Mostrar mensagens com a etiqueta memórias. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta memórias. Mostrar todas as mensagens

sábado, 18 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 2)


- Estás bem? Sentes alguma dor?
O cenho franzido e o olhar vazio mostravam evidências que o rapaz estava bastante confuso e fazendo um enorme esforço para perceber o que se passava, naquele momento, no pequeno quarto de hospital, rodeado por pessoas, vestidas de branco e que ele desconhecia totalmente.
Havia, também, um homem mais maduro, vestido com roupas mais normais, a observar a cena toda, com olhos muito atentos, mas sem proferir nenhuma palavra. Tinha o rosto arredondado e amigável, barba castanho-avermelhada e os cabelos castanho-claros rareavam no topo da cabeça. Por alguma razão, que ele não conseguia explicar, sentiu uma simpatia imediata por aquele homem encostado contra a parede imaculadamente branca do quarto de hospital.
O médico acabara de testar todos os seus sinais vitais, auscultara-o e, agora, examinava-o com uma pequena lanterna. Já haviam feito todos os possíveis exames, incluindo raios X e ultrassons, para verificar a saúde dos órgãos. Fisicamente, o jovem estava bem. Restava-lhes saber se a batida na cabeça trouxera algum efeito colateral à sua capacidade mental e resposta cognitiva.
- Consegues compreender o que eu digo? Lembras de alguma coisa? Qualquer coisa: teu nome, de onde vens, quem tu és…
O rapaz não exibia qualquer alteração naquela expressão distante. Talvez estivesse, mesmo, fazendo uma tentativa descomunal para ajustar o cérebro e compreender a mensagem, expressa pelas palavras do médico, que acabara de examiná-lo, completamente e que insistia em saber qualquer coisa a seu respeito.
- Compreendes o que eu digo?
- Eu percebo as palavras, mas é tudo tão confuso…
A pressão, que era colocada nele, com aquelas perguntas, não parecia ajudar. Era melhor deixar o rapaz descansar um pouco. O médico chamou o homem mais velho para fora do quarto, com um sinal de cabeça.
***
- Foste encontrado por mim, na praia. Estavas completamente nu e com um ferimento bastante feio na cabeça. Já esperávamos que a memória fosse afetada por uma concussão. Consegues compreender bem o que eu digo?
O rapaz acenou que sim, com a cabeça.
- Por mais que eu tente, não consigo trazer nada à memória. A minha mente é só um branco completo...
O ferry seguia, em direção à ilha, em sua velocidade de cruzeiro, trazendo, junto consigo, aqueles dois homens tão diferentes, sentados lado a lado, cada qual com sua própria história e com seus complexos passados. Em cada cabeça, uma intenção diferente: tentar resgatar o que estava esquecido e tentar esquecer o que nunca deixava de ser relembrado…
***
O pescador havia sentido que tinha certa responsabilidade sobre o rapaz, por havê-lo encontrado e, em comum acordo com a administração do hospital, decidira trazê-lo consigo à ilha, para tentar ajudá-lo a recuperar a memória perdida.
Caminhavam pela praia, indo na direção do local onde fora encontrado, pelo pescador, depois da noite de tempestade. O rapaz diminuiu o passo e olhou para o homem, como se o conhecesse bem e disse:
- Por que te escondes nesta ilha, longe de tudo e de todos e nesta profissão que não é a tua?
- E como sabes disso?
- Não sei explicar. Apenas sinto. E também sinto que há muito mais a dizer, mas evitas…
- Não evito nada…
O homem mais velho franziu o cenho e evitou olhar diretamente para o jovem, que caminhava ao seu lado. Pensou consigo mesmo que não tinha que dar nenhuma satisfação ao outro, mas uma sensação estranha de que podia confiar no rapaz e abrir-se, passou por sua mente.
Mexer com o passado, depois de tanto tempo, não parecia-lhe uma boa coisa, entretanto. Alguns cadáveres não precisavam ser exumados. Melhor deixar seu passado onde ele ficava melhor: lá atrás e bem longe, nos tempos mais pretéritos possíveis. Quanto mais distante e intocado, melhor…
O rapaz voltou a olhar o homem, com atenção e sorriu, mais para si do que para ser percebido, ante aquela resposta, disparada, quase impacientemente e sem contato visual.
- Eu tenho que respeitar-te, não somente pelo que fazes por mim, mas por quereres manter teus segredos bem guardados. Se é assim que preferes, não há o que se possa dizer. Espero que saibas o que fazes.
- E sei… É este o lugar. Foi aqui que te encontrei. Queres ficar sozinho?
O rapaz olhou à volta. Embora constatasse que o lugar era calmo e de uma beleza natural praticamente intocada e quase selvagem, trazendo-lhe uma sensação de tranquilidade, não evocava-lhe nenhuma lembrança.
- Não sei. Este lugar não me diz nada. O facto de haver sido encontrado aqui, não significa que o acidente… ou incidente… tenha ocorrido aqui por perto, de qualquer jeito.
Ele tinha razão. Tanta coisa poderia ter acontecido: um acidente, um assalto, uma infeliz coincidência... O lugar poderia não ter relação nenhuma com o que realmente havia acontecido.
O homem olhou para o rapaz. Ele não parecia preocupado em descobrir de onde viera, para onde iria, quem havia sido, ou o que poderia vir a descobrir, quando recuperasse a memória. Aparentemente, a única coisa que importava, a ele, era estar vivo. Um passado do qual lembrar, era um peso desnecessário, que ele não carregava consigo. Aquilo parecia ser suficiente para um homem que tão pouco sabia sobre si mesmo.
Que sensação estranha! Ele fez uma viagem rápida dentro de si e pensou em como eram tão diferentes. Não ter um passado parecia ser bem mais fácil que esforçar-se para esconder-se do seu...
Estavam os dois de pé, lado a lado, a olhar o horizonte, cada qual absorto em seus próprios pensamentos... Tão próximos e tão distantes, ao mesmo tempo. O rapaz fechou os olhos e sentiu o vento a mexer com seus cabelos claros, a tocar sua pálida pele, a trazer os aromas agradáveis do salitre e das algas e a encher-lhe de vida.
Vida. Que conceito estranhamente forte e frágil, ao mesmo tempo. Era uma realidade, ou uma ilusão que nós sempre carregamos? Quão imprevisível pode ser o viver? Quão despropositado é manter-se fisicamente sadio e mentalmente são? Por que aqueles pensamentos enchiam-lhe a cabeça, como o ar enchia-lhe o peito? Por que ele sentia-se bem naquele lugar, sabendo que nada ali era-lhe caro? Por que tantas perguntas e nenhuma resposta? Ele suspirou, inspirando o ar do oceano, naquele lugar que passara a ser seu tudo: seu presente e seu futuro… e, talvez, seu único refúgio, até aquele momento…
- Vamos voltar? Estou com fome. Vou preparar alguma coisa para comermos. Se quiseres ficar mais um pouco, é contigo...
- Eu gostaria de ficar só um pouco mais, se não for incômodo... Gosto desta paz e desta sensação de silêncio na alma.
- Não é problema, claro. Até já.
***
O homem mais velho levantou-se e retirou os pratos da mesa. Haviam jantado, sem trocarem muitas palavras. Apreciavam a companhia um do outro, mas eram, ambos, económicos nas conversas, já que os assuntos ainda tenderiam a girar numa esfera muito restrita de assuntos, que eram evitados, na sua maioria, pelos dois.
O rapaz recolheu o restante da louça e os talheres e pousou-os na pia, com cuidado. Virou-se, caminhou até a porta que dava para a varanda e saiu, debruçando-se sobre o pequeno parapeito, a olhar o vazio da escuridão, ouvindo, não muito longe, a cantiga suave e monótona do mar. O ar estava um tanto frio, mas ele não se importava. Gostava do frio quase ameno do outono e dos sons típicos da noite da ilha.
O outro homem ficou a observar, de dentro da casa, aquele indivíduo tão mais jovem que ele, com tanta vida ainda pela frente e nenhuma memória a reviver. Pelo menos, pensou, não havia como sentir qualquer tipo de nostalgia…
Quantos planos deveriam ter sido feitos em algum ponto de sua curta vida e, agora, estavam abandonados, sem conclusão? Quantas possibilidades ainda iriam abrir-se, para ele, no futuro? Provavelmente, muitas delas viriam a ser encaradas como se nunca houvessem sido planejadas, mesmo já havendo sido... Uma página… ou muitas, todas ainda em branco e com tanto ainda a ser escrito pelas mãos do destino. Era como se as páginas anteriores houvessem sido estranhamente arrancadas daquele livro, deixando-o como novo e pronto a ser reusado. Só restava-lhe recomeçar daquele ponto e reescrever novas histórias...
O pescador pensou em si mesmo e como gostaria de poder ter uma oportunidade, também, de reescrever sua vida. Riu de si mesmo, ao pensar que ali, na mesma casa, estavam dois seres tão opostos e com objetivos tão díspares, em relação ao passado e, mesmo assim, com tanto futuro pela frente.
Entrou na varanda com uma caneca de café quente nas mãos e ofereceu ao outro, que aceitou, sorrindo. Debruçou-se no parapeito, ao lado do rapaz. Ficaram os dois a olhar para a grande escuridão aberta à frente deles, a ouvir o monótono marulhar do oceano a acariciar a ilha, cada qual a deixar seus próprios pensamentos voarem com o vento da noite.
- Tu já pagaste pelo teu erro. Já podias ter-te perdoado e tocado a vida adiante.
- Como podes saber se já paguei? Como podes dizer-me para levar a vida adiante? Já não estou vivendo uma outra vida?
- Não é o que os teus olhos dizem... Eles tem sempre um distanciamento tão grande e uma tristeza tão tocante...
O homem fechou-se, em sua casca. Não queria reviver sua angústia e seu sentimento de culpa. Sim, ele já havia pago a sua dolorosa pena.
Uma cirurgia, em que a paciente não sobrevivera à intervenção, era motivo grave suficiente, para ficar vivo na memória, por muito tempo. Sim, ele havia operado embriagado, mas que outra opção tivera? De todas as formas, fora julgado e condenado. O veredito fora homicídio culposo, com pena de prisão por três anos. O crime foi considerado inafiançável, devido ao grau de negligência e culminara com a perda da licença e do direito de exercer a profissão de médico, definitivamente. A sentença havia sido devidamente cumprida, na sua totalidade, apesar das tentativas de redução, feitas por um advogado caro e conhecido pela sua competência.
Entre sentimentos de culpa e uma indignação muito grande, ele havia enterrado tudo e recomeçado, naquela ilha, longe de todos aqueles com os quais conviveu e que o abandonaram, completamente, enquanto cumpria a pena na penitenciária. Ali, era um completo desconhecido e seu passado não interessava a ninguém. O que ele gostava, naquela comunidade, era que podia ter sua vida e ninguém parecia interessado em saber mais que ele quisesse mostrar ou, de alguma forma, julgá-lo. Ele também não tinha interesse em saber das vidas dos outros. Não tinha tempo, nem vontade para aquilo.
Mas, ao rapaz sem passado, ele alimentava um genuíno interesse. Sentia que devia ajudar aquela criatura a encontrar-se e tocar sua vida adiante, também. Por algum motivo, ele sentia-se responsável pelo rapaz, pelo menos até que recuperasse a memória.
***
 O médico veio, como habitualmente, numa pálida quinta-feira e chamou os dois ao consultório. Examinou o rapaz, rotineiramente, perguntou como se sentia e pediu para sentar-se. Pela forma como começou a conversa, parecia que ia fazer uma declaração séria. Pegou um envelope pardo de dentro da maleta, pigarreou e disse:
- Recebemos um relatório da Polícia. Acredito que vocês vão achar interessante…
Entregou o envelope ao rapaz e esperou, para ver sua reação. O rapaz abriu, leu e entregou ao pescador, para que o lesse também. O médico reconheceu naquele ato, uma prova de confiança. O homem folheou as poucas páginas e devolveu o relatório ao seu legítimo dono.
- Faz sentido. Achas que ajuda?
- Não sei, ainda. Por enquanto, não há nada que eu possa dizer. Não é tão fácil ler isto e achar que minha memória é logo restituída. Parece que não funciona assim, afinal, por mais que me esforce para tal.
O médico terminou a consulta e dispensou a si mesmo do trabalho, já que não havia mais ninguém a ser atendido naquele dia. Convidou os dois a acompanharem-no até o Café, para conversarem um pouco mais relaxadamente. O médico sabia que as cabeças dos dois… e a dele também… estavam a trabalhar ferventemente. 

O café era, na verdade e apenas, um pretexto subtil para discutirem o que haviam acabado de ler e, além do mais, ele ainda tinha algum tempo, antes de voltar para o continente.

***

domingo, 5 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 1)


O homem olhava para fora da janela, segurando uma caneca de café preto e forte, com suas mãos calejadas pelo trabalho duro, a observar o tempo lá fora. Uma chuva, fina e fria, caía sem parar. Havia dias que o tempo não mudava e o trabalho não podia ser deixado de lado, por tanto tempo. Era uma questão de sobrevivência.

O homem vestiu seu casaco de inverno, embora fosse começo de Outono, tomou seu café quente e saiu, ainda muito cedo na madrugada. O vento e a chuva castigavam a pele massacrada pelo tempo, fazendo-o caminhar curvado e de cabeça baixa, pela orla, na direção do pequeno cais. Sabia que tinha de enfrentar o mar. Sua subsistência dependia apenas daquele trabalho e daquela vida não muito fácil.

Ele já não pensava muito, nem amaldiçoava o tempo ou a chuva. Não reclamava, tampouco. Estava acostumado àquela rotina, a aquele trabalho, à sua solidão e à simplicidade de sua vidinha aparentemente descomplicada, mas bastante dura. Mas sentia que não tinha grandes motivos para reclamar... e não o fazia...

No pequeno cais, o velho barco, seu camarada de todos os dias, oscilava, embalado pelas cristas das ondas. Ele suspirou e caminhou, com passos firmes e decididos, pelo corredor de madeira pesada e escura, carcomida, de tanto ser pisada. Olhou as outras embarcações, todas firmemente amarradas ao embarcadouro, aprumou o capucho do casaco e saltou para dentro da sua.

O velho companheiro rangeu, quando ele pisou no convés, como se estivesse a saudar o homem. Poucos minutos depois, o barulho do motor foi-se distanciando da costa, tornando-se, apenas, mais um monótono murmúrio na praia, enquanto a silhueta do pequeno barco de pesca desaparecia, em meio à bruma e à chuva da madrugada, solitária e incógnita, como seu rijo dono.

***

Uma noite daquelas, cerca de uma semana depois, o tempo mudou... para pior. A chuva caía sem piedade e os trovões, que seguiam os relâmpagos, que  riscavam um céu negro como o petróleo, soavam como os tímpanos de uma orquestra, a tocar uma sinfonia enlouquecida. Ele sorriu, ao ver o céu iluminar-se, como se fossem fogos de artifício. Gostava das tempestades e, sabia, a trovoada, quase sempre, era sinal de mudança.

Na manhã seguinte, o homem saiu de casa, muito cedo, como de costume, para recolher a rede, que estava a meio mar. Ao invés de caminhar pela calçada, para chegar ao cais, resolveu ir pela praia, já que o tempo estava melhor, embora ainda nublado.

A praia estava coberta com muitas algas, como era comum, depois das fortes tempestades. 
Ele gostava de caminhar pela praia, o que era, para ele, tanto um exercício físico, quanto mental. Gostava da areia fofa e limpa; do cheiro iodado do mar; do som das ondas, naquele vai-e-vem contínuo; da brincadeira das águas, a tentar molhar-lhe os pés, cada vez que ele se distraía; da visão das gaivotas a entreter-se com seus voos branquinhos, contra o azul acinzentado do céu e com seus mergulhos dramáticos, no verde esmeralda do oceano...

Àquela hora da manhã, enquanto a vila estava ainda adormecida, longe dos barulhos ordinários do dia-a-dia, longe dos olhares dos transeuntes, enquanto o murmúrio do mar se misturava com os gritos angustiantes das aves, ele sentia-se como se fizesse parte daquela paisagem.

Uma lufada de vento fê-lo estremecer e ajeitar o casaco contra o corpo. O inverno ia ser rigoroso. Mal começara o outono e já sentia-se os efeitos do frio e da humidade, a incomodar os nervos dos mais sensíveis.

Mas ele gostava do frio e do vento. Gostava do mar e da solidão da sua profissão. Às vezes tinha a impressão que perdia a capacidade de comunicar-se e, para o bem da verdade, pouco importava-se com aquilo. Era, agora, um homem do mar, não um orador. Nem era, tampouco, um homem de muitas palavras.

Na verdade, naquela fase de sua vida, preferia os animais aos homens. Aqueles eram muito mais verdadeiros e puros, sem intenções escondidas por trás de suas ações. Instintos e afeições eram diretos e sem falsas intenções. Eram transparentes, como ele já havia sido uma vez… há muito tempo atrás…

O vento batia de frente, como se abraçasse seu corpo já não tão jovem, porém, robusto o suficiente. Ele sabia que ainda tinha muitas forças e haveria de viver longamente, mas não sentia saudades de outros tempos. Ao que lembrasse, não foram tempos que merecessem suas saudades, ou mesmo quaisquer memórias a reviver.
Já não lembrava se havia sido feliz… Talvez houvesse, enganosamente, pensado sê-lo, por um período muito breve de sua vida… a vida que costumava brincar com ele, tantas e tantas vezes… em ocasiões que ele tentava não lembrar, mas que voltavam vívidas, como filmes reciclados, carregados de emoções e que insistiam em manter-se sempre vivas na memória. Ocasiões que trouxeram sua carga de dor, deixando cicatrizes, que eram sempre tocadas, sempre acariciadas e nunca apagadas.
Ele apressou o passo. Não podia deixar o passado interferir no seu presente. Sacudiu a cabeça como quem tenta livrar-se de um pensamento inconveniente e cobriu-a com o capucho do casaco surrado. Tinha que recolher a rede…
Seus pensamentos foram interrompidos por um movimento um tanto inesperado, alguns metros à frente. Um grupo de aves marinhas parecia entretido, em algazarra, com algo que destacava-se no meio de um monte de algas. A princípio ele pensou ser algum animal morto ou apenas restos de peixes, o que não seria surpreendente, mas ao aproximar-se, viu que era algo bem maior, que simples comida para pássaros. Ele apressou-se a afastar os animais, que insistiam em manter-se por perto, como curiosos transeuntes, ao testemunhar um acidente.  
Um corpo, muito pálido, jazia imóvel, na areia da praia, parcialmente coberto pelas algas marinhas. O mar lambia-lhe os pés e as pernas, insistentemente. Ele ajoelhou-se, para examinar o corpo. Como estava de costas, teve que ser virado, para poder ser reconhecido. Esperava ver o rosto todo destruído pelos peixes ou caranguejos e aves, mas ao invés disso, estava em perfeito estado, assim como todo o resto do corpo. Ao tocar na pele, não sentiu o ‘rigor mortis’, nem a temperatura de um cadáver. Ao contrário, estava com temperatura apenas um pouco abaixo do normal, o que poderia ser esperado de uma pessoa que estivesse exposta ao frio do vento e do mar, naquelas condições e em estado de completa nudez. Ele chegou perto do rosto, para tentar perceber se o jovem ainda respirava, ou detetar algum movimento, que fosse, de alguma forma, minimamente percetível. A fraca respiração quase não era notada. O peito mal movia com a entrada de ar nos pulmões, mas o homem estava, com certeza, vivo. 
Ele cobriu o corpo com seu casaco, tomou-o nos braços e levou-o dali. A recolha da rede tinha que esperar.
***
A ilha possuía apenas um pequeno povoado, que tinha um único Posto de Saúde, visitado por um médico, uma vez por semana. O hospital mais próximo ficava no continente, a mais de trezentos quilômetros de distância. Havia uma enfermaria, com medicamentos básicos e primeiros socorros, controlado por uma matrona de humor instável, mas de bom coração. Por saber que o médico viria, já no dia seguinte, ele levou o rapaz para sua casa. Vivia praticamente sozinho, a não ser por um gato gordo, malhado de cinzento e branco, que servia-lhe de diversão e companhia. Tinha tempo para olhar pelo paciente, até, pelo menos, o doutor  examiná-lo, quando chegasse à ilha, algumas horas mais tarde.
Já em casa, tratou de lavar o corpo desacordado do jovem homem e verificar se havia algum sinal de ferimentos. Havia um corte razoavelmente grande na cabeça que, embora já não sangrasse, devia ter vertido bastante sangue, quando feito. Ou havia sido vítima de um assalto ou de um infeliz acidente. Por qual razão estava despido, também era um mistério. Ele foi até o armário e selecionou uma camisa e um par de calças para vesti-lo e arranjou um cobertor e uma colcha para cobri-lo, no sofá da sala de sua casa, de tão poucos cómodos. Ao voltar-se para fechar o armário, seus olhos foram atraídos por uma velha maleta de couro, deixada de propósito, no fundo, para cair no esquecimento, por trás dos casacos mais pesados e longos. Ele levou a mão à maleta e puxou-a para fora.
O coração do jovem batia normalmente, mas a tensão arterial estava bem baixa. Fazia tempo que ele não usava seus velhos instrumentos de medicina. Ele suturou o corte e fez um curativo na cabeça do rapaz, de modo a promover o início da cicatrização, pelo menos até ser examinado pelo médico. Suas mãos já não tinham a destreza de antes e os calos e a textura da pele não facilitaram seu trabalho, mas ele trabalhou como um verdadeiro profissional da saúde. O rapaz precisava ser hidratado. Ele tinha que dar um jeito de arranjar soro e ministrar imediatamente. Só de pensar que tinha de ir ao posto de saúde, ele sentia um desconforto no estômago. Mas não podia pensar em si… não naquela hora…
***
No dia seguinte, com a presença do médico, ele sentia-se mais à vontade. Não tinha tido muita dificuldade em conseguir o soro e a própria matrona ofereceu-se para ir até sua casa, tratar de introduzir a intravenosa. Era mais por curiosidade que por eficiência, mas ele aceitou, para não ter que dar muitas explicações.
Além do corte, que já havia sido tratado, não havia muito o que fazer, a não ser continuar a hidratar e esperar que o rapaz reagisse. Havia o perigo de uma concussão, por isso o médico decidiu que deveria mover o rapaz para o hospital no continente. Precisava de um responsável, caso o doente acordasse. E a polícia teria que ser informada, com urgência…
***
Ele ficava pouco à vontade na cidade. Menos ainda no hospital. A polícia havia sido chamada e iniciara uma investigação. Não encontraram nenhum registo de desaparecimento. Tiraram as impressões digitais e tentaram reconhecimento de face, mas não conseguiram chegar a nada. Enviaram uma foto dele para várias delegacias do país, para tentar, através da distribuição da mesma, descobrir quem era o acidentado. Também não conseguiram nada, verificando se tinha registo criminal. A identidade do rapaz era completamente desconhecida.
***
- Os sinais vitais estão normais, mas algo o impede de acordar… Temos que ter paciência…
Uma semana havia passado, sem grandes mudanças no quadro clínico. O homem decidiu voltar para a ilha, já que, embora tivesse melhorado o estado físico, o rapaz não havia acordado do estado de coma. Avisou ao médico e ao pessoal do hospital que iria para a pensão, onde estava hospedado e, na manhã seguinte, tomaria o barco, de volta para casa e à sua vida de pescador. Dali para diante, o caso era somente com a polícia.
Antes de ir-se, decidiu passar no quarto, para “despedir-se” daquele que nem chegou a conhecer, mas que mexera com sua rotina de vida, por alguns dias.
O rapaz jazia ainda desacordado, muito pálido e sereno, como se, apenas, dormisse. Seu estado era estável, mas ainda sem consciência. Ele aproximou-se e tocou na mão do outro, com uma terna afeição de pai.
- Nossas vidas separam-se aqui, meu rapaz. Pena que não tivemos oportunidade de nos conhecer. Eu gostaria de ter ouvido a tua história.
O rapaz parecia dormir um sono profundo. O pescador virou-se e saiu do quarto. Ao passar pela receção, saudou a enfermeira e despediu-se.
Quando já ia cruzando a porta, ouviu que uma campainha tocou e foi como se aquilo desencadeasse o maior rebuliço da história do hospital. Houve um alvoroço tão grande dentro do recinto, que ele não sabia se corria ou se escondia-se. A enfermeira disse-lhe, em meio à uma agitação, que ele não conseguiu perceber, a princípio:
- Acho melhor não ir-se embora, ainda. O alarme vem do quarto de onde o senhor acabou de sair.
Ele parou e voltou-se, apressando o passo, para chegar ao quarto, junto com os especialistas.
                                                   

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Engenheiro das Palavras: Uma Análise Sintática


Numa bela tarde de sol, eu estava empenhado em fazer a tarefa de casa, sentado à mesa improvisada, construída por minha mãe, a partir de tábuas de caixotes, para que eu pudesse estudar no quarto, que dividia com meu irmão mais novo.

Eu tinha que fazer uma redação acerca do texto que Dona Alba, uma austera mulherzinha de meia-idade, que sempre vestia-se de preto, havia lido para a turma de Português, da 1ª série do segundo grau. Era um texto introdutório ao livro Menino de Engenho, de José Lins do Rego. Fui, talvez, um pouco ingénuo, ao caprichar na execução da tarefa, mas eu não era um estudante que fazia as coisas mal feitas. Eu levava a vida a sério e meus deveres também. Mesmo assim, senti-me estranho quando a grande maioria dos meus colegas de classe lia suas redações e elas todas soavam do mesmo jeito. Eu achava que estava errado, até o momento que ela pediu-me que lesse a minha.

“Embora corresse e brincasse como qualquer menino da sua idade, José Lins do Rego”

- Pare já!

Eu parei. Todos ficaram a olhar-me e eu nem sabia o que estava a acontecer. Então ela levantou a voz e disse, com uma rispidez, que ficou marcada a fogo na minha lembrança:

- Eu não admito que os pais façam as tarefas dos alunos, em hipótese alguma. Isso é uma falta de responsabilidade e jamais vou tolerar este tipo de coisas nas minhas classes.

- Mas fui eu quem…

- Chega! Não quero ouvir mais nada.

Eu calei-me. Já havia percebido que ela não era nem razoável, nem ouvia além de sua própria voz e razão. Meus colegas, que já conheciam-me e ao meu estilo de estudar e apresentar meus trabalhos, olharam-me com um misto de pena e confusão, mas não disseram nada. Eu que me defendesse sozinho, mas nem isso eu ia conseguir fazer.

Nem preciso dizer que minha confusão e embaraço diante daquela situação, transformou-se num ódio mortal e eu jurei que ela iria engolir todas aquelas palavras. O facto é que ao invés de ficar desanimado, eu sabia que tinha que provar que ela estava errada, por isso empenhei-me cada vez mais em melhorar minha redação. Era uma verdadeira questão de honra para mim. Eu, que nunca tinha dificuldade em escrever, passei a ler mais, a usar os dicionários e exceder-me a cada novo desafio, que a mulher lançava e dos quais ela duvidava que eu fosse o autor, fazendo questão de humilhar-me na frente da classe, semana após semana.

Como era de esperar, chegou o dia do teste bimestral e ela anunciou que deveríamos trazer uma folha de papel almaço, para fazer uma redação. Não devo ter-me sentido intimidado, pois não lembro de nada até o momento em que ela deu o tema da redação: “A força do vento do sul sobre a antiga casa”. Eu tive um choque. Quem, em sã consciência, poderia pedir uma redação, sobre um tema daqueles? Eu pensava, pensava e pensava... e não conseguia começar a alinhavar meu texto.

Os outros colegas estavam já a escrever e eu ainda ali, com as mãos na cabeça, a reconhecer que ela havia, finalmente, conseguido. Quase percebia o ar de vitória em sua face, ao ver-me, finalmente, derrotado, provando que ela estava certa, desde o início.

Eu sentia-me um incapaz. Olhei à volta. Todos empenhados a escrever. Dez preciosos minutos haviam passado. Ela não podia vencer-me assim.

Fechei os olhos e pensei. Vou escrever qualquer coisa. Dane-se. Estou malvisto mesmo. Minhas orelhas ferviam. Resolvi comparar o vento e a casa às adversidades da vida e aos homens que conseguem suportá-las. Quando ela anunciou que faltavam apenas mais cinco minutos para o fim da aula e do teste, eu senti o corpo todo a queimar. Quando entreguei a folha escrita nos quatro lados, senti-me como se fosse a criatura mais infeliz do mundo.

Ela havia vencido. Eu recusava-me a falar sobre o assunto, quando alguém perguntava se eu havia conseguido escrever algo coerente. Eu apenas dizia que não tinha ideia nenhuma. Tinha corrido muito mal. Cerca de duas semanas depois, como ela tinha que entregar as notas, trouxe os testes de volta e, antes de devolvê-los, disse:

- Eu quero que vocês ouçam com muita atenção o que eu vou ler.

E começou a ler, em voz alta, palavra por palavra e pausadamente, uma certa redação. Ela parecia saborear o momento, quase num êxtase.

Reconheci algumas partes, mas como havia ficado completamente arrasado durante a prova, minha mente recusava-se a aceitar o pior. Eu não tinha muita certeza de nada. Algumas partes pareciam-se mesmo, com a minha redação. Eu só queria sumir, morrer, ou mesmo desejar que ela parasse, mas era apenas um desejo, que não se realizaria… Na sua natural crueldade, ela jamais pararia de humilhar-me e fazia questão de ler a redação até o final, o que evidentemente o fez. Quando terminou, não fez nenhum comentário - nem positivo, nem negativo. Simplesmente colocou o papel de volta na pilha de testes, que eventualmente começou a devolver aos alunos.

Quando recebi meu teste, tive a certeza que ela havia lido, na íntegra, a minha obra mais lamentada. Não havia nota, nenhuma correção gramatical, nenhuma correção ortográfica. Recebi o papel sem nenhum comentário. À parte de toda aquela ausência de vestígios, havia, apenas um rabisco, que pensei ser sua assinatura, no topo direito da folha. Mais nada.

Nunca havia-me sentido tão humilhado e enxovalhado.

Jamais mencionei que a leitura havia sido do meu texto, por ter experimentado uma vergonha enorme e um desconforto insuportável. Ninguém da classe jamais soube como eu senti-me. Mantive o segredo com o peso que ele tinha na minha consciência e a vergonha que a ocasião trouxera. Eu era acostumado a ler e escrever, informalmente, textos, poemas, peças de teatro e outras pequenas obras, que nunca seriam lidas, nem publicadas e que ficariam totalmente apagadas pelo tempo. Não esperava que fosse desenvolver um interesse maior na literatura, além daquelas pequenas aventuras.

Muito mais tarde, somente, compreendi o que havia acontecido, mas já estava na Universidade, passando por uma outra fase em relação aos meus escritos. Entre uma etapa e outra, haviam-se passado alguns anos. As aulas de Português eram grandes desafios para aquele adolescente inseguro. Mesmo assim, havia aprendido que se não fizéssemos corretamente as análises sintáticas dos textos e poemas, nunca os compreenderíamos ao todo. Aquelas pequenas lições, porém, eu absorvia de maneira muito menos dolorosa que havia passado através de Dona Alba.

No primeiro ano da faculdade de Engenharia, havia uma cadeira de Português. O professor era um catedrático e também escritor já de algum renome no nordeste do país, mas não tão conhecido no sul, onde eu estava. Suas avaliações eram feitas com base na destreza escrita dos novos engenheiros em formação. Em outras palavras, em avaliação de nossas redações. Lembro-me bem que quando entregou-me de volta o primeiro teste do semestre, havia uma mensagem escrita, com uma letra praticamente ilegível.

“Você tem grandes capacidades fictícias. Como não acho que vai manter o nível, vou retirar-lhe um ponto da nota e, se o mantiver, devolvo-lhe no final”.

Pela segunda vez, eu sentia-me desafiado, nas minhas capacidades e desanimava com os resultados, mas sentia um orgulho secreto de haver deixado aquelas dúvidas nas cabeças de meus professores. Eu acreditava em mim e treinava minhas habilidades de maneira informal, sem censura e sem vontade de ser avaliado novamente, com receio que as injustiças anteriores repetissem.

Não foi surpresa, quando percebi que aproximadamente a mesma mensagem acompanhava meus dois outros testes feitos posteriormente, na mesma cadeira. Nem preciso dizer que ele nunca devolveu-me os tais pontos e que minha média semestral ficou B, ao invés de A, em Língua Portuguesa, por causa daquilo…

Perlo jeito, não era fácil encontrar engenheiros que gostassem de escrever qualquer tipo de literatura, além dos relatórios formais das aulas de Física Experimental, Laboratório ou outra coisa que o valesse.

Desisti de escrever por uns tempos, limitando-me a rabiscar alguns poemas aqui e acolá, durante a minha vida de estudante, mesmo assim, para pouquíssimos olhos os lerem. Como ninguém lia, ninguém criticava…. Nem elogiava tampouco… Ainda escrevi umas duas ou três peças para teatro e muitos poemas, mas nada que me fizesse sentir qualquer vontade de publicar. Naquela época, não havia internet. Publicar nem chegava a ser um sonho, pois só poderia ser através de coletâneas, concursos, ou nos varais literários da Universidade, nos quais nunca quis participar.

Depois de algumas décadas, quando já vivia só e depois de passar por uma fase em que minha inspiração para a literatura e o desenho voltavam a aflorar lentamente, fui convidado a deixar o país pela segunda vez, a trabalho. A distância da terra, da família e dos amigos levava-me a produzir pequenos textos, onde contava minhas aventuras e desventuras em terra lusitana. Meus amigos e família liam-nos, através de mensagens de ‘e-mails’ que eu os enviava. Era um grupo muito fechado de leitores. Jurlini, uma grande amiga, disse-me, um dia, quando eu comentei que apenas escrevia para manter uma espécie de diário:

- Tu não tens ideia de como é bom ler o que tu escreves…

Eu senti aquele orgulho secreto, mais uma vez, depois de tê-lo abafado por tanto tempo, tendo quase esquecido que ainda existia. Naquela fase, além das pequenas crônicas, eu escrevia somente poemas, mas sem intenção alguma de publicá-los. Mostrava-os para uns pouquíssimos olhos. Muitos deles tinham destinatários certos, sendo praticamente mensagens exclusivas e direcionadas, de uma forma carinhosa. Eu escrevia, mais por uma necessidade minha de expressar o que passava na minha cabeça, como se existisse um gigante aprisionado, que necessitava manifestar-se daquela forma, ou sufocaria no meu peito. A poesia era um confortável meio de expressar-me, mas fui desafiado a escrever algo diferente, depois de um tempo.

- Só vou ficar descansado quando tu escreveres uma história em que tenha um dragão, um laranjal e dois regatos gémeos.

- Isso não existe. Não há maneira de juntar estes elementos numa história.

- Estás desafiado a fazê-lo.

- E já recusei-me… Esqueça!

Mas Maykon sabia que a única forma de fazer-me, pelo menos tentar, seria desafiar-me daquela forma. Passados alguns dias, eu começava a esboçar as primeiras linhas da história, em que havia dito que era impossível juntar aqueles elementos tão surreais, mas que tornaram-se, em pouco tempo, uma grande parte de mim.

A intenção inicial era de escrever um pequeno conto, mas acabei empolgando-me e deixei-me levar pelo prazer de dar vida àquela série de personagens bastante complexos, cheios de conflitos, mas muito humanos. A história evoluiu, cresceu e por incentivo de meus sobrinhos e dos poucos amigos que iam acompanhando o processo criativo, virou um pequeno livro – meu primeiro e único, até agora. Escrito de uma maneira bastante formal, a Efígie do Dragão ganhou forma, corpo, capa e contracapa e virou um projeto independente, que foi publicado e lançado em Julho de 2009. Apesar de não haver sido divulgado como poderia, nem vendido os quinhentos exemplares impressos, a experiência causou-me um efeito interessante.

Nascia, em mim, uma fase de frenesi literário, em que eu escrevia contos em vários estilos, muitos deles ilustrados por desenhos e aguarelas, que também faziam parte de estudos que eu fazia, com técnicas artísticas amadoras. Estas, também, eu sentia vontade de evoluir e melhorar.

- Eu não sou engenheiro das palavras como tu.

Eu ri. A expressão, engenheiro das palavras, criada por um amigo, divertia-me e, ao mesmo tempo, estimulava-me a enfrentar outros desafios. Embora considerando-me sempre um amador, tanto na escrita quando no desenho e pintura, ambas as formas de expressão tornaram-se partes muito arraigadas em mim, tornando-se tão essenciais quanto respirar.

Pensando bem, passaram a ser bem mais do que simples prazeres: tornaram-se necessidades... Verdadeiros vícios, talvez desencadeados pela necessidade de mostrar minha capacidade de escrever, à famigerada Dona Alba...


domingo, 18 de janeiro de 2015

Demon (Parte 3 de 3)



Passei o dia a pensar no verdadeiro significado daquela pequena mensagem. Minha concentração fugia de vez em quando e eu apenas tinhas uns flashes de memória sobre a noite passada. Felizmente as atribuições do dia, no trabalho, foram suficientes para manter minha mente ocupada por bastante tempo, sem impedir-me, entretanto, de pensar, de vez em quando, no ocorrido. 

Tentei organizar, metodicamente, as poucas informações que vinham e iam, como se tentassem confundir-me ainda mais. Decidi que tinha de fazer uma cuidadosa viagem na memória e tomar alguns apontamentos, para organizar os factos, mas acabei por esquecer que havia tomado aquela decisão.

A caminho de casa, passei no Take-Away da esquina e comprei uma refeição pronta. Não tinha ânimo para cozinhar. Além do mais, precisava muito descansar.

Mirei meu rosto no espelho. Estranhei as olheiras que circundavam meus olhos. Pareciam mais profundas que o habitual. Talvez o cansaço causara-me mais do que uma simples mudança na aparência física. Achei melhor deitar-me e tratar de dormir um pouco. Quem sabe o sono fosse melhorar minha memória e minha aparência. 

Fechei os olhos e tentei relaxar. Precisava tentar lembrar como aquilo havia começado. Adormeci, antes mesmo de conseguir pensar em mais nada.

***

Tomei a direção errada, num dos corredores aos fundos da Universidade. Já era usual errar aquele caminho, por isso decidi continuar pelo lado de fora, para chegar a algum lugar. Meu senso de direção sempre fora muito pobre. Pelo jeito, minha habilidade para escolher amantes, também. Passei por muitas pessoas, alunos, professores, funcionários, que não prestavam muita atenção a mim, por estarem muito ocupados com seus próprios problemas. Passei pela entrada da biblioteca, pelo bar, tomei a direção das casas de banho, subindo um lance de poucos degraus, por uma entrada, que era protegida por um portão de ferro escuro. Não achei muito, além dos balneários com duches e voltei para o corredor, para tornar a procurar. Desci as mesmas escadas que havia subido e tomei uma saída à direita, depois, novamente, à esquerda. Havia uma entrada para uma clareira, que levava à uma espécie de bosque, que pareceu-me meio sombrio. 

Uma mulher veio falar comigo. Era muito velha, com cabelos desalinhados e andava meio curvada. Ofereceu-me algo, que eu não quis aceitar, mas ela riu e disse-me que eu devia receber. Deu-me o pequeno presente na palma da mão. Atrás dela, eu via que haviam as raízes de árvores muito antigas, a cair por um barranco escuro e bastante alto. Um raio de luz do sol entrava pela esquerda, caindo sobre a cabeça dela, fazendo seus cabelos brancos parecerem mais brancos e seus dentes mais escuros. Um xale de lã trançada, já gasto pelo uso e quase sem uma cor muito definida, caia-lhe pelos ombros. A mulher sorria. Não era assustadora, porém, apesar do aspeto que tinha. Quando explicou a razão de querer dar-me o dito presente, senti uma espécie de alívio.

- É uma proteção. Assim não precisas temer nenhum mal. Vai-te ser útil… em breve…

Eu agradeci à mulher, coloquei o pequeno artefacto no bolso do casaco e saí. Ela ficou a olhar-me desaparecer por um dos outros corredores. Eu já nem ao menos lembrava que precisava ir à casa de banho. Uma sineta a tocar, insistente, ao longe, chamou-me a atenção, quando passei por uma área menos ensolarada do complexo de prédios da cidade universitária. Olhei para trás, para ver se estava em segurança. Algo em meu subconsciente dizia-me que tomasse cuidado. Coloquei a mão no bolso e percebi que não havia examinado o pequeno objeto com o cuidado que devia.

A sineta voltou a tocar, agora mais perto de mim. Quando voltei-me, dei um encontrão numa pessoa que saía de uma das salas. Se não fosse pelos braços que me seguraram, firmemente, teria embatido contra o seu corpo com alguma violência, mas o homem havia sido rápido. Aqueles olhos verdes, então, fixaram-se nos meus e eu senti uma espécie de vertigem inquietante. Estava frente a frente com um homem, cujos olhos perturbavam-me mais que eu esperava. Ele sorriu largamente. A sineta tocou mais uma vez. Ele soltou meus braços completamente e eu senti que perdi o equilíbrio e comecei a cair… 

A sensação de cair, por um tempo maior que o espectado, causou-me um desconforto estranho no estômago. Pensei estar desmaiando. Tentei amenizar a queda, usando as mãos, mas não consegui. Senti minha visão escurecer, repentinamente.

***

Eu gritei. De um salto levantei-me da cama, em estado de aflição, tentando proteger-me do inevitável. Excomunguei a escuridão, ao perceber o que acontecia.

- Droga! Foi só um sonho!

Meu corpo estava suado e dolorido. A palma da minha mão também estava dolorida, provavelmente marcada pelas minhas próprias unhas. Minha cabeça ainda estava intranquila. O despertador tocava sem parar. Reconheci aquele como o som da maldita sineta, no sonho...

Então, como se uma porta tivesse sido aberta, comecei a lembrar…

***

Quando chegamos ao hotel, minha sobriedade ainda estava totalmente ativa. Subimos em quase silêncio total, quase sem nos olharmos, no elevador que parecia enorme para nós os dois. Lembro-me de termos ligado para o bar e pedido uma garrafa de vinho, assim que chegamos ao quarto.

O telefone dele tocou, em seguida, e eu achei o toque bastante inusitado, mas interessante, ao mesmo tempo. Ele disse-me que era sua canção favorita e cantarolou um pouquinho.

Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь
  Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть”…

(Yesli khochesh' idti, idi; yesli khochesh' zabyt', zabud'
Tol'ko znay, chto v kontse puti nikogda uzhe ne vernut...')*

Desligou o fone, sem atender e voltou sua atenção a mim. Uma coisa que me causou uma boa impressão a seu respeito, desde o começo, foi que quando dava-me atenção, ele, definitivamente, o fazia por inteiro. Seus olhos verdes escrutinavam-me na totalidade, fazendo-me sentir como se ele desnudasse não somente meu corpo, mas também minha alma… e era uma sensação muito estranha, devo confessar, embora não fosse exatamente desconfortável. Que eu lembrasse, nunca alguém havia sido tão presente como ele estava sendo naquele momento.

O vinho, que foi-nos trazido pelo serviço de quarto, era delicadamente seco e aromaticamente palatável. Subiu rápido à minha cabeça, porque eu estava com o estômago vazio. Nem lembrava há quanto tempo eu havia-me alimentado naquele dia. Eu sempre tive muita consciência de como controlar o nível de álcool no corpo, por isso senti que devia ir devagar com a bebida. Ele percebeu meu cuidado e manteve a linha, educadamente. Não devíamos deixar que o efeito esperado fosse o contrário da verdadeira intenção. Uma embriaguez ia estragar, definitivamente, o intuito daquele encontro.

***

Meu telefone tocou, fazendo com a minha concentração dissipasse instantânea e imediatamente. Havia perdido a hora do trabalho e tinha uma reunião cedo, que já havia começado. Como não costumava atrasar-me ou perder a hora, ligaram-me preocupados. Tinha que correr. Pelo menos, as coisas começavam a ficar mais nítidas, embora não completamente… ainda… na minha memória…

***

A reunião transcorreu normalmente, apesar do meu atraso, pelo qual tive que desculpar-me um milhão de vezes e que encheu-me de culpa, pela falta de responsabilidade da minha parte, com os compromissos assumidos. Devo ter mostrado um semblante muito doentio, porque o assunto foi logo deixado de lado e a reunião continuou sem mais percalços até seu fim.

Ao fim da manhã, quando saí para o almoço e precisei da carteira, deparei, novamente, com a pequena mensagem, que havia-me intrigado, escrita com a caligrafia estranha e conhecida. Precisava resolver aquela pendência, com urgência, ou enlouqueceria.

Bendita internet que nos oferece possibilidades de pesquisar tudo e até traduzir aquilo que não conhecemos, mesmo estando em línguas completamente desconhecidas. Encontrei uma ferramenta de idiomas, com os caracteres cirílicos e tentei copiá-los, com os que mais se pareciam com aqueles do papel desdobrado ali, à minha frente, na escrivaninha de trabalho. Converti para uma outra ferramenta de pesquisa e descobri, depois de algumas tentativas, quando fui mais a fundo, que aquela era parte de uma canção, que havia feito muito sucesso há alguns atrás. Traduzi, então, a pequena mensagem, que soou-me conhecida, quando sonorizada. Minha curiosidade, às vezes, vai a extremos.

As palavras dançaram à minha frente e então as peças encaixaram-se todas, na minha cabeça.


Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь
 Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть...”*

("Se quiseres ir, vá; se quiseres esquecer, esqueça
 Mas fique sabendo que, no fim da estrada, não há como voltar atrás...")

***

Quando ele despiu-me, na outra noite, as luzes ainda estavam acesas. Deixei-o explorar meu corpo, com o cuidado que ele demonstrara dentro do carro, alguns minutos antes. Ele era exímio e eu entreguei-me, sem medo, às suas carícias.

Ele havia mantido uma singlet branca vestida, bastante ajustada ao corpo, enquanto estávamos nas preliminares. Eu comecei a levantar o tecido, para explorar o torso atlético, que não era exatamente tonificado, mas era bonito mesmo assim. Ele apagou a luz principal e deixou-nos, apenas, com um dos abajures da cabeceira aceso. Na penumbra, eu livrei-o da última peça de roupa e beijei-o no peito, no pescoço e na boca. Minhas mãos acariciaram suas costas e eu tive a sensação de haver tocado algo, que não esperava. Passei os dedos, muito suavemente, pelo que me pareceram ser duas cicatrizes. Senti que seus músculos ficaram tensos. Forcei seu corpo para o lado, para que pudesse ver melhor. Ele tentou impedir-me de ver, usando alguns artifícios, mas eu insisti, forçando-o a virar-se e ele, por fim, cedeu. 

Haviam duas cicatrizes, talvez do tamanho de um palmo, sendo que cada uma estava posicionada de um lado das costas, um pouco abaixo da altura dos ombros. Partindo de cada uma delas, haviam duas pequenas asas, com desenhos muito bem definidos, tatuadas ao lado de cada uma das cicatrizes.

A seriedade com que eu olhei para aquilo, examinando cuidadosamente, na penumbra do quarto, fê-lo reagir.

- Eu não queria que visses e te assustasses…

- Devo ter medo?

- Não. Não tenhas. Isto já está resolvido… há muito tempo.

Apagou a luz e puxou-me para si, beijando-me com uma paixão que pareceu-me beirar o desespero e eu deixei-me levar por ele, desta vez, completamente.

Por dentro, eu tinha a sensação que um fogo inflamava-se e queimava-me o corpo todo, por todo o tempo, naquela noite… até que eu adormeci, em completa exaustão.

Tive a vaga impressão de havê-lo ver sair, pela porta, ainda a meio da madrugada, mas não tinha certeza.

Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь... (Se quiseres ir, vá; se quiseres esquecer, esqueça)…*

***

Após lembrar e compreender o que havia-se passado, tentei contactá-lo, por telefone, por dias, mas sem sucesso. A ligação ia sempre para a caixa de mensagens, mas eu desligava, sem dizer nada. Não queria deixar-lhe mensagens. Queria falar com ele; ouvir sua voz. Mas, ao invés disso, ou ele tentava evitar-me, ou precisava de tempo e espaço. Teria eu ultrapassado a barreira da curiosidade, quando insisti em ver as cicatrizes em suas costas? Talvez…

Na sua ausência, com saudades e a pensar nele, muitas vezes ao dia, eu ouvia aquela canção vezes e vezes, repetidamente, emocionando-me, cada vez que a ouvia.
Aquele jovem demônio, de pele pálida e olhos claros, havia-me levado à tentação e ganhara não só meu corpo, como também a minha alma, que, então passou a arder de paixão por ele. Eu já não tinha muito que fosse meu, de verdade… além da alma corrompida por alguns pecados capitais e pela fraqueza incontrolada…
No fundo, ele não era, realmente, um demónio: era apenas um anjo caído, desprovido de suas asas, mas não impedido de voar. E eu devo confessar que sentia falta dele… muita falta dele, para falar a verdade…

***

Havia-se passado mais de uma semana, desde que nos encontráramos e não havia recebido nenhum sinal dele. Acabei pior desistir de tentar voltar a contatá-lo, com um pouco de tristeza. Na sexta-feira, à noite, estava a ler, no quarto, quando a campainha tocou.

- Quem poderá ser, à esta hora?

Levantei-me, meio sem pensar e fui até a porta. Espiei pelo olho mágico e vi que havia um homem parado, com a cabeça calva levemente abaixada. Abri, num ímpeto e deparei com meu anjo caído, parado, de pé, na minha frente.

- Não foi fácil descobrir este endereço…

Eu não sabia se ria ou se chorava. Simplesmente puxei-o para dentro. Ele abraçou-me, tentando esconder o rubor nas faces e um sorriso, que eu não consegui distinguir bem do que se tratava.

- Por que este sorriso e este rubor?

- Tive saudades…

Eu achei engraçada aquela forma de pronunciar a palavra ‘saudade’. Soava-me como ‘sôdade’, que era uma forma muito regional de falar.

- Ah, foi?

Ele sorriu, novamente, tão ou mais desajeitado que antes. Eu ri da forma como ele pareceu-me um menino tímido, talvez por fingimento, talvez por charme, ou até mesmo por sentir-se mesmo desajeitado. Apertei seu corpo contra o meu, com ternura extrema. Levei a boca perto do ouvido dele e sussurrei:

- Estás há muito tempo neste país. Já falas com sotaque nativo.

Ele fez um muxoxo e apertou-me mais contra si. Passou a mão no meu pescoço, quando beijou-me. Seus dedos brincaram com a textura metálica à volta do meu pescoço.


- O que é isso?

Ele referia-se ao pingente pendurado em um fio de prata, que não estava ali, na primeira vez em que estivemos juntos. A pequena e estranha cruz de prata, que eu havia encontrado sobre a mesinha de cabeceira, extraordinariamente, era a mesma que a velha mulher havia-me dado no sonho e eu não tinha ideia de como fora parar no meu quarto.

Eu tinha um fiozinho delicado e muito fino, que havia-me sido dado pela minha mãe, em criança e que eu guardava numa caixinha, com muito carinho, dentro de uma gaveta. Achei conveniente usá-la por combinar com o pequeno amuleto. Não quis revelar o verdadeiro intuito de estar a usar uma cruz ortodoxa russa, pendurada ao pescoço, por isso, menti, por receio e para ter certeza que não corria nenhum perigo, estando com ele. Pelo sim, pelo não, senti que devia proteger-me, mesmo assim.

- Achei bonito. É de prata.

- Sim, é bonito… muito bonito…

Ele tocou o pequeno berloque e eu respirei, com um grande alívio, sabendo que minha apreensão era totalmente descabida.

- Senti tanto a tua falta. Acho que apaixonei-me por ti.

- Achas? Mas não deves apaixonar-te assim, inadvertidamente, por um estranho…

- Entre o que devo, o que eu quero, o que sinto e o que eu gosto, existe uma distância de muitos mil quilómetros…

- Pensei muito antes de vir atrás de ti. Tentei evitar. Também lutei contra meus próprios demónios e inseguranças, mas percebi que não se pode evitar o inevitável.

- Shh… Se é inevitável…

Na minha cabeça, uma canção repetia, sem parar, o estribilho que havia confundido-me, por dias e que, agora, parecia fazer muito sentido. Não, eu não queria ir; nem queria, jamais, esquecer…

Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь
  Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть...”

("Se quiseres ir, vá; se quiseres esquecer, esqueça;
 Mas fique sabendo que, no fim da estrada, não há como voltar atrás...")*

***

* De:  Филипп Киркоров - Снег (Phillip Kirkorov - Sneg)