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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Indomável como o Vento (Parte 2)


Havia estado, por um bom tempo, encostado no balcão do bar, amaldiçoando minha decisão de forçar-me a sair de casa, para distrair-me. Devia ter ido ao cinema. Pelo menos estava seguro e, com certeza iria ser menos aborrecido. Ali, sentia-me completamente fora do meu meio natural. Menos de uma hora naquele lugar e eu já sabia que jamais voltaria a fazer tamanha façanha. Eu, definitivamente, não pertencia a aquele ambiente. 

As galerias estavam apinhadas de gente a beber, conversar e rir alto. Pareciam divertir-se, mormente devido ao efeito do álcool. Eu não. Sentia-me bastante mal. Aquele era um local que na minha juventude eu teria frequentado, espontânea e frequentemente, não só pelo estilo de ambiente, mas especialmente pelo bom gosto da seleção musical do DJ

A música, na verdade, havia sido a única razão pela qual eu ainda não havia saído correndo do pub, prometendo nunca mais voltar. Os clássicos das décadas de 70, 80 e 90 tocavam sem parar e impediam-me de despachar-me dali. Apesar da pouca visibilidade, podia-se perceber que o projetista havia dedicado especial atenção à sóbria e esmerada decoração vintage, pelo cuidado que teve com cada pequeno detalhe. 

Havia uma pequena pista de dança, no lado oposto ao bar, onde as luzes pareciam ter sido diminuídas e um grupo de pessoas ensaiava uns passos de vídeo clip, em meio a um hipnótico globo de espelhos que girava acima das cabeças dos dançarinos. 

- Adoro esta canção. Danças? 

- Nem pensar! Eu não danço. 

- Vais estragar, agora, o momento, por medo de dançar?

Minha resposta havia saído automaticamente, praticamente num reflexo defensivo de recusa. 

Eu voltei-me, para ver quem falava daquele jeito, quase íntimo, comigo. A voz parecia familiar, mas não reconheci o rosto de imediato. Uma mulher de meia-idade, de olhos verdes e cabelos claros, que os trazia presos num rabo-de-cavalo, deixando a face arredondada completamente à mostra. Tinha um brilho encantador no olhar e abriu um sorriso tão amplo e espontâneo, que pareceu demonstrar conhecer-me desde sempre. Foi aquele sorriso que fez-me reconhecê-la, mesmo depois de tanto tempo. Eu já não tinha dúvidas de quem ela era, para meu próprio espanto.

Pensei, imediatamente:

O tempo tem sido muito bom para ela! Parece tão bem e tão tranquila… 

Ela fingiu não perceber minha surpresa e, antes que me desse conta, estava sendo conduzido, pela mão, para a pista de dança, a abrir caminho entre as pessoas que amontoavam-se no longo corredor, a rir e falar alto, quase abafando o som da música. 

- Relaxa. Deixa-te levar pela música.

A voz, ao pé do ouvido, causou-me um estanho efeito. Realmente, meus músculos, especialmente os dos quadris e pernas, estavam bastante tensos. Não dançava há tanto tempo, que sentia o corpo todo a reclamar.

- Fica comigo. Abre a porta deste coração.

- Mas eu perdi a chave… já faz tanto tempo…

- Eu achei…

E ela abraçou-me com força, como quem encontra um velho e querido amigo, que há muito não via.

Apesar de sentir as pernas e os quadris doloridos com a falta de prática e tensão, deixei-me mover ao som da música, abracei seu delicado corpo com os braços cruzados às suas costas macias e não disse mais nada. Apenas deixei-me levar pelo som e pelo feitiço irresistível da canção. Ela encostou a cabeça no meu peito. Parecia tão pequena e frágil, naquele momento. 

Aquela mulher parecia necessitar estar ali naquele abraço, abrigada e protegida de todos os males. Por um momento eu esqueci onde estava e tudo que passava-se à nossa volta. Uma clara lembrança do salgueiro a proteger-nos do mundo, passou pela minha mente e eu ri. Ela percebeu.

- O que foi?

- Lembrei do salgueiro à frente da biblioteca…

- Eu também.

Ela abraçou-me com mais força, como se tivesse medo que eu me afastasse. Eu apertei seu corpo contra o meu, como se desejasse que o tempo parasse...

***

- Vamos até a praia, como costumávamos, nos nossos bons tempos? 

- Será que ainda existe aquele lugar? 

- Deve estar bem diferente, mas as coisas podem não mudam de lugar, assim… Ou mudam?

- Podem mudar… mas só saberemos se formos até lá e verificar por nós mesmos…. Como quando éramos jovens e indomáveis...

Eu fiz um muxoxo. Já não sentia-me um jovem há muito tempo. Ela riu.

- Vá lá… O tempo tem sido condescendente connosco. Não podemos reclamar.

Ela tinha uma certa dose de razão. Ainda tínhamos tanta vida à nossa frente e, apesar de amadurecidos e razoavelmente bem-sucedidos em nossas carreiras, ainda estávamos cheios de planos e de gás.

- Vamos no meu carro ou no teu?

***

O mar parecia calmo, no vai-e-vem constante das ondas a bater na areia, insistentemente, mas sabendo que pouco conseguiria fazer para mudar algo. Era como sentia minha alma naquele momento. A voz melodiosa de Bowie preenchia o ambiente e minhas memórias com uma boa dose de nostalgia. Meu olhar e meus pensamentos viajavam, sem amarras, para longe no tempo e no espaço. O vento balançava, hipnoticamente, as folhas das árvores e eu deixei-me levar, solto e tranquilo, pelas minhas próprias memórias, num caleidoscópio de imagens e emoções.

- Estás saudoso?

- Nostálgico, talvez… 

Senti a delicada mão, de dedos longilíneos a tocar-me, por trás, o ombro e voltei-me, fixando meu olhar no dela… 

A música tomou conta da minha cabeça e as palavras que trocamos deixaram de fazer mais sentido que os versos da canção, que tocava, pelo menos, pela terceira vez consecutiva, na mesma sequência, trazendo uma carga emocional bastante grande para nós os dois. 

…’For we’re like creatures in the wind

And wild is the wind,

Wild is the wind’…*

***

Eu havia-lhe dito que ainda era, praticamente, o mesmo de antes, mas sabia que aquela não era, nem de longe, toda a verdade. Eu já não sentia-me em estado selvagem há muito tempo. As muitas reviravoltas que a vida deu tornou-me um homem descrente das pessoas e de suas boas intenções. Eu já não corria riscos que não fossem muito bem calculados e com previsibilidade quase palpável. O único resquício da rebeldia da minha juventude era a teimosia… bem mais que a tipicamente esperada pelo avanço da idade… 

O que eu havia feito da minha vida? Será que bastava acreditar que era suficiente abrir mão de meus sonhos e oportunidades em nome de um bem maior? Quantos sonhos eu matei, sem, ao menos, ter tentado, durante aquele tempo todo? Quanto talento eu desperdicei, por deixar-me envolver, demais, pelos compromissos de trabalho e de relacionamentos que abafaram meu verdadeiro eu? Onde havia ficado aquele jovem aventureiro e destemido de outros tempos?

Franzi o cenho, quando a outra canção atingiu minha memória e meu coração em cheio, dando-me um golpe impiedoso e causando uma reação incontrolável. 

‘Will you see that I’m scared and I’m lonely?’…**

Fechei os olhos, para tentar conter as lágrimas… mas foi em vão. 

Ela foi até o computador, trocou a música e segurou minha mão, como se não tivesse percebido o conflito crescente dentro de mim e puxou-me contra ela, aninhando-se no meio de um abraço que ela mesma alinhavou. Ao meu ouvido, falou, baixinho:

- Não façamos planos. Sejamos soltos como o vento…

Eu senti o corpo estremecer e não disse nada. Apenas beijei-lhe a cabeça, num gesto carinhoso e espontâneo.

…’Don’t you know you’re life itself?’…*

- Danças?

- Claro!

***

* Wild is the Wind (David Bowie em Station to Station -1976)
** Sweet Thing (David Bowie em Diamond Dogs - 1974)