segunda-feira, 25 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 3 - Epílogo)


Ai, bota aqui
Ai, bota ali o seu pezinho
O seu pezinho bem juntinho com o meu
E depois não vá dizer
Que você já me esqueceu…

- Dança comigo. São dois pra lá e dois pra cá…

- Eu ainda sei dançar bolero!

Não disse aquilo com irritação, nem impaciência, mas com convicção. Eu sabia os passos de poucas danças de salão, mas bolero era fácil demais… e eu lembrava…

Estávamos casados há quase oito anos e os últimos dois haviam sido, mesmo, uma derrocada completa. Os poucos momentos que ainda partilhávamos, tanto por estarmos muito envolvidos nos nossos projetos profissionais, quanto por arranjarmos desculpas para não estarmos mais juntos que o necessário, eram, quase sempre, um grande exercício de tolerância e paciência.

Era assim que sentia naquela ocasião…

Sabíamos que não havia futuro no nosso relacionamento, o que era, por um lado, bastante triste, mas também libertador, ao mesmo tempo.

Ela, uma educadora promissora e extremamente ambiciosa, com ideias avançadas, estava mais ligada às decisões profissionais dos adolescentes, com programas que mais enquadravam-se ao estilo militar, enquanto eu desenvolvia um programa experimental para crianças, num estilo mais natural e quase ingénuo.

Eu não gostava das ideias, nem da quase insaciável sede de status e posses que ela tinha, mas nossos projetos eram independentes e iam em direções muito diferentes, praticamente opostas, por isso um não interferia nos projetos do outro, mesmo que discordássemos dos métodos que um e outro utilizávamos. Com o tempo, aquilo que fez crescer a atração entre nós - nossas tão evidentes diferenças - também nos afastou, tornando a convivência praticamente insuportável.

Aquele foi nosso último bolero.

***

Marcha soldado, cabeça de papel
Se não marchar direito, vai preso
No quartel…

As crianças falaram, por dias, a respeito do acampamento e do que viram por lá. Imaginei que, em suas casas, as famílias tiveram, também, que partilhar a excitação dos alunos e ouvir as histórias com atenção. Alguns pais comentaram que foi difícil aquietarem os filhos, mas estavam bastante satisfeitos com o sucesso do empreendimento. As crianças passaram a semana a desenhar o que viram durante a experiência. O riacho, a montanha, os animaizinhos, as tendas, os coleguinhas, a fogueira… muitos detalhes do que eles experimentaram viraram um grande painel artístico, exposto nas paredes das salas de aula. 

Os dois rapazes, entretanto, desenharam soldados e jipes do exército, o que me preocupou um pouco, pois foi o que pareceu havê-los marcado bastante. Os dois vieram conversar comigo, no intervalo do almoço. Foi justamente o tema da conversa que me causou uma inquietação maior que os desenhos dos mesmos.

***

O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou…

- O que aconteceu com o que sentíamos um pelo outro? Por que nos afastamos tanto?

- Não foi de uma hora para a outra. Foi um longo e doloroso processo, apesar das tentativas para que desse certo.

- O que houve com o que havia de bom entre nós? Aquela nossa amizade… o amor…

- Que amor? Nunca houve amor entre nós. Não se ama quem se é forçado a aceitar na casa ou na vida, por circunstâncias que não por opção espontânea. Sabes por que eu nunca te disse: eu te amo? Porque nunca senti que te amasse. Mesmo assim eu lutei pelo nosso relacionamento. Até tentei amar-te, mas tu derrubaste tudo, quando eu menos esperava e tão mais cedo que eu poderia aceitar. Aquela linha muito ténue que havia entre o amor e o ódio partiu-se, agora, de vez. Eu já não me importo contigo ou com tuas coisas, tua vida ou teus problemas. Na verdade, o que sinto por ti é mais um misto de desprezo e ojeriza, como nunca senti por ninguém…

Ela estava sentada na cama, com o computador aberto no colo e eu de pé, encostado à soleira da porta do quarto. Ao ouvir aquelas palavras, que estiveram presas na minha garganta por tanto tempo, ficou vermelha de raiva e chamou-me de covarde, por não haver levantado a discussão antes. Eu, como de tantas outras vezes antes, desliguei a parte do cérebro que se importava com a irritação… ou qualquer coisa que viesse dela… e não disse mais nada. Não valia a pena discutir, nem mesmo gastar meu tempo com qualquer tipo de preocupação ou empatia. Estava tudo acabado, mesmo, entre nós.

Virei as costas e saí, apesar de ouvir seus protestos, mas já não ia fazer diferença nenhuma. Abri a porta, entrei no carro e saí. Não voltei nunca mais…

***

- Como assim, soldados? Nosso projeto não passa por isso e seria um desperdício enorme do investimento que fizemos até agora. Mas como vocês estão quase em idade de mudar de escola, talvez seja interessante conversar com a orientadora pedagógica e avaliar as afinidades de vocês. Pode ser somente um interesse momentâneo…

- Não é só momentâneo. Nós queremos, mesmo, ser soldados…

- Vou encaminhar os dois, em separado, para a orientadora pedagógica, que é psicóloga, então… Ela saberá como avaliar as vocações e os interesses de vocês… e bem melhor que eu…

Os dois meninos sorriram. Mostravam-se satisfeitos com aquela decisão. Pareciam mesmo decididos a ir adiante com aquela ideia. Eu só rezava para que a minha ex-mulher não aparecesse por lá tão cedo, nem soubesse do tipo de interesses que começava a nascer nas cabeças de nossos alunos, devido a um incidente gerado durante uma inocente viagem de lazer.

A assustadora ideia de deixá-la aplicar seus loucos métodos de treinamento militar, em crianças tão jovens, não era pior que tê-la a vangloriar-se de que estava certa e que ela sabia o tempo todo que eu era apenas um ingénuo pedagogo, completamente fora do meu tempo… e dos processos que envolviam a educação moderna…

Será que eu havia sido tão ingénuo e estivera, mesmo, errado, o tempo todo?

***

Se eu tirasse uma pedra olê, olê, olá
Se eu tirasse uma pedra, olê, seus cavaleiros…
Uma pedra não faz mal, olê, olê, olá
Uma pedra não faz mal, olê seus cavaleiros…
Se eu tirasse duas pedras, olê, olê, olá…

- Acho que precisamos conversar. É bastante urgente!

- É sobre os meninos?

- Sim. Melhor vires à minha sala.

A orientadora pedagógica confirmou, em pouco tempo de conversa, minhas suspeitas e meus receios. Por mais que eu quisesse negar, apesar de haver dado o melhor de mim no projeto, sentia como se estivesse a perder uma batalha. Pelo menos eu deveria ficar feliz por saber que aqueles dois rapazes tinham as mentes livres de medos… o que poderia ser um grande benefício para o treinamento no exército, por torna-los destemidos e curiosos, mas não achava que era justo, depois de todo o investimento na educação deles, que o potencial criativo dos mesmos fosse usado para fins diferentes da intenção inicial.

Eu tinha que deixá-los ir adiante em suas vidas, de todo jeito, após o período em nossa escola. O que acontecesse com eles, depois que estivessem em outro estabelecimento de ensino, não era nem minha responsabilidade, nem tampouco tinha autoridade para influenciar ou mudar qualquer coisa. Sabia que quando tivessem que fazer suas decisões, em termos de carreiras, os alunos iam optar por aquelas que lhes pudessem dar um futuro promissor e sustentável.

O primeiro grupo a estar pronto para sair, formava-se naquele ano, dentro de poucos meses. Será que duas das pedras, naquela muralha de educação, comprometeriam a solidez da estrutura? Estariam eles preparados para enfrentar a decisão que haviam tomado, embora ainda muito cedo, em suas vidas?

Resolvemos que faríamos uma pequena cerimónia de formatura, para celebrar o sucesso do projeto e para encaminhá-los a outros tipos de vida escolar mais padronizados com a estrutura educacional vigente no país.

No dia da formatura daquela primeira turma, haviam muitos convidados, entre pais e outros educadores de outros colégios. As crianças estavam excitadas e alvoroçadas, como um bando de pardais. O programa havia sido elogiado pela maioria e eu estava, também, ansioso e irrequieto, como se fosse um dos alunos. Tinha os músculos do pescoço bastante tensos e temia uma surpresa desagradável…

***

Sereno eu caio, eu caio
Sereno deixai cair
Sereno da madrugada não deixou meu bem dormir
Minha vida ai ai ai
É um barquinho ai ai ai
Que navega sem leme e sem luz.
Quem me dera ai ai ai
Que eu tivesse ai ai ai
O farol dos teus olhos azuis.

- Eu sabia que tu ias fazer aquilo. Minhas suspeitas estavam certas e meu instinto avisou-me, mas não tinha como impedir-te de fazer uma das tuas, tinha?

- Claro que não! Foi uma pequena intervenção, homem. O melhor para aqueles meninos é o programa que eu desenvolvi. Eles são soldados, desde o berço…

- Tu estás cada dia mais louca!

- Deixa de te melindrares tanto. Parece que ainda estamos casados... Isso não tem nada a ver contigo. Ainda tens que aprender a separar as coisas… de uma vez por todas!

- Tens razão. Eu nunca soube separar bem as coisas. Devia ter aprendido a ler mais sabiamente os sinais, desde há muito tempo atrás. Eu cheguei a ser envolvido na tua engenhosa trama, que me levou à uma série de reveses, sem dar-me conta daquilo. Mas, no fundo e no final, mesmo tendo sido lesado na minha saúde e na minha vida, eu sobrevivi, levantei-me, lutei e venci… por minha conta e custo. Se houve uma coisa que me deu forças, foi a certeza que um dia eu ia poder olhar-te de frente e saber que não sentia mais nada por ti. Nada mesmo. Nenhuma pena, carinho ou interesse em saber como estás, nem mesmo qualquer vestígio de ressentimentos. Um dia desejei que alguém te fizesse passar pelo que eu passei e sentir o que eu senti, não por vingança, mas para saberes como é doloroso… mas, hoje, isso não tem a menor importância. Na verdade, nunca precisei disso para tornar-me quem eu sou e isso dá-me uma satisfação enorme. Maior que qualquer coisa que tu possas compreender ou imaginar e nem espero que o faças…

Ela soltou um palavrão... dos feios... virou-se e saiu. Já havia feito o mal que queria e não tinha paciência para ouvir minhas verdades.

Minha vida, desde que nos separamos, havia-se tornado muito mais simples e minhas ambições mais voltadas à educação, à arte e à criatividade, por isso o sucesso do meu projeto era uma questão de extrema importância para mim. Era como um filho que eu houvesse imaginado, concebido e ao qual dera uma bela vida. Eu só queria que crescesse e fosse bem-sucedido, para o meu bem e o daquelas crianças.

Sim, eu sabia que haveriam certas perdas, durante o percurso, mas essas sempre existiriam. Tudo era parte de um processo complexo de educação e de vida.

Do ponto de vista dos relacionamentos, o que eu precisava era manter-me sozinho e em paz. Meu trabalho absorvia boa parte dos meus dias e, o restante do tempo, tinha um projeto pessoal mais ambicioso, mas sem pressa de concluir: um livro de contos, com ilustrações em aguarelas e desenhos a carvão e sépia, feitos por mim mesmo.

***

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar…

Para os dois meninos, fascinados pelo exército, o projeto funcionou durante uns tempos. Os pais acabaram mudando para uma região muito próxima daquela onde acampamos uma única vez, afastando-os do treinamento para a vida militar, pelo menos até que vida os colocou, inusitadamente, frente a frente com uma situação bem mais crítica.

Embora a família tenha mudado o rumo das vidas deles, o destino tratou de alinhá-los, novamente, com perversidade de mestre, levando consigo o que lhes era mais caro e jogando-os de volta nos braços do exército… só que para o resto de suas vidas!

Uma base militar, secreta, para confirmar as suspeitas deles, havia, mesmo, sido construída no topo da montanha…

A descoberta da mesma foi-lhes tanto o azar, quanto a sorte deles…


terça-feira, 12 de abril de 2016

Cantigas de Roda (Parte 2)


A canoa virou, por deixá-la virar

Foi por causa da menina que não soube remar.

Se eu fosse peixinho e soubesse nadar,

Tirava um amiguinho do fundo do mar…


As crianças formavam dois círculos, um que corria por fora, com os alunos mais velhos e outro por dentro, com os menores e mais novos. O círculo do meio rompeu-se e eles começaram a dançar em fila, formando uma espiral que girava para dentro, enquanto o círculo de fora os protegia, girando em sentido contrário. 

- Eles não estão preparados para a vida lá fora! Não, com este programa ingénuo. Vão levar um choque quando mudarem de sistema…

- Eles estão preparados para a vida! Ponto final. São crianças especiais.

- Os pais tem que saber que não vai funcionar, sem algumas mudanças essenciais… 

- Esta insistência é por vingança? É por isso?

- Não mistura as coisas… claro que não é…

- Eu não quero estas crianças no teu programa insano! Não estão sendo talhadas para isso. Esqueça. Eu já te disse que não te quero por cá, com tuas ideias malucas! 

- Olhe para eles! Eles não temem nada. O instinto protecionista em relação aos mais novos que eles têm é natural neles! Basta um toquezinho no programa educacional e eles mostram que vale toda a pena investir neles. 

- Eles são crianças. Não são cobaias. Nós queremos o melhor para eles, em termos de criatividade, colaboração mútua e coragem, é claro… mas coragem no sentido mais lato… coragem para enfrentar a vida sem preconceitos e sem temer as dificuldades ou os perigos da vida.

- Exatamente! É mesmo deles que nós precisamos!

- Chega desta conversa. Não há mais discussões. O programa foi aprovado como está e não vai mudar. O conceito original é diferente das tuas intenções. Saia, agora, por favor. Já te havia dito que não te queria por aqui. 

- Isso vai mudar. Podes ter certeza. Esta conversa não está acabada.

- Está, sim. Agora, saia, por favor.

Ao ouvir meu tom de voz, mostrando impaciência e uma certa agressividade, Ginger levantou a cabeça e ficou a observar-nos, alerta para o que acontecia. Ela virou-se e saiu, sem dizer mais nada. Estava claro que uma mulher daquelas não se dava por vencida, com uma simples negativa. 

Eu fiquei ali, de pé e parado, a olhar a não bem-vinda silhueta desaparecer na distância, enquanto a luz do sol, batendo direta contra minha face, quase feria-me os olhos. Senti uma leve pressão contra a perna e curvei-me para acariciar a cabeça do animalzinho, que parecia dizer-me para ficar tranquilo, como se pudesse proteger-me de todos os males. Desejei que assim fosse, para o futuro da nossa escola e para o bem daquelas crianças.

***

Passarás, passarás

Algum dia ficarás

Se não for o da frente 

Há de ser o de trás...

Queres céu ou inferno?


- É tarde demais!

- Não diga isso! Nunca é tarde demais! 

- Eu não sou um otimista e desconfio daquele tipo de pessoas. Sabes bem disso.

- O programa pode estar ameaçado, mas não está perdido. Quem sabe possamos chegar a um consenso, com ambos os lados cedendo um pouco. Tudo é possível…

- Não neste caso. Achas que aquela louca vai ceder em alguma coisa? Ela nem começou ainda… e eu temo pelas nossas crianças. Olhe para elas. Não sabem o perigo que correm. Não temem nada. Não é justo estragar tudo, por causa daquela… 

Engoli em seco e calei-me antes de dizer um imprecativo. Estava dentro das instalações da escola, afinal, e tinha que manter a linha e respeitar os códigos de ética. Estava possesso pela raiva e precisava muito esforço para não perder, completamente, a calma. Mas minha vontade era de usar nomes muito feios ao referir-me àquela mulher.

A diretora quase riu, ao ver-me no limiar de saltar a tampa. Ela conhecia a minha história e não escondia sua crença em que o programa, que eu desenvolvera com tanto esforço e precisa técnica, tinha tudo para ser bem-sucedido, depois de passado por várias fases de desenvolvimento e defesa junto à Secretaria da Educação. O programa havia sido desenvolvido durante minha tese de doutorado e, incentivado pelo orientador, passado de uma simples ideia concebida academicamente, para um programa educacional experimental, que envolvia um novo conceito de ensino para crianças de tenra idade. 

Até aquele momento, pelo menos, havíamos provado que estávamos no caminho certo. Eu, todavia, precisava de mais tempo para colher os frutos do sucesso. Não era em mim que eu pensava, mas no futuro das crianças: os filhos que eu não tive, nem ia ter, mas que estudavam ali, sob a minha orientação e tutela direta. Eram crianças que haviam sido cuidadosamente selecionadas segundo um critério bastante rigoroso e perfeccionista. 

Minha interferência havia sido, desde o início do empreendimento, total e absorvedoramente dedicada. Desde a escolha do sítio onde iríamos construir, a criação das áreas internas e externas, o programa educacional em si, a proximidade com áreas de lazer praticamente particulares e quase não frequentadas, os projetos paralelos… tudo havia sido cuidadosamente acompanhado, para seguir o projeto à risca. Algumas mudanças foram introduzidas durante a construção do estabelecimento, mas foram para melhor, como as árvores à volta do pátio, onde as aulas de verão eram lecionadas.

À luz da minha teoria, crianças com tendências artísticas tendem a ser mais livres de preconceitos e apreciam a beleza, a arte e a estética per si, sem misturar crenças, raça, nem tendências aprendidas. O contacto com animais libera os medos e receios e torna-as mais arrojadas e dispostas, além de elevar o grau de protecionismo, altruísmo e confiança nelas mesmas e nas outras. A criatividade, sendo estimulada naturalmente, eleva os níveis de inteligência emocional e facilita a resolução de problemas, pois a mente não vê barreiras intransponíveis, mas apenas desafios que podem e devem ser ultrapassados. O imediatismo não é incentivado e as ciências exatas caminham junto com a liberdade de expressão, complementando e equilibrando os lados emocional e racional das crianças, de maneira espontânea. 

O programa tinha uma grande dose de ingenuidade, por isso era imprescindível que fosse implantado em crianças de muita tenra idade, quando a personalidade ainda estava em formação. As doses de realidade dura e crua era dada em suas próprias casas e famílias. Não tínhamos alunos internos, nem os afastávamos da vida normal, mas a escola era como uma bolha de proteção ao cotidiano. Gerar cientistas artistas era produzir o melhor do melhor, no melhor ambiente. 

Não era nem justo, nem certo, converter aquelas mentes privilegiadas em soldados de elite e estrategistas, movidos à coragem e ousadia, mas desprovidos da intenção original e da relação espontânea com as mais diversas formas de beleza e arte. Queriam transformar homens e mulheres de verdade em máquinas mortíferas, treinadas por mentes perversas, egoístas e voltadas à causas tão duvidosas. 

Eu jamais iria permitir que fizessem um mal tão grande às “minhas” crianças tão especiais.

***

Se essa rua, se essa rua fosse minha

Eu mandava, eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes

Para o meu, para o meu amor passar


- Vamos juntar pedrinhas do rio, para fazermos uma calçada?


Uma ocasião programamos um acampamento com as crianças, a acontecer num fim-de-semana de verão, quando era mais propício e menos sujeito às chuvas na região. Minhas preocupações desvaneceram por dias, durante a fase de planeamento, organização, contactos e autorizações dos pais e responsáveis, comunicações com o corpo de bombeiros e polícia local e tudo o que pudéssemos para garantir o sucesso do empreendimento. Para mudar de ares, viajamos até uma região na montanha, num parque florestal. O tempo esteve perfeito e as crianças, que falaram no acampamento por umas semanas, não cabiam em si de excitação. Íamos fazer pesquisa de campo, provar um pouco da vida ao ar livre, longe da escola e pernoitar em tendas, armadas perto de um pequeno riacho, estimulando o espírito de sobrevivência na mata e aventura, como fizeram nossos antepassados. Na viagem, num ônibus alugado, estavam todos muito excitados, mas ao chegarmos perto do local, notei um certo nervosismo e o barulho diminuiu. Estavam apreensivos, mas não conseguiam esconder a curiosidade e a excitação do novo.

A montagem do acampamento foi um sucesso, com todos muito empenhados em ajudar e dividir as tarefas. Logo ficamos cientes que eles esqueceram completamente dos apetrechos eletrónicos modernos e estavam mais interessados em saber como funcionava uma bússola, como orientar-se pela posição do sol e coisas similares. Acredito que, por ser uma coisa nova para eles, meninos e meninas da cidade, estavam todos com pressa de ver como funcionava a montagem das tendas, a organização do lanche e almoço, as atividades de pesca, os banhos numa área escolhida com cuidado, onde o rio formava uma piscina natural, sem corredeiras nem perigos, as excursões de observação dos pássaros e animaizinhos da região, a ‘siesta’ depois do almoço… Tudo fora muito bem recebido e com excitação crescente. Era diferente das idas à praia ou ao parque. Era mais selvagem e livre, por isso mesmo, mais estimulante. Observei como os alunos mais velhos mantinham o instinto protetor aos mais novos e aquilo deixou-me bastante satisfeito. Era natural neles. Um bom sinal.

À noite, sem micro-ondas e apenas com um fogão improvisado, fizemos a refeição à volta da fogueira, em assentos e mesas também improvisadas. Depois, ainda ali, sentados confortavelmente, contamos histórias sobre nossos antepassados e como eles viviam, naturalmente, naquela região, caçando, pescando, plantando, colhendo, construindo suas cabanas, que depois evoluíram para casas sofisticadas. Não demorou muito para os rostos fatigados, mas sorridentes, começarem a mostrar um visível cansaço físico. O toque de recolher foi quase um despertar e as tendas foram imediatamente invadidas e os sacos-camas preenchidos por corpinhos cansados e felizes. 

Quando o sol estava alto, na manhã seguinte, os professores e as auxiliares, que estavam acampados à volta das tendas dos miúdos, levantaram-se e tocaram o toque de despertar. Coisas banais como lavar-se, pentear-se, vestir-se e preparar-se para o pequeno-almoço, viraram uma verdadeira algazarra, mas sem nenhuma resistência. Quem iria pensar que despertar as crianças e preparar a refeição fosse ser tão divertido?

O programa da manhã era simples. Os mais novos iriam ficar mais próximos do acampamento, a brincar na piscina, enquanto os maiores iriam fazer excursão à mata, em grupos pequenos e separados. O objetivo era, durante o almoço, trocarem experiências e contarem o que viram. Como a turma era pequena, não foi difícil arranjar as equipas, que rumaram para cada um dos quatro pontos cardeais principais. 

Dois dos meninos, amigos inseparáveis, que foram para o norte, contaram que viram uma área, no topo da montanha, sendo preparada para virar uma base militar. A imaginação deles era fértil. Perguntados como eles chegaram à aquela conclusão, o menino de óculos disse que viu soldados armados a cuidar da área, facto que não foi confirmado pelo professor-monitor, mas que foi veementemente confirmado pelo amigo inseparável. Aquela não era uma área com interesse militar, pelo que nós soubéssemos. Não fazia sentido. Mesmo assim, a história gerou um grande rebuliço nos alunos, cujas mentes livres de amarras, viajavam em tempo e espaço, construindo teorias e possibilidades. 

Partimos de volta, depois do almoço, no pequeno autocarro alugado. A maioria dormiu a ‘siesta’ durante a viagem. Somente os dois amigos, ainda excitados pelo que disseram haver testemunhado, viram um jipe do exército passar na direção oposta à que íamos. O menino de óculos puxou-me o braço e disse:

- Viu como nós estávamos certos? Aquele é um jipe do exército!

Eu fiquei a olhar o carro desaparecer na distância, um pouco intrigado pelo que acabara de ver e, não só por dar asas à teoria dos dois pequenos amigos, mas por ser obrigado a concordar que algo sério podia estar a passar naquela região…


domingo, 3 de abril de 2016

Cantigas de Roda… (Parte 1)



Que olhos lindos

Que olhos lindos tem a Rosa

Que ainda hoje

Ainda hoje eu reparei

Se eu reparasse,

Se eu reparasse há mais tempo

Eu não amava,

Eu não amava quem amei…



As crianças brincavam de mãos dadas, formando um círculo, que movia-se em sentido horário. Eu observava, de longe, os movimentos, a cantiga, as risadas e a folia imensa e ingénua que elas faziam. A menina Rosa, uma loirinha de cabelos cacheados, tinha as faces afogueadas, tanto por uma certa porção de timidez, quanto pelo calor que fazia, naquela manhã de verão. O pátio, diferentemente do que eu havia idealizado e concebido no projeto original, era rodeado de grandes árvores, cujas amplas e frondosas copas delineavam desenhos abstratos de luz e sombra, no chão coberto com uma espessa camada de areia fina e solta. O propósito, naturalmente, era ser, o mais possível, à prova de machucados nas crianças… à toda prova de crianças, para bem dizer a verdade. Reconheci que o resultado ficou muito melhor que eu imaginara, quando o projetei. Da minha janela, via-se, claramente, as atividades no grande pátio.

As professoras acompanhavam, com olhos atentos, os movimentos de todos, sempre prontas a correr, se necessário fosse, para resolver alguma disputa ou socorrer alguma emergência. Pensei que haviam criado um bom clima naqueles miúdos, que não pareciam carregar nenhum preconceito quanto à brincadeira de roda. Naquela idade era mais fácil controlarem ou contornarem os preconceitos que vão-se formando com o tempo, por influência da sociedade ou das famílias. Aquela brincadeira de meninos e meninas, sem tempo ou possibilidade de levantar suspeições machistas ou feministas agradava-me de todo. 

Eu sentia orgulho daquilo que havíamos conseguido na escola. Não éramos nada especiais, apenas tentávamos ser o mais livres de preconceitos que pudéssemos, para criar crianças saudáveis e ilimitadas em criatividade. O colégio seguia uma linha experimental de educação, onde a liberdade de expressão era estimulada ao limite. 

As aulas, no verão e com bom tempo, eram dadas ao ar livre, em baixo das árvores, assim como as refeições, que eram partilhadas igualmente e com a participação de todos, tanto na organização quanto na distribuição e posterior limpeza do local. A ideia havia sido inspirada em um modelo japonês e até então não havíamos tido quaisquer problemas ou restrições dos pais ou das crianças. Nenhuma forma de expressão era retida, desde que fosse para criação e o progresso de uma mentalidade avançada em termos sociais e artísticos. O respeito e aceitação que as crianças sentiam pelos colegas e pelos mestres era destacável e evidente. 


Salada, saladinha bem temperadinha

Com sal, pimenta

Vinagre e etc.


No terreno atrás do prédio principal da escola tínhamos algumas árvores frutíferas plantadas. Além das nossas atividades normais, estimulávamos o contato com a natureza, através do cultivo de uma pequena horta, que servia de fornecedor para parte das refeições das crianças, com alguns legumes e vegetais para saladas, a maioria de fácil lavoura e que cobriam uma boa parte dos custos que poderiam haver, se não as tivéssemos. Ainda criávamos algumas galinhas, que nos forneciam ovos e das quais também aproveitávamos o estrume, para adubar a terra. 

Também estimulávamos o contato com os animais, especialmente os de estimação, que promoviam um clima de carinho, respeito e segurança, livrando as crianças de medos infundados e dando-lhes maior confiança. Em conjunto com uma entidade que recolhia animais de rua e uma clínica veterinária, acolhíamos os animaizinhos e promovíamos a reintegração dos mesmos em lares permanentes. Os animais adultos eram mais difíceis de ser recolocados, mas aquilo não nos constituía problema, pois a escola mantinha-os abrigados e com boa saúde. Eles acabavam por fazer parte do sistema e da educação das crianças. 

Um deles, Ginger, um gato ruivo de idade avançada, que estava sempre por perto, como se vigiasse e assegurasse que tudo estivesse bem no ambiente, vivia connosco desde sempre. As crianças aprenderam a lidar com ele e com seu comportamento, observando e interpretando, com acuidade, os sinais que enviava. Ginger era sociável e calmo, sendo respeitado e acarinhado como parte da classe, que ele tomava como sua propriedade e território. 

Eu estava contente e satisfeito com o sucesso que vínhamos conseguindo com aquele grupo de crianças. Éramos vistos como projeto piloto de escola e de sistema de educação. Apesar de não estarmos localizados em uma área essencialmente urbana, sobretudo pela necessidade de espaço na propriedade, para nossos projetos paralelos, tínhamos alunos de várias localidades da região, com idades entre 3 e 8 anos. 

Fora da escola ainda fazíamos excursões programadas às galerias de arte e museus, sempre que haviam exposições que valessem a pena e, ainda, à Biblioteca Pública Municipal. 

Em época próxima do verão, com bom tempo, levávamos os pequenos à uma praia que havia muito próxima e que era demarcada por rochedos em ambos os lados. Era uma área muito particular e por ter os limites muito bem delineados, era-nos fácil controlar os movimentos de todos. Nestas curtas excursões, era permitido levar os animaizinhos para brincar com as crianças. Ginger era um passageiro frequente e estava sempre por perto das crianças, que o respeitavam e traziam-lhe brinquedos e comida. O atento felino recebia de bom grado aqueles presentes e participava, como podia, dos folguedos.


Caranguejo não é peixe, 

Caranguejo peixe é; 

Caranguejo só é peixe 

Na enchente da maré. 

Ora, palma, palma, palma 

Ora, pé, pé, pé 

Ora, roda, roda, roda, 

Caranguejo peixe é…


Eu estava sentado na areia a observar o grupo de miúdos, que brincava de roda e divertia-se a jogar-se na areia fofa e branca, quando a cantiga terminava. As gargalhadas soltas e espontâneas faziam-me rir, satisfeito, do que havia conquistado com eles. 

Um pequeno caranguejo-branco-da-areia saiu de uma toca e veio na direção de um dos menores, que ficou a olhar o bichinho mover-se, naquele caminhar engraçado. Os olhos estirados para fora do corpo movimentavam-se com atenção e com curiosidade menor que a daquelas crianças. Ginger levantou-se e veio para a beira deles. Se foi por curiosidade ou por instinto protetor, eu não consegui distinguir, mas fiquei impressionado pela forma com que ele parecia mostrar-se presente e disposto. Era mesmo uma figura de suporte à segurança dos nossos alunos. O caranguejo levantou as pinças, como a defender-se do gato, que deu um passo atrás, depois levantou a pata e deu um toque no bichinho, que recuou e voltou a esconder-se na toca de onde havia saído. Ginger ainda foi até a beira do estreito buraco, para certificar-se que o crustáceo não ia mais sair e ali manteve atento plantão por um bom tempo. 

As crianças riram-se e aplaudiram o salvador, que se sentiu o verdadeiro dono da praia. 


- Ele é esperto!

- Pois é!


Eu voltei-me para conversar com quem eu pensei ser uma das professoras ou uma das auxiliares, mas, ao virar-me, fui pego de surpresa. Não era nem uma nem outra. Eu pensei, quase em alta voz:


- Mas o que esta mulher está fazendo aqui?


Minha cabeça deu uma reviravolta. Não podia ser…


quinta-feira, 10 de março de 2016

Wild Like the Wind (Part 2)


I had been standing by the bar counter for a long time, cursing my own decision to force myself and leave home and get some distraction to my very skimpy social life. I should have certainly gone to the movies. At least I was safer and, undoubtedly, less bored. Where I was at the time I felt completely out of my natural environment. Less than an hour in that pub and I knew I would never make such a feat again. I definitely did not belong to that environment.

A large amount of people drinking, talking and laughing loudly were crowding the galleries. They seemed to enjoy themselves, mainly probably due to the effect of alcohol. I, however, from my side, was feeling pretty uncomfortable. That was a place that in my youth I would have attended, spontaneously and often, not only for the environment style, but especially for the good taste of the DJ’s musical selection.

The music, in fact, had been the only reason I had not had gone off the pub, vowing never to come back again. The classics of the 70s, 80s and 90s played endlessly and prevented me to hurry out. Despite the poor visibility, one could see that the designer had devoted special attention to the sober and careful vintage decoration, taking care of every little detail.

There was a small dance floor, opposite the bar where the lights seemed to have been dimmed and a group of people was rehearsing video clip steps amid the glowing coloured reflections of a hypnotic mirrored globe that spun above the heads of the dancers.

- Oh, I love this song. Do you dance?

- No way! I do not dance.

- Will you ruin this occasion for fear of dancing?

My answer was automatic, almost a defensive reflex of denial.

I turned around to see who was talking like that, almost intimately with me. The voice sounded familiar, but I did not recognize the face immediately. A green eyed middle-aged woman was looking up at me. Her fair hair, tied up into a ponytail, left her almost rounded face and lovely features completely exposed. She had a charming glint in her eyes and when she opened that broad and spontaneous grin, I had the impression she knew me forever.

It was that smile that made me recognize her too after all that time. To my own amazement I then realized I had no doubt who she was.

I said to myself:

Time has been very good to her! She looks so full of life and so peaceful...

She pretended not to notice my surprise and before I reacted, she grabbed my hand and dragged me to the dance floor, making way through the people who were laughing and talking almost louder than the music that was playing and were overcrowding the long and almost dark corridor.

- Oh, come on. Relax. Just let yourself be driven by the music.

She whispered that in my ear, causing me a strange effect. I felt somewhat comfortably alright in spite of having my muscles, especially the hips and legs, quite tense as I had not danced for a very long time and felt the whole body aching.

- Just be here and stay with me… entirely. Open the door to your heart.

- How could I, if I had lost the key... such a long ago...

- Don’t worry. I’ve found it…

And she hugged me tightly, like one who finds an old and dear friend, who has long not seen.

Regardless of feeling my legs and hips tense due to an evident lack of practice, I allowed myself swing with the music, embraced her delicate body with my arms crossed at her soft back and said nothing else. I just allowed myself be taken by the sound and the irresistible charm of the song. She laid her head on my chest and for a moment I thought she looked very small and fragile in there.

I had the feeling that woman needed to be there in that embrace, sheltered and protected from everything either good or bad. For a moment I forgot where I was and all that went up around us. A clear reminder of the willow which used to protect us from the world, went through my mind and I chuckled. She realized it and asked me:

- What was it?

- I just summoned up a vision of the willow in front of the library...

- Me too.

She hugged me tighter, as if afraid that I would go away. I pressed my body against hers as if wishing that time would stop running...

***

- Let's go to the beach, as we used to do in our good old times?

- Do you think that place still exists?

- It must be very different now, but things do not change place... or do they?

- Some might... I think… but we will only know for sure if we go there and see for ourselves.... Like when we used to when we were young and untamed...

I frowned. I no longer felt a young lad anymore for a long time. She laughed at me. I loved the way she laughed.

- Come on... Time has been good to us. We cannot complain much.

She was quite right. We still had so much life ahead of us and although mature and reasonably successful in our careers, we were still full of plans and energy.

- In my car or yours?

***

The sea was calm, in that constant back-and-forth movement of the waves washing the sand, insistently, but knowing that little could be done to change something. My soul was peaceful and my mind almost empty of that friendly sorrow that used to fill me up lately. The melodious voice of Bowie overflowed the room and my memories with a good dose of nostalgia. My eyes and my thoughts were wandering with no strings attached, far away in time and space. The wind, blowing though the long bamboo trees made they sway, hypnotically, and I let myself go, loose and quietly, into my own memories, in a kaleidoscope of images and emotions.

- Are you homesick?

- Nostalgic, perhaps...

I felt the gentle touch of her long pale and delicate fingers on my shoulder and turned, fixing my gaze onto hers...

The music took over my head and the space around us. The words we exchanged made much less sense than the verses of the song that played at least for the third consecutive time, in the same sequence. I felt very emotional and so did she.

...'For we're like creatures in the wind

And wild is the wind,

Wild is the wind'... *

***

I told her that I was still the same as before, but I knew that statement was far from the whole truth. I no longer felt wild in a long time. The many twists and turns that life has taken made me a cynical man either of the people or their good intentions. I avoided taking risks that were not well calculated or with tangible predictability. The only remnant of the rebellion of my youth was my stubbornness... a lot more than what was typically expected from the advancing of age...

What had I done to my life? Was it enough to assume that my dreams and opportunities should be left aside on behalf of a greater good? How many dreams have I given up to without at least having tried, over my lifetime? How many of my talents were wasted, for letting myself being too involved by my job commitments and by relationships that stifled my true self? Where was that young and fearless adventurer of other times?

I frowned when another song pierced my memory and my heart mercilessly, causing an uncontrollable reaction in me.

'Will you see that I'm scared and I'm lonely?'...**

I closed my eyes trying to control the tears... but it was in vain.

She walked to the computer, put another song to play on and held my hand as if she had not noticed the growing conflict within me and pulled me against her, nestling herself in the middle of a hug. To my ear, she spoke softly:

- Let us not make plans. Let us be as wild and free like the wind...

I felt my body shudder and said nothing. Just kissed her head, in a loving and spontaneous gesture.

...'Don’t you know you're life itself?'... *

- Care to dance?

- Of course!

***

* Wild is the Wind (David Bowie Station to Station -1976)

** Sweet Thing (David Bowie Diamond Dogs - 1974)

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Indomável como o Vento (Parte 2)


Havia estado, por um bom tempo, encostado no balcão do bar, amaldiçoando minha decisão de forçar-me a sair de casa, para distrair-me. Devia ter ido ao cinema. Pelo menos estava seguro e, com certeza iria ser menos aborrecido. Ali, sentia-me completamente fora do meu meio natural. Menos de uma hora naquele lugar e eu já sabia que jamais voltaria a fazer tamanha façanha. Eu, definitivamente, não pertencia a aquele ambiente. 

As galerias estavam apinhadas de gente a beber, conversar e rir alto. Pareciam divertir-se, mormente devido ao efeito do álcool. Eu não. Sentia-me bastante mal. Aquele era um local que na minha juventude eu teria frequentado, espontânea e frequentemente, não só pelo estilo de ambiente, mas especialmente pelo bom gosto da seleção musical do DJ

A música, na verdade, havia sido a única razão pela qual eu ainda não havia saído correndo do pub, prometendo nunca mais voltar. Os clássicos das décadas de 70, 80 e 90 tocavam sem parar e impediam-me de despachar-me dali. Apesar da pouca visibilidade, podia-se perceber que o projetista havia dedicado especial atenção à sóbria e esmerada decoração vintage, pelo cuidado que teve com cada pequeno detalhe. 

Havia uma pequena pista de dança, no lado oposto ao bar, onde as luzes pareciam ter sido diminuídas e um grupo de pessoas ensaiava uns passos de vídeo clip, em meio a um hipnótico globo de espelhos que girava acima das cabeças dos dançarinos. 

- Adoro esta canção. Danças? 

- Nem pensar! Eu não danço. 

- Vais estragar, agora, o momento, por medo de dançar?

Minha resposta havia saído automaticamente, praticamente num reflexo defensivo de recusa. 

Eu voltei-me, para ver quem falava daquele jeito, quase íntimo, comigo. A voz parecia familiar, mas não reconheci o rosto de imediato. Uma mulher de meia-idade, de olhos verdes e cabelos claros, que os trazia presos num rabo-de-cavalo, deixando a face arredondada completamente à mostra. Tinha um brilho encantador no olhar e abriu um sorriso tão amplo e espontâneo, que pareceu demonstrar conhecer-me desde sempre. Foi aquele sorriso que fez-me reconhecê-la, mesmo depois de tanto tempo. Eu já não tinha dúvidas de quem ela era, para meu próprio espanto.

Pensei, imediatamente:

O tempo tem sido muito bom para ela! Parece tão bem e tão tranquila… 

Ela fingiu não perceber minha surpresa e, antes que me desse conta, estava sendo conduzido, pela mão, para a pista de dança, a abrir caminho entre as pessoas que amontoavam-se no longo corredor, a rir e falar alto, quase abafando o som da música. 

- Relaxa. Deixa-te levar pela música.

A voz, ao pé do ouvido, causou-me um estanho efeito. Realmente, meus músculos, especialmente os dos quadris e pernas, estavam bastante tensos. Não dançava há tanto tempo, que sentia o corpo todo a reclamar.

- Fica comigo. Abre a porta deste coração.

- Mas eu perdi a chave… já faz tanto tempo…

- Eu achei…

E ela abraçou-me com força, como quem encontra um velho e querido amigo, que há muito não via.

Apesar de sentir as pernas e os quadris doloridos com a falta de prática e tensão, deixei-me mover ao som da música, abracei seu delicado corpo com os braços cruzados às suas costas macias e não disse mais nada. Apenas deixei-me levar pelo som e pelo feitiço irresistível da canção. Ela encostou a cabeça no meu peito. Parecia tão pequena e frágil, naquele momento. 

Aquela mulher parecia necessitar estar ali naquele abraço, abrigada e protegida de todos os males. Por um momento eu esqueci onde estava e tudo que passava-se à nossa volta. Uma clara lembrança do salgueiro a proteger-nos do mundo, passou pela minha mente e eu ri. Ela percebeu.

- O que foi?

- Lembrei do salgueiro à frente da biblioteca…

- Eu também.

Ela abraçou-me com mais força, como se tivesse medo que eu me afastasse. Eu apertei seu corpo contra o meu, como se desejasse que o tempo parasse...

***

- Vamos até a praia, como costumávamos, nos nossos bons tempos? 

- Será que ainda existe aquele lugar? 

- Deve estar bem diferente, mas as coisas podem não mudam de lugar, assim… Ou mudam?

- Podem mudar… mas só saberemos se formos até lá e verificar por nós mesmos…. Como quando éramos jovens e indomáveis...

Eu fiz um muxoxo. Já não sentia-me um jovem há muito tempo. Ela riu.

- Vá lá… O tempo tem sido condescendente connosco. Não podemos reclamar.

Ela tinha uma certa dose de razão. Ainda tínhamos tanta vida à nossa frente e, apesar de amadurecidos e razoavelmente bem-sucedidos em nossas carreiras, ainda estávamos cheios de planos e de gás.

- Vamos no meu carro ou no teu?

***

O mar parecia calmo, no vai-e-vem constante das ondas a bater na areia, insistentemente, mas sabendo que pouco conseguiria fazer para mudar algo. Era como sentia minha alma naquele momento. A voz melodiosa de Bowie preenchia o ambiente e minhas memórias com uma boa dose de nostalgia. Meu olhar e meus pensamentos viajavam, sem amarras, para longe no tempo e no espaço. O vento balançava, hipnoticamente, as folhas das árvores e eu deixei-me levar, solto e tranquilo, pelas minhas próprias memórias, num caleidoscópio de imagens e emoções.

- Estás saudoso?

- Nostálgico, talvez… 

Senti a delicada mão, de dedos longilíneos a tocar-me, por trás, o ombro e voltei-me, fixando meu olhar no dela… 

A música tomou conta da minha cabeça e as palavras que trocamos deixaram de fazer mais sentido que os versos da canção, que tocava, pelo menos, pela terceira vez consecutiva, na mesma sequência, trazendo uma carga emocional bastante grande para nós os dois. 

…’For we’re like creatures in the wind

And wild is the wind,

Wild is the wind’…*

***

Eu havia-lhe dito que ainda era, praticamente, o mesmo de antes, mas sabia que aquela não era, nem de longe, toda a verdade. Eu já não sentia-me em estado selvagem há muito tempo. As muitas reviravoltas que a vida deu tornou-me um homem descrente das pessoas e de suas boas intenções. Eu já não corria riscos que não fossem muito bem calculados e com previsibilidade quase palpável. O único resquício da rebeldia da minha juventude era a teimosia… bem mais que a tipicamente esperada pelo avanço da idade… 

O que eu havia feito da minha vida? Será que bastava acreditar que era suficiente abrir mão de meus sonhos e oportunidades em nome de um bem maior? Quantos sonhos eu matei, sem, ao menos, ter tentado, durante aquele tempo todo? Quanto talento eu desperdicei, por deixar-me envolver, demais, pelos compromissos de trabalho e de relacionamentos que abafaram meu verdadeiro eu? Onde havia ficado aquele jovem aventureiro e destemido de outros tempos?

Franzi o cenho, quando a outra canção atingiu minha memória e meu coração em cheio, dando-me um golpe impiedoso e causando uma reação incontrolável. 

‘Will you see that I’m scared and I’m lonely?’…**

Fechei os olhos, para tentar conter as lágrimas… mas foi em vão. 

Ela foi até o computador, trocou a música e segurou minha mão, como se não tivesse percebido o conflito crescente dentro de mim e puxou-me contra ela, aninhando-se no meio de um abraço que ela mesma alinhavou. Ao meu ouvido, falou, baixinho:

- Não façamos planos. Sejamos soltos como o vento…

Eu senti o corpo estremecer e não disse nada. Apenas beijei-lhe a cabeça, num gesto carinhoso e espontâneo.

…’Don’t you know you’re life itself?’…*

- Danças?

- Claro!

***

* Wild is the Wind (David Bowie em Station to Station -1976)
** Sweet Thing (David Bowie em Diamond Dogs - 1974)

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Wild Like the Wind (Part 1)


- It must be at least the third time you hear this same song over and over. You’re staring out and beyond that window and across the sea for some time already.


- Oh. I’m sorry. I have not realized...

- Are you homesick?


I felt a strange and unexpected, but familiar sting, piercing my chest.


- Nostalgic, perhaps...

- Any regrets?


She came closer and touched my shoulder from behind. I turned around and looked right into those eyes I knew very well. They looked greener and brighter with the daylight coming through the window. Her pupils dilated when our eyes met and I knew very well what that meant.

I reckon I am, most of the times, a very difficult person to deal with and once I have taken a decision, I hardly ever turn back or show any sign of regret. Perhaps I simply have learned, with life, how to become a somewhat gloomy man.


- I never have regrets... My heart is still the same as always, so there is no reason for any regrets. I'm practically the same as before... as and when you met me.

- I no longer know if you are the same as before. You were so free and so wild...

- Like the wind…

- Like the song repeats endlessly...

- As my head keeps on repeating endlessly...


And I got carried away by the caring memories...

***

- Who would ever need to be alone for so long?

I laughed. I admitted that I really spent plenty of time alone but I always needed that like the air I breathed. I did not expect anyone to understand, just to accept it. I knew she was just being confrontational, so I said:


- Me!

- You are yourself so unorthodox. 

- Unorthodox? Who in perfect sense still uses this kind of word nowadays?

- I'm not going to discuss it or try to understand... either you or your insanities! And don’t make fun of my unorthodox way of speaking.


She said it laughing, as if it were the most natural thing in the world. She knew I was a lost battle and she did not want nor would fight for something she could not win. But she knew how to go around situations when she wanted something. I was a challenge to her powers of persuasion and creativity. And she loved challenges... especially the difficult ones.

The song played on the car CD player and I tried my best baritone voice to sing the well-known verses, along with the velvet and always amazing voice of the known singer.

She looked at me, looking somewhat puzzled, but said nothing else. She must have thought something really atrocious, but she just ended up laughing at my attempt to be a "cool" singer... I stopped singing and kept on humming and whispering the notes and a few words here and there, almost resisting the urge to sing as loudly as I could. She turned to the other side, as if enjoying the scenery, but I figured out that she was trying at all costs, to hold the laughter.

'How many people can value the power to make another smile? At least she is enjoying herself, even if it is at my expense’, I thought...

A wide view of the ocean opened up ahead of us when the car started going down the steep hill. The main road led to a secondary pathway which snaked down to the seaway, where a narrow dirty road hid one of our favourite beach spots.

***

We had become inseparable friends above all, from the time we were studying at the University. Either the small or the great adventures were part of what our friendship was all about. 

We used to have long discussions about our favourite books, which we read one after the other, in spite of being in a very technical course. Details and preferred parts, as well as our own interpretations of the intentions behind the words were also themes of our lengthy conversations. Music, movies and food... everything was notably part of our history. She had every Alice Cooper and Supertramp records. I was a fan of Bowie and Led Zeppelin and made a huge effort to save some money and complete my own collection.

We used to wander, wherever we could, almost aimlessly, around the country... even with little money, which was the best and riskier part of our adventures.

We were in company of each other whenever we could and people wondered if there was more than just a friendship between us. Some of them dared to ask us about it. We always denied it. In the end, we felt that going beyond that point could spoil our so innocently cultivated friendship. Time would show that our fear was completely unfounded.

We were always going together to the beach, the country side, or anyplace else. Nothing was too small for us to face, not big enough to stop us. We were like wild horses, free and adventurous. We were like seagulls, always ready to fly high and far, with eyes so far beyond the horizon, full of life and adrenaline.


- Do you think our friendship will ever cool down?

- Why worry? I like what we have... despite the adventures and our craziness, I feel it is so placid. Who can afford the luxury of being with one person and need not say anything, for long minutes and still seem to have said so much?

- I know.


She was silent for a moment, looking at the blue and white brushstroke sky, through the leaves and the long overhanging branches of the huge willow, planted around the lake, opposite to the University library. We lay on the lawn, side by side without touching one another. It was our favourite place, away from everyone and everything.


- It's all very intense, but...

- What worries you? Do you fear anything can happen and change this?

- I think it's already happening...


I turned around and looked at her, worried about what she would say, feeling a sudden discomfort rising in my chest.


- What do you mean?

- What if someone showed up in my life and wanted more than friendship from me?

- If that would make you happy...


She looked at my face.


- And if that changed what we have now? I don’t want to lose your friendship.

- It will not change anything. Unless we allow it to. And we won’t, will we?


A pale ray of light hit her blond hair framing her round face with a strange light. Her eyes looked bigger and brighter. She looked me in the eye. Her pupils dilated, almost covering those unusual iris, so green then with the bright sunlight.


- I'm afraid of losing it...

In a foolish rush of insanity, I came closer to her and for once in such a long time, I felt that she shuddered and stopped. A strange feeling filled me up. Before I realized, my lips were on hers and our arms were wrapped around each other’s bodies.

It was a simple, affectionate kiss, not exactly sexy. But both of us realized it was a sign of a great change in us and an important milestone to that friendship.

We said nothing, just moved away from each other, looking at different sides. I lay down on the grass again and closed my eyes. I thought I messed it all up. What went on through my head? She had just spoken about another man and of a possible relationship and I made that senseless and inconvenient blunder...


'I’m such a stupid man!'

I cursed my tactless attitude, now afraid of having put everything to lose. My eyes were still closed and feeling ashamed, I said:


- I apologize. I…

I gasped. The words just did not come out. I covered my face with my hands. I felt so bad. What if she hated me, from then on, to spoil the beauty of our friendship?

The wind blew over the overhanging branches of the tree around us. It was like the wind of change, signalling the end of our innocence...

I was feeling sad and helpless, unable to face her or make the time go back, even if it were only for a few seconds...

That was when I felt she was much closer to me than I thought. Her lips touched mine gently, but that time with more sensuality than when I forced the first kiss.

Without much thinking, I surrendered to that touch, awkwardly at first, but I relaxed my defences and gave my body and soul in to it, right there, in the shade of the willow tree, whose leaves and branches hid us from the world that turned around us, unconscious of what was happening in that tiny piece of protected universe...

***

- Has it been that long?

- Since that day?

I nodded, a bit sad and thoughtful.

- Of course.

- Remember how people used to envy what we had? We were so close to each other…

- Until that day...

- Leave the past back where it belongs. We have made so many mistakes and have fixed some, somehow... Let’s not think about it anymore.

I came up and looked into her eyes, as I used to do so often before that. She still had that spark that ignited when our eyes crossed.

I wondered for what reason we had left the fear intervene in what there was between us.

So long… so much lost... two kisses, twice the same mistake... and that friendship, once so innocent, spoilt by the heat of the moment and a sense of misplaced and inconvenient guilt... that separated us for too long.

Our lives went on in separate ways, as they should go. Two marriages, two divorces... one of each... so much story to tell or to be forgotten...

My divorce had been so long past, I could not even remember what it was like to live with someone again. I was back to being the lonely and wild man, living by my own rules and keeping myself distant from relationships and people...

Who could say, however, that the same song, after all that time, would bring us together once again?

***

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Indomável como o Vento... (Parte 1)


- Deve ser, pelo menos, a terceira vez que ouves esta canção, nesta mesma sequência. Estás a olhar para além da janela e além do mar já há algum tempo.

- Desculpe. Nem havia dado conta…

- Estás saudoso?

Eu senti um estranho, inesperado e familiar aperto no peito e engoli em seco.

- Nostálgico, talvez…

- Algum arrependimento?


Ela aproximou-se e tocou-me o ombro, por trás. Voltei-me e olhei bem dentro daqueles olhos que eu tanto conhecia. Pareciam mais verdes e brilhantes, com a luz do dia, que entrava pela janela. Suas pupilas dilataram-se quando nossos olhares encontraram e eu sabia muito bem o que aquilo significava.

Reconheço que eu seja uma pessoa difícil de lidar e uma vez que tenha tomado uma decisão, dificilmente volto atrás ou demonstro qualquer sinal de pesar. Talvez eu, simplesmente, tenha aprendido, com a vida, a tornar-me um homem fatalista demais.

- Jamais me arrependeria… Meu coração continua como sempre foi, por isso não há razão para quaisquer arrependimentos. Eu sou, praticamente, o mesmo de antes… como e quando tu me conheceste. 

- Eu já não sei se és o mesmo de antes. Eras tão livre e tão indomável…

- Como o vento…

- Como a canção repete sem parar… 

- Como a minha cabeça repete sem parar…

E eu deixei-me levar pelas lembranças… 

***

- Quem é que precisa ficar, tanto tempo, sozinho? 

Eu ri. Admitia que realmente passava muito tempo sozinho e sentia aquela necessidade, como do ar para respirar. Não esperava que alguém compreendesse, apenas que aceitasse. Também sabia que era provocação, por isso respondi:

- Eu!

- Tu és mesmo uma aberração. Mas nem vou discutir, nem tentar entender…

Falou aquilo rindo, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Sabia que era batalha vencida e não queria, nem iria lutar por algo que não pudesse vencer. Mas ela sabia contornar situações, quando desejava algo. Eu era um desafio ao seu poder de persuasão e criatividade. E ela adorava desafios… especialmente os difíceis.

A canção tocava no CD Player do carro e eu impostei a voz e cantei os versos conhecidos, junto com a voz de veludo e sempre surpreendente do cantor. 

Ela olhou-me, parecendo um tanto intrigada, mas não disse nada. Deve ter pensado algo muito horrível, mas limitou-se a rir… da minha postura de cantor “cool”… Eu parei de cantarolar e limitei-me a murmurar as notas e algumas palavras, quase resistindo a vontade de soltar a voz a plenos pulmões. Ela olhou para o outro lado, como se apreciasse a paisagem, mas eu percebi que tentava, a todo custo, conter as risadas. 

Quantas pessoas conseguem valorizar o poder de fazer a outra sorrir? Pelo menos está a divertir-se, mesmo que às minhas custas’, pensei eu…

Uma ampla vista do oceano abria-se à nossa frente, quando o carro começou a descer o íngreme morro. A via principal serpenteava até próxima da praia, onde uma estradinha escondia um de nossos recantos favoritos.

***

Havíamo-nos tornado grandes amigos, antes e acima de tudo, desde os tempos da Universidade. Tanto as pequenas, quanto as grandes aventuras, faziam parte da nossa amizade. Desde as discussões sobre nossos livros favoritos, que líamos uns atrás dos outros, para depois discutir os detalhes, fazendo nossas críticas e discussões sobre as partes favoritas, até os discos, músicas, filmes e comida… tudo era notavelmente parte de nossa história. Ela tinha todos os discos de Alice Cooper e Supertramp. Eu era fã de Bowie e Led Zeppelin e fazia um esforço enorme para economizar algum dinheiro e completar minha coleção. 

Viajávamos, sempre que conseguíamos, praticamente sem destino, pelo país afora… mesmo com pouco dinheiro, o que era a parte mais gostosa das nossas aventuras.

Andávamos juntos sempre que podíamos e as pessoas perguntavam se ali havia mais que uma simples amizade. Nós sempre negávamos. No fundo, ir além daquilo, podia estragar aquela amizade tão inocentemente cultivada. O tempo mostrou que aquele medo era completamente infundado.

Saíamos em aventuras sem destino, pela praia, pelo país, pela vida. Nada era pequeno para nós, nem grande o suficiente para nos parar. Éramos como cavalos selvagens: livres e aventureiros. Éramos como gaivotas, sempre prontos a voar alto e longe, com os olhos além dos horizontes, cheios de vida e de adrenalina. 

- Achas que essa amizade vai, um dia, arrefecer?

- Por que isso me preocuparia? Eu gosto do que nós temos… apesar das aventuras e das loucuras, é tão tranquilo. Quem pode dar-se ao luxo de estar com uma pessoa e não precisar dizer nada, por longos minutos e, ainda assim, parecer que disse muito?

- Eu sei

Ela ficou em silêncio por uns instantes, a olhar o céu, pintado com pinceladas azuis e brancas, entre as folhas e os longos e pendentes galhos do imenso salgueiro, plantado à volta do lago. Estávamos deitados na relva, lado a lado, sem tocarmos um no outro. Era nosso lugar favorito, longe de todos e de tudo.

- É tudo muito intenso, mas…

- O que é que te preocupa? Tens receio que aconteça algo?

- Acho que já está acontecendo…

Eu levantei o torso, apoiado nos cotovelos e olhei-a, preocupado com o que ela iria dizer. Senti um súbito desconforto no peito.

- Como assim?

- E se aparecesse alguém na minha vida, que quisesse mais que amizade de mim? 

- Se isso te fizesse feliz…

Ela olhou-me de frente. 

- E se isso mudasse a nossa amizade e isso que nós temos? Não quero perder a tua amizade.

- Não vai mudar nada. A não ser que que nós deixemos. E não vamos deixar, vamos?

Ela olhou-me nos olhos. Suas pupilas dilataram-se, quase a cobrir aquelas incomuns íris, tão mais verdes, com a luz do sol.

- Eu tenho receio de perder…

Num tolo ímpeto de insanidade, eu aproximei-me mais ainda dela e, pela primeira vez, em tanto tempo, senti que ela estremeceu e calou-se. Uma sensação estranha apossou-se de mim. Quando dei conta, nossos lábios estavam colados e nossos braços fechados à nossa volta

Foi um beijo simples e carinhoso, não exatamente sensual. Mas ambos percebemos que era sinal de uma grande mudança em nós Era um marco importante naquela amizade. 

Não dissemos nada, apenas nos afastamos devagar, sérios e olhando para lados diferentes. Deitei-me na relva novamente e fechei os olhos. Talvez houvesse estragado tudo. O que passou-se pela minha cabeça? Ela acabava de falar em um outro e em uma possível relação e eu fizera aquela asneira… 

‘Que burro! Estúpido!’

Eu amaldiçoava a minha atitude impensada, agora com receio de haver posto tudo a perder. Ainda de olhos fechados e sentindo vergonha, eu falei:

- Peço imensas desculpas. Eu…

Engasguei. As palavras, simplesmente, não saíram. Cobri o rosto com as mãos. Eu senti-me um invasor. E se ela me odiasse, dali para frente, por estragar a beleza da nossa amizade? 

O vento soprou os galhos pendentes da árvore à nossa volta. Era como se fosse o vento da mudança, anunciando o fim da nossa inocência… 

Deixei meus braços caírem para os lados, sentindo-me triste e impotente para fazer o tempo voltar atrás, nem que fossem, apenas, uns poucos segundos …

Foi quando senti que ela estava muito mais perto de mim, que eu julgava. Seus lábios tocaram os meus, suavemente, porém, desta vez, com mais sensualidade que quando eu forcei o primeiro beijo. 

Sem pensar muito, eu correspondi a aquele toque, desajeitadamente, no começo, mas relaxei as defesas e entreguei-me a ela, de corpo e alma, ali mesmo, à sombra do salgueiro, cujas folhas e galhos escondiam-nos do mundo que girava à nossa volta, sem perceber o que acontecia naquele minúsculo pedaço protegido de universo…

***

- Faz tanto tempo assim?

- Desde aquela vez? 

Acedi com a cabeça, um pouco entristecido e pensativo.

- Claro que sim.

- Lembras como as pessoas costumavam invejar o que nós tínhamos? 

- Até aquele dia…

- Deixa o passado lá atrás, onde ele pertence. Já cometemos tantos erros e já corrigimos alguns… Não pensemos mais nisso. 

Eu voltei-me e olhei-a nos olhos, como tantas vezes antes daquela. Ainda havia aquela centelha que acendia, quando nossos olhares cruzavam. 

Questionei-me por qual razão nós havíamos deixado o receio intervir no que havia entre nós. 

Tanto tempo perdido… dois beijos, duas vezes o mesmo erro… e aquela amizade, antes tão inocente, estragada, pelo calor do momento e por um sentimento de culpa descabido e inconveniente… que nos separou por tempo longo demais. 

Nossas vidas continuaram separadas, como não poderia deixar de ser. Dois casamentos, dois divórcios… um de cada… tanta história a ser contada ou esquecida…

O meu divórcio havia sido há tanto tempo, que eu já nem lembrava mais como era conviver com alguém. Voltara a ser o homem solitário e selvagem de tanto tempo atrás, vivendo segundo minhas próprias regras e cada vez mais distante dos relacionamentos e das pessoas… 

Quem poderia dizer, porém, que aquela mesma canção, depois de tanto tempo, iria nos aproximar uma vez mais?

***