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terça-feira, 12 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 2)


A canoa virou, por deixá-la virar

Foi por causa da menina que não soube remar.

Se eu fosse peixinho e soubesse nadar,

Tirava um amiguinho do fundo do mar…


As crianças formavam dois círculos, um que corria por fora, com os alunos mais velhos e outro por dentro, com os menores e mais novos. O círculo do meio rompeu-se e eles começaram a dançar em fila, formando uma espiral que girava para dentro, enquanto o círculo de fora os protegia, girando em sentido contrário. 

- Eles não estão preparados para a vida lá fora! Não, com este programa ingénuo. Vão levar um choque quando mudarem de sistema…

- Eles estão preparados para a vida! Ponto final. São crianças especiais.

- Os pais tem que saber que não vai funcionar, sem algumas mudanças essenciais… 

- Esta insistência é por vingança? É por isso?

- Não mistura as coisas… claro que não é…

- Eu não quero estas crianças no teu programa insano! Não estão sendo talhadas para isso. Esqueça. Eu já te disse que não te quero por cá, com tuas ideias malucas! 

- Olhe para eles! Eles não temem nada. O instinto protecionista em relação aos mais novos que eles têm é natural neles! Basta um toquezinho no programa educacional e eles mostram que vale toda a pena investir neles. 

- Eles são crianças. Não são cobaias. Nós queremos o melhor para eles, em termos de criatividade, colaboração mútua e coragem, é claro… mas coragem no sentido mais lato… coragem para enfrentar a vida sem preconceitos e sem temer as dificuldades ou os perigos da vida.

- Exatamente! É mesmo deles que nós precisamos!

- Chega desta conversa. Não há mais discussões. O programa foi aprovado como está e não vai mudar. O conceito original é diferente das tuas intenções. Saia, agora, por favor. Já te havia dito que não te queria por aqui. 

- Isso vai mudar. Podes ter certeza. Esta conversa não está acabada.

- Está, sim. Agora, saia, por favor.

Ao ouvir meu tom de voz, mostrando impaciência e uma certa agressividade, Ginger levantou a cabeça e ficou a observar-nos, alerta para o que acontecia. Ela virou-se e saiu, sem dizer mais nada. Estava claro que uma mulher daquelas não se dava por vencida, com uma simples negativa. 

Eu fiquei ali, de pé e parado, a olhar a não bem-vinda silhueta desaparecer na distância, enquanto a luz do sol, batendo direta contra minha face, quase feria-me os olhos. Senti uma leve pressão contra a perna e curvei-me para acariciar a cabeça do animalzinho, que parecia dizer-me para ficar tranquilo, como se pudesse proteger-me de todos os males. Desejei que assim fosse, para o futuro da nossa escola e para o bem daquelas crianças.

***

Passarás, passarás

Algum dia ficarás

Se não for o da frente 

Há de ser o de trás...

Queres céu ou inferno?


- É tarde demais!

- Não diga isso! Nunca é tarde demais! 

- Eu não sou um otimista e desconfio daquele tipo de pessoas. Sabes bem disso.

- O programa pode estar ameaçado, mas não está perdido. Quem sabe possamos chegar a um consenso, com ambos os lados cedendo um pouco. Tudo é possível…

- Não neste caso. Achas que aquela louca vai ceder em alguma coisa? Ela nem começou ainda… e eu temo pelas nossas crianças. Olhe para elas. Não sabem o perigo que correm. Não temem nada. Não é justo estragar tudo, por causa daquela… 

Engoli em seco e calei-me antes de dizer um imprecativo. Estava dentro das instalações da escola, afinal, e tinha que manter a linha e respeitar os códigos de ética. Estava possesso pela raiva e precisava muito esforço para não perder, completamente, a calma. Mas minha vontade era de usar nomes muito feios ao referir-me àquela mulher.

A diretora quase riu, ao ver-me no limiar de saltar a tampa. Ela conhecia a minha história e não escondia sua crença em que o programa, que eu desenvolvera com tanto esforço e precisa técnica, tinha tudo para ser bem-sucedido, depois de passado por várias fases de desenvolvimento e defesa junto à Secretaria da Educação. O programa havia sido desenvolvido durante minha tese de doutorado e, incentivado pelo orientador, passado de uma simples ideia concebida academicamente, para um programa educacional experimental, que envolvia um novo conceito de ensino para crianças de tenra idade. 

Até aquele momento, pelo menos, havíamos provado que estávamos no caminho certo. Eu, todavia, precisava de mais tempo para colher os frutos do sucesso. Não era em mim que eu pensava, mas no futuro das crianças: os filhos que eu não tive, nem ia ter, mas que estudavam ali, sob a minha orientação e tutela direta. Eram crianças que haviam sido cuidadosamente selecionadas segundo um critério bastante rigoroso e perfeccionista. 

Minha interferência havia sido, desde o início do empreendimento, total e absorvedoramente dedicada. Desde a escolha do sítio onde iríamos construir, a criação das áreas internas e externas, o programa educacional em si, a proximidade com áreas de lazer praticamente particulares e quase não frequentadas, os projetos paralelos… tudo havia sido cuidadosamente acompanhado, para seguir o projeto à risca. Algumas mudanças foram introduzidas durante a construção do estabelecimento, mas foram para melhor, como as árvores à volta do pátio, onde as aulas de verão eram lecionadas.

À luz da minha teoria, crianças com tendências artísticas tendem a ser mais livres de preconceitos e apreciam a beleza, a arte e a estética per si, sem misturar crenças, raça, nem tendências aprendidas. O contacto com animais libera os medos e receios e torna-as mais arrojadas e dispostas, além de elevar o grau de protecionismo, altruísmo e confiança nelas mesmas e nas outras. A criatividade, sendo estimulada naturalmente, eleva os níveis de inteligência emocional e facilita a resolução de problemas, pois a mente não vê barreiras intransponíveis, mas apenas desafios que podem e devem ser ultrapassados. O imediatismo não é incentivado e as ciências exatas caminham junto com a liberdade de expressão, complementando e equilibrando os lados emocional e racional das crianças, de maneira espontânea. 

O programa tinha uma grande dose de ingenuidade, por isso era imprescindível que fosse implantado em crianças de muita tenra idade, quando a personalidade ainda estava em formação. As doses de realidade dura e crua era dada em suas próprias casas e famílias. Não tínhamos alunos internos, nem os afastávamos da vida normal, mas a escola era como uma bolha de proteção ao cotidiano. Gerar cientistas artistas era produzir o melhor do melhor, no melhor ambiente. 

Não era nem justo, nem certo, converter aquelas mentes privilegiadas em soldados de elite e estrategistas, movidos à coragem e ousadia, mas desprovidos da intenção original e da relação espontânea com as mais diversas formas de beleza e arte. Queriam transformar homens e mulheres de verdade em máquinas mortíferas, treinadas por mentes perversas, egoístas e voltadas à causas tão duvidosas. 

Eu jamais iria permitir que fizessem um mal tão grande às “minhas” crianças tão especiais.

***

Se essa rua, se essa rua fosse minha

Eu mandava, eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes

Para o meu, para o meu amor passar


- Vamos juntar pedrinhas do rio, para fazermos uma calçada?


Uma ocasião programamos um acampamento com as crianças, a acontecer num fim-de-semana de verão, quando era mais propício e menos sujeito às chuvas na região. Minhas preocupações desvaneceram por dias, durante a fase de planeamento, organização, contactos e autorizações dos pais e responsáveis, comunicações com o corpo de bombeiros e polícia local e tudo o que pudéssemos para garantir o sucesso do empreendimento. Para mudar de ares, viajamos até uma região na montanha, num parque florestal. O tempo esteve perfeito e as crianças, que falaram no acampamento por umas semanas, não cabiam em si de excitação. Íamos fazer pesquisa de campo, provar um pouco da vida ao ar livre, longe da escola e pernoitar em tendas, armadas perto de um pequeno riacho, estimulando o espírito de sobrevivência na mata e aventura, como fizeram nossos antepassados. Na viagem, num ônibus alugado, estavam todos muito excitados, mas ao chegarmos perto do local, notei um certo nervosismo e o barulho diminuiu. Estavam apreensivos, mas não conseguiam esconder a curiosidade e a excitação do novo.

A montagem do acampamento foi um sucesso, com todos muito empenhados em ajudar e dividir as tarefas. Logo ficamos cientes que eles esqueceram completamente dos apetrechos eletrónicos modernos e estavam mais interessados em saber como funcionava uma bússola, como orientar-se pela posição do sol e coisas similares. Acredito que, por ser uma coisa nova para eles, meninos e meninas da cidade, estavam todos com pressa de ver como funcionava a montagem das tendas, a organização do lanche e almoço, as atividades de pesca, os banhos numa área escolhida com cuidado, onde o rio formava uma piscina natural, sem corredeiras nem perigos, as excursões de observação dos pássaros e animaizinhos da região, a ‘siesta’ depois do almoço… Tudo fora muito bem recebido e com excitação crescente. Era diferente das idas à praia ou ao parque. Era mais selvagem e livre, por isso mesmo, mais estimulante. Observei como os alunos mais velhos mantinham o instinto protetor aos mais novos e aquilo deixou-me bastante satisfeito. Era natural neles. Um bom sinal.

À noite, sem micro-ondas e apenas com um fogão improvisado, fizemos a refeição à volta da fogueira, em assentos e mesas também improvisadas. Depois, ainda ali, sentados confortavelmente, contamos histórias sobre nossos antepassados e como eles viviam, naturalmente, naquela região, caçando, pescando, plantando, colhendo, construindo suas cabanas, que depois evoluíram para casas sofisticadas. Não demorou muito para os rostos fatigados, mas sorridentes, começarem a mostrar um visível cansaço físico. O toque de recolher foi quase um despertar e as tendas foram imediatamente invadidas e os sacos-camas preenchidos por corpinhos cansados e felizes. 

Quando o sol estava alto, na manhã seguinte, os professores e as auxiliares, que estavam acampados à volta das tendas dos miúdos, levantaram-se e tocaram o toque de despertar. Coisas banais como lavar-se, pentear-se, vestir-se e preparar-se para o pequeno-almoço, viraram uma verdadeira algazarra, mas sem nenhuma resistência. Quem iria pensar que despertar as crianças e preparar a refeição fosse ser tão divertido?

O programa da manhã era simples. Os mais novos iriam ficar mais próximos do acampamento, a brincar na piscina, enquanto os maiores iriam fazer excursão à mata, em grupos pequenos e separados. O objetivo era, durante o almoço, trocarem experiências e contarem o que viram. Como a turma era pequena, não foi difícil arranjar as equipas, que rumaram para cada um dos quatro pontos cardeais principais. 

Dois dos meninos, amigos inseparáveis, que foram para o norte, contaram que viram uma área, no topo da montanha, sendo preparada para virar uma base militar. A imaginação deles era fértil. Perguntados como eles chegaram à aquela conclusão, o menino de óculos disse que viu soldados armados a cuidar da área, facto que não foi confirmado pelo professor-monitor, mas que foi veementemente confirmado pelo amigo inseparável. Aquela não era uma área com interesse militar, pelo que nós soubéssemos. Não fazia sentido. Mesmo assim, a história gerou um grande rebuliço nos alunos, cujas mentes livres de amarras, viajavam em tempo e espaço, construindo teorias e possibilidades. 

Partimos de volta, depois do almoço, no pequeno autocarro alugado. A maioria dormiu a ‘siesta’ durante a viagem. Somente os dois amigos, ainda excitados pelo que disseram haver testemunhado, viram um jipe do exército passar na direção oposta à que íamos. O menino de óculos puxou-me o braço e disse:

- Viu como nós estávamos certos? Aquele é um jipe do exército!

Eu fiquei a olhar o carro desaparecer na distância, um pouco intrigado pelo que acabara de ver e, não só por dar asas à teoria dos dois pequenos amigos, mas por ser obrigado a concordar que algo sério podia estar a passar naquela região…


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ginger


A velha mesa redonda havia sido encerada, ficando impecavelmente limpa e luzente. A empregada fizera um bom trabalho.

O velho sentou-se a ler, concentrado, o diário matutino. De repente, um furacão arruivado passou com a velocidade da luz e arrebatou-lhe o jornal das mãos. Um estranho estrondo seguiu-se àquela confusão momentânea.

Ele olhou à volta e logo compreendeu o que acontecera. O gato pulara sobre a mesa, para cumprimentá-lo, como de costume, sem saber que aquela estava, além de polida, tremendamente escorregadia. Ainda tentou voltar atrás, mas as almofadinhas e os pelos em suas patas não o ajudaram… Ao contrário, tornaram o deslize mais fácil. O gato perdeu o controlo, tentou agarrar-se ao que havia pelo caminho, levando consigo as folhas do jornal, passou directo até a borda da mesa e caiu desajeitadamente.

Do chão, ainda meio agachado, com os olhos arregalados e uma expressão aparvalhada, ele olhava o velho, sem perceber muito bem o que acabara de acontecer. O jornal, totalmente desfolhado e meio destruído pelas unhas afiadas, jazia ao seu lado, testemunhando a confusão acontecida há poucos segundos.

O velho riu alto e acarinhou a cabeça e o dorso do animalzinho, para acalmá-lo. Ele parecia bem, apesar de ainda assustado.

O homem, então, pensou na relação – especial e de amor incondicional - que tinham. Nunca havia imaginado que um mero gato de rua, gorducho e de tamanho além do normal, traria tanta diferença em sua vida, desde que fora adoptado.

Ginger nascera em África e sempre fora livre como o vento. No mais comum dos dias, vivia no jardim a caçar insectos e pequenos pássaros, subir nas árvores e nos telhados, ou simplesmente a dormir em baixo dos arbustos.

Brincalhão, inteligente, trapalhão, carinhoso, manipulador e muito esperto - quando queria algo - o felino sabia fazer-se comunicar, de uma forma que era clara como água, para o velho.

O nome dado referia-se à bela cor ruiva de sua pelagem. Mais de treze anos haviam-se passado, desde o dia em que a falecida esposa o trouxera para casa. Quando ela partiu, deixou-os a trazer consolo, cumplicidade e companhia um ao outro.

Às vezes, ao chegar à casa, uma tristeza abatia-o e ele sentia uma vontade enorme de chorar. Então, jogava-se no sofá, exausto e consternado. O gato deitava-se sobre seu peito, olhava-o nos olhos e ficava ali, presente, enquanto o velho desabava em lágrimas...

O animalzinho era sempre tratado com cuidado, carinho e, sobretudo, com extremo amor.

Apesar de saudável, porém, o bichano já era um sénior e o homem sabia que a expectativa de vida começava a aproximar-se do limite. As variáveis podiam ser muitas e, como tudo na vida, podiam alterar os prazos.

O homem tinha ciência que ele poderia faltar-lhe, um dia qualquer, num futuro bem próximo. Sabia também que ia sofrer. Sabia ainda que o vazio, tanto na casa, quanto em sua vida, ia ser bem maior que muitos podiam suportar, mas ele tinha que ser forte.

Não ia ser fácil viver sem o seu grande companheiro, depois de tanto tempo a conviverem juntos. Mas não podia deixar de amar o animalzinho dedicada e intensamente, nem de dar-lhe, cada vez mais, o máximo de atenção que exigia. Não temia, de jeito algum, sofrer a perda, nem devia evitar a dor.

O gato era uma grande parte do que ele era. Tinha o direito a ter uma vida mais curta, sim, porque - diferentemente do seu humano – ele já tinha a sua missão praticamente cumprida: a de fazer do velho um homem melhor.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Em Vermelho e Azul


Eu conversava animadamente com Adrian, o acrobata, que havia acabado de apresentar sua performance da noite. Dizia-lhe, entusiasmada, como admirava seu show. Eu e alguns convidados estávamos, naquele momento, numa ampla sala de espectáculos, juntamente com os atletas e os promotores do grupo de circo búlgaro. Não percebi, porém, que estava exposta de maneira um tanto peculiar ao ambiente em que me encontrava. 

James me observava em silêncio, de certa distância, sem que eu desse conta de sua presença. Aproximou-se, cumprimentou o artista, elogiando sua actuação e se dirigiu a mim, como se me conhecesse, assumindo que partilhávamos interesses comuns naquele lugar. 

A princípio tentei-me desviar, para não constranger a atracção principal da noite, mas aquele jovem homem não tirava os olhos de mim e insistia em monopolizar minha atenção. Adrian percebeu logo e piscou-me o olho, em cumplicidade. Desculpei-me ao meu bem-educado interlocutor, desvencilhei-me do pequeno grupo, cautelosamente, com um leve aceno de cabeça e fui para o lado de fora, na pequena varanda que tinha vista para o mar, fingindo precisar de ar puro. 

O acrobata se entreteve com os outros convidados, mostrando sua cordialidade e gentileza e seu comprometimento com o espectáculo que havia acabado de dar. 

James seguiu-me, depois de algum tempo, para minha não total surpresa… Virei-me, ao ouvi-lo chamar meu nome e olhei-o directamente no rosto, sorrindo. Seus olhos azuis traziam uma tristeza misteriosamente profunda, como as águas de um imenso oceano. Fiquei imediatamente intrigada com aquela característica de seu olhar. 

Por sermos desconhecidos um do outro, “small talk” começou sobre o assunto comum entre nós: a apreciação pelo espectáculo de acrobacia que acabáramos de assistir e nossa admiração pelo atleta principal. 

Aparentemente não era a única coisa que tínhamos em comum, como pudemos perceber através do curso que nosso diálogo seguiu. Em poucos minutos já conversávamos animadamente como dois amigos de longa data, dada a facilidade e velocidade com que nos tornamos afins. Descobrimos que partilhávamos não somente interesses, mas também histórias similares. Dei-me conta que nossos pensamentos alinhavam-se quase automaticamente, como se fôssemos conhecidos desde há muito tempo. Ao me contar alguns detalhes de sua caminhada, percebi que aquele homem tinha um grande problema pendente com seu passado recente, que precisava resolver logo, antes que fosse demasiadamente tarde. 

Intoxicado por um relacionamento drenante, onde dava mais que recebia e que o tornava vulnerável, não parecia perceber o perigo que corria. Vendo friamente do lado de fora, eu tentei mostrar-lhe os riscos e para onde aquela relação o levaria, se ele não colocasse um ponto final o quanto antes. Já havia passado por situações semelhantes, mais que uma vez, por isso sentia-me confortável em dizer-lhe o que pensava. 

Eu sou perita em relacionamentos que não deram certo. 

Ele pareceu compreender minhas palavras e minha apreensão. Dei-lhe o que pensar, tinha certeza. Sugeri nos encontrarmos novamente, no dia seguinte, para um café. James era cultor do corpo e mente sãos e dispensava cafeína de sua dieta. Sua recusa me fez enrubescer, mas ele sorriu e disse que me acompanhava, de qualquer jeito. Não o condenei, pois há não muito atrás, eu tinha a mesma atitude com meu corpo. 

Sugeri, então, uma boa taça de vinho tinto, que se mostrou ser uma decisão mais acertada e conveniente – talvez até mais elegante. 

Ao invés do dia seguinte, acabamos por seguir nossos instintos e descer até um pequeno restaurante, não longe dali. Não vimos o tempo passar, enquanto a conversa aprofundava o conhecimento entre nós e somente fomos chamados à vida, quando o garção trouxe a conta, para poder fechar o recinto. 

Já na rua, caminhando lado a lado, perguntei-lhe sem levantar os olhos do passeio, como se fosse a coisa mais natural do mundo: 

“Onde estiveste minha vida toda?” 

“Envolvido com pessoas erradas… esperando por ti”, foi a rápida resposta dele, parando em minha frente e olhando-me fixamente nos olhos. 

Fingindo não perceber o gesto espontâneo dele, nem as prováveis intenções e sentindo meus músculos do pescoço ficarem subitamente tensos, dei uma risadinha nervosa e continuei a caminhar. Ele não se deu por vencido. 

“Eu quero te ver – completamente e por inteiro. Tu te mostras a mim, por inteiro? Por Favor...” 

“Então me prometa que o passado fica no passado.” Ele sorriu, meio sem jeito. 

O que eu lhe pedia era um grande sacrifício e ambos sabíamos disto. Seguimos meio sérios demais, a caminho de casa, evitando olharmos um para o outro, durante o resto do trajecto. 


A pouca luz que entrava no aposento não me permitia ver aqueles olhos azuis, que eu passara a admirar, tão logo os vira pela primeira vez. Sabia que ele me estudava em silêncio e tentei esconder o sorriso, achando que passaria despercebido. Ele então segurou-me a mão e sussurrou: 

“Tudo em ti é perfeito para mim... teus cabelos, teus olhos, teu nariz, tua boca... ah, tua boca… teus seios, tua barriga, tua... mmmmmm... tuas nádegas, tuas pernas... tudo, Cass.” 

Ele, ao contrário de mim, evitava usar palavrões quando falava, até mesmo quando se irritava com alguma coisa, como somente fui perceber bem mais tarde. Naquele momento, ele se referia ao cuidado que eu vinha tendo com minha aparência física, nos últimos tempos. Depois de haver perdido algum peso, me recusava a aceitar a idade que se apoderava de mim, em velocidade intolerável e desenfreada. Ele sabia e por isto mesmo costumava dizer o quanto gostava de ver meu corpo, alimentando minha vaidade, para meu deleite. 

Nos poucos dias que se seguiram, inventamos uma rotina nova, que ia evoluindo em intimidade. Muitas vezes não precisávamos falar mais que umas poucas palavras, para nos entender, preferindo usufruir o silêncio dos olhares e a nossa companhia mútua. Outras vezes falávamos sem parar, por horas, compartilhando pequenos segredos que iam nos aproximando cada vez mais


Eu chegara do trabalho e via uma mensagem recebida enquanto eu estava fora, a piscar na tela do computador. Sorri para mim mesma, pensando com meus botões, que James devia querer dizer-me algo interessante ou importante. 

A mensagem era directa, quase seca. Ao ler, fiquei sem saber o que dizer, absolutamente sem reacção... apenas com uma vontade enorme de chorar. Li e reli… uma, duas, três vezes… 

Cass... Eu tenho que me afastar daqui por uns tempos... Tenho uns amigos fora do país que sempre me convidam para visitá-los e agora é a ocasião perfeita para ir. Vou aproveitar esta oportunidade para ficar sozinho e me centrar, num ambiente diferente deste em que me encontro. Se não fosse por ti, nunca teria tido coragem suficiente para enfrentar meus medos. Eu preciso destes momentos sozinho, mais do que nunca... Te digo isto agora, para que possas ter tempo de ler e tentar entender, antes que nos falemos outra vez.” 

Desaparecer por uns tempos - mudar de ambiente, para poder aclarar sua mente… Minha razão temeu que houvesse mais coisas a ter que ficar em suspenso – por prazo indeterminado. 

Ele, afinal, havia ouvido com atenção os conselhos que lhe dera, sobre colocar um ponto final na situação que o deixava vulnerável ao extremo. Eu deveria ficar contente com aquela decisão, mas ao contrário, entristecera, por ter que deixá-lo afastar-se de mim, por um tempo que não sabia precisar. Embora já me sentisse envolvida demais, decidi manter as expectativas baixas, para evitar embarcar em uma viagem perigosa, para quem já tivera tantos dissabores. 

Era a vida repetindo seu drama continuamente. Já passara por aquilo, não somente uma, mas, pelo menos, três vezes. E em todas as vezes anteriores em que fora necessário esperar, as perdas haviam sido inevitavelmente evidentes. 

Quem volta, volta sempre diferente… e meu coração sabia quem perdia… sempre. 

Quando nos encontramos novamente, ele me disse que não fugia de mim, mas daquilo que o fazia sentir-se usado. 

"Eu não estou fugindo, nem me afastando de ti... mas eu preciso me encontrar, antes de me envolver completamente, outra vez, com alguém. Eu não quero sofrer uma recaída, nem te fazer sofrer por minha causa, por não estar totalmente preparado”. 

Eu compreendia que se não lavasse a “alma”, não poderia voltar apto para enfrentar novos desafios. A decisão que ele tomava era séria demais. Talvez tivesse sido levado a aquilo, por querer que o relacionamento desse muito certo entre nós… por me levar mais a sério que outras anteriormente. E eu não podia fazer nada para impedir… tinha mais é que incentivá-lo, ou jamais o teria plenamente livre para fazer parte de minha vida. 


Sentada na praia, observando os movimentos que o jovem homem fazia com a prancha sobre as ondas, deixei meus pensamentos deslizarem soltos, ao som continuado e repetitivo do arrastar das águas do mar sobre as areias. 

O corpo firme, sustentado pelas pernas musculosas, das quais tinha enorme orgulho, fazia manobras cuidadosas, arriscando mostrar-se quase desnecessariamente, mesmo sabendo que eu dava menos importância ao facto e mais ao elemento em si. Acenei-lhe. Sabia que fazia por querer que eu o visse melhor, não por ser naturalmente audaz, embora eu já o admirasse, fosse qual fosse a atitude. 

Não demorou muito a vir caminhando em minha direcção, ofegante, mas com um sorriso encantador me saudando desde ainda certa distância. Fincou a prancha na areia e estirou-se ao meu lado, exalando um longo suspiro, deitando de costas sobre o chão da praia. 

Eu o olhei, sem dizer nada, apenas sorrindo. Muitas vezes preferíamos dividir o silêncio, ao invés de trocar palavras sem objectivo específico. Ele olhou-me nos olhos e disse, baixinho: 

“Oh, eu me sinto tão bem”… 

Eu sabia o que ele queria dizer com aquela frase. Levantei-me e apanhei a mochila que tinha uma toalha seca, que atirei-lhe, brincando. Ele passou a mesma sobre o rosto e os cabelos, dobrou ao meio e entregou-me, em seguida. 

Levantando-se, tomou a prancha sobre o braço e começou a caminhar ao meu lado, sem dizer mais nada. Eu segui chutando a areia, na direcção do carro, sem olhar para o lado, onde ele agora caminhava assobiando uma canção conhecida. 

A caminho de casa ele me perguntou: 

“Está tudo bem?” 

Eu respondi-lhe que garantidamente me sentia muito bem, graças a ele. Ele sorriu e resmungou um “oh…”, sorrindo em seguida, como se fosse um menino que ouvira um segredo que já conhecia… dissimulando surpresa, para não estragar o momento. Soquei-lhe o braço chamando-o de bobo. Ele fingiu que doeu e gritou um “ah”, rindo alto, logo em seguida. 

“Tens fome?” 

Balancei que sim com a cabeça. 

O cd player tocava uma sequência que ambos havíamos escolhido e eu cantarolei junto com a voz ao altifalante, “did you ever know that you’re my hero? You’re everything I would like to be. I can fly higher than an eagle if you are the wind beneath my wings”… (Bette Midler - Wind beneath my wings)

Ele sorriu levemente, sem tirar os olhos da estrada. Era uma de suas canções favoritas. 


A garrafa de vinho, meio cheia sobre a mesa da cozinha, testemunhava o olhar que ele me lançava por trás da taça de cristal, enquanto saboreava seu tinto preferido. Havíamos preparado o jantar a quatro mãos, tornando uma tarefa quase banal em um exercício de cumplicidade. 

Aqueles olhos procuravam os meus, dizendo-me coisas sem falar e fazendo-me enrubescer ao pensar em indecências detectadas automaticamente pelo homem sentado à minha frente. 

O forno apitou, desviando minha atenção e a dele, para o prato que ficava pronto, enquanto Ginger entrava às pressas, esperando ganhar sua porção. 

Quase uma hora mais tarde, uma segunda garrafa havia sido aberta e já ia pela metade. Estávamos ambos sentados confortavelmente no sofá da sala, ouvindo música e acariciando as costas e cabeça do mimado felino, que ronronava alto, deleitando-se de satisfação, com tanta atenção que recebia. 

O álcool provocara um efeito relaxante em nós, colocando um pouco de cor em nossos rostos e dando-nos uma sensação de serenidade. James olhou-me nos olhos e disse, no seu tom tranquilo de voz: 

“Minha cara Cass. Estou tão feliz de estar aqui contigo. Eu me sinto tão afortunado neste momento”… 

Olhei-o com autêntica ternura, compreendendo perfeitamente ao que ele se referia e sentindo-me bem, também, como jamais havia-me sentido antes... 

O vermelho vivo do vinho e o azul profundo de seus olhos me fizeram pensar em outros tempos, quando estas duas cores mexiam com meu equilíbrio. Ele percebeu a luz de meu olhar se tornar baça e meu semblante entristecer. Sabia ler meus movimentos melhor que ninguém, apesar do pouco tempo que estávamos juntos. 

Puxou-me com delicada firmeza e me abraçou com verdadeiro carinho. Movido pela atitude espontânea daquele homem, deixei-me levar pela emoção do momento e chorei em seus braços. Ele apenas sussurrou meu nome, várias vezes, tentando me consolar: 

“Cass, Cass… minha tão doce Cassie”… 

Senti seu corpo responder ao calor do meu, fechei os olhos e abandonei-me. 

Ele pousou seus lábios no alto de minha cabeça e suspirou profundamente, enquanto me mantinha aninhada em seu abraço, como se eu fosse uma criança que teme a tempestade e se conforta na força de quem confia. Então me beijou a testa, as pálpebras, o rosto e os lábios, com gentileza, no começo, depois com ardor, quase com desespero, como se aquele fosse o último dia de nossas vidas. Agarrei-me ao desejo de ser feliz e à paixão exacerbada que se apoderou de nós, sem medo e sem preconceitos, seguindo o curso que o momento tomou, em direcção a um ponto de luz que se movia, para além da distância e do tempo, sem piedade de nós. 


E ele me amou como um grande sedutor faz. Usou todos os sentidos, sem pressa, sem medo, sem reservas. À meia-luz da sala eu apreciei todos os detalhes da beleza daquele homem, bebendo amor de sua boca, aspirando o perfume que emanava de seu corpo, ouvindo seus sussurros e seus gemidos a preencher meus ouvidos, sentindo o calor de sua pele a aquecer meu corpo, vibrando com seu toque em cada pedaço buscado em mim, causando-me arrepios de prazer, em contraste com o fervor do momento. 

Uma mulher precisa se sentir segura e amada. Faz parte da natureza feminina. 

Aquele homem sabia como fazer-me sentir admirada, respeitada e especial. Ele me amou não uma, nem duas, mas três vezes seguidas, insaciavelmente… incansavelmente. Cada vez que acabava de me amar, beijava-me com ardor e me olhava com ternura, provando-me sem parar, iniciando um novo processo de exploração que parecia não ter fim… e nem eu queria que tivesse. Meu ser inteiro respondia aos estímulos dele, como se meus sentidos quisessem mais e mais usufruir de cada detalhe do que ele me proporcionava naquela noite, madrugada a dentro. 

Eu já não pensava: eu somente sentia… tudo – intensamente - e com todos os meus sentidos, com todo meu corpo, com todo meu ser. Quando finalmente adormeci em seus braços, encaixada nele – yin e yang: as duas metades de um todo - complementando-me em meu amante, como se fosse parte essencial do que ele era, ali, naquele momento – e como se ele fosse a parte mais fundamental de mim, senti-me acolhida por um anjo, suspensa entre o céu e a terra. 


O orvalho da manhã escorria pela vidraça quando o sol riscou o horizonte com sua faixa achatada de luz colorida e desenhou sombras alongadas no chão da sala. Olhei o homem que me olhava seriamente nos olhos, enlaçando-me ainda em seu abraço confortante, segurando-me com firmeza, como se tivesse receio que eu lhe pudesse fugir. 

Então, como se trespassado pela seta perniciosa e envenenada de algum demónio determinado a nos afastar, aquele azul intransponível em seu olhar pareceu distanciar-se de mim, sem emitir som algum, à velocidade da luz. Um imenso buraco negro de silêncio estabeleceu-se, instantaneamente, entre nós. Era hora da partida…

A caminho do aeroporto, sentia um peso enorme aniquilar-me a alma. O silêncio da viagem esmagava nossos corpos - agora tensos - e sufocava as palavras que não eram proferidas. Quando ele passou pelo controle de bagagem e olhou-me, acenando discretamente, sorri um sorriso triste e acenei-lhe de volta, sabendo de antemão que, naquela despedida, ele levava todas as minhas esperanças consigo e deixava uma sensação de impotência em relação ao nosso futuro juntos. 

Ao chegar em casa, percebi que havia uma mensagem de Adrian, na caixa de entrada… Li, com cuidado e desliguei o computador, sem responder. 

Deitei-me no sofá, na penumbra da sala, onde há poucas horas partilhava meus últimos momentos junto ao homem que havia partido em busca de si mesmo. Meu coração apertou-se, temendo pelo futuro, que tornava-se uma mancha nebulosa em minha cabeça. 

Ginger aproximou-se de mim, pediu permissão - com um leve grunhido - e aninhou-se sobre meu peito a ronronar, como tantas vezes fazia, quando me via quieta demais ou percebia alguma tristeza no ar. Abracei o animalzinho e deixei as lágrimas fluírem espontaneamente face abaixo. 

Ele me olhou fixamente nos olhos e colocou a pata – delicadamente - no meu rosto, como se tentasse me consolar, diante da angústia que sentia vir de mim, em descontroladas torrentes de choro… 

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Máquina

Eu dirigia, já há horas, por uma estrada poeirenta, no meio de uma grande plantação. O sol ainda estava alto no céu e me batia no rosto, naquela tarde de Outono. A visão do vento a brincar com as folhas verdes do enorme milharal, que se estendia por quilómetros, me faziam sentir saudade de tempos de outrora, mas eu não sabia exactamente o porquê.

Depois de muitos quilómetros de estrada deserta, vi uma encruzilhada. Desacelerei e parei, procurando alguma placa, que me mostrasse onde me encontrava e quão distante poderia estar de outro destino qualquer. Não havia nenhuma indicação, nenhum sinal de trânsito à vista. Em dúvida, sempre uso a mesma táctica: virar à direita. (If right is right, left must be wrong…)

Logo à frente, avistei uma pequena propriedade. Parei e saltei do carro, para tentar obter informações. Tudo estava quieto e deserto. O vento batia na porta falsa da casa de madeira, que abria e fechava contra o batente. Entrei e vi a casa vazia, com as janelas abertas. As velhas cortinas esvoaçavam, como se dançassem, embaladas pela brisa vespertina. Meu olho captou alguma coisa em um canto e eu, instintivamente, virei-me naquela direcção.

Quase invisível, na penumbra, um par de olhos me observava. Aproximei-me com cuidado e vi que era apenas um menininho de uns seis anos - não mais que isso. Os cabelos cacheados, de um castanho muito claro, caíam-lhe pela testa, quase escondendo os olhos esverdeados, que eu via brilhar na meia-luz.

- O que fazes aqui? Estás sozinho? - Eu perguntava, com cuidado, para não assustar a criança.

Estendi-lhe a mão, num esforço meio desajeitado de mostrar que não ia machucá-lo. Ele saiu do cantinho e veio na minha direcção. Olhou-me como se desacreditasse que eu estivesse ali, na frente dele.

- Estás sozinho aqui? - Eu repetia a pergunta, tentando compreender o que se passava.

Ele ainda parecia desconfiado. Mesmo assim, concordou, com um movimento de cabeça.

- Onde estão os outros?

- Não tem mais ninguém aqui. Estão todos mortos. Eles foram pegos pela “máquina de exterminar gente”.

- Como? E por que tu não tiveste a mesma “sorte”?

Ele franziu o cenho, como se começasse a perder a paciência com minhas perguntas. Mas, uma sombra passou pela sua face. Sem responder directamente, ele olhou-me, com condescendência, estendeu um franzino braço e mostrou-me uma grande cicatriz em forma de meia lua.

Eu sorri um sorriso triste e estendi a mão, mais uma vez, tentando mostrar-lhe que podia confiar em mim. Ele aceitou a oferta, colocando a sua pequena mão na palma da minha. Foi então que olhou por cima dos meus ombros, com uma expressão de assombro estampada na face. Com um puxão, desvencilhou-se da minha mão e correu para fora, ao mesmo tempo que um som metálico cortava o ar atrás de mim. Uma fracção de segundo depois, senti uma pontada de dor atravessar meu corpo.

Passei a mão, instintivamente, no peito e pareceu-me que uma ponta muito fina de uma lâmina curva saía dali. Senti um puxão no corpo e penso ter caído de costas, em câmara lenta. Meus olhos não viram mais nada, pois uma escuridão cobriu-me a visão, quase que imediatamente.

Não sei quanto tempo passou. Ainda meio atordoado e sentindo um peso no peito, abri minhas pálpebras lentamente e vi aqueles grandes e esverdeados olhos, bem perto do meu rosto. Uma dor aguda e constante perfurava meu peito.

Com as duas mãos, levantando-o delicadamente, retirei o corpo e as patas do invulgar felino, que havia estado em cima de mim, afastando, ao mesmo tempo, uma afiada unha que me penetrava a pele. Gemi, tentando me levantar, mas tive dificuldade. Eu me sentia enfraquecido.

O gato se afastou, num flash ruivo, como se fugisse de mim ou tivesse encontrado outro ponto de interesse.

Examinando o ambiente à minha volta, percebi que ainda estava dentro da casa. A luz, que entrava pela janela, era ténue e me mostrava que já era tarde. O vento movia as cortinas, delicadamente.

Ao olhar para a porta, vi o menino a me observar, inexpressivamente, com o gato ao seu lado. Estendi o braço naquela direcção, mas ele não se moveu. Julgando que o pequeno estivesse em choque, tentei retirar o telefone do bolso da calça e discar o número da emergência.

De repente o chão começou a vibrar fortemente. Entre surpreso e apavorado, deixei o aparelho cair da minha mão. O gato pulou para fora da casa. A sonolência desapareceu de imediato dos meus olhos, que esgazeados, procuraram reciprocidade no rosto do menino. Não foi espanto que eu vi naquele olhar, porém. Foi um misto de indiferença e, para minha surpresa, um ar de divertimento.

Dizem que as grandes verdades nos atingem, frontalmente, no final. Foi então que compreendi, segundos antes do golpe definitivo e fatal. O quase imperceptível sorrisinho de satisfação, na face angelical dele, revelou-me tudo, sem que precisasse dizer nada…


Na sala dos arquivos telefónicos do número da Emergência, os especialistas ouviam, com cuidado, a gravação incomum. O ruído metálico - como de uma estranha máquina - antecedia um grito abafado de dor, seguido de longos minutos de um silêncio profundamente sufocante. O técnico já ia desistindo de obter mais alguma coisa, quando ouviu, ao fundo, um outro som, mais assustador ainda: aquilo teria sido uma gargalhada de criança, seguida de um - “vem, Ginger” - e de um miado curto?

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Pandemónio (na casa de descanso) - Epílogo

- …E não poderia ter revelado isto antes? Me desculpe a impaciência, mas é-nos absolutamente necessário ter ciência das condições médicas das pessoas que entram por aquela porta e aqui vivem. Como é que isso passou, sem que tomássemos conhecimento? Isto é inadmissível. É muito grave.

A directora se sentia cansada e preocupada ao mesmo tempo.

- Ele diz que consegue perceber quando uma crise se aproxima e se prepara. É quase como entrar em depressão. Isolar-se é uma forma de defesa. Se sentir que não há necessidade de incomodar ninguém, prefere ficar à margem, até a crise passar. Afinal, a medicação deveria ajudar a retardar a evolução da doença.

A enfermeira-chefe sabia que não era bem assim. Repetia o que ele lhe havia dito, mas não concordava com o discurso. A medicação não impedia a evolução da doença. Era preciso mais que o isolamento e o remédio, para retardar o progresso. Ele necessitava de um acompanhamento mais de perto. Ela sabia que o facto de exercitar, bastante, o cérebro era um bom sinal. Ele desenhava, pintava, escrevia, lia e ainda tinha as cartas de tarot e o computador… Não se sentia nenhum inútil e não era um covarde. E até que enfrentava a condição com muita coragem e cabeça fria. Mas isso não era suficiente. Ela tinha uma influência sobre ele e tinha que se aproveitar desta. Precisava mantê-lo sob constante vigilância, tentando, entretanto, não ser invasiva à rotina dele.

A directora, por seu lado, tratou de fazer suas pesquisas acerca do historial da doença, com o médico que assinara o diagnóstico e que havia sido emitido mais de dois anos atrás. O médico – o mesmo e único homem, que um dia visitara, incógnito, o velho, na Casa de Descanso - confirmara que não havia sido consultado desde então. Se o paciente tomasse a medicação e tivesse acompanhamento adequado, a doença poderia evoluir mais vagarosamente. Era necessário fazer uma reavaliação, com toda certeza.

O velho passava boa parte do dia observando, distraidamente, o movimento no portão de entrada. Sentava-se no habitual banco de madeira, em baixo da árvore no pátio, com o gato a lhe fazer companhia. Nestes últimos dias, parecia normal, embora um pouco mais introvertido que de costume. Parecia que se preocupava em não deixar a enfermeira-chefe mais aflita que já estava. Prometera a ela que se cuidaria melhor. Ele se deixava levar, por gostar dela mais que conseguia controlar e por tentar prolongar aquela atenção por tanto tempo quanto possível. Quanto mais lúcido estivesse, mais desfrutaria da companhia dela. E ele sabia que seu tempo começava a ficar curto.

A enfermeira-chefe se perguntava como a relação com o gato não era afectada pelas crises do velho homem. Que estranha conexão havia entre eles, que nem a doença conseguia enfraquecer? Enquanto o bichano estivesse por perto, ela se sentia segura e, tinha certeza, ele também.


O velho abriu a janela, para deixar circular um pouco de ar dentro do aposento. Quando abriu a porta, não havia ninguém do lado de fora, no corredor. Ginger, o gato, se espreguiçou e se preparou para sair da cama, acompanhando o velho companheiro, que estivera se aperaltando por quase uma hora. O velho, porém, lhe diz:

- Hoje não, meu amigo. Hoje, eu vou sozinho.

O homem havia se vestido como se fosse sair para um passeio. Ele havia arrumado o quarto com esmero, deixara a caixa de areia devidamente limpa e trocara a água e a comida do gato. Com um olhar crítico, dá uma última avaliada no quarto e faz um carinho no animalzinho, que ronrona de satisfação, olha-o, sereno, como se compreendesse e se aninha sobre o travesseiro, apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras, cruzadas. O homem sai, então, sem trancar a porta do pequeno apartamento.

O sol já ia alto no céu de Primavera, quando ele caminhou, corredor afora, na direcção da porta da varanda, que recebia uma brisa suavemente fresca, àquela hora da manhã. As pessoas estavam ocupadas, tomando o lanche da manhã e não perceberam quando ele passou pela porta de saída e atravessou, tranquilamente, o pátio. O homem cruzou o portão, cujo movimento havia observado, por semanas, virou à esquerda e saiu pela calçada afora a assobiar uma velha canção conhecida sua.

“And it was cold and it rained so I felt like an actor
And I thought of Ma and I wanted to get back there
Your face, your race, the way that you talk
I kiss you, you're beautiful, I want you to walk”…*



Poucos minutos depois, a enfermeira-chefe entra e vê, somente, o gato deitado. As orelhas do bichinho se movem, levemente, na direcção do ruído que ela faz. A mulher sorri e balança a cabeça, como se desaprovando aquela organização no quarto do velho. Ela percebeu que um único detalhe conspurcava a cuidadosa arrumação: dentro da lixeira jazia um pedacinho de papel, amarelado pelo tempo e dobrado em dois. Ela apanha-o, desdobra-o e lê a curta mensagem. Uma letra miúda e rebuscada mostra um endereço electrónico. Não é a caligrafia do velho, ela reconhece.

Ela sai, vai à saleta dos computadores e envia uma breve mensagem, por e-mail, ao endereço escrito no papel. Levanta-se, arruma a cadeira e sai. Já ia à porta, quando ouviu o computador dar alerta de mensagem chegando. Volta-se e lê: “o provedor não conseguiu encontrar o destinatário”…

- Algo não está certo. Seria somente uma lembrança, guardada com carinho? E se fosse…

A mulher conecta, então, o Messenger, digita o mesmo endereço escrito no papel e envia uma mensagem. Era um tiro no escuro, mas poderia dar resultado… Ela ouve o som de vozes se aproximando e sai da saleta, para não ter que dar explicações a ninguém.

Já no quarto, seus olhos pousam sobre um livro, cujo autor ela desconhecia e que havia sido deixado em cima de sua escrivaninha. Sobre o mesmo, havia um envelope fechado, com o nome dela, desenhado com esmero, como se fosse um exercício num caderno de caligrafia, com a letra cuidadosa do velho. Ligeiramente apreensiva, ela abre o envelope e retira uma pequena mensagem escrita, quase em código."Use a intuição e não tenha medo do desconhecido. As respostas estão lá: basta concentrar-te." Ela franze o cenho, mas compreende o que ele queria dizer.

A mulher abre uma gaveta, fechada à chave e de lá retira uma pequena caixa azul. Dentro da mesma, envolvido num pano quadrado de cetim roxo, está o deck de tarot – o presente dado pelo velho amigo. Ela vinha se esmerando no estudo da leitura das cartas, mais para agradá-lo, que para seu próprio proveito. A curiosidade queria controlar suas atitudes, mas ela tinha receio do que pudesse encontrar, quando começasse a descobrir coisas, para as quais não estivesse preparada. Era como se entrasse no oceano, mas tivesse medo de nadar. E ela não conhecia a profundidade daquelas águas.

Antes de continuar seu pequeno ritual, volta-se e tranca a porta atrás de si. Ela abre o pano em cima da escrivaninha e escolhe, no maço, uma carta para ser o “Significador”, perguntando-se se o velho seria representado pelo Ermitão – um homem solitário, sábio e prudente – ou pelo Imperador – um grande guerreiro, na hora da parada, protegendo os seus bens. Por fim, decide pelo Rei de Paus, por ser um homem mais velho e um Senhor do Ar: um grande mestre – que é como ela o via.

Em seguida, coloca a carta escolhida no centro e embaralha as outras, sete vezes, com cuidado. Parte em três, recolhe a partir do monte à direita, depois o da esquerda e, por fim, o do centro. Uma a uma, as cartas começam a deixá-la desconfortável. Por cima do significador veio a carta chamada Morte: a grande mudança. Esta era uma carta que as pessoas interpretavam muito mal. Talvez pelo nome, disse-lhe, certa vez, o velho. As pessoas têm medo da morte e temem esta lâmina, mas ela é positiva. Tem uma outra que parece menos malévola e é muito mais nefasta…

As cartas foram se sucedendo e seu coração apertando a cada interpretação. Dois de paus, na posição do futuro próximo: viagem curta; encontro com o mestre. A combinação da sequência final, porém, pareceu densa demais: o Enforcado, o Louco e a Torre: o fim de um sacrifício, a incerteza e a destruição… Ela nunca soubera interpretar direito a carta do Louco. Seria incerteza, ou um passo contra o desconhecido?

Pousou os olhos sobre a última lâmina: a Torre – a única carta realmente negativa de todo o deck – mais nefasta que a da Morte. Enquanto esta última significava apenas uma grande e radical mudança, a Torre significava a destruição... ou algo pior…

Foi então que ela entendeu… Levantou-se depressa e saiu para o corredor. Lá fora, as mulheres e também os homens estavam em polvorosa outra vez, falando todos ao mesmo tempo. As vozes, cada vez mais estridentes, pareciam aumentar à medida que ela se aproximava do centro do furacão acontecendo na sala principal, com a determinação de alguém que enfrenta uma tempestade. Do outro lado, perto da porta da saleta dos computadores, o olhar da directora, exasperado, lhe dizia tudo, sem que uma palavra proferisse.

No meio da confusão, ela soube. Duas lágrimas saltaram, sem cerimónia, de seus olhos azuis… O velho transformara a casa de descanso em pandemónio, mais uma vez…


No quarto, o gato, deitado no costumeiro lugar, fecha os olhos, tranquilo… Poucos minutos depois, dorme o sono dos justos. Instintivamente, se encolhe e vira a cabeça, deixando a parte de baixo virada para cima, como tantas vezes fazia – o que divertia o velho – quando quase pedia um carinho e uma coçada no queixo e pescoço…


A directora ouviu o som característico, conhecido, a vir do computador, na saleta. Aproximou-se e viu a mensagem a piscar na tela do computador. Com um click sobre a tela, abriu o Messenger e recebeu uma mensagem: olá, meu amado amigo… Já estava com saudades…

No canto superior, viu a foto de uma mulher, aparentando uns cinquenta e tantos anos, cujos olhos azuis ela reconheceu imediatamente. Intrigada, leu o nome que o destinatário usava. O mesmo sobrenome da enfermeira-chefe…

* Excerpt from (Five Years - David Bowie - 1972)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Pandemônio (na casa de descanso) - Parte 7

O velho vinha ficando cada vez mais anti-social. De vez em quando se isolava e se trancava no quarto, por períodos cada vez mais longos. Dizia que precisava deste isolamento, para colocar suas ideias em ordem. Ela desconfiava que havia algo além daquela boa intenção.

Ao retiro do quarto, era acompanhado somente pelo gato, que mantinha a cumplicidade, sem restrições, sem cobranças, sem se alterar, mas sempre atento aos movimentos do velho companheiro. Havia, entre eles, uma troca incondicional, com a qual o velho aprendera a lidar, tendo em vista a longa jornada que vinham fazendo juntos, entre momentos de alegria e outros de pura angústia. O ruivo felino era companheiro para todas as horas, para todos os momentos de lucidez ou de loucura do homem.


Outra noite avançava lentamente, num dia quente de verão e o silêncio ia tomando conta do lugar. Na saleta, perto da entrada, uma luz ainda estava acesa. O quase inaudível barulho das teclas sendo marteladas, suavemente, chamou a atenção da enfermeira-chefe. Ela sabia quem poderia estar àquela hora no computador. Pensou em se aproximar, mas a sua coerência e o respeito que tinha pelo velho amigo, a impediram de interferir. Ela sentou-se na sala de estar, próxima à entrada, aproveitando a leve brisa que entrava pela porta entreaberta da varanda e um dos poucos momentos de paz de que podia usufruir. A luz do poste iluminava sua silhueta, marcando os contornos do rosto e as linhas delicadas do pescoço e colo, a curva do braço e as ainda belas e torneadas pernas, cruzadas languidamente, sobre a poltrona desbotada. Sua tarefa do dia estava praticamente concluída e ela precisava descansar. Mas ficar ali, ouvindo o toque suave das teclas na sala ao lado, causavam uma certa sonolência e sua mente já divagava por outros lugares e outros tempos.

Ela lembrou do dia em que o velho entrou por aquela porta pela primeira vez. Trazia nas mãos uma pequena mala com roupas e a caixa de transporte do gato. O felino era uma figura à parte. Grande e gorducho, com idade avançada, ainda era bastante inteligente e ágil, dentro do possível, sendo a âncora do velho, para todos os momentos. Sabia o momento certo de se manifestar e o momento certo de, somente, observar. O velho tinha uma consideração e uma afeição sem limites pelo animal que o acompanhava. Eram dois solitários que se compreendiam e se respeitavam mutuamente.

A mulher lembrou das negociações do homem com a directora e como ela se divertiu ao ver a matrona se curvar diante da oferta generosa do velho, com uma condição que ela se arrependera depois de ter tomado. Apesar do período conturbado que se seguiu e que piorava a cada dia, ela ainda conseguia dar boas risadas. Tinha que se esquivar, politicamente, das investidas da directora, do veneno das mulheres mais velhas e até dos comentários das outras enfermeiras, que lhe diziam que era ainda jovem para se enclausurar na casa de repouso e esquecer sua vida social.

Como diria, sabiamente, Colleen McCullough, ela havia se deixado seduzir pela mais indecente das obsessões: o trabalho. Ela sabia que era bem mais profundo que isso, mas preferia não deixar transparecer suas frustrações em relação aos relacionamentos não profícuos que havia tido no passado. Ao invés de continuar tentando, preferia se dedicar exclusivamente à sua vida profissional. O resto, pensava, era secundário. Ela sabia que não estava totalmente certa, mas não estava completamente errada. Evitava sofrer, na melhor das hipóteses.

O som das teclas já havia parado e ela só percebeu que não estava mais sozinha na sala, quando o homem atrás de si fingiu limpar a garganta com um hum-hum audível. Ela se voltou, tentando não parecer embaraçada pela situação e olhou o homem de pé, a lhe observar na penumbra da sala. Não sabia há quanto tempo ele estava ali, quieto, enquanto ela viajava nos pensamentos e lembranças, tentando se convencer que havia tomado todas as decisões correctas em sua vida.

Ele a olhava com um olhar especial, dedicado somente à ela. Ela parecia ser um dos poucos elos que ele ainda tinha com a sanidade. Aquele par de olhos azuis, com a profundidade do mar e aquele ar desprotegido, como se vida esperasse por ela para continuar, fazia os seus dias mais brilhantes, mais suportáveis... Ele fazia de tudo para estender o tempo em que ela ficava à sua disposição. Ela era uma companhia agradável, que ele apreciava ao extremo. Além do mais, representava a lembrança de um passado, que não era dela, mas que ele prezava - do tempo em que julgou ser feliz.

- É tarde. Melhor ir se deitar, antes que a directora venha fazer alguma ronda e comece a fazer perguntas.

Ela dizia o que lhe vinha à cabeça, pois queria evitar qualquer confronto. Sabia, porém, que o velho não iria dizer nada, pois também não queria conversar sobre o que estava fazendo no computador àquela hora.

- Um chá gelado ia bem, com este calor. Será que há algum na cozinha?

Ele era mestre em iniciar aquelas conversas sem objectivo, para deixá-la à vontade, exprimindo uma conivência descomprometida, demonstrando que respeitava o silêncio dela, desde que o seu também o fosse. Ela sabia que aquela era a deixa para saírem dali, ir à cozinha e falar de amenidades, permitindo que o embaraço do momento passasse completamente. Sabia que, logo, estariam dando risadas, comentando os acontecimentos da casa de descanso e as aprontadas dele e de Ginger, o gato malhado, que no momento descansava no sofá da sala.


Horas depois de amanhecer, no dia seguinte, uma das mulheres notou que a porta do quarto ao fim do corredor não havia sido aberta. Curiosa que era, foi até o lado de fora e verificou que a janela também estava fechada, apesar do calor e do dia já ir adiantado. Era quase hora do almoço e o homem não havia sentado à mesa para fazer as primeiras refeições do dia. Alertada para o fato, a enfermeira-chefe, ao comando da directora, bateu à porta do quarto. Preocupada por não obter nenhuma reacção, nem resposta, usou a chave mestra e entrou no quarto. Na penumbra, viu que o homem ainda estava na cama. Ela desconfiou que algo estivesse errado. Com cautela, acendeu a luz.

O homem que jazia na cama não era, definitivamente, o mesmo da noite anterior, que tomava chá gelado na cozinha e dava risadas com ela, lembrando da gritaria das mulheres, quando o gato trazia seus "presentes" e os depositava aos pés do pessoal, na sala de jantar. O animalzinho, por sua vez, estava sentado aos pés da cama, cuidando do amigo, atento a todos os movimentos da mulher que havia entrado e do homem que jazia na cama, como se olhasse algo muito distante dali. Ele parecia desfigurado, desconfiado, deslocado... Aparentava não ter muita noção de onde se encontrava.

A mulher olhou o velho com compaixão e preocupação. Era como se ela visse, através dos olhos dele, toda a tristeza e o vazio da vida. Ela não sabia quase nada dele, reconhecia. O homem era um mistério não desvendado; uma equação a resolver. E ela não tinha dados suficientes para o cálculo das incógnitas.

A enfermeira-chefe já havia suspeitado que o velho apresentava alguns sintomas estranhos, mas nunca havia realmente ficado naquele estado anteriormente. Aproximou-se com cuidado, segurou a mão dele na sua e perguntou se ele estava bem. Ele a olhou, com um misto de confusão e impaciência. Ela foi até a escrivaninha, abriu a gaveta, para procurar algum medicamento, que ele pudesse estar tomando. Ao abrir a gaveta, viu o papel dobrado, com o timbre conhecido. Parecia estar ali há muito tempo, pois já começava a amarelar. Sem hesitar, ela pegou a folha de papel dobrada ao meio, abriu e leu o documento. Era o resultado de uma consulta a um especialista. No final da folha, escrito em caligrafia quase ilegível de médico, o diagnóstico: princípio de Alzheimer. Medicação: Memantina.

Ela procurou algum frasco de remédio, mas não encontrou naquela gaveta. Procurou no armário do banheiro, mas não havia nada.

Sem pensar em muitas opções, foi até a farmácia, pegou um sedativo e trouxe ao quarto. Era o mínimo que podia fazer. Ainda intrigada, olhou à sua volta. Pensou em procurar na mesinha de cabeceira. Havia um livro escrito por um autor desconhecido e um Novo Testamento. Quando ia fechar a gaveta, notou que o livro não ia até o fundo da mesma. Passou a mão por trás do livro e puxou um frasco pequeno de comprimidos, com o mesmo símbolo do papel timbrado, estampado no rótulo. Leu rapidamente as indicações e deu um comprimido ao velho, com um pouco de água, na qual havia colocado o sedativo.

Apesar de não demonstrar conhecê-la, o homem tomou, obediente, o medicamento que ela ofereceu. Fechou os olhos lentamente e deu um longo suspiro. Parecia cansado demais para lutar. Fechou os olhos, lentamente, sem dizer nenhuma palavra e se entregou ao sono.

Ao olhar o homem adormecido, a enfermeira se perguntava como deixara passar, despercebida, uma evidência tão clara. Devia prestar mais atenção ao paciente, pois agora o comportamento do velho parecia fazer sentido.

- Por que razão ele havia escondido esta condição por tanto tempo? - perguntava-se ela.

Aquela loucura tinha nome - e era terrível. Ela percebeu que o carinho que sentia pelo homem se transformava em compaixão. Seus olhos encheram-se de lágrimas, que ela não lutou para conter. Mergulhou o rosto nas duas mãos e chorou de tristeza, pelo amigo ali deitado, à sua frente, com o gato, sempre atento, sentado aos seus pés.

Minutos depois, já praticamente recomposta, a enfermeira-chefe saía silenciosamente do quarto, e se dirigia ao gabinete da directora, com a folha de papel dobrada no bolso do uniforme.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 6

Sempre que ouvia gritaria no corredor, a directora sabia que o velho havia aprontado alguma nova estripulia. Mas ela jamais iria se acostumar a ouvir a gritaria geral das mulheres e a correria pelo corredor afora. A enfermeira-chefe, alheia aos gritinhos nervosos das damas, divertia-se secretamente, pois de outra forma o tédio era mais comum que as aprontadas do velho e do gato. Vez ou outra, porém, a casa de descanso virava um pandemónio.


A velha mulher estava sentada, de costas para a porta, quando viu a grande nuvem de fumaça sair pela porta do quarto, ao fundo do corredor lateral. Imediatamente começou a gritar:

- Fogo! Fogo! O velho louco colocou fogo no quarto!!!

A correria começou. A directora, de dentro do seu gabinete, já imaginava o que - e quem - poderia estar causando o tumulto.

- O que foi que este homem aprontou agora, meu Deus? Será que não posso ter uma semana de paz, nesse… nesse… nesse manicómio?

Ela custava a encontrar a palavra certa, para definir o que o velho havia transformado a casa de descanso, desde que chegara, há dois anos. E sentia que ele vinha piorando, a cada dia que passava. Abriu a porta do gabinete e se dirigiu para o salão central, onde já encontrou a enfermeira-chefe, com o extintor de incêndio em mãos, se dirigindo a passos apressados pelo corredor a dentro.

Pronta para disparar a carga de pó químico contra o fogo, a mulher quase não conseguiu conter o riso, quando viu o velho sair, do meio da fumaceira, com uma máscara cirúrgica cobrindo o nariz e a boca. Este era um daqueles dias em que a coerência e a sobriedade do velho pareciam desaparecer por completo. Ela bem que poderia ter desconfiado, quando ele pedira a máscara a ela, uma noite, depois do jantar, sem dizer para quê precisava de uma. Pelo menos estava explicado os estranhos sons de murmúrios repetidos, como cântico, que o velho fazia lá dentro, poucos minutos antes. O velho disse que resolvera defumar o quarto, alegando que precisava purificar o ambiente.

O gato, que havia estado do lado de fora e arranhava a porta, ao receber a grande nuvem de fumaça contra a cara, não se atreveu a entrar. Ao invés disso, saiu atrás do velho, pelo corredor afora.

A enfermeira-chefe olhou para as outras mulheres, desvencilhou-se do equipamento que trazia nas mãos e entrou no quarto, a fim de abrir as janelas e ver se não havia nenhuma avaria deixada pelo homem, que tantas vezes lhe havia ensinado pequenos detalhes de como viver uma vida simples e colorida. Ela notava que ele começava a mostrar sinais de alheamento ou isolamento com mais frequência. Teve medo que houvesse mais coisa escondida, por trás destas atitudes.

Excepto pela fumaça e a quantidade de restos de palitos de incenso caídos num recipiente em cima da escrivaninha, não parecia haver nada mais a queimar no quarto. A mulher vasculhou todos os cantos, mas a única evidência de algo mais, era um pedaço de papel chamuscado, que jazia dentro da lixeira. Ao passar os olhos, lembrou de já haver visto aquele timbre, no alto da folha de papel, quase completamente queimada. O símbolo era de uma clínica de medicina.

- O que será que ele está tentando esconder aqui? Isto parece mais uma tentativa de acobertar uma evidência, que uma defumada no ambiente.

A enfermeira-chefe pensou que havia visto aquele papel anteriormente. Precisava prestar mais atenção aos pequenos detalhes, deixados à vista - talvez propositadamente - quando viesse visitar o homem, mais tarde…


Mais tarde, no pátio, os residentes passeavam ao sol e liam ou jogavam damas e xadrez nas mesas colocadas por baixo do grande flamboyant. O sol era sempre bem-vindo pelos “seniors”, pois lhes dava a liberdade de transitar livremente do lado de fora. O gato brincava do lado de fora, no canteiro de flores, perseguindo as borboletas e os pequenos pássaros que iam e vinham, como se a provocar o velho felino. O velho lia um livro, sentado num banco, a um canto, protegido do sol. Tudo parecia sob controle.

Mesmo assim, as enfermeiras passavam e verificavam os senhores e senhoras, ocupados em seus afazeres simples. Elas, na verdade, iam ver se algum deles – e um, em especial - não estava aprontando alguma. Quando todos estavam no pátio, as coisas ficavam mais calmas e controladas.

Quando todos estavam presentes na casa, é que as aprontadas do velho aconteciam. Em semanadas frias ou chuvosas, sempre acontecia alguma aparição inusitada. Ele parecia se divertir ao ver a mulherada em polvorosa. Uma vez, comprou um ratinho branco e soltou no corredor, para ver a reacção do gato. A reacção foi pior das mulheres que do gato, que se divertia a valer, em caçada ao pequeno roedor, enquanto as mulheres gritavam e corriam pelos corredores, ou subiam sobre as poltronas da sala de visitas.

Outra vez, o gato encontrou um pequeno lagarto no jardim e o trouxe para dentro, depositando-o aos pés do velho, na hora da refeição. Nova gritaria, quando o lagarto deu por si e saiu correndo, com o gato em perseguição desgovernada entre os pés dos comensais no salão principal.

As enfermeiras mais jovens já haviam se acostumado a estes acontecimentos, severamente condenados pela directora, mas tolerados por elas, já que eram inofensivos e as divertiam, quebrando a monotonia da casa de descanso.

Quando era acusado de colocar em risco o sossego e saúde dos outros residentes, o velho respondia com um sorrisinho de canto de boca, ou uma larga gargalhada, mas nunca com uma explicação.


Da janela do quarto, o velho observava o portão principal. O porteiro era metódico nos horários e não abandonava o posto facilmente. Todas as entradas e saídas eram devidamente registradas, de modo que a direcção soubesse, sempre, quem saía e quem entrava no recinto. Em todo o tempo em que se encontrava na casa de descanso, ele havia recebido uma única visita. Um homem havia vindo, há algum tempo atrás, conversar com ele e não ficou mais que uma hora em reunião privada.

Devido a avançada idade da maioria, as saídas para fora do recinto eram somente autorizadas se fossem acompanhadas, por isso o grupo sabia que, uma vez por semana, às quintas-feiras, uma van os levava ao centro da cidade, ao shopping center, ao cinema, ou a algum outro lugar previamente combinado. O velho não costumava acompanhar os outros nestas viagens. Preferia ficar ocupado com seus hobbies e com o acesso quase livre ao computador, por um tempo mais longo.


Nestas ocasiões, em que a casa de descanso ficava mais calma, o velho aproveitava e passava a tarde inteira trancado no quarto ou na sala do computador. Foi numa destas tardes, que a enfermeira viu, “en passant”, o que aparecia na tela do computador. Ela, que achava que o velho apenas se divertia lendo ou pesquisando alguma coisa na internet, ficou surpresa ao ver que estava em “conversa” no Messenger.

Ela parou, intrigada, à porta, mas logo foi notada pelo homem, que desligou imediatamente e saiu da saleta, sem dizer uma palavra, nem olhar directamente à ela. Pigarreou ao passar pela porta e assobiou uma canção conhecida sua.

A enfermeira ficou ali, parada, a olhar a tela vazia do computador, imaginando quem poderia ser o contacto do velho, com o mundo lá fora…

sábado, 5 de dezembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 5

As luzes da sala de espera, próxima ao portão 22, focavam apenas uma única pessoa, ou assim parecia ao homem, que sentado, lia um jornal. Aqueles olhos azuis fingiram não ver o seu olhar cruzar a sala momentaneamente, mas tornaram a observar o homem, assim que este voltara a baixar a cabeça.

Já na fileira de quatro lugares, no meio de um voo lotado, o homem observava as pessoas passarem e se acomodarem, algumas em silêncio, outras em verdadeira balbúrdia, sorrindo e conversando alto. Imediatamente colocou os fones nos ouvidos, para isolar-se do alvoroço geral. Logo o avião estaria no ar, o tumulto mais controlado e ele poderia fechar os olhos e fingir estar dormindo, para não ser perturbado.

Olhares iam-se, indiferentes, procurando o assento certo. Um rapaz sentara-se na poltrona da ponta, deixando um lugar vago entre eles. O homem desejou que o lugar ficasse vago até o destino. Foi quando ele viu aqueles olhos novamente. As luzes pareceram apagar, outra vez, excepto por aquela sobre a cabeça bem desenhada da mulher parada, a olhar o lugar vago a seu lado, com uma expressão divertida.

- Sente-se aqui. Sente-se aqui - desejava ele, em silêncio e com veemência, tentando não parecer desesperado demais, pela expressão de sua face.

Aquele olhar pousou sobre ele e a mulher pediu licença ao rapaz sentado próximo ao corredor. O homem sentiu seu coração dar um salto.

- Com licença…

Ele ouvia a frase repetida, mas era consigo que ela falava agora. O homem quase não acreditava na sua sorte. Não lembra como começaram a conversar. Só lembra que a noite foi curta demais. Não pararam de falar a noite toda. Nunca um voo pareceu tão rápido. Poucos minutos antes da saída, ele ouviu:

- Você tem endereço de Messenger? (Quem não tinha?) Escreva aqui, por favor.

Ele escreveu, com cuidado, caprichando na caligrafia para não deixar dúvidas na sequência de letras. Num pedacinho do mesmo papel, rasgado em rectângulo, numa caligrafia miúda e rebuscada, recebeu o endereço dela. Mesmo que nunca mais se vissem ou se comunicassem, aquela era uma prova que ele não imaginara aquela viagem tão incomum. Tiveram que se separar, pois cada um tinha um destino diferente. Ele ficava, ela partia para um próximo destino. O voo de conexão já estava em vias de embarque.

Se despediram às pressas, sem aperto de mão, sem nada mais que um simples adeus, meio gritado, com um rápido olhar por sobre os ombros, enquanto os passos apressados sumiam à distância. O homem apalpou o pedacinho de papel, dobrado em dois, no bolso, com uma afeição que há muito não sentia.

Ao sair pela porta giratória, o mundo pareceu bater-lhe de frente, à face, com a frieza do ar de inverno e da realidade, vindos, sem piedade, do lado de fora…


O velho olha o gato deitado, a lhe observar com atenção, mas sem se mostrar ansioso a sair do conforto da almofada, sobre a qual se encontrava a descansar. Ele coça o pescoço do amigo, que lhe retorna o carinho com um ronronar de satisfação. Olha, com uma pontinha de tristeza, para a caixa em cima da escrivaninha e pensa que e enfermeira-chefe não voltaria a buscar o presente que ele havia-lhe oferecido.

Ele se adianta e abre a pequena caixa de madeira, retirando dela um objecto embrulhado, cuidadosamente, em um pano de cetim roxo. Dele, desenrola um deck de cartas, marcadas pelo uso. Ele estende o pano sobre a escrivaninha e embaralha as cartas, distraidamente, várias vezes. Neste momento, a porta se abre e ela entra.

- Desculpe por não vir antes. Não foi de propósito… muita coisa para fazer…

O gato espreguiça-se sobre a almofada, enquanto o velho se volta, com o deck de cartas na mão. Ela desculpava-se, por educação, mas ele já havia-se esquecido porque tinha estado triste. Ela tinha o efeito de lhe curar as dores da alma, pela simples presença, que ele estimava tanto.

- Sente-se aqui – disse-lhe ele, apontando para a cadeira à escrivaninha. Vou-te ensinar a jogar estas cartas. Gostaria que aceitasses o presente e as lições…

Ele buscou um livro num armário e o colocou sobre a mesa.

- Em caso de dúvidas, nunca tenha medo de consultar o manual…

Ele dizia aquilo com uma naturalidade e tranquilidade, que ela admirava. O homem ensinou-lhe a embaralhar e dispor as cartas no jogo e pediu-lhe para puxar uma carta do meio do monte disposto em leque aberto, colocado no centro do pano estendido na escrivaninha.

Ela puxa uma carta, franze o cenho e olha para o velho. Uma sombra passa à luz dos seus olhos. Ela tenta não se afectar, mas já havia sentido o efeito que a representação de um esqueleto com uma foice na mão provocara em sua percepção. A figura não causou tanto desconforto, quanto o nome da lâmina representada. Com a mão trémula, ela hesita em continuar e solta a carta sobre a escrivaninha.

- Desculpe. Eu não consigo fazer isso. Tenho medo do que possa ver. Essas coisas me assustam.

Ele percebeu que ela falava com sinceridade. Olhou com complacência para a mulher, que se transformara numa menina amedrontada, recolheu a carta e disse, devagar e firmemente:

- Assim como muitas atitudes e pessoas, esta carta é mal compreendida. Apesar do nome, no tarot, esta carta significa uma grande mudança. É preciso deixar umas coisas para trás, abandonar certos hábitos, para que outros nasçam. Mas deve-se estar preparado para esta transformação. É como se fosse a alegoria da Fénix: das cinzas de uma, nasce a outra, rejuvenescida e pronta para enfrentar novas e radicais mudanças. Não tenha medo. Esta carta é muito positiva!

Ela olhou-o, com cuidado, tentando estudar suas expressões, tentando ver se ele falava a verdade. Ele parecia de um mestre, paciente e sábio, tentando mostrar a verdade à sua pupila. O músculo de sua testa, entre os olhos, relaxou um pouco. O velho, então, sorriu.

- Sabendo usar as cartas, te deu alguma vantagem? Foi mais fácil viver, sabendo que podias contar com um conhecimento que nem todos possuem? Pode-se achar a felicidade, procurando nas cartas?

Ela agora parecia uma menina curiosa e ávida por respostas, que ele não havia se acostumado a dar, em todo o curso da vida. Mas ele sabia que se não fosse a ela, jamais se abriria novamente. A mulher fingiu que não percebeu que ultrapassava uma linha limítrofe entre o respeito e a intimidade. O gato semi-cerrou os olhos e levantou as orelhas, observador que era e conhecedor dos hábitos do velho.

- As coisas não funcionam assim tão fáceis. Não se tem vantagem por saber ler as cartas. Eu usei pouco este conhecimento em meu favor. Minha intenção era compreender certos mistérios e não ser completamente surpreendido em algumas ocasiões. Mas eu também ajudei outras pessoas… não muitas… Algumas tem medo do que vêem.

Ele olhou fixamente nos olhos dela. Será que ela estaria preparada? Ela parecia hipnotizada pelo olhar do homem. Por fim, ele disse:

- Eu fui feliz com tão pouco. A vida não me deu muito… em relacionamentos, em amor, em prazer… e, no entanto, eu fui feliz. Algumas coisas parecem ter acontecido tarde demais, no tempo… Mas... não, eu não vivi uma vida morna. Tudo que eu fiz, foi muito intenso. Eu vivi sempre com muita paixão pelas coisas que fazia e pelas pessoas que eu amei. Se eu fui tão feliz com tão pouco, o que poderia ter sido, se tivesse um amor verdadeiro? E se tivesse recebido mais? Teria, eu, sido mais feliz? Não sei dizer…

A enfermeira-chefe compreendeu o que o homem dizia. Só não esperava pelo próximo passo dele.

- Esta é a carta que deves temer… e, esta, a combinação mais perigosa de todas…

domingo, 29 de novembro de 2009

Pandemônio na casa de descanso - Parte 4

A directora vinha saindo do gabinete, quando viu a enfermeira-chefe passar de braços dados com o velho inquilino. Os outros olhos na sala pousaram sobre os dois, ao passarem tranquilos, com o gato acomodado confortavelmente no colo do velho. As mulheres inspiraram o ar e iam estufando o peito, num sinal de recomeço de falação, quando a directora, sábia e perceptiva, chamou a enfermeira. Esta deu uma batidinha leve no braço do homem e deixou-o ir sozinho para seus aposentos. Virou-se, simulou uma expressão tranquila, mesmo sabendo que iria ter que ouvir outro sermão. Na sua mente, ela pediu, aos Céus, paciência para aguentar as batalhas daquela vida…

- Venha comigo!

A voz da directora era autoritária, mas não demonstrava irritação. Era mais um apelo, desta vez. A enfermeira-chefe conhecia as nuances de humor da mulher. Sabia quando devia estar armada e quando devia ouvir. Aparentemente, desta vez, ela precisaria ouvir, apenas.

- O que se passou lá fora? Nós havíamos conversado sobre isso, antes. Esta preferência e esta intimidade entre vocês não pode continuar assim tão aberta. Pense nos outros que vivem aqui. Já me basta ter que ouvir as “gralhas” a reclamar, todas, ao mesmo tempo, por qualquer coisa. Se elas tiverem razão, será pior ainda…

- Eu sei. Não voltará a acontecer. Eu tentava conseguir uma explicação para a atitude dele, mas não consegui nada – defendeu-se a enfermeira, mantendo os olhos concentrados em suas próprias mãos. Ela não conseguia olhar a outra de frente, quando se sentia culpada.

- Estou cansada. Por favor, não torne os meus dias piores que estes últimos. Pode sair agora. Está na hora de servir a janta e eu espero que este homem esteja por lá. Cuide para que isso aconteça, sem muito transtorno.


O velho estava à janela, quando ela bateu, levemente, à porta do quarto. Ela entrou e ele ainda levou uns segundos para olhar a mulher que estava parada no meio do quarto a lhe observar. Ele notou uma ruga entre os olhos dela. Sabia que aquela expressão de preocupação era por sua causa.

- Tenho uma coisa para te dar. A voz do velho era baixa, meio rouca. Ela não sentiu aquela ironia de minutos atrás, nem qualquer emoção, além da seriedade de agora.

- Está na hora do jantar. Gostaria muito… Ela parou no meio da frase. Ele falou “para te dar”? Seria um presente?, pensou ela. A menina dentro de si aflorou como um raio. Ela olhou para o homem, com uma expressão desconcertada.

O homem percebeu um certo desconforto na situação. Pigarreou e disse, apontando para a caixa, em cima da escrivaninha:

- Quero que fique com isso.

Foi então que a enfermeira-chefe percebeu o objecto para o qual o velho apontara. Em sua memória, os dias passaram em alta velocidade. Ela lembrou do dia que viu, pela primeira vez, a pequena caixa de madeira, decorada com estrelas e luas, em um fundo azul-escuro.


Ela havia entrado no quarto, para chamar o amigo a sentar-se na sala de refeições e encontrou-o sentado, de costas para a porta. Ela chegou a ouvir uma gaveta fechar-se às pressas. Ele suspirou, levantou-se devagar e fitou-a com um olhar penetrante. Parecia sério e preocupado.

- Vamos jantar? - perguntou ela, tentando parecer naturalmente alheia ao momento embaraçoso que se sucedia.

Ele não respondeu. Continuou a olhá-la, com aqueles olhos que nunca pareciam sorrir. Por fim, estendeu-lhe a mão. Ela deu-lhe a sua, quase por instinto. Ele a puxou, levemente, trazendo-a para mais perto de si. Ela sentiu uma espécie de tontura. Ele moveu-se um pouco para o lado e colocou-se à sua esquerda. Virou-se para a escrivaninha, meio hesitante, suspirou e tomou uma decisão. Ela estava, ainda, meio incerta do que estava se passando.

Ele, então, girou uma chave na gaveta do meio e abriu-a, devagar. Parecia que curtia o momento, a excitação e o absurdo do que acontecia, sem que ela esperasse. Puxou-a para perto do móvel, de modo que ela pudesse ver melhor o que havia lá, mas sem colocar a mão dentro da gaveta.

Uma caixa azul, decorada com estrelas e luas amarelas, jazia por cima de um papel dobrado. Ela quase percebeu um timbre no avesso do papel, que estava sob a caixa.

O velho pegou a caixa e colocou-a em cima da escrivaninha, fechando a gaveta logo em seguida. Ela se aproximou, com cuidado, como se fosse invadir uma caverna escondida, em algum lugar secreto do mundo do velho, que continha uma arca de tesouro. Ele levantou, devagar, a tampa. Seus olhos azuis brilharam ao olhar dentro da caixa.


- Prometi à directora que lhe convencia a jantar agora, sem criar muito transtorno. Disse ela, voltando ao presente. Não sei se devo aceitar a sua oferta. Ela misturava os pensamentos e assuntos, em frases que iam aparecendo, sem controle, quando ficava nervosa.

Ele levantou a mão. Ela sabia que devia parar de falar.

- Vamos jantar, agora. Depois conversamos sobre isso. Se eu for agora, prometes que aceitas o presente?

O olhar dele era quase uma súplica… ou um apelo. Podia haver qualquer coisa escondida por trás das intenções do velho, pensou ela, desconfiada.

Mesmo assim, ela fez que sim, balançando a cabeça. Em seguida, tomou a mão do velho e se dirigiu para a porta, puxando-o atrás de si, com delicadeza.

domingo, 22 de novembro de 2009

Pandemónio (na casa de descanso) - Parte 3

- A senhora sabe a condição que ele impôs, quando entrou nesta casa a primeira vez. Nós concordamos… - tentou a enfermeira-chefe interpelar.

- Quem ficou responsável por ele, em primeiro lugar? - interrompeu a directora, seca e decididamente.

A enfermeira-chefe suspirou. Ela sabia que a directora não a ouvia, quando estava cega e ensurdecida pela ira. Chegava a ser intransigente, por vezes, e de nada adiantava tentar demovê-la, a não ser pelo bom senso, que nem sempre aparecia.

Seus olhos azuis baixaram e ela olhou para as mãos – brancas e delicadamente longilíneas - como se procurasse um argumento convincente, sem ofender a autoridade da enérgica mulher, sentada à sua frente. Ela sabia que a responsabilidade era sua, pelo bem-estar do velho. Ela havia assumido a sua parte do contrato, quando o homem chegara àquela casa, com uma única condição, que fora aceita pela direcção, depois de alguma argumentação.

A directora e o velho inquilino tinham muito em comum: eram ambos muito arraigados às suas próprias convicções e os termos eram intransponíveis e irredutíveis, de ambos os lados. Enquanto o velho queria sua privacidade intocada, a mulher queria o controle da situação, a qualquer tempo. Por fim a mulher cedeu. O homem vencera a batalha, com um argumento sem precedentes. Dispôs-se a pagar a anuidade de uma vez só e acrescentou um extra, pela sua privacidade e com a condição de não ser perturbado, quando precisasse estar só, por períodos mais longos. Esta condição preocupou a directora, mas não teve o mesmo efeito na enfermeira-chefe, que se divertiu ao ver o homem dobrar a administradora, com uma barganha daquelas. Ela não esperava, porém, que os tais períodos mais longos fossem durar tanto quanto três dias, como desta vez.

- Eu devia ter percebido que o dinheiro, que nós tanto precisávamos, iria me trazer dores de cabeça. Nada vem assim tão fácil, dizia a directora, à beira do histerismo.

A enfermeira-chefe escondeu um risinho, ao olhar para a austera mulher, que começava a cair na realidade. Claro que nenhuma caridade viria daquela situação. Ela sabia que a condição imposta pelo homem tinha suas dualidades, mas o dinheiro era tão necessário para fazer os pequenos reparos na casa… a pintura havia ficado uma maravilha, pensou a mulher, com os olhos distantes e sem prestar verdadeira atenção ao que a outra falava…

- … se apegaram demais! É contra a ética desta casa! E os outros?

A enfermeira-chefe levantou nos olhos e tentou captar a essência daquela conversa. O que a mulher estava dizendo?

- Ela está me acusando? pensou a enfermeira. Não consegui pegar o começo da frase e não tenho coragem de fazê-la repetir. Ela me mataria por estar falando este tempo todo, sem ter a minha atenção… Melhor me concentrar.

- Dois anos! Dois anos foram suficientes para me envelhecer os dez que eu sinto pesar sobre minhas costas. Os tempos são difíceis, mas isto parece um pacto de morte!

- Ela está exagerando… pensou a enfermeira. Dramática, como sempre. Jesus! Me tire daqui… Ela já não ouvia a conversa-sermão da outra…

Quando saiu do gabinete da directora, a enfermeira-chefe estava cansada e drenada de forças. Mesmo assim, tinha prometido ir ao jardim conversar com o velho. Ela tinha uma simpatia pelo homem, que tanto deixava as outras completamente loucas, quanto fazia a vida da administradora uma carga que ela custava carregar. Mas entre ela e o homem havia uma certa cumplicidade. Desde o início, eles haviam sido amigos. Talvez porque ela respeitava o espaço que o inquilino criou à sua volta, talvez por lembrar-lhe alguém de quem gostava muito. O velho era um mestre para ela. Ela, talvez, fosse o único elo com a realidade, que ele ainda mantinha.

Ao caminhar para a porta que dava para o jardim, ela pensou que talvez estivesse errada a este respeito. Certa vez, havia ficado até tarde arquivando os papéis na sala da directora e viu luz na saleta onde havia o computador. Apesar da maioria dos inquilinos serem idosos, alguns mantinham correspondência, através de e-mail com seus parentes ou amigos. Alguns aprenderam a usar o computador após chegarem àquela casa. Apesar de cansada, foi verificar quem estava no computador aquela hora. Não reconheceu os toques subtis nas teclas, até chegar à porta da saleta.

Ela viu o velho digitando algo, com uma boa destreza manual e até uma certa intimidade com a máquina, apesar da idade. Não castigava as teclas com força, como alguns faziam. Os toques não eram rápidos demais, nem tampouco lentos a ponto de parecer um “catar de milho”. O velho conhecia bem o teclado.

Ela pigarreou baixinho e percebeu que o velho parou de digitar. Ele estava bem à frente do monitor e tratou de fechar o arquivo ou o que quer que estivesse fazendo. Ela sentiu que invadiu um território não permitido. O velho fechou o programa e se virou. Ela sorriu, meio sem jeito. Ele levantou-se e caminhou na direcção dela, olhou-a nos olhos e disse, baixinho:

- Existem horas em que é melhor não dizermos nada.

Colocou uma mão leve no ombro da mulher, ao passar por ela e saiu, sem olhar para trás. Ele nunca olhava para trás… pensou ela.


Da porta, ela viu a bizarra figura, sentada com óculos escuros, a acariciar atrás das orelhas do gato. Arrastou levemente os sapatos, para se anunciar, sem interromper a intimidade dos dois. O gato logo levantou a cabeça e olhou para a entrada. O velho não se mexeu. Sabia que a mulher viria conversar com ele, mais cedo ou mais tarde.

- Acabo de ouvir um longo sermão. Ela não dizia aquilo com indignação. Era como se contasse uma história, sobre um acontecimento banal.

- Sinto muito. O homem não exprimiu emoção, nem se virou para olhar para ela, ao dizer aquilo.

- Não, não sente… Ela sorriu, ao fazer a constatação e viu que ele riu também.

- Não, não sinto… mas é educado dizer que sinto muito. Ele se voltou para olhar a mulher.

Ela era jovem, talvez beirando os 35 anos. Não tinha uma beleza que o faria virar a cabeça, quando passasse por ele na rua, mas tinha os olhos de um azul profundo, que pareciam pedir socorro. Ele adorava olhar para aqueles olhos. O velho corou um pouco e ela percebeu que por trás dos estranhos óculos, ele a observava com simpatia.

- Vamos entrar? Está esfriando. Ginger já está meio encolhido, mentiu ela e se levantou.

Estendeu a mão ao velho e este cedeu, levantando-se do banco, na tarde que já esfriava lentamente.

O gato pulou à frente dos dois e correu para a porta de entrada, com a trela arrastando atrás de si. Na varanda, parou e esperou pelos dois, que vinham de braços dados. Entrelaçou-se nas pernas do velho e a mulher se abaixou, retirou a trela do corpo do animal e deixou-o livre. O velho se abaixou e tomou o gato no colo. O bichano esfregou a cabeça afectuosamente no peito do homem. A enfermeira-chefe coçou a cabeça do bichinho e este retribuiu, ronronando de satisfação.


- O senhor me deve uma satisfação, não deve? Ela sabia que a pergunta era meio retórica, somente.

- Ficarei feliz em satisfazê-la, disse o velho… mas não sei se serei capaz…

Ela riu. Sabia que aquela conversa estava encerrada. Mas, para sua surpresa, o homem disse:

- Venha. Vou-lhe mostrar uma coisa…