Mostrar mensagens com a etiqueta medo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta medo. Mostrar todas as mensagens

domingo, 9 de abril de 2017

Olhares (Parte 2)


Quando cheguei ao trabalho, no dia seguinte, estava praticamente atrasado, pois demorei a adormecer e perdi a hora. Era quinta-feira e, para confirmar minha ojeriza ao pior dia da semana, desde há muito, fui chamado para uma reunião, que durou a manhã inteira e que não deixou-me tempo para pensar em mais nada, a não ser as decisões que eram exigidas ao grupo.

Quando saí para o almoço, já era passado da minha hora normal e tive que ir a um restaurante próximo do escritório, junto com alguns dos colegas, que participaram da mesma reunião.

Pedi um peixe grelhado com arroz e salada, que estava melhor que eu esperava, para a refeição que era. Estava distraído com a conversa, quando o rapaz que servia à mesa trouxe uma taça de vinho tinto e pousou à minha frente. Como eu não havia pedido vinho para beber, por ser um dia de trabalho normal, recusei o pedido, mas ele apontou para uma mesa na extremidade oposta e disse:

- É cortesia daquele cliente…

Eu olhei naquela direção e vi um homem vestido com roupas escuras a levantar a sua taça de vinho e mexer os lábios, no que pareceu-me ser votos de ‘saúde’.

Por algum motivo, senti uma pontada no estômago e não quis beber, de imediato, mas pensei melhor e decidi que era mais conveniente forçar-me, apesar da apreensão. Meus colegas terminaram a refeição antes de mim e levantaram-se, mas eu disse que ia demorar-me um pouco, ainda.

Quando fiquei a sós, olhei para o local onde antes havia sentado meu beneficiário, mas já não o vi. Levantei-me e fui até o caixa. O rapaz que estava de serviço disse-me que a conta estava paga, o que eu achei estranho, pois nós não costumamos pagar, em dia de trabalho, as contas uns dos outros. Foi quando ele entregou-me um papel dobrado com um pequeno sinal rabiscado a preto, ao lado de fora da mensagem.

- O cliente que pagou a conta pediu-me para entregar-lhe este bilhete…

Foi então que eu percebi que não havia sido nenhum dos meus colegas que havia saldado minha pequena dívida daquela refeição.

Desdobrei a mensagem e olhei à volta, mas já não avistei o tal homem. Li, intrigado, e lembrei-me do que ele havia-me falado ao telefone.

Eu devia desconfiar que a oferta de uma taça de vinho não era, exatamente, aquilo que eu deveria chamar de uma conversa, como ele havia indicado claramente, quando ligou-me, àquela hora da noite. Como não fui almoçar sozinho, ele resolveu adiar a conferência para outra ocasião, o que deixou-me, de certa forma, aliviado. Mas ter a minha refeição paga por um estranho, deixava-me bastante desconfortável.

De todo jeito, eu não sabia se estava preparado para uma conversa com aquele personagem… ainda…

Não tinha como saber do que se tratava e achava aquela história toda muito estranha. Na verdade, ele dava-me mais tempo, para me preparar para um encontro, quando chegasse a hora. Adiar a tal reunião, era o melhor que se podia fazer.

Quando preparei-me para atravessar a rua, senti uma pressão no braço e voltei-me, entre surpreso e assustado.

Uma moça bem vestida, com um tailleur cinza escuro e os cabelos presos atrás da cabeça, num coque bem arranjado, havia-me puxado para trás, milésimos de segundos antes de um carro preto passar, em alta velocidade, muito próximo da calçada.

- Cuidado! Ele avançou o sinal vermelho!

- Obrigado. Estava mesmo absorto…

- Não é uma boa estratégia distrair-se ao atravessar a rua.

- É verdade… Vou tomar mais cuidado. Agradeço imensamente.

Ela sorriu, condescendentemente, atravessando a faixa de pedestres e perdendo-se no meio dos transeuntes que iam e vinham pela calçada movimentada. Um suor frio correu-me pelo corpo, apesar de estar um dia agradavelmente morno.

‘Descuido. Grande descuido! E, para piorar, numa quinta-feira. Odeio isso, tanto quanto as quintas-feiras!’

***

A meio da tarde, estava tão envolvido com um trabalho, que não percebi o telefone tocar insistentemente. Um colega chamou-me à atenção e eu atendi de pronto. A voz rouca e conhecida, do outro lado da linha, falou:

- Deves ter mais cautela ao atravessar a rua. As pessoas descuidadas podem machucar-se…

- É. Eu sei…

- O vinho estava bom? Pareceu-me um pouco frutado demais, para acompanhar o peixe.
- Era bastante denso e encorpado, eu concordo. Mas é como eu gosto. Estava muito bom. Obrigado pela oferta.

- Ótimo. Não há de quê.

Antes que eu dissesse mais qualquer coisa, ouvi o som da linha desligar e fiquei ali, parado, como o telefone ao ouvido, como se desacreditasse que a conversa fosse somente aquela. Aquilo estava ficando, além de entediante, também um pouco perturbador.

Alguém chamou-me e eu tive que participar de outra reunião não programada, o que deixou-me ocupado pelo resto da tarde e um pedacinho da noite, após o encerramento do expediente normal.

Quando saí do escritório, já passava das oito da noite e eu estava visivelmente cansado. Pensei em comprar algo num ‘take-away’ a caminho de casa, ao invés de preparar comida, pois assim tinha menos trabalho e comia logo que chegasse. Depois podia descansar do longo dia. Já nem conseguia pensar muito claramente. Eu só queria chegar em casa, comer e deitar-me.

O frango no churrasco ainda estava quente quando comecei a comer e as batatas fritas bem firmes e saborosas. Pensei em como era bom ser simples. O gato ganhou uma porção de peito de frango picado e ainda estava feliz da vida a saboreá-la, quando terminei o meu jantar. Arranjei a louça na máquina de lavar, dei uma olhada na tigela de água do bichano, para certificar-me que não ia faltar-lhe nada e fui arranjar-me para repousar.

Adormeci em pouco tempo.

A meio da madrugada, acordei-me sobressaltado, com a impressão que havia mais alguém dentro de casa. Olhei à volta e percebi que o gato, minha referência, estava acordado e a olhar fixamente para um ponto fora do quarto. Levantei-me e acendi todas a luzes, fui até a cozinha, depois à sala, mas não vi ninguém.

Verifiquei, também, se a porta de entrada estava bem trancada por dentro, para ficar mais aliviado.

‘Devo ter sonhado com algo que não consigo lembrar… ou estou começando a enlouquecer…’   

Quando eu virei-me para voltar ao quarto, percebi que a janela da sala estava aberta, para minha surpresa. Aquilo era absolutamente inaceitável, pois eu sempre mantinha as janelas bem fechadas, para evitar que o gato saísse sem que eu soubesse. Eu não lembrava mesmo de havê-la aberto. Eu nunca seria tão descuidado… ou seria?

‘Tenho que parar com esta paranóia! Vou acabar indo parar num hospício!’

***

No dia seguinte, estive tão ocupado com o trabalho, que não tive tempo de pensar em muitas coisas. Pelo menos era o último dia útil da semana e eu ia poder descansar nos dois dias seguintes.

Cheguei em casa tão cansado, que até o gato estranhou que não ganhou carinho suficiente, mas deitou-se ao meu lado, no sofá e adormeceu comigo, como se compreendesse que eu também precisava do suporte dele.

O telefone tocou quando faltavam poucos minutos para a meia-noite.

A mesma voz rouca, tranquila e monótona, demonstrava uma afinidade que não possuía, na realidade.

- Não devias dormir no sofá. Vais levantar com dores no corpo.

- E como é que sabes que eu estou no sofá?

- Pelo jeito ainda não estás convencido… No que é que tu acreditas, afinal?

- Eu sou um homem de mente totalmente racional. Não acredito em nada que não possa provar cientificamente.

- Existem muitos mistérios inexplicáveis neste mundo. Devias ser mais aberto às experiências que não consegues provar com a tua lógica. Quem é que garante que não existem outras dimensões além dessa?

- Outras dimensões? Deves estar a brincar comigo…

O homem não argumentou. Eu ouvia sua respiração pesada, do outro lado da linha, sem saber o que viria a seguir. Para minha surpresa, antes que eu dissesse mais qualquer coisa, ele desligou.

O que ele quer comigo? Conversa mais estranha! Outra dimensão? Que porcaria é essa? Só conheço três dimensões… e olhe lá!

***

- Era preciso que tu estivesses aberto para a perceção. Não basta acreditar. É preciso aceitar.

- Mas isso só pode ser uma ilusão… Não posso acreditar!

- Abra a mente. Não há nada impossível, como podes perceber.

Eu calei-me. Estava-me passando por ridículo. Se ver não for suficiente para crer, então o que será?

Ele apontou-me o caminho, deixando-me passar e logo começou a andar ao meu lado. Eu nem sabia o que pensar. Não havia o que dizer. Aquilo parecia uma loja de souvenirs, com muitas galerias que se abriam, como os túneis de esgotos por baixo da cidade… só que não estávamos por baixo da cidade e as galerias não estavam vazias, nem escuras. As várias entradas e saídas levavam a muitos pontos estratégicos, como se fossem portais de acesso. Estes mudavam de lugar, constantemente, como se pretendessem impedir que fossem detectados, o que fazia um certo sentido.

- Este lado serve de equilíbrio para o outro, mas agora está totalmente caótico, por causa das barbaridades que acontecem daquele lado. As coisas ficaram fora de controlo e o equilíbrio está cada vez mais difícil.

- E por que eu estou aqui?

O homem parou e olhou-me, com um ar estranho.

- Alguém do lado de cá enviou-me para mostrar-te o que acontece e pedir-te ajuda.

- Ajuda? Quem poderia necessitar de minha ajuda?

Ele olhou por cima dos meus ombros, como se não conseguisse acreditar que eu fosse tão ingénuo.

- Eu.

Virei-me rapidamente, para ver quem havia falado. Minhas pernas tremeram e eu senti um aperto na garganta. Tentei parecer normal, mas minha voz traiu-me completamente.

- Eu já devia esperar…

***

domingo, 18 de janeiro de 2015

Demon (Parte 3 de 3)



Passei o dia a pensar no verdadeiro significado daquela pequena mensagem. Minha concentração fugia de vez em quando e eu apenas tinhas uns flashes de memória sobre a noite passada. Felizmente as atribuições do dia, no trabalho, foram suficientes para manter minha mente ocupada por bastante tempo, sem impedir-me, entretanto, de pensar, de vez em quando, no ocorrido. 

Tentei organizar, metodicamente, as poucas informações que vinham e iam, como se tentassem confundir-me ainda mais. Decidi que tinha de fazer uma cuidadosa viagem na memória e tomar alguns apontamentos, para organizar os factos, mas acabei por esquecer que havia tomado aquela decisão.

A caminho de casa, passei no Take-Away da esquina e comprei uma refeição pronta. Não tinha ânimo para cozinhar. Além do mais, precisava muito descansar.

Mirei meu rosto no espelho. Estranhei as olheiras que circundavam meus olhos. Pareciam mais profundas que o habitual. Talvez o cansaço causara-me mais do que uma simples mudança na aparência física. Achei melhor deitar-me e tratar de dormir um pouco. Quem sabe o sono fosse melhorar minha memória e minha aparência. 

Fechei os olhos e tentei relaxar. Precisava tentar lembrar como aquilo havia começado. Adormeci, antes mesmo de conseguir pensar em mais nada.

***

Tomei a direção errada, num dos corredores aos fundos da Universidade. Já era usual errar aquele caminho, por isso decidi continuar pelo lado de fora, para chegar a algum lugar. Meu senso de direção sempre fora muito pobre. Pelo jeito, minha habilidade para escolher amantes, também. Passei por muitas pessoas, alunos, professores, funcionários, que não prestavam muita atenção a mim, por estarem muito ocupados com seus próprios problemas. Passei pela entrada da biblioteca, pelo bar, tomei a direção das casas de banho, subindo um lance de poucos degraus, por uma entrada, que era protegida por um portão de ferro escuro. Não achei muito, além dos balneários com duches e voltei para o corredor, para tornar a procurar. Desci as mesmas escadas que havia subido e tomei uma saída à direita, depois, novamente, à esquerda. Havia uma entrada para uma clareira, que levava à uma espécie de bosque, que pareceu-me meio sombrio. 

Uma mulher veio falar comigo. Era muito velha, com cabelos desalinhados e andava meio curvada. Ofereceu-me algo, que eu não quis aceitar, mas ela riu e disse-me que eu devia receber. Deu-me o pequeno presente na palma da mão. Atrás dela, eu via que haviam as raízes de árvores muito antigas, a cair por um barranco escuro e bastante alto. Um raio de luz do sol entrava pela esquerda, caindo sobre a cabeça dela, fazendo seus cabelos brancos parecerem mais brancos e seus dentes mais escuros. Um xale de lã trançada, já gasto pelo uso e quase sem uma cor muito definida, caia-lhe pelos ombros. A mulher sorria. Não era assustadora, porém, apesar do aspeto que tinha. Quando explicou a razão de querer dar-me o dito presente, senti uma espécie de alívio.

- É uma proteção. Assim não precisas temer nenhum mal. Vai-te ser útil… em breve…

Eu agradeci à mulher, coloquei o pequeno artefacto no bolso do casaco e saí. Ela ficou a olhar-me desaparecer por um dos outros corredores. Eu já nem ao menos lembrava que precisava ir à casa de banho. Uma sineta a tocar, insistente, ao longe, chamou-me a atenção, quando passei por uma área menos ensolarada do complexo de prédios da cidade universitária. Olhei para trás, para ver se estava em segurança. Algo em meu subconsciente dizia-me que tomasse cuidado. Coloquei a mão no bolso e percebi que não havia examinado o pequeno objeto com o cuidado que devia.

A sineta voltou a tocar, agora mais perto de mim. Quando voltei-me, dei um encontrão numa pessoa que saía de uma das salas. Se não fosse pelos braços que me seguraram, firmemente, teria embatido contra o seu corpo com alguma violência, mas o homem havia sido rápido. Aqueles olhos verdes, então, fixaram-se nos meus e eu senti uma espécie de vertigem inquietante. Estava frente a frente com um homem, cujos olhos perturbavam-me mais que eu esperava. Ele sorriu largamente. A sineta tocou mais uma vez. Ele soltou meus braços completamente e eu senti que perdi o equilíbrio e comecei a cair… 

A sensação de cair, por um tempo maior que o espectado, causou-me um desconforto estranho no estômago. Pensei estar desmaiando. Tentei amenizar a queda, usando as mãos, mas não consegui. Senti minha visão escurecer, repentinamente.

***

Eu gritei. De um salto levantei-me da cama, em estado de aflição, tentando proteger-me do inevitável. Excomunguei a escuridão, ao perceber o que acontecia.

- Droga! Foi só um sonho!

Meu corpo estava suado e dolorido. A palma da minha mão também estava dolorida, provavelmente marcada pelas minhas próprias unhas. Minha cabeça ainda estava intranquila. O despertador tocava sem parar. Reconheci aquele como o som da maldita sineta, no sonho...

Então, como se uma porta tivesse sido aberta, comecei a lembrar…

***

Quando chegamos ao hotel, minha sobriedade ainda estava totalmente ativa. Subimos em quase silêncio total, quase sem nos olharmos, no elevador que parecia enorme para nós os dois. Lembro-me de termos ligado para o bar e pedido uma garrafa de vinho, assim que chegamos ao quarto.

O telefone dele tocou, em seguida, e eu achei o toque bastante inusitado, mas interessante, ao mesmo tempo. Ele disse-me que era sua canção favorita e cantarolou um pouquinho.

Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь
  Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть”…

(Yesli khochesh' idti, idi; yesli khochesh' zabyt', zabud'
Tol'ko znay, chto v kontse puti nikogda uzhe ne vernut...')*

Desligou o fone, sem atender e voltou sua atenção a mim. Uma coisa que me causou uma boa impressão a seu respeito, desde o começo, foi que quando dava-me atenção, ele, definitivamente, o fazia por inteiro. Seus olhos verdes escrutinavam-me na totalidade, fazendo-me sentir como se ele desnudasse não somente meu corpo, mas também minha alma… e era uma sensação muito estranha, devo confessar, embora não fosse exatamente desconfortável. Que eu lembrasse, nunca alguém havia sido tão presente como ele estava sendo naquele momento.

O vinho, que foi-nos trazido pelo serviço de quarto, era delicadamente seco e aromaticamente palatável. Subiu rápido à minha cabeça, porque eu estava com o estômago vazio. Nem lembrava há quanto tempo eu havia-me alimentado naquele dia. Eu sempre tive muita consciência de como controlar o nível de álcool no corpo, por isso senti que devia ir devagar com a bebida. Ele percebeu meu cuidado e manteve a linha, educadamente. Não devíamos deixar que o efeito esperado fosse o contrário da verdadeira intenção. Uma embriaguez ia estragar, definitivamente, o intuito daquele encontro.

***

Meu telefone tocou, fazendo com a minha concentração dissipasse instantânea e imediatamente. Havia perdido a hora do trabalho e tinha uma reunião cedo, que já havia começado. Como não costumava atrasar-me ou perder a hora, ligaram-me preocupados. Tinha que correr. Pelo menos, as coisas começavam a ficar mais nítidas, embora não completamente… ainda… na minha memória…

***

A reunião transcorreu normalmente, apesar do meu atraso, pelo qual tive que desculpar-me um milhão de vezes e que encheu-me de culpa, pela falta de responsabilidade da minha parte, com os compromissos assumidos. Devo ter mostrado um semblante muito doentio, porque o assunto foi logo deixado de lado e a reunião continuou sem mais percalços até seu fim.

Ao fim da manhã, quando saí para o almoço e precisei da carteira, deparei, novamente, com a pequena mensagem, que havia-me intrigado, escrita com a caligrafia estranha e conhecida. Precisava resolver aquela pendência, com urgência, ou enlouqueceria.

Bendita internet que nos oferece possibilidades de pesquisar tudo e até traduzir aquilo que não conhecemos, mesmo estando em línguas completamente desconhecidas. Encontrei uma ferramenta de idiomas, com os caracteres cirílicos e tentei copiá-los, com os que mais se pareciam com aqueles do papel desdobrado ali, à minha frente, na escrivaninha de trabalho. Converti para uma outra ferramenta de pesquisa e descobri, depois de algumas tentativas, quando fui mais a fundo, que aquela era parte de uma canção, que havia feito muito sucesso há alguns atrás. Traduzi, então, a pequena mensagem, que soou-me conhecida, quando sonorizada. Minha curiosidade, às vezes, vai a extremos.

As palavras dançaram à minha frente e então as peças encaixaram-se todas, na minha cabeça.


Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь
 Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть...”*

("Se quiseres ir, vá; se quiseres esquecer, esqueça
 Mas fique sabendo que, no fim da estrada, não há como voltar atrás...")

***

Quando ele despiu-me, na outra noite, as luzes ainda estavam acesas. Deixei-o explorar meu corpo, com o cuidado que ele demonstrara dentro do carro, alguns minutos antes. Ele era exímio e eu entreguei-me, sem medo, às suas carícias.

Ele havia mantido uma singlet branca vestida, bastante ajustada ao corpo, enquanto estávamos nas preliminares. Eu comecei a levantar o tecido, para explorar o torso atlético, que não era exatamente tonificado, mas era bonito mesmo assim. Ele apagou a luz principal e deixou-nos, apenas, com um dos abajures da cabeceira aceso. Na penumbra, eu livrei-o da última peça de roupa e beijei-o no peito, no pescoço e na boca. Minhas mãos acariciaram suas costas e eu tive a sensação de haver tocado algo, que não esperava. Passei os dedos, muito suavemente, pelo que me pareceram ser duas cicatrizes. Senti que seus músculos ficaram tensos. Forcei seu corpo para o lado, para que pudesse ver melhor. Ele tentou impedir-me de ver, usando alguns artifícios, mas eu insisti, forçando-o a virar-se e ele, por fim, cedeu. 

Haviam duas cicatrizes, talvez do tamanho de um palmo, sendo que cada uma estava posicionada de um lado das costas, um pouco abaixo da altura dos ombros. Partindo de cada uma delas, haviam duas pequenas asas, com desenhos muito bem definidos, tatuadas ao lado de cada uma das cicatrizes.

A seriedade com que eu olhei para aquilo, examinando cuidadosamente, na penumbra do quarto, fê-lo reagir.

- Eu não queria que visses e te assustasses…

- Devo ter medo?

- Não. Não tenhas. Isto já está resolvido… há muito tempo.

Apagou a luz e puxou-me para si, beijando-me com uma paixão que pareceu-me beirar o desespero e eu deixei-me levar por ele, desta vez, completamente.

Por dentro, eu tinha a sensação que um fogo inflamava-se e queimava-me o corpo todo, por todo o tempo, naquela noite… até que eu adormeci, em completa exaustão.

Tive a vaga impressão de havê-lo ver sair, pela porta, ainda a meio da madrugada, mas não tinha certeza.

Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь... (Se quiseres ir, vá; se quiseres esquecer, esqueça)…*

***

Após lembrar e compreender o que havia-se passado, tentei contactá-lo, por telefone, por dias, mas sem sucesso. A ligação ia sempre para a caixa de mensagens, mas eu desligava, sem dizer nada. Não queria deixar-lhe mensagens. Queria falar com ele; ouvir sua voz. Mas, ao invés disso, ou ele tentava evitar-me, ou precisava de tempo e espaço. Teria eu ultrapassado a barreira da curiosidade, quando insisti em ver as cicatrizes em suas costas? Talvez…

Na sua ausência, com saudades e a pensar nele, muitas vezes ao dia, eu ouvia aquela canção vezes e vezes, repetidamente, emocionando-me, cada vez que a ouvia.
Aquele jovem demônio, de pele pálida e olhos claros, havia-me levado à tentação e ganhara não só meu corpo, como também a minha alma, que, então passou a arder de paixão por ele. Eu já não tinha muito que fosse meu, de verdade… além da alma corrompida por alguns pecados capitais e pela fraqueza incontrolada…
No fundo, ele não era, realmente, um demónio: era apenas um anjo caído, desprovido de suas asas, mas não impedido de voar. E eu devo confessar que sentia falta dele… muita falta dele, para falar a verdade…

***

Havia-se passado mais de uma semana, desde que nos encontráramos e não havia recebido nenhum sinal dele. Acabei pior desistir de tentar voltar a contatá-lo, com um pouco de tristeza. Na sexta-feira, à noite, estava a ler, no quarto, quando a campainha tocou.

- Quem poderá ser, à esta hora?

Levantei-me, meio sem pensar e fui até a porta. Espiei pelo olho mágico e vi que havia um homem parado, com a cabeça calva levemente abaixada. Abri, num ímpeto e deparei com meu anjo caído, parado, de pé, na minha frente.

- Não foi fácil descobrir este endereço…

Eu não sabia se ria ou se chorava. Simplesmente puxei-o para dentro. Ele abraçou-me, tentando esconder o rubor nas faces e um sorriso, que eu não consegui distinguir bem do que se tratava.

- Por que este sorriso e este rubor?

- Tive saudades…

Eu achei engraçada aquela forma de pronunciar a palavra ‘saudade’. Soava-me como ‘sôdade’, que era uma forma muito regional de falar.

- Ah, foi?

Ele sorriu, novamente, tão ou mais desajeitado que antes. Eu ri da forma como ele pareceu-me um menino tímido, talvez por fingimento, talvez por charme, ou até mesmo por sentir-se mesmo desajeitado. Apertei seu corpo contra o meu, com ternura extrema. Levei a boca perto do ouvido dele e sussurrei:

- Estás há muito tempo neste país. Já falas com sotaque nativo.

Ele fez um muxoxo e apertou-me mais contra si. Passou a mão no meu pescoço, quando beijou-me. Seus dedos brincaram com a textura metálica à volta do meu pescoço.


- O que é isso?

Ele referia-se ao pingente pendurado em um fio de prata, que não estava ali, na primeira vez em que estivemos juntos. A pequena e estranha cruz de prata, que eu havia encontrado sobre a mesinha de cabeceira, extraordinariamente, era a mesma que a velha mulher havia-me dado no sonho e eu não tinha ideia de como fora parar no meu quarto.

Eu tinha um fiozinho delicado e muito fino, que havia-me sido dado pela minha mãe, em criança e que eu guardava numa caixinha, com muito carinho, dentro de uma gaveta. Achei conveniente usá-la por combinar com o pequeno amuleto. Não quis revelar o verdadeiro intuito de estar a usar uma cruz ortodoxa russa, pendurada ao pescoço, por isso, menti, por receio e para ter certeza que não corria nenhum perigo, estando com ele. Pelo sim, pelo não, senti que devia proteger-me, mesmo assim.

- Achei bonito. É de prata.

- Sim, é bonito… muito bonito…

Ele tocou o pequeno berloque e eu respirei, com um grande alívio, sabendo que minha apreensão era totalmente descabida.

- Senti tanto a tua falta. Acho que apaixonei-me por ti.

- Achas? Mas não deves apaixonar-te assim, inadvertidamente, por um estranho…

- Entre o que devo, o que eu quero, o que sinto e o que eu gosto, existe uma distância de muitos mil quilómetros…

- Pensei muito antes de vir atrás de ti. Tentei evitar. Também lutei contra meus próprios demónios e inseguranças, mas percebi que não se pode evitar o inevitável.

- Shh… Se é inevitável…

Na minha cabeça, uma canção repetia, sem parar, o estribilho que havia confundido-me, por dias e que, agora, parecia fazer muito sentido. Não, eu não queria ir; nem queria, jamais, esquecer…

Если хочешь идти, иди; если хочешь забыть, забудь
  Только знай, что в конце пути никогда уже не вернуть...”

("Se quiseres ir, vá; se quiseres esquecer, esqueça;
 Mas fique sabendo que, no fim da estrada, não há como voltar atrás...")*

***

* De:  Филипп Киркоров - Снег (Phillip Kirkorov - Sneg)


sábado, 3 de janeiro de 2015

Demon (Parte 2 de 3)


- Tens medo?

- Tenho.

- De quê? De mim?

- Não devo responder a isso. Não é muito justo...

Ele olhou-me com uma expressão meio pedinte, quase irresistível. Eu sentia que devia dizer-lhe o que se passava na minha cabeça...

- Tenho medo, às vezes, dos meus próprios demônios...Não devo condenar-me por isso, entretanto.

- Não precisas temer. Relaxa e deixa-te levar. Não te quero nenhum mal.

- Se fosse assim tão fácil...

Ele riu. Não era por  troça... parecia ser mais por complacência. Talvez quisesse que eu ficasse mais à vontade. Eu sabia, entretanto que não era tão fácil.

- Feche os olhos.

- Nem pensar...

- Não tenha medo. Não vou-te machucar. Só quero que relaxes. Vamos lá.

Eu obedeci, apesar da apreensão que sentia. Ele tocou-me o rosto, muito levemente. Eu abri os olhos. Ele passou-me os dedos pelas pálpebras e fez-me fechá-las outra vez.

- Shh... Acalma-te. Não pense em nada de mal. Eu não vou fazer nada que não queiras.

(Ali estava um problema. E se eu quisesse tudo? E se não quisesse nada? E se eu perdesse o controle? Oh, meu Deus!)

Ele tocou-me o lado da face, passou-me as pontas dos dedos mornos pelos lóbulos das orelhas, pelo pescoço, pela nuca e subiu, com os dedos entre meus cabelos e foi além, massajando minha cabeça com destreza e puxando-a um pouco para trás. Senti o calor de seus lábios macios na minha testa, nos meus olhos, no meu rosto e, finalmente, no canto da minha boca, a roçar meus lábios, muito de leve. Eu gemi, baixinho. Ele passou os lábios muito tenuemente sobre os meus, mas sem fazer qualquer pressão. Eu movi os meus.

- Shh... Não. Deixes que eu te beije. Não faças nada... ainda...

Sua voz era um  sussurro e eu quase nem percebia muito as palavras, mas entendia a intenção. Ele beijou-me o queixo, o pescoço, o peito e, abrindo um botão e afastando um pouco o tecido para o lado, procurou, na extensão da pele arrepiada, um dos pontos mais sensíveis do meu corpo, que já estava à espera do calor de sua boca e, não surpreendentemente, pela ponta da língua, que ali brincou por uns instantes. Ele abriu mais uns botões e beijou-me um pouco mais abaixo, virou-se um pouco na exploração e beijou-me acima e abaixo do umbigo, descendo devagar, a roçar minha pele com a barba macia, que causava-me sensações estranhas por onde passava. Todos os meus poros estavam em estado de alerta, à espera que ele descesse um pouco mais, mas, ao invés disso, ele começou a subir, beijando-me, por uma linha imaginária, desenhada bem ao centro do meu corpo, até chegar-me à boca, naquilo que pareceu-me um lapso de tempo tão difícil de saber se havia sido longo ou curto.

Sua boca era morna e seus lábios extremamente macios a pressionar os meus e, desta vez, permitindo-me responder ao tépido contacto. Ele não forçou mais do aquele toque superficial de lábios e levou a boca ao meu ouvido, sussurrando as palavras que eu já sabia que ia ouvir.

- Ainda tens medo?

- Tenho...

Ele abraçou-me ternamente, deixou-me sentir o calor de seu corpo e esperou que passasse meus braços em volta do seu corpo e relaxasse, antes de falar, novamente, muito baixinho.

- Não tenhas...

Ele soltou-se, olhou-me nos olhos, enquanto suas mãos voltavam a abotoar-me a roupa que ele mesmo havia aberto alguns minutos antes. Voltou a beijar-me os olhos e, depois, as mãos.

- Vamos?

- Vamos!

Ele girou a chave na ignição e conduziu, em silêncio, pela avenida à orla do mar, que à aquela hora pareceu-me um imenso manto negro, a gritar-me, numa linguagem que eu não percebia, palavras que eu não conseguia distinguir se eram de alerta ou de incentivo. Minha mente estava numa completa confusão, em um turbilhão de sentimentos, dúvidas e perguntas. Ele não falou nada. Nem eu, tampouco. Quando ele saiu da avenida e tomou a direção de uma região que não era a de onde partimos, inicialmente, eu não fiz perguntas, não comentei, nem protestei. Apertei uma mão contra a outra, numa espécie de desconforto e olhei para fora.

Ele colocou a mão sobre a minha e sorriu, sem dizer nada. Esbocei um sorriso meio sem graça. Felizmente havia pouca luz dentro do carro, exceto quando passávamos pela iluminação pública, que ia, aos poucos e constantemente, dando flashes da expressão estranha, ainda estampada na minha face.

***

O raio de sol que entrava por uma brecha na cortina mal fechada caiu-me em cheio sobre o rosto e os olhos. Tentei concentrar-me no que havia à minha volta. Minha cabeça estava às voltas e eu não tinha muita certeza de onde estava. Apesar de a cabeça doer-me e dos olhos demorarem um pouco a focar,  reconheci o quarto e a cama na qual estava.

Uma batida na porta despertou-me completamente e de uma vez. Levantei-me às pressas e dirigi-me à porta, que abri de imediato. A camareira olhou-me com uma expressão engraçada, tentando desviar o olhar do meu corpo nu.

-Posso arrumar o quarto?

- Hum... Claro... Pode entrar.

Enfiei-me na primeira porta e tranquei-a. Precisava de um duche com muita urgência. Ainda não conseguia pensar nos detalhes da noite passada. Abri a água morna e entrei no banho, tentando resgatar pedaços de mim, enquanto ensaboava o corpo, com energia.

('Meu Deus', pensei. 'O que foi que eu fiz?')

- Vai precisar de mais toalhas?

- Ahn? Não, agradeço. Já estou de saída.

Abri a porta, com a toalha enrolada no corpo e saí para o quarto, enquanto a camareira entrava na casa de banho, para completar o serviço. Apressei-me a vestir-me e sair, antes mesmo de ter outro encontro com a mulher da limpeza, que murmurava uma canção, enquanto lá estava a trocar toalhas, material de higiene pessoal e a lustrar o piso com uma esfregona. Bati a porta atrás de mim e fui até a receção. A conta estava paga. O pequeno-almoço ainda estava sendo servido, no salão ao lado da receção, mas decidi sair, sem comer.

Meu estômago estava às voltas, assim como minha cabeça. À porta, chamei um táxi, para voltar à minha casa, tentando concentrar-me nos detalhes, muito pouco nítidos na minha memória, apesar de haver passado apenas algumas horas, desde que havíamos chegado a aquele lugar.  

(Concentra-te! O que foi que fizeste?)

Fechei os olhos. Eu precisava recordar. Não lembrava de alguma vez haver tido qualquer espécie de blackout como aquele. O que é que impedia-me de lembrar? Eu perguntava-me vezes e vezes, mas não conseguia resposta.  

Chegamos ao meu destino, sem que eu percebesse o caminho por onde viera. O taxista disse o valor da corrida e eu apressei-me a buscar a carteira, para pagá-lo. Junto com as poucas notas no compartimento da frente, havia um pedaço de papel dobrado, com o timbre do hotel, que eu tinha certeza não o haver colocado ali. Paguei o homem e cruzei a larga calçada.

Minha mão, enfiada no bolso do casaco, segurava, firmemente, o pedaço de papel dobrado. Minha ansiedade impedia-me de pensar logicamente. O maldito elevador ainda resolvia estar preso em algum andar, pela demora que levava para chegar, como se quisesse caçoar do meu desespero e confusão. Eu tentava não mostrar apreensão às outras pessoas paradas em frente às portas metálicas, no hall do edifício.

Quando, finalmente, entrei no apartamento, esqueci todo o resto, tirei a mão do bolso e desdobrei o papel. Havia uma mensagem escrita, numa caligrafia que eu já conhecia. Meus olhos pousaram sobre as letras e as palavras, que não pareceram fazer muito sentido à primeira vista.


- Mas, que diabos!?...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Demon (Parte 1 de 3)


Eu saí da estação com a cabeça ainda um tanto atordoada pela imagem de um triste adeus e da visão do último vagão a desaparecer no meio da neblina, como se houvesse sido engolido pela mesma, naquela pálida manhã de Outono. Não vi a pessoa na qual esbarrei, derrubando uma quantidade de embrulhos pela calçada. Apressei-me a ajudar a minimizar o estrago que eu fizera, quase sem olhar para o rosto de quem agachara-se, ao mesmo tempo, dizendo que não havia problema, ante meus pedidos de desculpas. 

Quando levantei a cabeça e deparei-me com aqueles olhos tão verdes e cristalinos, pensei em como os deuses devem gostar de brincar comigo, provocando-me vezes e vezes, uma atrás da outra. Devo ter ficado por um tempo longo demais a olhar naquele par de fontes de água da cor da esmeralda, porque o sorriso que recebi, deixou-me um tanto sem jeito, ao perceber que poderia ter ultrapassado algum limite. Baixei os olhos, com a face totalmente ruborizada de vergonha, sentindo um imenso calor a subir-me, repentinamente, pelas orelhas, que deviam estar parecendo duas rodelas de tomates maduros.

- Não foi nada demais. Acontece… Obrigado por ajudar a recolher os pacotes.

- Era o mínimo que eu podia fazer, para compensar o estrago.

Minha voz soava estranha. Eu quase nem me reconhecia. Queria sumir, apesar de sentir um enorme magnetismo, como a controlar-me através aqueles olhos. A vergonha que eu sentia era grande e não deixava-me nem um pouco à vontade. O mais certo seria correr dali, mas algo lutava contra aquela intenção. Eu também sentia que desejava... e muito... ficar. Ele, então, surpreendeu-me ao fazer um convite que eu jamais esperava receber, naquela hora, de um completo estranho.

- Queres tomar um café comigo?

Devo ter feito uma cara muito estranha, porque ele riu.

***

Meus olhos pousaram nas sacolas, sobre a cadeira, que continham os embrulhos, que há poucos minutos estavam espalhados pela calçada, do lado de fora da estação. Ele notou minha curiosidade, mas não disse nada, até eu perguntar.

- São presentes para os teus filhos?

- São para meus sobrinhos... Não tenho filhos. Não sou casado.

Minha alma sorriu largamente. O canto da minha boca deve ter dado algum sinal. Ele riu e estendeu a mão.

- Meu nome é Dima.

Eu disse-lhe o meu. Ele olhou-me meio estranhamente, pela invulgaridade do nome, um tanto atípico e perguntou:

- Qual o significado?

- Do que?

Ele riu.

- Do teu nome.

Eu nunca havia pensado numa questão como aquela. Mesmo assim, fiz uma viagem rápida na memória e naquilo que conhecia sobre minhas origens, tentando chegar a alguma conclusão, mas não cheguei à praticamente nada. Na minha terra e na minha família, os nomes sempre foram dados por escolha e afinidade, não por significados. Que eu tivesse conhecimento, o meu havia sido escolhido aleatoriamente, sem critério nenhum, a não ser a inicial, que era igual àquela primeira letra do nome dos meus irmãos. Ele, então, explicou-me a razão da pergunta:

- O meu nome é uma homenagem à Deméter, a deusa. Dmitry. Dima. Eu gosto, porém, de usar um pseudônimo, em brincadeira com a pronúncia: Demon. Dá-me uma identidade pouco comum…

E riu com o canto da boca, levantando a sobrancelha direita, de uma maneira estranha, como eu não conseguiria fazer, por mais que tentasse. Aquela forma de levantar o sobrolho dava-lhe, mesmo, um aspeto que fazia jus ao codinome que escolhera. 

Se a vida fosse um filme, naquele momento, tocaria aquela dramática música incidental, que antecipa um grande suspense. Eu ri, internamente, daquele pensamento tolo. Para falar bem a verdade, já havia feito a associação, mentalmente, mas fingi sentir surpresa. Era apenas uma mentirinha branca, para não demonstrar o óbvio, nem parecer sagaz demais. Às vezes, é melhor passar-se uma impressão parva, para manter as expectativas em fogo brando. E além disso, eu queria que ele falasse mais sobre si.

- Demon… Interessante…

Ele olhou-me diretamente nos olhos e sorriu. Um pensamento invulgar ocorreu-me naquele instante e uma sensação estranha incomodou-me, como o picar de um dedo na roca de fiar ou num espinho de rosa. Algo arranhava-me o senso de coerência. 

Que estranho… Aquele sorriso pareceu-me quase impossível de resistir. Ele percebeu uma espécie de embaraço no meu jeito de olhar-lhe e voltou a abrir-me seu melhor sorriso.

- (Quem é esse homem, afinal?)

Aquele jovem demônio de pele pálida e olhos claros podia-me, facilmente, levar à tentação e eu sabia que seria difícil relutar.

- Tenho que ir. Obrigado pela companhia, mas tenho que ir…

Ele pegou um guardanapo de papel e rabiscou um número de telefone e um endereço eletrónico. Entregou-mos e estendeu a mão.

- Mantenha contacto. Até a próxima.

Levantou-se e saiu sem voltar-se. Ao passar pela janela, olhou para dentro e acenou-me, com um sorriso maroto. Eu sorri de volta. Minha mão pousava sobre o guardanapo de papel, como se tentasse manter um pedacinho dele junto de mim, ainda por um tempo… Talvez em vão…

Abanei a cabeça, levantei-me e saí. Era hora de voltar à vida.

***

- Pensei que não fosses ligar.

- Confesso que hesitei, mas resolvi, finalmente… e nem sei bem o que dizer.

- Convida-me para um café. Não precisas mais que isso…

Eu ri. Ele estava certo. Não havia motivo para usar nenhuma desculpa. É bom ser adulto e independente e não ter que dar contas do que se faz a ninguém.

Encontramo-nos no mesmo local da primeira vez. Ele já estava sentado à uma mesa, quando cheguei. Um largo sorriso e um aperto de mão receberam-me com algo mais que simpatia. Minha face ardia, como se estivesse com febre e eu sentia calor, apesar de estarmos no meio do inverno.  

- Vamos sair daqui e ir a algum lugar mais calmo. Eu tive uma ideia.

Ele conduziu-nos até uma praia. O mar estava calmo e o dia seco e limpo, apesar de a temperatura estar razoavelmente baixa. Saímos a caminhar pela areia, lado a lado, quase sem conversar, cada um mergulhado em seus próprios pensamentos. Às vezes parávamos para juntar uma concha, lançar uma pedra ao mar, ou observar as gaivotas voarem e as ondas a quebrar e arrastar-se até nossos pés. 

Os minutos pareceram voar. Logo o sol começou a descer e mergulhar lentamente na linha do horizonte. Ficamos lado a lado, em silêncio a sentir o ar esfriar e as cores do céu mudarem para os tons mais fortes das cores quentes.

- É bonito.

- Pois é…

Senti uma emoção estranha naquele momento, quando minha mão tocou na dele, quase acidentalmente. A praia estava deserta e quieta, ao contrário da minha mente.

- Vamos voltar? Estou com frio.

- OK. Vamos.

Já de volta, ao entrar no carro, esfreguei as mãos com energia. Havia arrefecido rapidamente, ou eu que estava com a temperatura do corpo completamente desregulada? Ou havia algo mais, por trás daquilo tudo, que minha mente sentia e que meu corpo indicava?

- Estás com esse frio todo? Queres que eu ligue o aquecimento?

- Não precisa… Logo passa…

- Ou queres que eu te ajude a aquecer de outra forma?

- Outra forma?

Ele riu novamente, com o canto da boca e a sobrancelha levantada, exibindo a mesma expressão facial que havia mostrado no dia que falou do invulgar pseudônimo que escolhera. Uma sensação estranha mexeu com meu estômago e eu esbocei um sorriso absolutamente sem graça.

- Não costumo deitar com demônios…menos, ainda, os meus...

Ele pousou a mão sobre a minha e disse, sério:

- Dormir com teus demónios é bem mais admissível do que deitar que com quem te trai a confiança...

Ele tinha razão. Levantei a cabeça e olhei-o nos olhos, quando ouvi-o continuar o pensamento.

- E algumas pessoas nem precisam vender a alma...

Suas pupilas dilataram, fixas no meu olhar. Minha garganta parecia ressecada e eu não conseguia desviar os olhos dos dele. Ele chegou mais perto. 

Eu gelei. Um arrepio correu-me pelo corpo. 

Eu parecia ter o corpo e a mente magnetizados e paralisados ou, então, talvez, completamente enfeitiçados e impedidos de reagir, contra uma espécie de poder, que emanava dele. Senti o calor de sua respiração na minha face. Fechei os olhos… e tremi de medo…


***