sábado, 18 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 2)


- Estás bem? Sentes alguma dor?
O cenho franzido e o olhar vazio mostravam evidências que o rapaz estava bastante confuso e fazendo um enorme esforço para perceber o que se passava, naquele momento, no pequeno quarto de hospital, rodeado por pessoas, vestidas de branco e que ele desconhecia totalmente.
Havia, também, um homem mais maduro, vestido com roupas mais normais, a observar a cena toda, com olhos muito atentos, mas sem proferir nenhuma palavra. Tinha o rosto arredondado e amigável, barba castanho-avermelhada e os cabelos castanho-claros rareavam no topo da cabeça. Por alguma razão, que ele não conseguia explicar, sentiu uma simpatia imediata por aquele homem encostado contra a parede imaculadamente branca do quarto de hospital.
O médico acabara de testar todos os seus sinais vitais, auscultara-o e, agora, examinava-o com uma pequena lanterna. Já haviam feito todos os possíveis exames, incluindo raios X e ultrassons, para verificar a saúde dos órgãos. Fisicamente, o jovem estava bem. Restava-lhes saber se a batida na cabeça trouxera algum efeito colateral à sua capacidade mental e resposta cognitiva.
- Consegues compreender o que eu digo? Lembras de alguma coisa? Qualquer coisa: teu nome, de onde vens, quem tu és…
O rapaz não exibia qualquer alteração naquela expressão distante. Talvez estivesse, mesmo, fazendo uma tentativa descomunal para ajustar o cérebro e compreender a mensagem, expressa pelas palavras do médico, que acabara de examiná-lo, completamente e que insistia em saber qualquer coisa a seu respeito.
- Compreendes o que eu digo?
- Eu percebo as palavras, mas é tudo tão confuso…
A pressão, que era colocada nele, com aquelas perguntas, não parecia ajudar. Era melhor deixar o rapaz descansar um pouco. O médico chamou o homem mais velho para fora do quarto, com um sinal de cabeça.
***
- Foste encontrado por mim, na praia. Estavas completamente nu e com um ferimento bastante feio na cabeça. Já esperávamos que a memória fosse afetada por uma concussão. Consegues compreender bem o que eu digo?
O rapaz acenou que sim, com a cabeça.
- Por mais que eu tente, não consigo trazer nada à memória. A minha mente é só um branco completo...
O ferry seguia, em direção à ilha, em sua velocidade de cruzeiro, trazendo, junto consigo, aqueles dois homens tão diferentes, sentados lado a lado, cada qual com sua própria história e com seus complexos passados. Em cada cabeça, uma intenção diferente: tentar resgatar o que estava esquecido e tentar esquecer o que nunca deixava de ser relembrado…
***
O pescador havia sentido que tinha certa responsabilidade sobre o rapaz, por havê-lo encontrado e, em comum acordo com a administração do hospital, decidira trazê-lo consigo à ilha, para tentar ajudá-lo a recuperar a memória perdida.
Caminhavam pela praia, indo na direção do local onde fora encontrado, pelo pescador, depois da noite de tempestade. O rapaz diminuiu o passo e olhou para o homem, como se o conhecesse bem e disse:
- Por que te escondes nesta ilha, longe de tudo e de todos e nesta profissão que não é a tua?
- E como sabes disso?
- Não sei explicar. Apenas sinto. E também sinto que há muito mais a dizer, mas evitas…
- Não evito nada…
O homem mais velho franziu o cenho e evitou olhar diretamente para o jovem, que caminhava ao seu lado. Pensou consigo mesmo que não tinha que dar nenhuma satisfação ao outro, mas uma sensação estranha de que podia confiar no rapaz e abrir-se, passou por sua mente.
Mexer com o passado, depois de tanto tempo, não parecia-lhe uma boa coisa, entretanto. Alguns cadáveres não precisavam ser exumados. Melhor deixar seu passado onde ele ficava melhor: lá atrás e bem longe, nos tempos mais pretéritos possíveis. Quanto mais distante e intocado, melhor…
O rapaz voltou a olhar o homem, com atenção e sorriu, mais para si do que para ser percebido, ante aquela resposta, disparada, quase impacientemente e sem contato visual.
- Eu tenho que respeitar-te, não somente pelo que fazes por mim, mas por quereres manter teus segredos bem guardados. Se é assim que preferes, não há o que se possa dizer. Espero que saibas o que fazes.
- E sei… É este o lugar. Foi aqui que te encontrei. Queres ficar sozinho?
O rapaz olhou à volta. Embora constatasse que o lugar era calmo e de uma beleza natural praticamente intocada e quase selvagem, trazendo-lhe uma sensação de tranquilidade, não evocava-lhe nenhuma lembrança.
- Não sei. Este lugar não me diz nada. O facto de haver sido encontrado aqui, não significa que o acidente… ou incidente… tenha ocorrido aqui por perto, de qualquer jeito.
Ele tinha razão. Tanta coisa poderia ter acontecido: um acidente, um assalto, uma infeliz coincidência... O lugar poderia não ter relação nenhuma com o que realmente havia acontecido.
O homem olhou para o rapaz. Ele não parecia preocupado em descobrir de onde viera, para onde iria, quem havia sido, ou o que poderia vir a descobrir, quando recuperasse a memória. Aparentemente, a única coisa que importava, a ele, era estar vivo. Um passado do qual lembrar, era um peso desnecessário, que ele não carregava consigo. Aquilo parecia ser suficiente para um homem que tão pouco sabia sobre si mesmo.
Que sensação estranha! Ele fez uma viagem rápida dentro de si e pensou em como eram tão diferentes. Não ter um passado parecia ser bem mais fácil que esforçar-se para esconder-se do seu...
Estavam os dois de pé, lado a lado, a olhar o horizonte, cada qual absorto em seus próprios pensamentos... Tão próximos e tão distantes, ao mesmo tempo. O rapaz fechou os olhos e sentiu o vento a mexer com seus cabelos claros, a tocar sua pálida pele, a trazer os aromas agradáveis do salitre e das algas e a encher-lhe de vida.
Vida. Que conceito estranhamente forte e frágil, ao mesmo tempo. Era uma realidade, ou uma ilusão que nós sempre carregamos? Quão imprevisível pode ser o viver? Quão despropositado é manter-se fisicamente sadio e mentalmente são? Por que aqueles pensamentos enchiam-lhe a cabeça, como o ar enchia-lhe o peito? Por que ele sentia-se bem naquele lugar, sabendo que nada ali era-lhe caro? Por que tantas perguntas e nenhuma resposta? Ele suspirou, inspirando o ar do oceano, naquele lugar que passara a ser seu tudo: seu presente e seu futuro… e, talvez, seu único refúgio, até aquele momento…
- Vamos voltar? Estou com fome. Vou preparar alguma coisa para comermos. Se quiseres ficar mais um pouco, é contigo...
- Eu gostaria de ficar só um pouco mais, se não for incômodo... Gosto desta paz e desta sensação de silêncio na alma.
- Não é problema, claro. Até já.
***
O homem mais velho levantou-se e retirou os pratos da mesa. Haviam jantado, sem trocarem muitas palavras. Apreciavam a companhia um do outro, mas eram, ambos, económicos nas conversas, já que os assuntos ainda tenderiam a girar numa esfera muito restrita de assuntos, que eram evitados, na sua maioria, pelos dois.
O rapaz recolheu o restante da louça e os talheres e pousou-os na pia, com cuidado. Virou-se, caminhou até a porta que dava para a varanda e saiu, debruçando-se sobre o pequeno parapeito, a olhar o vazio da escuridão, ouvindo, não muito longe, a cantiga suave e monótona do mar. O ar estava um tanto frio, mas ele não se importava. Gostava do frio quase ameno do outono e dos sons típicos da noite da ilha.
O outro homem ficou a observar, de dentro da casa, aquele indivíduo tão mais jovem que ele, com tanta vida ainda pela frente e nenhuma memória a reviver. Pelo menos, pensou, não havia como sentir qualquer tipo de nostalgia…
Quantos planos deveriam ter sido feitos em algum ponto de sua curta vida e, agora, estavam abandonados, sem conclusão? Quantas possibilidades ainda iriam abrir-se, para ele, no futuro? Provavelmente, muitas delas viriam a ser encaradas como se nunca houvessem sido planejadas, mesmo já havendo sido... Uma página… ou muitas, todas ainda em branco e com tanto ainda a ser escrito pelas mãos do destino. Era como se as páginas anteriores houvessem sido estranhamente arrancadas daquele livro, deixando-o como novo e pronto a ser reusado. Só restava-lhe recomeçar daquele ponto e reescrever novas histórias...
O pescador pensou em si mesmo e como gostaria de poder ter uma oportunidade, também, de reescrever sua vida. Riu de si mesmo, ao pensar que ali, na mesma casa, estavam dois seres tão opostos e com objetivos tão díspares, em relação ao passado e, mesmo assim, com tanto futuro pela frente.
Entrou na varanda com uma caneca de café quente nas mãos e ofereceu ao outro, que aceitou, sorrindo. Debruçou-se no parapeito, ao lado do rapaz. Ficaram os dois a olhar para a grande escuridão aberta à frente deles, a ouvir o monótono marulhar do oceano a acariciar a ilha, cada qual a deixar seus próprios pensamentos voarem com o vento da noite.
- Tu já pagaste pelo teu erro. Já podias ter-te perdoado e tocado a vida adiante.
- Como podes saber se já paguei? Como podes dizer-me para levar a vida adiante? Já não estou vivendo uma outra vida?
- Não é o que os teus olhos dizem... Eles tem sempre um distanciamento tão grande e uma tristeza tão tocante...
O homem fechou-se, em sua casca. Não queria reviver sua angústia e seu sentimento de culpa. Sim, ele já havia pago a sua dolorosa pena.
Uma cirurgia, em que a paciente não sobrevivera à intervenção, era motivo grave suficiente, para ficar vivo na memória, por muito tempo. Sim, ele havia operado embriagado, mas que outra opção tivera? De todas as formas, fora julgado e condenado. O veredito fora homicídio culposo, com pena de prisão por três anos. O crime foi considerado inafiançável, devido ao grau de negligência e culminara com a perda da licença e do direito de exercer a profissão de médico, definitivamente. A sentença havia sido devidamente cumprida, na sua totalidade, apesar das tentativas de redução, feitas por um advogado caro e conhecido pela sua competência.
Entre sentimentos de culpa e uma indignação muito grande, ele havia enterrado tudo e recomeçado, naquela ilha, longe de todos aqueles com os quais conviveu e que o abandonaram, completamente, enquanto cumpria a pena na penitenciária. Ali, era um completo desconhecido e seu passado não interessava a ninguém. O que ele gostava, naquela comunidade, era que podia ter sua vida e ninguém parecia interessado em saber mais que ele quisesse mostrar ou, de alguma forma, julgá-lo. Ele também não tinha interesse em saber das vidas dos outros. Não tinha tempo, nem vontade para aquilo.
Mas, ao rapaz sem passado, ele alimentava um genuíno interesse. Sentia que devia ajudar aquela criatura a encontrar-se e tocar sua vida adiante, também. Por algum motivo, ele sentia-se responsável pelo rapaz, pelo menos até que recuperasse a memória.
***
 O médico veio, como habitualmente, numa pálida quinta-feira e chamou os dois ao consultório. Examinou o rapaz, rotineiramente, perguntou como se sentia e pediu para sentar-se. Pela forma como começou a conversa, parecia que ia fazer uma declaração séria. Pegou um envelope pardo de dentro da maleta, pigarreou e disse:
- Recebemos um relatório da Polícia. Acredito que vocês vão achar interessante…
Entregou o envelope ao rapaz e esperou, para ver sua reação. O rapaz abriu, leu e entregou ao pescador, para que o lesse também. O médico reconheceu naquele ato, uma prova de confiança. O homem folheou as poucas páginas e devolveu o relatório ao seu legítimo dono.
- Faz sentido. Achas que ajuda?
- Não sei, ainda. Por enquanto, não há nada que eu possa dizer. Não é tão fácil ler isto e achar que minha memória é logo restituída. Parece que não funciona assim, afinal, por mais que me esforce para tal.
O médico terminou a consulta e dispensou a si mesmo do trabalho, já que não havia mais ninguém a ser atendido naquele dia. Convidou os dois a acompanharem-no até o Café, para conversarem um pouco mais relaxadamente. O médico sabia que as cabeças dos dois… e a dele também… estavam a trabalhar ferventemente. 

O café era, na verdade e apenas, um pretexto subtil para discutirem o que haviam acabado de ler e, além do mais, ele ainda tinha algum tempo, antes de voltar para o continente.

***

domingo, 12 de julho de 2015

Of Sea and Men (Part 1)


The man was standing by the window holding a mug of a hot and strong black coffee in his hard, thick hands, watching the annoying cold drizzle falling down over the island. The weather had been like that for various days... It had not changed for far too many days, in fact. He thought his work could not be left aside for any longer. It was a matter of survival… Simple like that…

He put his winter coat on, although it was still early autumn, finished his coffee and came out to face the early morning chilly air. The wind and rain hit his worn out aged skin with fierceness, making him walk a bit hunched and with his head turned slightly down. He headed to the waterfront toward the small pier. He knew he had to face the sea. His subsistence depended only on that work and he knew very well that kind of life was not easy at all.

He did not curse either the weather or the rain, however. He did not complain at all. He was used to that routine and to the solitude and simplicity of his seemingly uncomplicated but very hard life. Yet, he had no real reason to complain whatsoever... and was not used to do so... not anymore…

The old boat, his every day companion, swayed up and down in the small pier, as if being rocked by the invisible hands of the waves. He sighed and walked resolutely along the corridor of heavy, tattered dark wood. He looked at the other boats, all firmly tied to the dock, straightened the jacket hood around his head and jumped into his boat.

His old fellow squeaked when he stepped onto the deck, as if welcoming him with a good morning greeting. A few minutes later, the noise of the hoary diesel engine was nothing more than just a murmur fading away into the distance, while the silhouette of the small fishing boat disappeared in the morning mist and rain, lonesome and incognito, like his stiff owner.

***

One night, about a week later, the weather changed... for worse.

The storm hit the island sturdily and mercilessly. The sound of thunder, that followed the lightning, streaking the pitch-black sky, was similar to the ruthless hammering of drum sticks against the head of the timpani of an orchestra, playing a crazed symphony. He smiled while he watched the sky light up every then and again as if they were fireworks. He was fond of those thunderstorms and knew they were, almost always, a sign of weather change.

The following morning, although still cloudy, the meteorological conditions were visibly better. He left his home very early, as usual, to collect the fishing net, which was placed in the middle of the sea. Instead of walking down the paved sidewalk to get to the pier, he decided to walk along the beach.

The water's edge was covered with a laced blanket of dead seaweed, spread all over the white wet sand, as it was common after the heavy storms.

He enjoyed walking along the beach, which was, for him, both a physical and a mental exercise. He liked the soft, clean sand; the iodized smell of the sea; the sound of the waves, going back-and-forth continuously; the waters trying to wet his feet every time he seemed to be distracted by his thoughts; the sight of the seagulls entertaining themselves with their whiten flight against the blue-grey sky and with their dramatic dives into the emerald-green ocean...

At that hour in the morning, while the village was still asleep, away from the ordinary day-to-day noises, out of the sight of passers-by, when the murmur of the sea mixed with the harrowing cries of the sea birds, he felt as if he were part of that peaceful landscape.

A gust of wind made him shiver slightly and straighten the coat around his body. He pondered if the winter would be cold. The fall had just begun and he was already feeling the effects of the cold and humidity, disturbing the more sensitive nerves.

But he relished the cold weather and the wind. He liked the sea and the loneliness of his profession. Sometimes he had the impression he was losing the ability to communicate and to state the truth, it really mattered very little to him. He was now a man of the sea, not a lecturer. Nor was he, either, a man of many words.

In fact, at that stage of his life, he would rather prefer the animals to men. Those were much more true and pure, without hidden intentions behind their actions. Their instincts and affections were direct and without false pretences. They were transparent, as he had been once... a long time before...

The wind blew against him, as if embracing his no longer so young body, but still tough enough. He knew he still had enough strength and would probably live long, but he did not miss the past times. From what he could remember, they were times that deserved neither any missing nor his memories to be relived anyway.

He could not remember whether he had been happy... Maybe he deceptively thought he was, for a very brief period of his life; the same life that used to play its sadistic games with him, over and over again... 

He tried to keep those recollections away from his mind, as long as he could, but they insisted on recurring as vivid as recycled films, loaded with mixed emotions, which insisted on remaining alive in his memory. Those occasions had already brought their loads of pain, leaving their deep scars, which were constantly touched, relentlessly cherished, but never erased.

He quickened his pace. He could not let the past anguish interfere with his dull present. He shook his head as if trying to get rid of those inconvenient thoughts and covered it with the hood of the worn old jacket. He knew he had to fetch the fishing net up...

His thoughts were interrupted by a somewhat unexpected movement, just a few meters ahead. A group of seabirds seemed entertained in uproar, with something that stood out in the middle of a pile of deep green and red-brown seaweed. At first he thought to be a dead animal or just the remains of fishes, which would not be surprising, but as he approached, he saw it was something much bigger than just food for marine birds. He hastened to ward the gulls off, who insisted in staying close by, like curious passers-by witnessing an unfortunate accident.

A very pale body lay on the sandy beach, motionless and partially covered by the coloured seaweed. The sea lapped at his feet and legs, insistently. The fisherman knelt down to examine the body. He turned it over, in order to see if the man could be recognized whatsoever.

He expected to see the whole face destroyed by the fish or crabs and birds, but instead it was in perfect conditions as well as the rest of the body. Touching the skin, he did not feel the 'rigor mortis', nor the temperature of a corpse. On the contrary, the temperature was only slightly below normal, which could be expected from a person who had been exposed to the cold temperatures of the wind and the sea waters, in a state of complete nudity. He bent closer to the face, to try and perceive whether the unconscious man was still breathing or detect, somehow, a minimally visible movement in his body.

The young man’s weak breathing was hardly noticed. His chest moved slightly so to allow some air flow into the feeble lungs. The man was surely alive, although totally blacked out.

He covered the frail cold body with his coat, lifted him in his arms and took him away. The collection of the fishing net had to wait a little longer.

***

The island had only a small village, which had a single Medical Centre, visited by a doctor once a week. The nearest hospital, more than three hundred kilometres away, was located in the continent. There was an infirmary with basic medicines and first aid material, controlled by a moody but good-hearted matron, a retired nurse herself. By knowing that the doctor would come the very next day, he took the boy to his house.

He lived almost alone, except for a fat grey and white tabby cat, who kept him good company. He had time to look at the patient until at least the doctor would examine him, a few hours later, when he arrived with the early morning ferry.

At home, he washed the body of the unconscious young man and looked for signs of injury. There was a fairly large laceration on the back of his head that, although no longer bleeding, should have shed enough blood when cut. Either he had been the victim of an assault or an unfortunate accident. For what reason he was naked, it was still a mystery. He reached for a sweatshirt and a pair of pants from the dark timber wardrobe, dressed his guest and covered him with a blanket and a quilt.  Going back to close the doors of the closet, his eyes were drawn by an old leather suitcase, left on purpose, behind the heavier and longer coats. He reached the buckskin bag and pulled it out.

The heart of the young man was beating normally, but his blood pressure was very low still. It was a long time since he last used his old medical instruments. He sutured the cut and put a bandage on the boy's head in order to protect and keep it closed, at least until he would be examined by the doctor the next morning. His hands had no longer the dexterity of before and the calluses and change to the skin texture did not help much the task but he worked like a true professional of health.

The boy needed to be hydrated. He had to find a way to get some fluid and minister immediately into his veins. Just thinking about having to go to the clinic, he felt a discomfort in the stomach. But he could not think of himself... not then, anyway...

***

The following day, with the presence of the physician, he felt a lot more comfortable. He had not had much difficulty in getting the liquid and the matron herself offered to go to his house, in order to insert the intravenous hydration fluid line. It was more out of curiosity than of efficiency, but he accepted the offer, so he would not have to give many explanations.

Besides the wound, which had already been cared for, there was nothing much to do, but to continue hydrating and hope that the body would react. There was a danger of a concussion, so the doctor decided he should move the boy to the hospital on the mainland. He needed someone to take responsibility over the young man, in case he woke up. And the police had to be reported urgently...

***

He did not feel at ease in the city. Less still in a hospital. The police had been called and initiated a thorough investigation. They found nothing in the missing people list. They checked his fingerprints and tried face recognition but failed to reach anything that could lead to the identity of the young man in the dark state of coma. They sent a picture taken of him to several police stations in the country, to try, through the distribution of it, find out who the injured man was. He had no criminal records either. The identity of the boy was completely unknown.

***

- His vital signs are normal, but something prevents him from waking up... We ought to be patient...

A week had slowly passed without major changes in the clinical state. Even though his physical condition had improved, the boy had not awakened from the coma. The older man then decided to return to the island. He told the doctor and the hospital staff that he would go to the hostel where he was staying and the next morning he would take the boat back to his fisherman's life. From then on, the case was only under the police’s responsibility.

Before leaving, however, he decided to go once again in the room, to "say goodbye" to the one who stirred his dull life routine for a few days, but who he did not even know who was, in the end.

The boy still lay unconscious, very pale and serene, as if only sleeping. His health condition was stable but still cataleptic. The fisherman came closer to the bedside and touched the other man’s hand, with a tender fatherly affection.

- Our lives separate here, my boy. Too bad we did not have the chance to be introduced to each other. I would like to have heard your interesting life story.

The boy seemed to only sleep soundly. The fisherman turned around and left the room. As he passed the reception, he greeted the nurse and said goodbye.

When he was crossing the threshold of the exit door, he heard an alarm bell rang.

In a few seconds, the place was like being on fire, like a beehive that had been hit by a hard stick. There was such a great uproar within the premises that he did not know if he should run away or hide himself until the chaos was over. The nurse told him, amid a flurry he did not realize at first:

- You'd better not go just yet… The alarm ringing comes from the room you just left.

He stopped incredulous and turned around, hurrying his pace to get back to the room, along with the noisy hospital staff.

***

domingo, 5 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 1)


O homem olhava para fora da janela, segurando uma caneca de café preto e forte, com suas mãos calejadas pelo trabalho duro, a observar o tempo lá fora. Uma chuva, fina e fria, caía sem parar. Havia dias que o tempo não mudava e o trabalho não podia ser deixado de lado, por tanto tempo. Era uma questão de sobrevivência.

O homem vestiu seu casaco de inverno, embora fosse começo de Outono, tomou seu café quente e saiu, ainda muito cedo na madrugada. O vento e a chuva castigavam a pele massacrada pelo tempo, fazendo-o caminhar curvado e de cabeça baixa, pela orla, na direção do pequeno cais. Sabia que tinha de enfrentar o mar. Sua subsistência dependia apenas daquele trabalho e daquela vida não muito fácil.

Ele já não pensava muito, nem amaldiçoava o tempo ou a chuva. Não reclamava, tampouco. Estava acostumado àquela rotina, a aquele trabalho, à sua solidão e à simplicidade de sua vidinha aparentemente descomplicada, mas bastante dura. Mas sentia que não tinha grandes motivos para reclamar... e não o fazia...

No pequeno cais, o velho barco, seu camarada de todos os dias, oscilava, embalado pelas cristas das ondas. Ele suspirou e caminhou, com passos firmes e decididos, pelo corredor de madeira pesada e escura, carcomida, de tanto ser pisada. Olhou as outras embarcações, todas firmemente amarradas ao embarcadouro, aprumou o capucho do casaco e saltou para dentro da sua.

O velho companheiro rangeu, quando ele pisou no convés, como se estivesse a saudar o homem. Poucos minutos depois, o barulho do motor foi-se distanciando da costa, tornando-se, apenas, mais um monótono murmúrio na praia, enquanto a silhueta do pequeno barco de pesca desaparecia, em meio à bruma e à chuva da madrugada, solitária e incógnita, como seu rijo dono.

***

Uma noite daquelas, cerca de uma semana depois, o tempo mudou... para pior. A chuva caía sem piedade e os trovões, que seguiam os relâmpagos, que  riscavam um céu negro como o petróleo, soavam como os tímpanos de uma orquestra, a tocar uma sinfonia enlouquecida. Ele sorriu, ao ver o céu iluminar-se, como se fossem fogos de artifício. Gostava das tempestades e, sabia, a trovoada, quase sempre, era sinal de mudança.

Na manhã seguinte, o homem saiu de casa, muito cedo, como de costume, para recolher a rede, que estava a meio mar. Ao invés de caminhar pela calçada, para chegar ao cais, resolveu ir pela praia, já que o tempo estava melhor, embora ainda nublado.

A praia estava coberta com muitas algas, como era comum, depois das fortes tempestades. 
Ele gostava de caminhar pela praia, o que era, para ele, tanto um exercício físico, quanto mental. Gostava da areia fofa e limpa; do cheiro iodado do mar; do som das ondas, naquele vai-e-vem contínuo; da brincadeira das águas, a tentar molhar-lhe os pés, cada vez que ele se distraía; da visão das gaivotas a entreter-se com seus voos branquinhos, contra o azul acinzentado do céu e com seus mergulhos dramáticos, no verde esmeralda do oceano...

Àquela hora da manhã, enquanto a vila estava ainda adormecida, longe dos barulhos ordinários do dia-a-dia, longe dos olhares dos transeuntes, enquanto o murmúrio do mar se misturava com os gritos angustiantes das aves, ele sentia-se como se fizesse parte daquela paisagem.

Uma lufada de vento fê-lo estremecer e ajeitar o casaco contra o corpo. O inverno ia ser rigoroso. Mal começara o outono e já sentia-se os efeitos do frio e da humidade, a incomodar os nervos dos mais sensíveis.

Mas ele gostava do frio e do vento. Gostava do mar e da solidão da sua profissão. Às vezes tinha a impressão que perdia a capacidade de comunicar-se e, para o bem da verdade, pouco importava-se com aquilo. Era, agora, um homem do mar, não um orador. Nem era, tampouco, um homem de muitas palavras.

Na verdade, naquela fase de sua vida, preferia os animais aos homens. Aqueles eram muito mais verdadeiros e puros, sem intenções escondidas por trás de suas ações. Instintos e afeições eram diretos e sem falsas intenções. Eram transparentes, como ele já havia sido uma vez… há muito tempo atrás…

O vento batia de frente, como se abraçasse seu corpo já não tão jovem, porém, robusto o suficiente. Ele sabia que ainda tinha muitas forças e haveria de viver longamente, mas não sentia saudades de outros tempos. Ao que lembrasse, não foram tempos que merecessem suas saudades, ou mesmo quaisquer memórias a reviver.
Já não lembrava se havia sido feliz… Talvez houvesse, enganosamente, pensado sê-lo, por um período muito breve de sua vida… a vida que costumava brincar com ele, tantas e tantas vezes… em ocasiões que ele tentava não lembrar, mas que voltavam vívidas, como filmes reciclados, carregados de emoções e que insistiam em manter-se sempre vivas na memória. Ocasiões que trouxeram sua carga de dor, deixando cicatrizes, que eram sempre tocadas, sempre acariciadas e nunca apagadas.
Ele apressou o passo. Não podia deixar o passado interferir no seu presente. Sacudiu a cabeça como quem tenta livrar-se de um pensamento inconveniente e cobriu-a com o capucho do casaco surrado. Tinha que recolher a rede…
Seus pensamentos foram interrompidos por um movimento um tanto inesperado, alguns metros à frente. Um grupo de aves marinhas parecia entretido, em algazarra, com algo que destacava-se no meio de um monte de algas. A princípio ele pensou ser algum animal morto ou apenas restos de peixes, o que não seria surpreendente, mas ao aproximar-se, viu que era algo bem maior, que simples comida para pássaros. Ele apressou-se a afastar os animais, que insistiam em manter-se por perto, como curiosos transeuntes, ao testemunhar um acidente.  
Um corpo, muito pálido, jazia imóvel, na areia da praia, parcialmente coberto pelas algas marinhas. O mar lambia-lhe os pés e as pernas, insistentemente. Ele ajoelhou-se, para examinar o corpo. Como estava de costas, teve que ser virado, para poder ser reconhecido. Esperava ver o rosto todo destruído pelos peixes ou caranguejos e aves, mas ao invés disso, estava em perfeito estado, assim como todo o resto do corpo. Ao tocar na pele, não sentiu o ‘rigor mortis’, nem a temperatura de um cadáver. Ao contrário, estava com temperatura apenas um pouco abaixo do normal, o que poderia ser esperado de uma pessoa que estivesse exposta ao frio do vento e do mar, naquelas condições e em estado de completa nudez. Ele chegou perto do rosto, para tentar perceber se o jovem ainda respirava, ou detetar algum movimento, que fosse, de alguma forma, minimamente percetível. A fraca respiração quase não era notada. O peito mal movia com a entrada de ar nos pulmões, mas o homem estava, com certeza, vivo. 
Ele cobriu o corpo com seu casaco, tomou-o nos braços e levou-o dali. A recolha da rede tinha que esperar.
***
A ilha possuía apenas um pequeno povoado, que tinha um único Posto de Saúde, visitado por um médico, uma vez por semana. O hospital mais próximo ficava no continente, a mais de trezentos quilômetros de distância. Havia uma enfermaria, com medicamentos básicos e primeiros socorros, controlado por uma matrona de humor instável, mas de bom coração. Por saber que o médico viria, já no dia seguinte, ele levou o rapaz para sua casa. Vivia praticamente sozinho, a não ser por um gato gordo, malhado de cinzento e branco, que servia-lhe de diversão e companhia. Tinha tempo para olhar pelo paciente, até, pelo menos, o doutor  examiná-lo, quando chegasse à ilha, algumas horas mais tarde.
Já em casa, tratou de lavar o corpo desacordado do jovem homem e verificar se havia algum sinal de ferimentos. Havia um corte razoavelmente grande na cabeça que, embora já não sangrasse, devia ter vertido bastante sangue, quando feito. Ou havia sido vítima de um assalto ou de um infeliz acidente. Por qual razão estava despido, também era um mistério. Ele foi até o armário e selecionou uma camisa e um par de calças para vesti-lo e arranjou um cobertor e uma colcha para cobri-lo, no sofá da sala de sua casa, de tão poucos cómodos. Ao voltar-se para fechar o armário, seus olhos foram atraídos por uma velha maleta de couro, deixada de propósito, no fundo, para cair no esquecimento, por trás dos casacos mais pesados e longos. Ele levou a mão à maleta e puxou-a para fora.
O coração do jovem batia normalmente, mas a tensão arterial estava bem baixa. Fazia tempo que ele não usava seus velhos instrumentos de medicina. Ele suturou o corte e fez um curativo na cabeça do rapaz, de modo a promover o início da cicatrização, pelo menos até ser examinado pelo médico. Suas mãos já não tinham a destreza de antes e os calos e a textura da pele não facilitaram seu trabalho, mas ele trabalhou como um verdadeiro profissional da saúde. O rapaz precisava ser hidratado. Ele tinha que dar um jeito de arranjar soro e ministrar imediatamente. Só de pensar que tinha de ir ao posto de saúde, ele sentia um desconforto no estômago. Mas não podia pensar em si… não naquela hora…
***
No dia seguinte, com a presença do médico, ele sentia-se mais à vontade. Não tinha tido muita dificuldade em conseguir o soro e a própria matrona ofereceu-se para ir até sua casa, tratar de introduzir a intravenosa. Era mais por curiosidade que por eficiência, mas ele aceitou, para não ter que dar muitas explicações.
Além do corte, que já havia sido tratado, não havia muito o que fazer, a não ser continuar a hidratar e esperar que o rapaz reagisse. Havia o perigo de uma concussão, por isso o médico decidiu que deveria mover o rapaz para o hospital no continente. Precisava de um responsável, caso o doente acordasse. E a polícia teria que ser informada, com urgência…
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Ele ficava pouco à vontade na cidade. Menos ainda no hospital. A polícia havia sido chamada e iniciara uma investigação. Não encontraram nenhum registo de desaparecimento. Tiraram as impressões digitais e tentaram reconhecimento de face, mas não conseguiram chegar a nada. Enviaram uma foto dele para várias delegacias do país, para tentar, através da distribuição da mesma, descobrir quem era o acidentado. Também não conseguiram nada, verificando se tinha registo criminal. A identidade do rapaz era completamente desconhecida.
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- Os sinais vitais estão normais, mas algo o impede de acordar… Temos que ter paciência…
Uma semana havia passado, sem grandes mudanças no quadro clínico. O homem decidiu voltar para a ilha, já que, embora tivesse melhorado o estado físico, o rapaz não havia acordado do estado de coma. Avisou ao médico e ao pessoal do hospital que iria para a pensão, onde estava hospedado e, na manhã seguinte, tomaria o barco, de volta para casa e à sua vida de pescador. Dali para diante, o caso era somente com a polícia.
Antes de ir-se, decidiu passar no quarto, para “despedir-se” daquele que nem chegou a conhecer, mas que mexera com sua rotina de vida, por alguns dias.
O rapaz jazia ainda desacordado, muito pálido e sereno, como se, apenas, dormisse. Seu estado era estável, mas ainda sem consciência. Ele aproximou-se e tocou na mão do outro, com uma terna afeição de pai.
- Nossas vidas separam-se aqui, meu rapaz. Pena que não tivemos oportunidade de nos conhecer. Eu gostaria de ter ouvido a tua história.
O rapaz parecia dormir um sono profundo. O pescador virou-se e saiu do quarto. Ao passar pela receção, saudou a enfermeira e despediu-se.
Quando já ia cruzando a porta, ouviu que uma campainha tocou e foi como se aquilo desencadeasse o maior rebuliço da história do hospital. Houve um alvoroço tão grande dentro do recinto, que ele não sabia se corria ou se escondia-se. A enfermeira disse-lhe, em meio à uma agitação, que ele não conseguiu perceber, a princípio:
- Acho melhor não ir-se embora, ainda. O alarme vem do quarto de onde o senhor acabou de sair.
Ele parou e voltou-se, apressando o passo, para chegar ao quarto, junto com os especialistas.