Que olhos lindos
Que olhos lindos tem a Rosa
Que ainda hoje
Ainda hoje eu reparei
Se eu reparasse,
Se eu reparasse há mais tempo
Eu não amava,
Eu não amava quem amei…
As crianças brincavam de mãos dadas, formando um círculo, que movia-se em sentido horário. Eu observava, de longe, os movimentos, a cantiga, as risadas e a folia imensa e ingénua que elas faziam. A menina Rosa, uma loirinha de cabelos cacheados, tinha as faces afogueadas, tanto por uma certa porção de timidez, quanto pelo calor que fazia, naquela manhã de verão. O pátio, diferentemente do que eu havia idealizado e concebido no projeto original, era rodeado de grandes árvores, cujas amplas e frondosas copas delineavam desenhos abstratos de luz e sombra, no chão coberto com uma espessa camada de areia fina e solta. O propósito, naturalmente, era ser, o mais possível, à prova de machucados nas crianças… à toda prova de crianças, para bem dizer a verdade. Reconheci que o resultado ficou muito melhor que eu imaginara, quando o projetei. Da minha janela, via-se, claramente, as atividades no grande pátio.
As professoras acompanhavam, com olhos atentos, os movimentos de todos, sempre prontas a correr, se necessário fosse, para resolver alguma disputa ou socorrer alguma emergência. Pensei que haviam criado um bom clima naqueles miúdos, que não pareciam carregar nenhum preconceito quanto à brincadeira de roda. Naquela idade era mais fácil controlarem ou contornarem os preconceitos que vão-se formando com o tempo, por influência da sociedade ou das famílias. Aquela brincadeira de meninos e meninas, sem tempo ou possibilidade de levantar suspeições machistas ou feministas agradava-me de todo.
Eu sentia orgulho daquilo que havíamos conseguido na escola. Não éramos nada especiais, apenas tentávamos ser o mais livres de preconceitos que pudéssemos, para criar crianças saudáveis e ilimitadas em criatividade. O colégio seguia uma linha experimental de educação, onde a liberdade de expressão era estimulada ao limite.
As aulas, no verão e com bom tempo, eram dadas ao ar livre, em baixo das árvores, assim como as refeições, que eram partilhadas igualmente e com a participação de todos, tanto na organização quanto na distribuição e posterior limpeza do local. A ideia havia sido inspirada em um modelo japonês e até então não havíamos tido quaisquer problemas ou restrições dos pais ou das crianças. Nenhuma forma de expressão era retida, desde que fosse para criação e o progresso de uma mentalidade avançada em termos sociais e artísticos. O respeito e aceitação que as crianças sentiam pelos colegas e pelos mestres era destacável e evidente.
Salada, saladinha bem temperadinha
Com sal, pimenta
Vinagre e etc.
No terreno atrás do prédio principal da escola tínhamos algumas árvores frutíferas plantadas. Além das nossas atividades normais, estimulávamos o contato com a natureza, através do cultivo de uma pequena horta, que servia de fornecedor para parte das refeições das crianças, com alguns legumes e vegetais para saladas, a maioria de fácil lavoura e que cobriam uma boa parte dos custos que poderiam haver, se não as tivéssemos. Ainda criávamos algumas galinhas, que nos forneciam ovos e das quais também aproveitávamos o estrume, para adubar a terra.
Também estimulávamos o contato com os animais, especialmente os de estimação, que promoviam um clima de carinho, respeito e segurança, livrando as crianças de medos infundados e dando-lhes maior confiança. Em conjunto com uma entidade que recolhia animais de rua e uma clínica veterinária, acolhíamos os animaizinhos e promovíamos a reintegração dos mesmos em lares permanentes. Os animais adultos eram mais difíceis de ser recolocados, mas aquilo não nos constituía problema, pois a escola mantinha-os abrigados e com boa saúde. Eles acabavam por fazer parte do sistema e da educação das crianças.
Um deles, Ginger, um gato ruivo de idade avançada, que estava sempre por perto, como se vigiasse e assegurasse que tudo estivesse bem no ambiente, vivia connosco desde sempre. As crianças aprenderam a lidar com ele e com seu comportamento, observando e interpretando, com acuidade, os sinais que enviava. Ginger era sociável e calmo, sendo respeitado e acarinhado como parte da classe, que ele tomava como sua propriedade e território.
Eu estava contente e satisfeito com o sucesso que vínhamos conseguindo com aquele grupo de crianças. Éramos vistos como projeto piloto de escola e de sistema de educação. Apesar de não estarmos localizados em uma área essencialmente urbana, sobretudo pela necessidade de espaço na propriedade, para nossos projetos paralelos, tínhamos alunos de várias localidades da região, com idades entre 3 e 8 anos.
Fora da escola ainda fazíamos excursões programadas às galerias de arte e museus, sempre que haviam exposições que valessem a pena e, ainda, à Biblioteca Pública Municipal.
Em época próxima do verão, com bom tempo, levávamos os pequenos à uma praia que havia muito próxima e que era demarcada por rochedos em ambos os lados. Era uma área muito particular e por ter os limites muito bem delineados, era-nos fácil controlar os movimentos de todos. Nestas curtas excursões, era permitido levar os animaizinhos para brincar com as crianças. Ginger era um passageiro frequente e estava sempre por perto das crianças, que o respeitavam e traziam-lhe brinquedos e comida. O atento felino recebia de bom grado aqueles presentes e participava, como podia, dos folguedos.
Caranguejo não é peixe,
Caranguejo peixe é;
Caranguejo só é peixe
Na enchente da maré.
Ora, palma, palma, palma
Ora, pé, pé, pé
Ora, roda, roda, roda,
Caranguejo peixe é…
Eu estava sentado na areia a observar o grupo de miúdos, que brincava de roda e divertia-se a jogar-se na areia fofa e branca, quando a cantiga terminava. As gargalhadas soltas e espontâneas faziam-me rir, satisfeito, do que havia conquistado com eles.
Um pequeno caranguejo-branco-da-areia saiu de uma toca e veio na direção de um dos menores, que ficou a olhar o bichinho mover-se, naquele caminhar engraçado. Os olhos estirados para fora do corpo movimentavam-se com atenção e com curiosidade menor que a daquelas crianças. Ginger levantou-se e veio para a beira deles. Se foi por curiosidade ou por instinto protetor, eu não consegui distinguir, mas fiquei impressionado pela forma com que ele parecia mostrar-se presente e disposto. Era mesmo uma figura de suporte à segurança dos nossos alunos. O caranguejo levantou as pinças, como a defender-se do gato, que deu um passo atrás, depois levantou a pata e deu um toque no bichinho, que recuou e voltou a esconder-se na toca de onde havia saído. Ginger ainda foi até a beira do estreito buraco, para certificar-se que o crustáceo não ia mais sair e ali manteve atento plantão por um bom tempo.
As crianças riram-se e aplaudiram o salvador, que se sentiu o verdadeiro dono da praia.
- Ele é esperto!
- Pois é!
Eu voltei-me para conversar com quem eu pensei ser uma das professoras ou uma das auxiliares, mas, ao virar-me, fui pego de surpresa. Não era nem uma nem outra. Eu pensei, quase em alta voz:
- Mas o que esta mulher está fazendo aqui?
Minha cabeça deu uma reviravolta. Não podia ser…
Pedaços de passado... para variar...
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