estar enganado, resmungando para si mesmo.

- Deve ter sido impressão minha…

Por trás de uma banca de venda de comida, dois grandes olhos muito azuis observavam, enquanto os dois soldados dirigiam-se para a saída. Um deles vinha à frente, com o passo firme e pesado, enquanto o outro seguia-o, balançando a cabeça, desconsolado.

Na calçada, do lado de fora do aeroporto, uma van escura vinha chegando, sem ser percebida pelos dois jovens, que já iam a caminhar um tanto longe, na direção oposta.

Um par de soldados entrava naquele momento, ainda vestindo seus uniformes de gala, onde traziam insígnias do exército especial e medalhas de bravura, recentemente agraciadas, ostensivamente reluzindo em seus peitos. Não perceberam que a porta lateral da van abriu-se naquele momento e um homem vestido de negro saiu de lá, mantendo os olhos fixos nos soldados, que dirigiam-se à área de ‘check in’, subindo as escadas em espiral, erguidas no centro do movimentado hall do aeroporto…

***

sábado, 7 de novembro de 2015

Espirais (Parte 3)


Uma mocinha, aparentando não mais que uns dezoito anos, vestida com uma simples túnica azul celeste de tonalidade muito clara, adornada apenas por um cordão dourado, amarrado à cintura, entrou, logo atrás de dois homens, que portavam nada discretas pistolas militares nas mãos, quando a pesada porta de madeira maciça foi aberta. Vinha com o propósito de servir de intérprete e traduzir a intenção por trás da presença dos dois homens armados a aqueles jovens prisioneiros. 

Ela pousou seus grandes olhos azuis nos dois, mas demorou-se uma fração de tempo mais longa no rapaz de óculos, que a observava com genuíno interesse e com a boca semiaberta. O amigo percebeu a reação do outro e sorriu discretamente. 

Poucos minutos depois, o grupo seguia pelo longo corredor, cujo piso de pedra polida amplificava o som dos passos, ecoando pelas altas paredes pintadas de bege. Iam em direção à uma sala aberta, no outro extremo do edifício. 

Um homem alto e corpulento, com a cabeça raspada e ar muito sério os aguardava, de pé e descalço. Estava vestido com uma túnica muito clara e uma espécie de calça feita de uma peça única de tecido liso amarrado à volta da cintura e dobrado, de modo a deixar as pernas cobertas até a altura dos joelhos, sem entretanto tolher-lhe os movimentos. Era tingida de um tom de azul bem mais escuro. 

Ele adiantou-se e recebeu-os com a mão estendida, ainda com o semblante bastante sério e falou-lhes, praticamente sem sotaque. 

- É uma enorme satisfação receber os dois homens que sobreviveram, incólumes, a uma explosão nuclear. 

Ele abriu bem os olhos, exibindo um sorriso um tanto estranho.

- Esse poder interessa-me muito…

O rapaz de óculos levantou o sobrolho, desconfiado, sem mover-se mais que o necessário. Estava, também, surpreso que o homem falasse a mesma língua. O outro soldado respondeu mais positivamente ao cumprimento daquele homem estranho, vestido com uma indumentária igualmente incomum, cujo aperto de mão, muito firme, mostrava uma força bastante evidente, a emanar dele, com uma naturalidade espantosa. 

Os dois olharam-se firmemente nos olhos, como se desafiassem um ao outro.

***

- Por que não dormes? Quase consigo ouvir teus pensamentos daqui…

- Não consigo… parar de pensar…

- Naqueles olhos azuis? Achas que eu não percebi?

- Bobagem. Não é nada disso. Estou preocupado. Nós estamos como hóspedes, neste quarto de luxo, depois de termos sido sequestrados. Há algo muito errado aqui…

- Pois há. Mas é melhor dormir, agora. Amanhã temos que arranjar uma forma de sair daqui. Agora descansa.

- Se fossemos hóspedes, mesmo, a porta teria uma maçaneta pelo lado de dentro. Estamos presos aqui.

- Eu sei. Mas de nada adianta tentarmos sair agora. Nossa saída tem que ser mais estratégica, quando estivermos fora daqui. O quarto é à prova de fuga. Nem janela tem…

- Estamos aprisionados por um louco. Viste os olhos dele? Ele é completamente louco… O que ele espera de nós? 

- Não sei ao certo. Mas ele quer mais poderes… se é que tem algum, além daquela insanidade doentia… Ele é muito, muito perigoso…

Os dois ficaram em silêncio, cada um imerso em seus próprios pensamentos. A quietude da noite, naquela ala do grande edifício onde estavam, pesava sobre os dois jovens soldados, perigosamente, como se fosse uma sentença de morte. 

O rapaz, cujos óculos repousavam ao lado do travesseiro, olhou o teto e viu, por um instante, num estranho lampejo de memória ou delírio, dois grandes e conhecidos olhos a olharem para si. Ele sorriu, virou-se para o lado e cerrou as pálpebras. Uma sensação agradável tomou conta dele, como se estivesse sendo embalado pelos braços e colo da mocinha de magnéticos olhos azuis. 

O outro sentiu, também, suas pálpebras pesarem, foi tomado por uma agradável sensação e não tardou a adormecer. 

Nenhum dos dois percebeu que um silvo muito subtil, quase imperceptível, num canto, instilava um poderoso opiáceo no ambiente, fazendo-os cair em sono profundo e pesado, fazendo-os sentir que estavam a flutuar, agradavelmente, sobre as camas dispostas em lados opostos do espaçoso quarto.

***

Depois de uma leve e breve refeição, à base de frutas, chá e sumos naturais, já a meio da manhã seguinte, os rapazes foram levados por um corredor, que seguia acima de uma grande sala, que cruzava uma larga parte aberta do edifício, onde aglomeravam-se muitas pessoas, vestindo túnicas soltas sobre seus corpos e as cabeças totalmente cobertas por capuzes, que escondiam boa parte de seus rostos. Entravam em grupos separados por cores das vestes, descendo por sete escadas em espiral, uma em cada um dos sete cantos da sala heptagonal e juntavam-se no grande hall, numa sequência que lembrava um arco-íris. Vinham participar de uma espécie de ritual, dirigido e controlado pelo homem da cabeça raspada, que os aguardava, num pedestal construído no centro do hall. 

O sumo-sacerdote estava vestido com uma longa e larga túnica dourada, mas não usava o capuz sobre a cabeça. Ele esperou até os grupos tomarem o espaço, por completo, à sua volta, em completo silêncio.

A mocinha conduziu os dois jovens soldados até uma sala com uma sacada fechada, num mezanino, donde podiam ver o ritual, por completo, mas sem o direito de participar ou interferir. 

Quando o homem da túnica dourada começou a falar, eles perceberam a perfeição da acústica da grande sala. Ele não usou nenhum artifício para amplificar sua voz, a qual soou clara e poderosa, para a surpresa dos dois amigos.

***

- Vê só como ele manipula estas pessoas. Consegue o que quiser destas criaturas tão carentes e a necessitar de esperança. Ele sabe disso e usa deste conhecimento contra elas. 

- São como ovelhas perdidas a seguir um mau pastor, por ignorância ou por medo… Mal percebem que estão sendo conduzidas à própria exploração e condenação, por escolha delas mesmas. Não percebem, nem sabem pensar por si próprias. Buscam um paraíso que não existe, onde os seus pecados possam ser redimidos, para poderem sentir-se menos miseráveis ou para terem algo a que apegar-se. Como se diz: o pior cego é, com certeza, aquele que não quer ver.

- O fanatismo sempre levou as pessoas a cometerem as maiores barbaridades, em nome de suas crendices. As religiões são quase tão antigas quanto a humanidade. Os mitos e os deuses foram criados pelos homens, para explicar o inexplicável ou para controlar o comportamento dos mais comuns e menos esclarecidos. 

- As massas sempre necessitaram de líderes. É natural que sigam seus profetas e hierofantes, sem questionar. Facilita-lhes viver e diminui-lhes a culpa e o sofrimento. As pessoas precisam apegar-se a algo para terem razões para viver. Procuram fora delas o que não encontram dentro de suas fracas e desesperançadas almas: paz e, talvez, fé.

- É mais fácil apegar-se a algo externo do que trabalhar a paz internamente. Também é mais conveniente, pois uma viagem ao exterior é menos complicada e dolorosa que para o interior das nossas mentes. 

- E gera menos questionamentos. Os antigos profetas e os sumo-sacerdotes nada mais eram que indivíduos com um grande poder de persuasão e controlo dos homens através das palavras e, muitas vezes, por conta de delírios esquizofrênicos. Em algumas tribos indígenas, até recentemente, as profecias e visões eram geradas por alucinantes poderosos a fazer efeitos em mentes complexas, depois de participarem em rituais mais complexos ainda e eram respeitadas como visões iluminadas de homens iluminados. O mesmo acontecia com os rituais pagãos, que mais tarde foram condenados e perseguidos pela igreja. Que diferença existe, afinal, entre um nórdico, que acreditava que o som do trovão era gerado pelo bater do martelo do deus Thor numa bigorna, no reino divino de Asgard, um índio que chamava a Tupã o deus do trovão ou um homem que guia-se por uma tábua escrita por um dedo invisível de um deus todo-poderoso, com uma dezena de mandamentos de conduta, mas que não respeita as manifestações religiosas de outros povos?

- O ser humano, quando está carente ou desorientado, é mais manipulável que um gato com fome. São como cegos em busca de luz. Os mais espertos, manipuladores e sem escrúpulos aproveitam-se da fragilidade emocional destas pessoas. Nestas ocasiões as novas seitas e religiões nascem e proliferam, para conforto dos pobres fiéis e enriquecimento dos ditos pastores e líderes. Isso sempre foi e sempre será assim.

- Sabes muito bem que as pessoas não questionam as religiões, as tradições ou os ensinamentos dos ancestrais, por conformismo ou medo de colocar sua fé em cheque. Por trás de boas intenções, existem, sempre, entretanto, muitas más ações.

A mocinha, que até então estava quieta a ouvir os dois rapazes discorrendo sobre um assunto muito complexo, olhou para os dois, firmemente e disse:

- Cuidado com ele ou a falar mal dele. O nosso povo confia cegamente e não medirá esforços a protegê-lo. Qualquer palavra em falso poderá causar-vos um problema bastante grave… e uma complicação das grossas... Ou mesmo a vossa condenação e morte. 

***

O rapaz de óculos vinha saindo do lavatório, quando ouviu uma música muito suave, vindo de algum ponto, no fim do corredor. Curioso e intrigado, ele resolveu que tinhas de descobrir de onde aquela melodia vinha. 

Numa saleta desprovida de decoração, uma moça dançava com movimentos muito lentos, como se fizesse yoga ou alongamento. O rapaz ficou a olhar a moça, completamente encantado pelo que via. A luz, que entrava por uma pequena janela, no alto da parede, batia na cabeça da moça, dando, ao rapaz, a impressão que estava diante de uma cena tanto surreal quanto angelical. Uma estranha sensação brotou em seu estômago, como se fossem borboletas a baterem suas frágeis asas, num voo suave e certeiro, atingindo-o em cheio e deixando-o, ao mesmo tempo, fascinado e confuso. 

Ela abraçava seu próprio colo e dançava sozinha, com os olhos fechados, como estivesse tomada por uma alucinação qualquer. Seu rosto era sereno e, assim, iluminado pela luz que entrava pela janela, parecia refletir os raios do sol.

Quando a música parou, ela abriu os olhos e viu o rapaz parado na porta a observá-la. 

Ele corou imediatamente, sem saber o que fazer. 

Ela não disse nada. Limitou-se a olhar na direção da porta, com aqueles olhos muito grandes e azuis, que tanto enfeitiçavam o jovem soldado, que de repente, teve seus dois braços agarrados por trás e puxados com uma força tão grande e descomunal, que deixaram-no totalmente inerte e imobilizado…

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sábado, 24 de outubro de 2015

Espirais (Parte 2)

- Férias?
- Sim. Férias. Nós nunca tiramos férias. Desde que…
- Mas nem sabemos o que fazer… Não sei se é uma boa ideia.
- Lembras dos nossos acampamentos? Aquilo era divertido.
- Lembro. Lembro muito bem do último acampamento e dos problemas que tivemos… muito embora isso já tenha acontecido há tanto tempo…
- Pois então. Nós estamos vivos por causa do incidente. Vamos ficar longe de problemas. Não vai acontecer nada de mal desta vez. Eu prometo. OK?
- Não prometa. Ficar na base é que significa ficar longe de problemas.
- Vamos lá. Eu já consegui autorização para sairmos por três semanas.
- Como assim? Conseguiste autorização? Quer dizer que eu fui traído, então!
O rapaz riu e deu um leve soco no braço do amigo. Sabia que ele tinha, ainda, reticências sobre aquele programa, mas estava praticamente convencido a tirar as tais férias, depois de estarem tanto tempo reclusos naquela base militar.
***
- Temos que passar num lugar, primeiro.
- Que lugar? Não era esse o plano…
- Vamos ver como está a área, depois desse tempo todo.
O rapaz de óculos calou-se. Embora não tivesse previsto aquela aparente mudança de planos, também tinha curiosidade em saber. Um súbito desconforto no estômago e peito deu sinal de apreensão, mas ele só fechou os olhos e respirou fundo.
O local, como era de esperar, ainda estava cercado e tinha muitas placas de advertência, indicando proibição ao acesso e entrada de todos. O jeep alugado cortou caminho pela lateral, onde havia uma brecha na cerca de arame farpado e entrou no vasto campo destruído pela explosão nuclear, muitos anos atrás. O coração do rapaz de óculos acelerou. O outro, ao volante, conduzia com o cenho franzido e o semblante fechado e com uma seriedade e silêncio que já lhe eram peculiares. Cerca de cinquenta quilómetros adiante e meia hora depois, chegaram ao que parecia ser o centro da área. O rapaz consultou o GPS, para confirmar se estava certo. Saltou do carro e olhou à volta. O deserto estendia-se, a perder de vista, em um círculo de provavelmente bem mais que o dobro dos cinquenta quilómetros que já haviam viajado.
- Eu tinha que ter esta certeza… Eu só precisava ter mesmo certeza absoluta… Nunca nos deixaram voltar, depois daquele dia.
O outro estava de pé ao seu lado, com os olhos fixos num ponto à esquerda, onde um dia houvera uma mata e onde ficaram soterradas muitas lembranças. Uma imensa fenda estendia-se pelo campo até abrir-se numa grande cratera. Os dois soldados aproximaram-se da borda e olharam para baixo. Terra seca e não fértil escorreu para dentro da fenda, por baixo dos pés deles, até desaparecer da vista, na escuridão.
O vento assobiou na borda do precipício aberto. Um arrepio correu-lhes pela espinha acima.
Os dois viraram-se e voltaram ao jeep, em meio à uma angústia silenciosa e com o propósito tácito de nunca mais retornar a aquele árido, vazio e infecundo deserto, onde o passado havia sido enterrado para todo o sempre. Estavam definitivamente convencidos que já não pertenciam a aquele lugar. Era o destino a colocar uma pedra no passado e a abrir novos horizontes, provavelmente cheios de novas oportunidades.
O tempo encarregar-se-ia de transformá-los, aos poucos… ou não… mas constantemente.
Aqueles dois rapazes eram, agora, soldados de elite, treinados numa base militar, que lhes servia de lar, desde que o dia em que foram resgatados pelo exército, há bastante tempo atrás.
***
Sentados no hall do aeroporto, à espera da chamada para o voo, os dois jovens homens não conversavam. Tinham as faces sérias e os olhares distantes, ambos a olharem para fora, onde aeronaves de várias companhias e localidades subiam e desciam, umas após as outras, de e para os mais variados destinos.
Gentes de todas as raças, nacionalidades e origens misturavam-se, arrastando malas de todos os tamanhos, cores e formas, pelos corredores afora e em todas as possíveis direções.
Os fortes aromas das caras fragrâncias francesas exalavam das perfumarias do ‘Duty Free’, misturando-se com tantos outros, nem todos tão nobres, pela longa avenida, repleta de viajantes e seus pequenos grandes mundos. Vozes de diversas tonalidades e em vários idiomas misturavam-se às chamadas para os voos, provenientes dos altifalantes, em múltiplos e diferentes pontos do aeroporto internacional, caracterizando uma verdadeira e moderna torre de Babel.
O monitor exibiu, finalmente, a mensagem esperada com bastante aflição. O embarque estava autorizado. Os dois levantaram-se, ajeitaram as mochilas às costas e entraram na fila, em frente ao balcão de controlo. Alguns metros atrás deles, dois olhos observaram seus movimentos, com cuidadosa atenção e com discrição exemplar, certificando-se que não os perdia de vista.
Os dois soldados passaram pela funcionária uniformizada, cruzaram a porta de vidro, desceram a rampa e desapareceram na curva do corredor móvel, que levava até a pequena porta da aeronave.
Poucos minutos depois, acomodando-se nos assentos próximos às asas e ocupados em ajeitar as mochilas nos apertados compartimentos acimas das cabeças, não perceberam quando um dos passageiros passou e tomou o assento no lado oposto, algumas fileiras atrás, assegurando-se que os dois eram mantidos sob constante e criteriosa observação.
***
- Onde é que nós estamos?
- Não sei.
- Como é que nós viemos parar neste lugar?
- Não tenho ideia. Não sei o que aconteceu…
O rapaz de óculos olhou à volta e não viu a mochila com seus pertences. Sua face manifestava uma visível preocupação. O outro compreendeu sua confusão com genuína empatia. Era evidente que estavam numa grande enrascada, mesmo sem saber a razão pela qual estavam naquela sala trancada e muito mal iluminada. As paredes eram altas e nuas, pintadas de um tom impessoal, provavelmente de bege, pouco distinto na penumbra. O teto era apenas um borrão na escuridão. A sala era totalmente desprovida de móveis, mas estava muitíssimo limpa, ainda com cheiro de detergente no ar. A porta era de madeira lisa e escura, pesada e maciça e não tinha fechadura, pelo lado de dentro. Como estava muito firmemente trancada, provavelmente tinha um fecho com cadeado ou algo similar.
O chão, feito de um bloco único de cerâmica polida, era de um pardo monocromático. Havia uma impessoalidade muito fria e marcante no aposento e que dava-lhes a impressão que servia para fins não muito dignos.
- Temos que repassar os últimos acontecimentos a limpo e com cuidado, para tentar resgatar alguma memória. Qual é a última coisa que tu lembras? Lembras de termos saído do avião? Lembras de chegarmos até a saída?
- Sim. Lembro bem. Até acenarmos para o táxi, já do lado de fora do aeroporto. Disso eu lembro claramente...
- Mas uma 'van' escura parou antes... e alguém esbarrou em mim.
- Em mim também… Depois tudo ficou confuso… Não consigo lembrar de nada direito. Acho que fomos drogados e assaltados.
- Ou sequestrados…
Os dois rapazes chegaram à aquela conclusão com alarme nos olhos e com um aperto no coração.
Um estranho silêncio instalou-se no meio dos dois, quando ouviram o som de passos a reverberar no piso do lado de fora do aposento onde estavam aprisionados. O ruído de metal roçando contra metal e batendo solto na madeira deixou-os em posição de alerta. Alguém mexia no ferrolho, abria a porta e entrava, sem ser anunciado, nem convidado...

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sábado, 17 de outubro de 2015

Espirais (Parte 1)

Os dois jovens homens atravessaram, correndo, o grande hall, a procura de uma saída. O som de seus passos ecoava pelas paredes e pelo teto alto, em forma de abóbada com arcos góticos, que sustentavam a pesada estrutura, num desenho arquitetónico bastante rebuscado. Atrás deles, uma moça, um pouco mais nova que eles seguia, descalça e vestida com uma espécie de túnica azul celeste, amarrada na cintura com um cordão da espessura aproximada de um dedo, feito de fibra dourada e trançada à mão. 
Os rapazes viram um pórtico, também em arco, que dava para fora do edifício e seguiram por lá. A moça ainda tentou avisá-los, mas já era tarde. A tal passagem levava a um pátio murado, mas sem portões de saída, como se fosse uma varanda fechada. As paredes de pedra lisa não permitiam que subissem e não havia nada à volta que pudesse sugerir uma saída ou passagem que pudesse ser usada para chegar a qualquer lado, ou para atravessar para o outro lado do muro. A única alternativa era voltar para dentro. Eles subiram os três degraus de um pequeno lance de escadas e correram na direção de onde vieram, novamente, chegando até onde a moça os observava, sem mover-se, mas demonstrando uma certa impaciência, por eles não lhe haverem dado ouvidos. Os dois passaram e carregaram-na junto com eles, puxando-a pela mão. A moça foi junto, sem resistir. Os três seguiram pelo corredor vazio até uma grande sala, muito maior que o hall por onde vieram e muito mais impressionante.
O piso era de um mármore puro e muito alvo, praticamente sem manchas. As paredes pareciam não haver sido pintadas alguma vez, não tinham nenhuma decoração adicional, nem eram perfuradas por janelas ou quaisquer tipos de aberturas. Não haviam cadeiras ou assentos no aposento, tampouco. Dois círculos concêntricos, um vermelho e um dourado, estavam pintados no chão, à volta de onde uma árvore havia sido plantada, provavelmente há muitas dezenas de anos, no centro daquela sala. Suas muitas e longas raízes aéreas denunciavam sua idade. Seus ramos, longos e pesados, eram sustentados por muitas forquetas de metal, tão antigas, que muitas delas já faziam parte do madeiro, que as envolvia, como se quisesse que nunca deixassem de sustentá-lo. Em volta do enorme tronco, uma encorpada liana, quase sem folhas, subia em espiral, para além do limite do teto e perdia-se da visão. Eles ficaram a olhar, boquiabertos, a imensidão daquela árvore centenária, tão sóbria e respeitosamente senhora daquele lugar.
Passos pesados e ligeiros aproximavam-se pelo corredor, fazendo os três entrarem em estado de alerta, mudando o foco de sua atenção. Homens armados entraram na grande sala, aparentemente dispostos a tudo. Os rapazes apressaram-se a subir pela espiral, mas a moça, que havia ficado por último, foi logo apanhada por um dos homens. O rapaz de óculos quis voltar atrás, mas ela gritou:
- Fujam! Depressa!
Ela foi carregada para fora da sala e do campo de visão dos dois, enquanto um dos homens começava a subir atrás deles. Não foi preciso muito para decidirem para qual lado ir. Só tinham que ser mais rápidos que o seu perseguidor.
Por cima do telhado, os ramos estendiam-se para além do limiar das muralhas da grande edificação. Eles tomaram a direção do que pareceu ser a saída mais próxima, por cima do pátio murado, onde estiveram minutos antes. Este estava construído por cima de uma grande ravina rochosa. Uma névoa impedia de ver o fundo do precipício, mas dali eles podiam ouvir o som de água a correr muito abaixo de onde estavam. Vendo que aquela direção os conduziria à uma morte mais rápida, os dois resolveram voltar.
O rapaz de óculos virou-se e viu que o homem que os perseguia estava sobre o mesmo galho da árvore em que estavam e vinha aproximando-se deles. Sem saber o que fazer, ele paralisou, completamente, a meio caminho. Seu companheiro, ao ver que ele não sabia como reagir, diante daquela situação, puxou-o para trás, certificou-se que ele não caía e correu na direção do homem, que já apontava a arma contra eles. A investida contra seu corpo pegou o homem de surpresa e fê-lo perder o equilíbrio e cair por cima do telhado e rolar dali abaixo. Ainda ouviu-se um tiro, que deve ter sido a reação do homem ao tentar apegar-se a algo enquanto desabava do galho da imensa árvore.
Eles correram para o outro lado, na direção de uma densa floresta, até onde um dos galhos curvava para baixo, devido ao excesso de peso e saltaram para a mata. Tinham que sair dali a qualquer custo.
Havia uma espécie de trilha marcada, pela qual seguiram, por puro instinto. Se havia aquele caminho tão distinto, devia, certamente, levar a algum lugar para fora dali. Correram até onde a tal trilha terminava no topo do paredão da ravina. Apesar de não ver o fundo, sabiam que passava um rio por baixo. Deviam ter andado em círculos, à volta da fortificação. Uma saída era para trás, a tentar encontrar outra alternativa. A outra era para baixo… E era muito abaixo de onde estavam.
As vozes de vários homens a gritar no meio da densa vegetação e aproximando-se deles, rapidamente, fê-los entrar em pânico. Um rugido, aterrorizante e ameaçador, ouvido atrás deles, muito alto e aparentemente muito próximo de onde estavam, foi sinal suficiente para apressar-lhes a única possível decisão. A saída, naquele momento, era, definitivamente, para baixo.
Eles saltaram, antes que a fera – fosse ela qual fosse – e também os homens estivessem perto demais. O tempo pareceu-lhes bastante longo, enquanto caíam no vazio, entre o topo do paredão, a névoa do caminho e o fundo, onde esperavam haver água… muita água…
Quando a adrenalina está correndo muito rapidamente e em nível alto no corpo, a perceção de tempo e espaço, bem como as sensações, são distorcidas pelo cérebro. É como olhar pelo espelho lateral de um veículo, para certificar-se da direção, mas sem saber ao certo se as distâncias estão bem calculadas. Era necessário uma experiência maior, para certificar-se, mas não havia tempo para experimentar.
O impacto foi menor que eles imaginaram, quando chocaram-se contra a água fria do largo e profundo curso de água. As corredeiras, porém, eram mais fortes que eles esperavam e nadar era praticamente impossível. Deixaram-se ser arrastados pela correnteza, rio abaixo, na esperança de que, em algum ponto mais adiante, houvesse calmaria, para poderem sair dali, em segurança. Tentavam não afogar-se nem engolir água demais, no caminho, mantendo a atenção um no outro, para não ficarem perdidos, nem separados. Pelo menos estavam seguros, indo para longe de onde caíram e da perseguição dos homens armados.
Alguns quilômetros abaixo, quando as piores e mais violentas corredeiras já haviam ficado para trás, mas ainda deixando-se levar pela correnteza, avistaram uma região aparentemente mais virgem. Uma espécie de alívio tomou conta deles, quando perceberam que estavam vivos e a salvo, longe da ameaça na fortaleza.
A impressão foi logo desmistificada, quando viram que um grupo de homens os observava de cima de uma grande rocha, na curva do rio. Sem saber se estavam a salvo ou cada mais em perigo, deixaram-se levar, sem saudar os observantes.
Alguns homens correram pela margem, seguindo os dois, provavelmente até um ponto onde pudessem resgatá-los… ou atingi-los, de alguma forma e acabar, de vez, com a vida deles. Uma sensação esquisita de medo, apesar de haverem sido treinados pelo exército, passou pelos dois, instintivamente e ao mesmo tempo. A amizade entre eles ia além de uma comum e parcial afinidade. Havia uma sintonia maior, especialmente depois do que passaram juntos, até serem recolhidos por um soldado num jeep do exército, há muito tempo atrás.
Como daquela vez, estavam incertos se, ao serem resgatados, estariam mais a salvo ou em maior perigo.
Como a sorte gostava de brincar com os dois, a correnteza ficou mais calma. Os homens que corriam pelas margens, seguindo o trajeto deles, enquanto eram levados pelas corredeiras, no leito do rio, aproximaram-se e entraram na água, apressando-se a retirá-los de lá…

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