sábado, 6 de janeiro de 2018

Pelo litoral (Parte 2)


Uma faixa de luz do sol infiltrava-se entre as folhas da árvore e pareciam acender e apagar contra o rosto do rapaz de óculos. Ele abriu os olhos, devagar, ainda meio tonto e com uma terrível dor de cabeça, como se estivesse de ressaca. As imagens foram entrando em foco, como num filme de arte contemporânea.
Deitado num banco da praça, sujo e desalinhado, ele passava por um mendigo ou um drogado, que adormecera ao relento, por falta de lugar melhor. Os poucos transeuntes, que passavam por perto, esquivavam-se da sua figura, como se fosse perigoso ou inconveniente. Ele sentou-se e olhou à volta. Não sabia onde estava. Pela posição do sol, parecia ser já a meio do dia, mas ele não tinha a mínima ideia de como viera parar naquele lugar. Ele sentia o cheiro de comida, recém-feita, bem temperada, no ar. Sentiu fome. Procurou a carteira, mas sem muita esperança de encontrá-la. Sentia-se roubado e aquilo deixava-o nervoso. Não sabia onde estava e não sabia como conseguir ajuda. Olhou à volta, mais uma vez. Precisava lavar-se, trocar de roupa e comer algo.
- Que belas férias!
O rapaz levantou-se e começou a caminhar. Sua cabeça girava. Ele parou e esperou um pouco, tentando recuperar as forças. Respirou fundo e caminhou, decidido a não deixar-se abater, nem perder o equilíbrio.
- Que droga! Eu sou um soldado treinado. Não vou cair aqui, agora. Preciso chegar ao mar, ou ao rio.
Olhou para cima, para tentar seguir o curso do sol. Um sino bateu uma vez. Ele procurou localizar de onde vinha o som. Se há um sino, há uma igreja e deve haver um relógio. Cruzou a praceta e viu que estava bem à frente de uma pequena capela, cuja fachada era toda decorada com azulejos pintados. O relógio marcava 1:15.
Ele caminhou na direcção da igreja, que estava na parte mais alta do lugar. Atrás dela, viu o rio, que corria para a sua esquerda. Aquela era, certamente, a direcção do mar. Passou a mão pela roupa bastante amarrotada e começou a descer a rua.
***
O homem, de aparência estranha, mas vestido com um alinhado terno escuro, feito à medida, caminhou, devagar, até a janela. Tinha o cenho franzido e uma expressão carregada, no rosto. Estava bastante preocupado.
O sol brilhava do lado de fora, num dia típico de verão. A sala refrigerada, para a temperatura constante de 18ºC, tinha poucos móveis. Além de uma mesa com uma dúzia de cadeiras, havia apenas um pequeno móvel, onde uma moderna máquina de café estava instalada, discretamente, num nicho, no canto do aposento. Estava no segundo andar do prédio, na sala mais distante da entrada, onde decisões importantes eram tomadas e, muitas vezes, estas tinham consequências bastante grandes na indústria alimentícia. A N. & M. Enterprises também tinha influência em negócios não tão inocentes quanto a produção de alimentos, mas pouca gente sabia, com certeza, em quais negócios seriam.
O homem observava o movimento que acontecia, naquele momento, ao rés-do-chão, sem mover qualquer músculo da face pouco expressiva. Ele levantou os olhos e concentrou-se num ponto além do jardim bem cuidado, junto a um pequeno bosque, mais adiante, praticamente escondido de quem vinha pelo lado da frente do edifício.
Escolhido com cuidado, o escritório ficava na parte traseira, mais silenciosa e mais discreta. Na rua, uma carrinha branca estacionada, tinha grandes letras vermelhas pintadas nas duas laterais. Ele passou a mão muito pálida pelo topo da cabeça calva e pelo rosto sem nenhum vestígio de barba.
A porta abriu-se às suas costas e ele ouviu a voz do secretário, baixa, mas muito firme:
- Eles estão aqui.
O homem respirou fundo e virou-se, devagar.
- Já era hora. Tragam-nos para dentro.
O secretário saiu e voltou logo em seguida com dois homens vestidos de preto e um outro rapaz mais jovem que eles. Um pouco mais atrás, um outro homem, também vestido como segurança, arrastava, pelos braços, um outro rapaz, de óculos, que tinha as roupas muito sujas e amarrotadas. Este último estava, ainda, meio desacordado.
***
- Não. Eles não sabem de nada. Aquilo deve ter sido um infeliz acidente. Uma coincidência…
- Mas eles agora vão desconfiar de que existe algo grande por trás desta história toda. Aliás, eles não são tolos. Já devem ter suspeitado…
- Temos que nos livrar deles. Não podemos deixar pontas soltas.
- Já deixamos. Agora temos que consertar esta burrada.
- Com cuidado e um bom plano, para não deixar nenhuma sombra de dúvidas a respeito de nossa integridade…
- Com certeza. A N.M.E. não pode ser associada a nenhum tipo de falcatruas. Temos que manter-nos insuspeitos. O sucesso dessa empresa depende de nossa discrição e de certos segredos.
- Teremos o máximo cuidado. Pode deixar.
O homem olhou sério para o chefe da Segurança e não pareceu muito convencido, mas fez um leve aceno com a cabeça, assentindo, para que o homem saísse logo e ele pudesse ficar sozinho na sala. Precisava pensar.
***
O rio parecia calmo, tranquilamente correndo na direção do mar. O rapaz aproximou-se e entrou com os pés na água fresca. A sensação era bem boa. Ele abaixou-se, lavou o rosto e a cabeça com aquela água e até sentiu vontade de nadar um pouco. Por um momento, esqueceu-se que não sabia, exatamente, onde estava e que não tinha ideia de como fora parar naquele lugar.
Continuou a seguir na direcção do mar. Minutos depois, quando já estava na praia, avistou os velhos moinhos. Ele não reconheceu o lugar, mas seguiu adiante. Precisava encontrar algumas respostas. Teve receio que fosse mal compreendido, com as roupas naquele estado, por isso evitou contacto directo com as pessoas que passavam por ele, enquanto caminhava pela orla.
Mais à frente, avistou uma estação de serviço, foi até lá e entrou. No balcão, viu um homem sentado, de costas, vestido com um terno escuro, tomando café. Com aquele calor, não pareceu-lhe a melhor indumentária, mas quem era ele para estranhar qualquer coisa. Antes que falasse com o empregado, a porta atrás de si abriu-se e ele viu outro homem, um grandalhão, também vestido de terno escuro, entrar. Não percebeu que uma carrinha branca estava estacionada ao lado das bombas de combustível. Só sentiu uma pancada e teve a impressão que começava a cair num poço escuro.
***
- Estás bem?
- Olha para mim. Pareço bem? Estou todo sujo, fui batido, drogado, arrastado e não sei o que está acontecendo. Como posso estar bem?
- É verdade. Foi uma pergunta estúpida…
- Onde estiveste? Quem são esses?
- Só posso dizer o que sei… o que não é muita coisa.
- Tu saíste, com eles, da pensão. A moça da recepção me contou.
- Sim. Estava sob a mira de uma arma. Tive que parecer natural, para não levantar mais confusão, ou ser morto ali mesmo. Estes homens são perigosos.
- Quem são eles?
- Eles trabalham para a N.M.E., uma empresa ligada ao meio alimentício, mas isso é só uma fachada. Há muito mais coisas por trás disso tudo.
- E como tu sabes disso?
- Eu fingi que estava desacordado e ouvi a conversa. Aqui há muito mais que as aparências querem mostrar.
- E por que nós estamos envolvidos nisso?
- Estávamos no lugar errado, na hora errada… ainda estamos…
- Como assim?
- Eles não sabem quem somos, mas pretendem livrar-se de nós. Temos que dar um jeito de sair daqui.
- Como? Se eles vão-nos matar… Que saída temos?
- Eles querem que pareça um acidente. Ouvi quando eles falavam com o chefe. Talvez tenhamos uma hipótese, mas vai depender de quantos daqueles gorilas teremos que enfrentar.
- Enfrentar homens armados, com aquele tamanho? Péssima ideia. Péssima ideia!
- Tens uma melhor?
***
“Estava tudo tão bem planeado, com tanta precisão, antes de enviar... “
O homem tentava encontrar uma falha no procedimento, mas não conseguia.
“Por qual razão estes intrometidos tinham que aparecer, logo naquela hora? Como não foi possível prever? Que detalhe passou, assim, tão despercebido?”
Ele não tinha dúvidas que ia ganhar muito dinheiro e mudar o curso da humanidade, quando aquele pequeno detalhe fosse resolvido. Ia ser um homem muito rico e poderoso. Sua ambição não tinha limites e passava por cima de muitos princípios, incluindo aqueles relativos aos escrúpulos.
Mas aquela interferência, naquele momento, não era bem-vinda e tinha que ser resolvida logo, de maneira eficaz e eficiente… E logo!
- Que droga!
Ele pegou o fone e discou um número conhecido. Em menos de dois minutos o chefe da Segurança entrava, apressado, na ampla sala. O homem estava de costas para a porta. Sem virar-se para cumprimentar o recém-chegado, ele falou, baixo, firme e tentando controlar a emoção ao extremo.
- Dêem um jeito naqueles dois. E tratem de não deixar nenhum vestígio. Agora!
- Sim, senhor.
O chefe da Segurança saiu, fechando a porta, com cuidado, atrás de si. Conhecia bem seu chefe. Aquele controlo todo era apenas uma capa protectora. Ele devia estar a ponto de explodir.
O homem continuou a olhar para o lado de fora, através do grande e bem cuidado jardim. No fundo podia ver o pequeno bosque de pinheiros, cujo limite era coberto com serralhas e outros tipos de asclépias, formando um bonito efeito, mas que tinham, na verdade, sido plantadas com um objectivo muito específico. Ele viu as borboletas a voar à volta das florzinhas coloridas e sorriu.
Enquanto estava a observar, distraidamente, aquela bela criação, uma porta abriu-se no lado esquerdo do jardim e um grupo de homens atravessou o pátio. Dois deles, vestidos com trajes escuros, carregavam, visível e ostensivamente, poderosas armas automáticas.


domingo, 31 de dezembro de 2017

All Along the Coastline (Part 1)


- By car?

- Yes. Why not?

- You know I hate to travel by car especially that far away. We could go by plane and get there in a few hours. That will take long boring days...

- Stop being a pain. The country is not even that big. It'll be fun. Take it as an adventure.

- That's what scares me. I remember very well what kind of adventure we had to go through the other times... and who had been screwed up in the end...

- How unfair. We always do well... at least in the end, anyway... Besides, going by car, we'll have more control of the whole trip. The intention is to rest and to have some fun. Let's drive all the way down just along the coast. We stop on the way, when we're tired, and we'll just do whatever we want.


The young man wearing glasses looked at his friend, not at all convinced that the argument was sustainable. It might have been a good idea, but he already knew what kind of adventures they were getting into. But the other man, totally thrilled with the idea, was not going to be demoted of it, so easily. He knew he was going to lose his argument, so he gave up without even saying it out loud.

- I've already received the confirmation of the permission to go on a leave. We will have two whole weeks, just to rest and do whatever we want to. I already rented a car... And, of course, we'll take the tent along with us, in case we need it, if we cannot find where to stay, anytime. It can be even cheaper if we camp sometimes and sleep in the tent for a night nor two.

- Why do you always do these things without telling me first?

- If I’d told you, you would start with unnecessary arguments and excuses, and it would take me much longer, until I got authorization and started the booking process and stuff.

- See?

- That's why I moved on. So you just have to pack your rucksack and enjoy it.


The other man threw himself into the bed of the room that they shared in the army barracks. He knew his friend was right, in a way. They needed holidays and a good and nice rest. Whenever they went out together, however, something unusual happened, leaving them with more action than they needed. This time, however, he did not feel that apprehension he felt on previous times, which seemed to be a good sign.

- I give up arguing with you! When are we going?

- In the morning. We must leave early to enjoy the day. The car is already available.
 


The young man got up and looked at the other one with a desperate look. He would not even have time to get used to the idea. He would barely have time to stuff his backpack in. At least they'd have a break from the army life... And they deserved those two weeks of rest. Now, however, he had to hurry and get ready.

Amazing how his mind worked at high speed when he was under pressure.

All he had to do was put a few clothes in - they were going to be on the beach longer than anywhere else - sunblock, a hat, shorts and flip flops... What else?

The room seemed more vivacious and full of life, in that momentary burst of luggage packing.

The young soldier stood by the window and closed his eyes. A soft, cool night breeze brushed his cheek. For a moment it seemed he could already feel the soft white sand touching his toes and the refreshing water of the sea washing his legs...



***

A hot and dry day, as the summer days should be, dawned behind the hills in an explosion of warm colours. The two friends were all dressed up and ready to leave and their backpacks were placed in the back of the rented car. They would stop at the first service station down the road and have a quick breakfast, so they did not waste much time. They did not want to get to the beach too late in the morning. The first part of the trip should take around three hours to the coast, where they would start driving down the sea shore, going southbound.

A little more than three hours later, standing in front of the mouth of the river, the two young men inhaled the pleasant salty air of the sea and the river. Nature was calm and inviting. In fact, it did not even require a special invitation for the two of them to go down to the beach and dive into the water.

***

- That's what I call life! No worries about tomorrow... or the day after tomorrow...

- Ahahah ... you bet. And we do not have any type of schedules for anything. It's good to rest from the rigidity of the Army, at least once in a while.

- By the way, I'm hungry. Let's have a bite to eat and then take some time off before we hit the road.

- We can continue the trip later or tomorrow only. We are not in a hurry. It's so good here and it's quiet enough...

- Let's see if we can get a place to sleep at one of the local inns tonight then. We can enjoy the day, go to sleep when we want and go back to the road tomorrow morning.

- OK. Sounds good to me.

 ***

A nice plate of grilled fish, accompanied by a ripe white wine, very fresh, followed by a mango mousse and a strong coffee, were enough to leave the young men satisfied and in very good frame of mind.

The night was quite pleasant, with no wind, although it was not hot. The two had chosen a restaurant with a terrace facing the sea, not far from the inn, where they would spend the night before going back to hit the road next morning.

- It was a good thing deciding to stay here tonight. I like this quietness here. For me, we can even stay longer.

- I know. But if we do not continue the trip, we may miss seeing more interesting things on the way... We can come back earlier and spend another night or two here again anyway.

- That's not a bad idea at all...

- Let's go for a walk on the beach and enjoy this lovely evening. I need to walk a little after all this food and wine... I’m so full…

They paid the bill and got up. 

A white van stopped in the street outside the restaurant, unnoticed by both of them. On its side, painted in red, the three letters, N.M.E., called no more attention than the vehicle itself.

The two men went down the three roughly cut granite steps and began to walk along the shoreline, with their flip-flops in one hand and a newly purchased beer can in the other. Despite the pleasant evening, the beach was almost deserted, which was no impediment for a healthy walk.

A flash of lightning struck the sky from the front of them, drawing their attention, especially as the sky seemed clean and starry. It looked like a small comet, but it seemed to be very low. The sound of something hard hitting the sea, right behind where they came from, made them stop and look back.

The light from the poles reflected on the strange metallic object, floating in the salty water and swaying with the waves, still smoking, not far from where they were.

The two did not hesitate and dropped their flip-flops and beer cans, jumping into the water and swimming with energy, toward the smouldering object. A few meters away, other men also got into the sea at the same time and with the same intention. The two groups arrived together to where the metal capsule was and joining forces began to drag it to the beach. 

The two friends did not pay much attention to the other men who helped them in the rescue, thinking they were random passers-by, who noticed their efforts and decided to help, being as curious as they were.


They could not be more mistaken...

***

- Hey! Are you all right?

- I think so. What happened?

- You slept on the beach. You must have been very drunk.

- What? No!


The man wearing glasses was nauseous and his head was very sore. He looked like he had a horrible hangover, but he could not remember drinking that much.

The fishermen found the two young men asleep on the beach when they were on their way to the sea. The men were only in shorts and seemed to be cold because they were bent like babies. The sun was still a thin, pale band of light rising up on the horizon in the pleasant cool summer morning. Next to their bodies there were a few empty beer cans.

-What happened to the metal sphere we took out of the sea?

- Did you take drugs?

- Of course not! We took the ball out of the water, with the help of some men. We thought they were fishermen or tourists...

- You'd better tell another story, if anyone asks. This one will not get you out of trouble. Are you staying around here?

- At the boarding house.


 The men laughed.

- Then you have just lost the cost of the daily rate sleeping on the beach. If you're okay, better go back to the boarding house and take a good shower and dress clean clothes. You are covered in sand and stinking of sweat and alcohol.

The two guys picked up their belongings scattered on the beach, thanked the fishermen and went up the street, towards their quarters. A red mark on their backs went completely unnoticed until they were alone, after taking a good warm shower and getting dressed to continue the journey.

- What is it? There is a red mark on your back. It looks like it’s burned out.

- You have one too, but yours is closer to the side... How strange! It looks like an electric burn... something like a... a Taser, maybe?


 The two soldiers looked at each other and began to suspect that there was more mystery than they could have imagined in that story.

- We were knocked over and left on the beach. Those men…

- ... They robbed us ... They were thieves!

- Do you think they were mere thieves? And by stealing what they did, they took what was not ours... So why did they help us?

- We were used to help get that ball out of the water. Our help was used, because we were at hand. What was it that was so important in that metallic sphere?

- I do not know, but I do NOT want to know. Let's get ourselves out of here as soon as possible. I know this look... You're starting to think about putting us in big trouble. Let's go before it gets too late to come back.


The young man was frowning and his mind was working at high speed. He repeated the thought aloud.

- What could there be, so interesting or important, in that sphere, that led them to take us down and remove it from here, but not before making us look like two drunks lying on the beach? Why the concern in making us look like junky fools?

- Think. If we were drunk or drugged we could tell any story and that would be taken as a hallucination... no one would ever believe in us.

- It is true…

- But if for all intents and purposes we are only tourists on holidays, why would anyone be so concerned about making fools out of ourselves?

- That's what we need to find out.

- Oh! No, no and no! We are on holidays and we will not look for trouble. It's not right and it's not fair.


- What is wrong is to get out of here, leaving the idea that we are two junkies, who tell lies and sleep drugged on the beach... It's a matter of honour. Imagine if the army knows that...


***  

- The car's ready. I got my lunch and my backpack. We just need to check out and leave.

- I'll finish packing mine too. You can go down to the reception, to check out and I'll follow soon, then.


A few minutes later, when he came down with his backpack in hand, the man wearing glasses did not see his friend. When asked about him, the maid attending the reception informed that he was talking to two men and that the three of them went out in a white van.

- And he did not leave me a message?

- He did not say anything when he left with the two men after paying the bill. He still looked back, before getting into the van, but he did not look worried. For all that matters, I remember that there were three letters painted in red on the side: N.M.E.

- And now, this one! Where did he go?


As he walked out in the direction of the car, which was parked in front of the boarding house, the young man noticed that the front tire was flat. He looked around to see if he could see anyone. At that hour of the morning, even before the sun was any far above the horizon, the streets were still empty. He walked around the car and opened the trunk, taking out the spare tire, the wheel wrench and the jack, with feelings varying between the angry and the confused.

As he bent down to begin unscrewing the tire locking nuts, he heard a noise behind him and felt someone touch his arm. Even before he could see who was behind him, he felt a sting in the back of his neck and everything went black immediately.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Pelo Litoral (Parte 1)


- De carro?

- Sim. Por que não?

- Eu odeio viajar de carro, ainda mais numa distância destas. Podíamos ir de avião e chegar em poucas horas. Assim levaremos dias…

- Deixa de ser chato. O país nem é tão grande assim. Vai ser divertido. Encara como uma aventura.

- É isso que me assusta. Eu lembro muito bem que tipo de aventura nós tivemos que enfrentar nas outras vezes… e quem teve que se ferrar fui eu…

- Que exagero. Nós sempre nos saímos bem… no final… Além do mais, indo de carro, desse jeito, nós teremos controlo de toda a viagem. Nós vamos descansar. Vamos fazer a viagem só pelo litoral. Paramos pelo caminho, quando estivermos cansados, e só faremos aquilo que quisermos.

O rapaz de óculos olhou o outro, nem um pouco convencido de que o argumento era sustentável. Podia ser muito boa ideia, mas ele já sabia que tipo de aventuras acabavam por se meter. Mas o outro, totalmente excitado com a ideia, não iria ser demovido daquilo, tão facilmente. Ele sabia que ia perder a argumentação, por isso deu-se por vencido, mesmo sem dizê-lo em alta voz.

- Já recebi a confirmação da folga. Teremos duas semanas inteirinhas, só para descansarmos. Já até aluguei o carro… E, por via das dúvidas, vamos levar a tenda, para o caso de necessitarmos, se não arranjarmos onde ficar, vez ou outra. Será até mais barato.

- Por que tu sempre fazes isso, sem me avisar?

- Se eu te avisasse, tu ias começar com argumentos e desculpas desnecessárias e eu levaria muito mais tempo, até conseguir autorização e começar o processo de reservas e outras coisas.

- Estás a ver?

- Por isso eu me adiantei. Assim, só tens que arrumar a mochila e aproveitar.

O outro jogou-se na cama do quarto conjunto que tinham no alojamento do exército. Sabia que o amigo tinha razão, de uma certa forma. Eles precisavam de férias e descanso. Sempre que saíam juntos, porém, algo inusitado acontecia, deixando-os com mais ação que precisavam. Desta vez, porém, não sentiu aquela apreensão que das outras vezes anteriores, o que parecia ser um bom sinal.

- Eu desisto de discutir contigo! Quando vamos?

- Pela manhã. Devemos partir cedo, para poder aproveitar o dia. O carro já está disponível.

O rapaz levantou-se e olhou o outro com um ar desesperado. Não ia nem ter tempo de se acostumar com a ideia. Ele mal ia ter tempo de arrumar a mochila. Pelo menos teriam uma folga da vida do exército… E bem que mereciam aquelas duas semanas de descanso. Agora, porém tinha que se apressar…

Incrível como a sua mente trabalhava em alta velocidade, quando estava sob pressão.

Só tinha que juntar umas poucas roupas - afinal iam estar mais tempo na praia, que em qualquer outro lugar -, protetor solar, chapéu, calções, sandálias… Que mais?

O quarto parecia mais arejado e cheio de vida, naquele rompante momentâneo de arrumação de bagagem.

O rapaz parou junto à janela e fechou os olhos. Uma suave e fresca brisa noturna acariciou-lhe o rosto. Por um momento parecia que já até sentia a areia branca e fofa entre os dedos dos pés e a água refrescante do mar a bater-lhe nas pernas…

***

Um dia quente e seco, como os dias de Verão deviam ser, despontou por trás dos montes, numa explosão de cores quentes. Os dois rapazes já estavam com o equipamento e as mochilas prontas, no carro alugado. Iam parar na primeira estação de serviço da estrada e tomar um pequeno-almoço, para não perderem muito tempo. Não queriam chegar à praia muito tarde.  A primeira parte da viagem deveria tomar cerca de três horas até o litoral, onde começariam a descer pela orla, até o sul do país.

Pouco mais de três horas depois, parados em frente à ria, os dois jovens aspiravam o ar agradável do mar e do rio. A natureza era calma e convidativa. Aliás, nem foi preciso um convite especial para os dois descerem até a praia e entrarem na água.  

***

- Isso que é vida! Sem preocupação com o dia de amanhã… em termos…

- Ahahah… Até parece! Mas, pelo menos, não temos horários para nada. É bom descansar da rigidez do Exército, pelo menos de vez em quando.

- Por falar nisso, estou com fome. Vamos comer algo e, depois, descansar um tempo, antes de pegar a estrada.

- Podemos pegar a estrada mais tarde ou amanhã somente. Não temos pressa. Aqui está tão bom… É tranquilo que baste…

- Vamos ver se conseguimos lugar para dormir na pousada, esta noite. Assim, aproveitamos o dia, vamos dormir quando quisermos e retomamos a viagem amanhã, pela manhã.

- OK. Parece-me bem.

***

Um farto prato de peixe assado na brasa, acompanhado de vinho branco, maduro, bem fresco, seguido de uma mousse de manga e um café forte, foram o bastante para deixar os rapazes com caras de satisfeitos e bem-dispostos. A noite estava bastante agradável, sem vento, mas não estava quente. Os dois haviam escolhido um restaurante com uma varanda voltada para o mar, não muito distante da pousada, onde iriam pernoitar, antes de retomarem a estrada, na manhã seguinte.  

- Ainda bem que conseguimos ficar. Gosto desta tranquilidade daqui. Por mim, até ficávamos mais tempo.

- Eu sei. Mas se não continuarmos a viagem, podemos perder de ver coisas mais interessantes no caminho…Podemos voltar mais cedo e passar mais uma noite ou duas novamente por cá.

- Olhe que não é má ideia…

- Vamos dar uma volta na praia e aproveitar a noite agradável. Preciso caminhar um pouco depois desta comida todo e do vinho…

Pediram a conta e levantaram, ao mesmo tempo que uma carrinha branca parava na rua em frente ao restaurante, despercebida dos dois. Na lateral, pintadas em vermelho, as três letras, N.M.E., não chamavam mais atenção que o próprio veículo. 

Os rapazes desceram um lance com três degraus de granito cortado de maneira bastante rústica e começaram a caminhar pela orla, com as sandálias em uma mão e uma latinha de cerveja, recém-adquirida, na outra. Apesar da noite agradável, a praia estava quase deserta, o que não era impedimento para uma saudável caminhada.

Um clarão riscou o céu, vindo da frente deles, chamando-lhes a atenção, especialmente porque o céu parecia limpo, estrelado e sem previsão de chuva. Parecia um pequeno cometa, porém estava muito baixo. O som de algo, atingindo o mar, com força, bem atrás de onde vinham, fê-los parar e voltar.

A luz dos postes refletiu no estranho objeto metálico, boiando na água salgada e balançando ao sabor das ondas, que fumegava, não muito longe de onde estavam.

Os dois não hesitaram e largaram as sandálias e as latas de bebida, jogando-se na água, nadando com energia, na direção do objeto. A poucos metros, outros homens também entraram no mar, ao mesmo tempo e com a mesma intenção. Os dois grupos chegaram juntos até onde estava a cápsula metálica e unindo forças, começaram a arrastar o mesmo para a praia. Os rapazes não prestaram muita atenção nos outros homens que os ajudavam no resgate, pensando tratar-se de transeuntes aleatórios, que viram o esforço deles e resolveram ajudar, estando tão curiosos quanto eles.

Não podiam estar mais enganados…

***

- Hey! Vocês estão bem?

- Acho que sim. O que foi que aconteceu?

Vocês dormiram na praia. Estavam bêbados.

- O quê? Não!

O rapaz de óculos sentia náuseas e a cabeça a doer. Parecia mesmo que estava com ressaca, mas não lembrava de haver bebido tanto.

Os pescadores encontraram os dois rapazes dormindo na areia da praia, quando passaram a caminho do mar. Estavam somente de calções e pareciam estar com frio, pois estavam encolhidos. O sol ainda era uma fina e pálida faixa de luz a subir no horizonte, na frescura agradável da manhã de Verão. Ao lado dos corpos dos dois haviam algumas latas vazias de cerveja.

- O que aconteceu com a esfera metálica que tiramos do mar?

- Vocês tomaram drogas?

- Claro que não! Nós retiramos a esfera da água, com a ajuda de alguns homens. Achamos que eram pescadores ou turistas…

- É melhor vocês contarem outra história, se alguém perguntar. Essa não os vai livrar de problemas. Vocês estão hospedados por cá?

- Na pensão.

Os homens riram.

- Então perderam o custo da diária dormindo na praia. Se estão bem, melhor voltarem para a pensão e tomarem um bom banho. Vocês estão cheios de areia e fedendo a suor e álcool.

Os dois rapazes levantaram e recolheram os pertences espalhados pela praia, agradeceram aos pescadores e subiram a rua, na direção da pensão. Uma marca vermelha nas costas deles passou totalmente despercebida até os dois estarem sozinhos, depois de tomarem um bom banho e começarem a vestir-se para continuar a viagem.

- O que é isso? Tens uma marca vermelha nas costas. Parece queimado. Será que…

- Tu também, mas a tua está mais ao lado… Que estranho! Parece uma queimadura elétrica… algo como um… um taser, talvez?

Os dois se olharam e começaram a suspeitar que havia mais mistério que eles imaginavam, na história que acabara de se passar.

- Nós fomos derrubados e deixados na praia. Aqueles homens…

- …Nos roubaram… Eram ladrões!

- Será que eram meros ladrões? E a roubar, levaram o que não era nosso… Então por que nos ajudaram?

- Nós fomos usados, para ajudar a tirar aquela esfera da água. A nossa ajuda foi aproveitada, por estarmos à mão. O que será que havia de tão importante naquela esfera?

- Não sei, mas não quero saber. Vamos embora daqui o quanto antes. Eu conheço este olhar… Estás começando a pensar em nos colocar em problemas. Vamos embora, enquanto ainda é cedo.

O rapaz estava com o cenho franzido e a mente a trabalhar em alta velocidade. Ele repetiu o pensamento em voz alta.

- O que poderia haver, de tão interessante, ou importante, naquela esfera, que os levou a nos derrubarem e levarem aquilo daqui, fazendo-nos passar por dois bêbados, caídos na praia? Por que a preocupação em fazer-nos passar por tolos?

- Se estivéssemos bêbados ou drogados poderíamos contar uma história, que seria tomada como uma alucinação… ninguém iria acreditar.

- É verdade…

- Mas, se para todos os efeitos, somos apenas turistas, em férias, por que alguém se daria a este trabalho?

- É o que precisamos descobrir.

- Oh! Não… não e não! Nós estamos de férias e não vamos procurar encrencas. Não é certo e nem justo.

- Errado é sairmos daqui, deixando a ideia de que somos dois marginais, que contam mentiras e dormem, drogados, na praia… É uma questão de honra. Imagina se o exército sabe disso…

***

- O carro está pronto. Já arranjei lanche e a minha mochila. Só falta fecharmos a conta e sair.

- Já vou terminar de arranjar a minha também. Podes descer à receção, para acertar as contas, que eu já vou, em seguida.

Poucos minutos depois, quando desceu com a mochila em mãos, o rapaz de óculos não avistou o amigo. Ao perguntar por ele, à empregada que atendia na receção, foi informado que ele estava a conversar com dois homens e que saíram os três numa carrinha branca.

- E ele não deixou-me nenhum recado?

- Não. Não disse nada, quando saiu com os dois homens, depois de pagar a conta. Ainda olhou para trás, antes de entrar na carrinha, mas ele não parecia preocupado. Lembro que haviam três letras pintadas em vermelho, na lateral: N.M.E.

- E agora, essa! Para onde ele foi?

Ao caminhar para fora, na direção do carro, que estava estacionado na frente da pensão, o rapaz notou que o pneu da frente estava murcho. Ele olhou à volta, para ver se via alguém. Àquela hora da manhã, ainda antes do sol estar muito acima do horizonte, as ruas estavam vazias. Ele foi até o porta-malas e tirou o pneu suplente e o macaco, com sentimentos variando entre o irritado e o confuso.

Quando abaixou-se, para começar a desapertar as porcas de fixação do pneu, ouviu um ruido atrás de si e sentiu que alguém tocou-lhe no braço. Antes mesmo que pudesse saber quem estava atrás de si, sentiu uma picada na parte de trás do pescoço e tudo escureceu de imediato.
 

sábado, 16 de dezembro de 2017

Preso na Mente (Final)


Eu não conseguia esconder quão alarmada estava, quando vi que ele voltou, sozinho, dos subterrâneos do velho edifício. Ele não pareceu surpreso ao me ver ali, parada, observando a gôndola vir na minha direção. Simplesmente saltou do barco e se aproximou de mim, sorrindo levemente.

Com minha cabeça totalmente confusa, eu não conseguia sorrir para ele. Havia uma coisa que estava perturbando a minha cabeça e eu não conseguia pensar em nada, além de dizer:

- Quem és tu? Onde ela está?

- Não entre em pânico, por favor. Eu posso explicar.

Ele estendeu a mão para me tocar. Eu recuei.

- Não. Não me toques...

- Não tenha medo. Eu devo-te uma explicação, pelo menos. Mesmo sabendo que isso te possa chocar e manter-te longe de mim, eu preciso dizer o que está acontecendo.

Claro que eu estava com medo... Eu estava muito assustada, mesmo e não sabia se realmente queria ouvir o que ele ia-me dizer, mas sabia que precisava. Era hora de pôr um fim a aquele mistério, de uma vez.

‘Oh, meu Senhor! Eu preciso ser corajosa! Calma... Muita calma, agora!’

- Diga-me, então. Este mistério já passou do limite... Na verdade, eu já tive o suficiente de toda esta história sem nexo.

Ele abriu a boca para começar a falar, mas então o som alto e desesperado da sirene da brigada de emergência quebrou a tensão da cena. Quando olhamos para o outro extremo do Grande Canal, vimos o barco amarelo e alaranjado da 'Ambulanza' vindo, em alta velocidade, na nossa direção. Com as luzes coloridas a piscar, eles vinham pelo lado oposto, abrindo caminho, na sua passagem, entre os outros barcos e gôndolas. Certamente era uma situação de emergência.

- Vamos ver o que está acontecendo. Eles estão indo na direção da trattoria. Venha para dentro. Rápido!

Havia uma grande confusão no lugar, com as pessoas correndo, todas, para a mesma direção. Saltei da gôndola e tentei-me aproximar e ver o que acontecia. Os paramédicos estavam trabalhando na calçada da "Calle Larga" e muitos curiosos estavam de pé e falando sobre a velha mendiga, que havia falecido, sentada ao sol, no lugar onde ela costumava ficar. As sacolas de plástico ainda estavam lá, jogadas no chão. O xale, no entanto, não estava a seu lado, pois eu ainda o estava segurando nas minhas mãos. Olhei para o seu rosto, quando a moveram e a colocaram no fundo da ambulância e notei que sua expressão era de pura tranquilidade. Eu não podia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Eu a vi, caminhando na direção do Canal, apenas alguns minutos antes. Ela ia viva e toda feliz, ao lado do homem que me trouxera tantas alegrias, até então.

Não havia tempo para ela ter voltado. Como seria, de alguma forma, possível?

Perguntei se alguém sabia a que horas acontecera e um rapaz me disse que a mulher estava como a dormir, e ninguém percebeu, até ela cair, com o rosto no chão. Uma mulher, que passava, gritou ao ver a senhora inconsciente e, então, toda a confusão começou. Era simplesmente improvável que tivesse acontecido. Aquilo não fazia sentido.

Eu olhei em volta, desconfiada que sabia quem me poderia explicar o ocorrido, mas ele não estava por perto. Para onde teria ido?

***

Ele não voltou para casa naquela noite. Recebi uma mensagem de texto, simples e direta, me dizendo que ele teria que resolver algo e que não tinha certeza se voltaria aquela noite, que estava bem e que eu não me deveria preocupar.

Como se eu conseguisse...

Minha mente estava cheia de pensamentos obscuros, suspeitas e ansiedade. Eu tinha tantas perguntas, todas sem respostas, que só de pensar, acho que eu poderia explodir. Claro que eu queria respostas. Eu precisava delas. Mas acima de tudo, perguntei-me se estava pronta para as respostas que eu poderia ter e aquilo me deixava ainda mais angustiada. Havia tantos "se’s" a incomodar a minha cabeça, que eu não conseguia nem dormir, de tanta ansiedade e dor. Mas, então, a exaustão superou a minha preocupação e a minha vontade e eu adormeci.

***

A gôndola navegava suavemente pelas águas escuras do canal, nas caves geladas do antigo edifício. O velho passageiro mantinha-se sentado, em silêncio, na parte de trás do barco, com os olhos fixos em frente, tentando ver um traço de luz, que fosse, a brilhar na densa escuridão.

O eco do longo remo atingindo a água era o único som que ouviam, enquanto a viagem durou. O barco pareceu seguir uma curva e então eles viram um ponto de luz, cintilando nas paredes, à frente. Eles estavam perto. O velho passageiro sentiu uma emoção estranha, atingindo seu estômago por dentro. Mas ele não estava com medo. Estava pronto... Por que teria medo, afinal? Ele fechou os olhos.

O aroma do vinho, armazenado e a envelhecer em barris de carvalho francês, encheu suas narinas, com um prazer incomum. Ele simplesmente amava aquele cheiro. Aquilo fazia-o lembrar dos tempos de sua mocidade, quando sua alma era livre e impávida. Sua lembrança voltou à ocasião quando ele estivera com a pessoa por quem tinha mais consideração, em toda a sua vida, a visitar as caves, as trocas de olhares e sorrisos, os toques subtis, quase acidentais, fingindo que estavam prestando total atenção ao guia, quando, na verdade, sentiam o anseio e o desejo de estarem juntos novamente, e, finalmente, a degustação de vinhos e as risadas, para terminar na cama, alguns minutos depois, como adolescentes redescobrindo o sexo e o amor... Ele quase sentiu seu corpo reagir às suas reminiscências.

O homem respirou profundamente, sentindo-se meio emocional, mas de repente se endireitou de novo. Não havia mais tempo para aquela nostalgia.

O barco desacelerou e finalmente parou. O gondoleiro saltou, amarrou-o e estendeu a mão para o passageiro, que colocou seus dedos artríticos na palma do homem mais jovem. Ele não sorriu. Simplesmente olhou para o rosto do outro homem e saiu, pisando firmemente. O barqueiro ajudou-o com uma expressão séria, mas muito gentil, no rosto, mostrando que não havia necessidade de ter medo. O velho passageiro ficou parado, à espera. De onde eles estavam, podiam ouvir o som das sirenes muito longe, quase inaudível, mas continuamente. Os dois homens trocaram olhares, quando outro personagem saiu da sombra de onde estava escondido. Seu rosto anguloso estava velado pelo chapéu de abas largas e seu corpo musculoso e magro coberto por uma capa escura.

- Tu deves seguir sozinho deste ponto em diante.

- Eu sei.

***

Ouvi a porta abrir e depois fechar quando ele entrou. Era tarde da noite, mas eu ainda estava acordada. Fora outra noite sem dormir. Meu coração estava tão inquieto quanto a minha mente e minha alma.

Eu só queria... Eu, realmente, não sabia mais o que eu queria...

Eu estava chateada. Eu estava com raiva. Eu estava assustada. Estava sentindo tudo ao mesmo tempo e minhas emoções estavam todas misturadas e confusas. Queria morrer ou matar...

- Não esperava que tu estivesses acordada.

- O que tu esperavas, afinal?

- Não sei se sei...

- Bem, tu sabes tudo...

- Não seja assim. Tu sabes que isso não é verdade.

- Já não acho que eu saiba mais nada. Estou aqui, sozinha com meus pensamentos e medos e toda essa confusão na minha cabeça. Onde estavas? O que tu fizeste comigo? Estás preso em minha mente, como uma daquelas canções, que ficam repetindo, sem parar e que não me deixa em paz. E no final, nem sei se quero que me deixes sozinha... Eu só quero sentir-me segura, amada e viva...

Comecei a chorar. Ele se aproximou e me abraçou. Chorei como se estivesse sentindo uma dor insuportável. Ele manteve seu silêncio, respeitando a agonia em que minha alma estava. E eu estava com tanto medo...

- Posso sentir a tua dor e posso sentir teu medo. Por favor, não fique assustada... Não há nada de que temer.

- Como é que eu vou saber?

- Confie em mim.

- De que maneira?

- Um salto de fé?

- Tu sempre estás-me pressionando com essa conversa. Eu já dei muito. O que foi que tu me deste?

Lamentei dizer aquilo assim que as palavras saíram de minha boca. As coisas que dizemos quando estamos bravos e angustiados...

Seu rosto estava sério. Seus olhos estavam distantes. Eu sabia muito bem o que aquilo significava.

- Eu sinto muito. Eu não devia ter falado aquilo. Perdoa-me, por favor. Estou fora de controlo. Perdoa-me, por favor.

- Tu sabes que eu tentei proteger-te...

- Do quê, pelo amor de Deus?

- Tu lembras da primeira vez que eu te pedi um salto de fé?

- Claro. Estava tão assustada, mas enfrentei meu medo, graças a ti...

  - De fato. Aquele foi o primeiro passo. Eu queria que tu confiasses em mim e foi o que fizeste. O sexo, como o amor, é bem mais que uma simples busca por prazer. É sobre a confiança e a entrega e é como morrer e voltar a viver novamente... Tu lembras da segunda vez que eu pedi que tu desses um outro salto de fé?

- O dia que desmaiei... sim...

- Tu não desmaiaste.

- Como assim? Claro que eu desfaleci... e eu tive aquele sonho estranho...

Ele pegou minha mão e sorriu gentilmente, dizendo com firmeza.

- Tu não desmaiaste.

- Tu me estás assustando novamente.

Ele olhou para o meu rosto, tocou-o levemente e disse:

- Eu sei, mas isso já não é o que é importante. Talvez agora seja hora de te contar toda a verdade.

Senti uma pontada no meu peito. A verdade era o que eu mais precisava, e estava com tanto medo do que ele me falaria, finalmente.

"Oh, meu Senhor! O que eu faço agora?'

- Vem comigo. O canal deve estar bastante quieto agora. É tarde e ninguém está trabalhando nas gôndolas, à esta hora da noite. Eu vou levar-te para o passeio da verdade... Teu último salto de fé.

***

Seguimos, calados e lado a lado, pelas ruas desertas, até o Canal. Ele me ajudou a entrar na gôndola e viajamos em silêncio, até vermos o antigo edifício e a passagem para os subterrâneos. Meu coração estava batendo tão alto e rápido, que eu nem conseguia ouvir o som do remo a bater nas águas escuras e tranquilas. Era como em meu sonho, mas já não era mais um sonho e eu estava muitíssimo assustada... Ele não olhou para mim. Mesmo que ele o fizesse, eu não saberia, tão escuro que estava. Quando vimos um pouco de luz à frente e os reflexos das águas a dançarem nas paredes, meu estômago doeu.

O barco avançou lentamente até aportar em uma pequena doca e ele saltou, amarrando a corda a um velho poste metálico de amarração. Esperando, sério, que eu me levantasse, ele não tardou a me ajudar a sair da gôndola, gentilmente. Se realmente pudesse ler minha mente, ele saberia como eu estava me sentindo.

Ele não me pediu nada, apenas me levou ao cais e ficou ao meu lado. Um som quase inaudível veio da escuridão à frente e foi só assim que percebi que não estávamos sozinhos.

O personagem que entrava tinha um chapéu largo e seu corpo musculoso estava coberto por um manto escuro, que descia até os tornozelos. Seu rosto angular estava quase escondido pela sombra do chapéu, mas eu podia ver que ele era muito pálido, embora muito bonito.

Ele levantou a mão e, com a palma voltada para cima, estendeu-a, mas sem me tocar. Quase inconscientemente, em um transe, estendi a mão para tocar a dele, mas fui detida no meio do caminho, pelo meu amante gondoleiro.

- Não. Ainda não... Há algo que eu tenho que dizer primeiro.

O outro homem se virou para ele e disse, tentando conter sua raiva:

- Não é assim que funciona, e tu sabes disso.

- É assim que isso funciona, neste caso. É isso ou nada.

- Quem tu pensas que és? Tu trabalhas para mim. Tua função é trazer-me as almas dos moribundos e não tens permissão para questionar as consequências. Sabes bem o que pode acontecer se não as entregares...

- Eu sei e estou pronto para enfrentar as consequências. Se tu queres uma alma, agora, então vais ter que me levar no lugar dela.

- Eu já possuo a tua alma.

- Não completamente. Tenho o dever de te trazer os que estão indo para o outro lado, mas desta vez não posso fazer isso.

- Tu não podes rebelar-te contra mim. Sabes muito bem que eu posso levar-te, a qualquer momento, para o outro lado. Não só a ti, mas à aquela também!

- Sim. Eu sei. Eu tenho que explicar tudo à ela e preciso de mais tempo para fazê-lo. Por favor.

Ele mudou sua abordagem, como se implorasse. Já não era o homem corajoso enfrentando seus medos, mas um hábil negociador, tentando ganhar algum tempo de um poderoso mestre...

- Mas, espera. Agora que eu percebi claramente o que está acontecendo. Tu não estás apaixonado por ela, estás? Sabes o quanto isso é perigoso. Tu sabes o quão doente ela está... Tu não podes comprar mais tempo para ela. Não há nada que possa mudar isso.

- Há uma coisa apenas...

Então o outro homem levou meu amante para um canto e eles começaram a discutir algo, que eu não conseguia definir claramente o que era. Por algum motivo, eu não podia ouvir o que eles estavam dizendo. Os sons pareciam tão ininteligíveis para mim.

Quando voltaram, senti que meu coração estava prestes a explodir. Então o homem de chapéu tocou meu rosto... e todas as luzes apagaram, de repente.

***

- Eu estarei sempre na música que tu ouvires e que te faça cantar, rir ou, por vezes, chorar. Estarei no vento que acaricia teu rosto e teu corpo, quando tu caminhas. E, principalmente, estarei sempre na alma do Canal... Estou dando a minha vida para que tu possas viver. Ele quer uma alma, como seria o normal, nesta ocasião. Por isso, ele vai levar a minha...


- Não. Não posso aceitar isso.

- Tu não tens escolha. Importa é que já não estás mais doente. Já não terás aqueles apagões... Troquei tudo o que tinha, por mais tempo para ti. Mas perdi tudo, nesta troca e ainda tenho que pagar minha parte.

- Não quero que tu voltes para lá. Deve haver uma maneira.

- Ele me encontrará em qualquer lugar, de qualquer forma. Não tenho escapatória. As coisas são assim, quando se trata de Caronte... Ele tem que levar o que veio buscar.

***

Ele não era um anjo, nem era um demônio, mas foi aquele que deu tudo o que tinha... Ele sacrificou seu corpo e alma por um amor, que nem sabia se valia aquilo tudo. E foi levado no meu lugar para o outro lado... para sempre...

Ele ainda está na minha mente, no entanto, como uma canção, a tocar, insistentemente.

"Not really sure how to feel about it
Something in the way you move
Makes me feel like I can't live without you
It takes me all the way
I want you to stay… I want you to stay.”

(Não tenho certeza de como se sentir sobre isso
Algo na maneira como você se move
Me faz sentir como se não pudesse viver sem você
Me leva pelo caminho todo
Eu quero que você fique... Eu quero que você fique. )*

*De: Rihanna - Stay
***