Eu não conseguia
esconder quão alarmada estava, quando vi que ele voltou, sozinho, dos subterrâneos
do velho edifício. Ele não pareceu surpreso ao me ver ali, parada, observando a
gôndola vir na minha direção. Simplesmente saltou do barco e se aproximou de
mim, sorrindo levemente.
Com minha cabeça totalmente confusa, eu não conseguia sorrir para ele. Havia uma coisa que estava perturbando a minha cabeça e eu não conseguia pensar em nada, além de dizer:
- Quem és tu? Onde ela está?
- Não entre em pânico, por favor. Eu posso explicar.
Ele estendeu a mão para me tocar. Eu recuei.
- Não. Não me toques...
- Não tenha medo. Eu devo-te uma explicação, pelo menos. Mesmo sabendo que isso te possa chocar e manter-te longe de mim, eu preciso dizer o que está acontecendo.
Claro que eu estava com medo... Eu estava muito assustada, mesmo e não sabia se realmente queria ouvir o que ele ia-me dizer, mas sabia que precisava. Era hora de pôr um fim a aquele mistério, de uma vez.
‘Oh, meu Senhor! Eu preciso ser corajosa! Calma... Muita calma, agora!’
- Diga-me, então. Este mistério já passou do limite... Na verdade, eu já tive o suficiente de toda esta história sem nexo.
Ele abriu a boca para começar a falar, mas então o som alto e desesperado da sirene da brigada de emergência quebrou a tensão da cena. Quando olhamos para o outro extremo do Grande Canal, vimos o barco amarelo e alaranjado da 'Ambulanza' vindo, em alta velocidade, na nossa direção. Com as luzes coloridas a piscar, eles vinham pelo lado oposto, abrindo caminho, na sua passagem, entre os outros barcos e gôndolas. Certamente era uma situação de emergência.
- Vamos ver o que está acontecendo. Eles estão indo na direção da trattoria. Venha para dentro. Rápido!
Havia uma grande confusão no lugar, com as pessoas correndo, todas, para a mesma direção. Saltei da gôndola e tentei-me aproximar e ver o que acontecia. Os paramédicos estavam trabalhando na calçada da "Calle Larga" e muitos curiosos estavam de pé e falando sobre a velha mendiga, que havia falecido, sentada ao sol, no lugar onde ela costumava ficar. As sacolas de plástico ainda estavam lá, jogadas no chão. O xale, no entanto, não estava a seu lado, pois eu ainda o estava segurando nas minhas mãos. Olhei para o seu rosto, quando a moveram e a colocaram no fundo da ambulância e notei que sua expressão era de pura tranquilidade. Eu não podia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Eu a vi, caminhando na direção do Canal, apenas alguns minutos antes. Ela ia viva e toda feliz, ao lado do homem que me trouxera tantas alegrias, até então.
Não havia tempo para ela ter voltado. Como seria, de alguma forma, possível?
Perguntei se alguém sabia a que horas acontecera e um rapaz me disse que a mulher estava como a dormir, e ninguém percebeu, até ela cair, com o rosto no chão. Uma mulher, que passava, gritou ao ver a senhora inconsciente e, então, toda a confusão começou. Era simplesmente improvável que tivesse acontecido. Aquilo não fazia sentido.
Eu olhei em volta, desconfiada que sabia quem me poderia explicar o ocorrido, mas ele não estava por perto. Para onde teria ido?
***
Ele não voltou para casa
naquela noite. Recebi uma mensagem de texto, simples e direta, me dizendo que
ele teria que resolver algo e que não tinha certeza se voltaria aquela noite,
que estava bem e que eu não me deveria preocupar.
Como se eu conseguisse...
Minha mente estava cheia de pensamentos obscuros, suspeitas e ansiedade. Eu tinha tantas perguntas, todas sem respostas, que só de pensar, acho que eu poderia explodir. Claro que eu queria respostas. Eu precisava delas. Mas acima de tudo, perguntei-me se estava pronta para as respostas que eu poderia ter e aquilo me deixava ainda mais angustiada. Havia tantos "se’s" a incomodar a minha cabeça, que eu não conseguia nem dormir, de tanta ansiedade e dor. Mas, então, a exaustão superou a minha preocupação e a minha vontade e eu adormeci.
***
A gôndola navegava
suavemente pelas águas escuras do canal, nas caves geladas do antigo edifício.
O velho passageiro mantinha-se sentado, em silêncio, na parte de trás do barco,
com os olhos fixos em frente, tentando ver um traço de luz, que fosse, a brilhar
na densa escuridão.
O eco do longo remo atingindo a água era o único som que ouviam, enquanto a viagem durou. O barco pareceu seguir uma curva e então eles viram um ponto de luz, cintilando nas paredes, à frente. Eles estavam perto. O velho passageiro sentiu uma emoção estranha, atingindo seu estômago por dentro. Mas ele não estava com medo. Estava pronto... Por que teria medo, afinal? Ele fechou os olhos.
O aroma do vinho,
armazenado e a envelhecer em barris de carvalho francês, encheu suas narinas,
com um prazer incomum. Ele simplesmente amava aquele cheiro. Aquilo fazia-o lembrar
dos tempos de sua mocidade, quando sua alma era livre e impávida. Sua lembrança
voltou à ocasião quando ele estivera com a pessoa por quem tinha mais
consideração, em toda a sua vida, a visitar as caves, as trocas de olhares e sorrisos,
os toques subtis, quase acidentais, fingindo que estavam prestando total
atenção ao guia, quando, na verdade, sentiam o anseio e o desejo de estarem juntos novamente, e, finalmente, a degustação de vinhos e as risadas, para
terminar na cama, alguns minutos depois, como adolescentes redescobrindo o sexo
e o amor... Ele quase sentiu seu corpo reagir às suas reminiscências.
O homem respirou profundamente, sentindo-se meio emocional, mas de repente se endireitou de novo. Não havia mais tempo para aquela nostalgia.
O barco desacelerou e finalmente parou. O gondoleiro saltou, amarrou-o e estendeu a mão para o passageiro, que colocou seus dedos artríticos na palma do homem mais jovem. Ele não sorriu. Simplesmente olhou para o rosto do outro homem e saiu, pisando firmemente. O barqueiro ajudou-o com uma expressão séria, mas muito gentil, no rosto, mostrando que não havia necessidade de ter medo. O velho passageiro ficou parado, à espera. De onde eles estavam, podiam ouvir o som das sirenes muito longe, quase inaudível, mas continuamente. Os dois homens trocaram olhares, quando outro personagem saiu da sombra de onde estava escondido. Seu rosto anguloso estava velado pelo chapéu de abas largas e seu corpo musculoso e magro coberto por uma capa escura.
- Tu deves seguir sozinho deste ponto em diante.
- Eu sei.
***
Ouvi a porta abrir e
depois fechar quando ele entrou. Era tarde da noite, mas eu ainda estava
acordada. Fora outra noite sem dormir. Meu coração estava tão inquieto quanto a
minha mente e minha alma.
Eu só queria... Eu, realmente, não sabia mais o que eu queria...
Eu estava chateada. Eu estava com raiva. Eu estava assustada. Estava sentindo tudo ao mesmo tempo e minhas emoções estavam todas misturadas e confusas. Queria morrer ou matar...
- Não esperava que tu estivesses acordada.
- O que tu esperavas, afinal?
- Não sei se sei...
- Bem, tu sabes tudo...
- Não seja assim. Tu sabes que isso não é verdade.
- Já não acho que eu saiba mais nada. Estou aqui, sozinha com meus pensamentos e medos e toda essa confusão na minha cabeça. Onde estavas? O que tu fizeste comigo? Estás preso em minha mente, como uma daquelas canções, que ficam repetindo, sem parar e que não me deixa em paz. E no final, nem sei se quero que me deixes sozinha... Eu só quero sentir-me segura, amada e viva...
Comecei a chorar. Ele se aproximou e me abraçou. Chorei como se estivesse sentindo uma dor insuportável. Ele manteve seu silêncio, respeitando a agonia em que minha alma estava. E eu estava com tanto medo...
- Posso sentir a tua dor e posso sentir teu medo. Por favor, não fique assustada... Não há nada de que temer.
- Como é que eu vou saber?
- Confie em mim.
- De que maneira?
- Um salto de fé?
- Tu sempre estás-me pressionando com essa conversa. Eu já
dei muito. O que foi que tu me deste?
Lamentei dizer aquilo assim que as palavras saíram de minha boca. As coisas que dizemos quando estamos bravos e angustiados...
Seu rosto estava sério. Seus olhos estavam distantes. Eu sabia muito bem o que aquilo significava.
- Eu sinto muito. Eu não devia ter falado aquilo.
Perdoa-me, por favor. Estou fora de controlo. Perdoa-me, por favor.
- Tu sabes que eu tentei proteger-te...
- Do quê, pelo amor de Deus?
- Tu lembras da primeira vez que eu te pedi um salto de fé?
- Claro. Estava tão assustada, mas enfrentei meu medo, graças a ti...
- De fato. Aquele foi o primeiro passo. Eu queria que tu confiasses em mim e foi o que fizeste. O sexo, como o amor, é bem mais que uma simples busca por prazer. É sobre a confiança e a entrega e é como morrer e voltar a viver novamente... Tu lembras da segunda vez que eu pedi que tu desses um outro salto de fé?
- O dia que desmaiei... sim...
- Tu não desmaiaste.
- Como assim? Claro que eu desfaleci... e eu tive aquele sonho estranho...
Ele pegou minha mão e sorriu gentilmente, dizendo com firmeza.
- Tu não desmaiaste.
- Tu me estás assustando novamente.
Ele olhou para o meu rosto, tocou-o levemente e disse:
- Eu sei, mas isso já não é o que é importante. Talvez agora seja hora de te contar toda a verdade.
Senti uma pontada no meu peito. A verdade era o que eu mais precisava, e estava com tanto medo do que ele me falaria, finalmente.
"Oh, meu Senhor! O que eu faço agora?'
- Vem comigo. O canal deve estar bastante quieto agora. É tarde e ninguém está trabalhando nas gôndolas, à esta hora da noite. Eu vou levar-te para o passeio da verdade... Teu último salto de fé.
***
Seguimos, calados e lado
a lado, pelas ruas desertas, até o Canal. Ele me ajudou a entrar na gôndola e
viajamos em silêncio, até vermos o antigo edifício e a passagem para os
subterrâneos. Meu coração estava batendo tão alto e rápido, que eu nem
conseguia ouvir o som do remo a bater nas águas escuras e tranquilas. Era como
em meu sonho, mas já não era mais um sonho e eu estava muitíssimo assustada...
Ele não olhou para mim. Mesmo que ele o fizesse, eu não saberia, tão escuro que
estava. Quando vimos um pouco de luz à frente e os reflexos das águas a
dançarem nas paredes, meu estômago doeu.
O barco avançou lentamente até aportar em uma pequena doca e ele saltou, amarrando a corda a um velho poste metálico de amarração. Esperando, sério, que eu me levantasse, ele não tardou a me ajudar a sair da gôndola, gentilmente. Se realmente pudesse ler minha mente, ele saberia como eu estava me sentindo.
Ele não me pediu nada, apenas me levou ao cais e ficou ao meu lado. Um som quase inaudível veio da escuridão à frente e foi só assim que percebi que não estávamos sozinhos.
O personagem que entrava tinha um chapéu largo e seu corpo musculoso estava coberto por um manto escuro, que descia até os tornozelos. Seu rosto angular estava quase escondido pela sombra do chapéu, mas eu podia ver que ele era muito pálido, embora muito bonito.
Ele levantou a mão e, com a palma voltada para cima, estendeu-a, mas sem me tocar. Quase inconscientemente, em um transe, estendi a mão para tocar a dele, mas fui detida no meio do caminho, pelo meu amante gondoleiro.
- Não. Ainda não... Há algo que eu tenho que dizer primeiro.
O outro homem se virou para ele e disse, tentando conter sua raiva:
- Não é assim que funciona, e tu sabes disso.
- É assim que isso funciona, neste caso. É isso ou nada.
- Quem tu pensas que és? Tu trabalhas para mim. Tua função é trazer-me as almas dos moribundos e não tens permissão para questionar as consequências. Sabes bem o que pode acontecer se não as entregares...
- Eu sei e estou pronto para enfrentar as consequências. Se tu queres uma alma, agora, então vais ter que me levar no lugar dela.
- Eu já possuo a tua alma.
- Não completamente. Tenho o dever de te trazer os que estão indo para o outro lado, mas desta vez não posso fazer isso.
- Tu não podes rebelar-te contra mim. Sabes muito
bem que eu posso levar-te, a qualquer momento, para o outro lado. Não só a ti,
mas à aquela também!
- Sim. Eu sei. Eu tenho que explicar tudo à ela e preciso de mais tempo para fazê-lo. Por favor.
Ele mudou sua abordagem, como se implorasse. Já não era o homem corajoso enfrentando seus medos, mas um hábil negociador, tentando ganhar algum tempo de um poderoso mestre...
- Mas, espera. Agora que eu percebi claramente o que está acontecendo. Tu não estás apaixonado por ela, estás? Sabes o quanto isso é perigoso. Tu sabes o quão doente ela está... Tu não podes comprar mais tempo para ela. Não há nada que possa mudar isso.
- Há uma coisa apenas...
Então o outro homem levou meu amante para um canto e eles começaram a discutir algo, que eu não conseguia definir claramente o que era. Por algum motivo, eu não podia ouvir o que eles estavam dizendo. Os sons pareciam tão ininteligíveis para mim.
Quando voltaram, senti que meu coração estava prestes a explodir. Então o homem de chapéu tocou meu rosto... e todas as luzes apagaram, de repente.
***
- Eu estarei sempre na música que tu ouvires e que te faça cantar, rir ou, por vezes, chorar. Estarei no vento que acaricia teu rosto e teu corpo, quando tu caminhas. E, principalmente, estarei sempre na alma do Canal... Estou dando a minha vida para que tu possas viver. Ele quer uma alma, como seria o normal, nesta ocasião. Por isso, ele vai levar a minha...
- Não. Não posso aceitar isso.
- Tu não tens escolha. Importa é que já não estás mais doente. Já não terás aqueles apagões... Troquei tudo o que tinha, por mais tempo para ti. Mas perdi tudo, nesta troca e ainda tenho que pagar minha parte.
- Não quero que tu voltes para lá. Deve haver uma maneira.
- Ele me encontrará em qualquer lugar, de qualquer forma. Não tenho escapatória. As coisas são assim, quando se trata de Caronte... Ele tem que levar o que veio buscar.
***
Ele não era um anjo, nem
era um demônio, mas foi aquele que deu tudo o que tinha... Ele sacrificou seu
corpo e alma por um amor, que nem sabia se valia aquilo tudo. E foi levado no
meu lugar para o outro lado... para sempre...
Ele ainda está na minha mente, no entanto, como uma canção, a tocar, insistentemente.
"Not really sure how to feel about it
Something in the way you move
Makes me feel like I can't live without you
It takes me all the way
I want you to stay… I want you to stay.”
(Não tenho certeza de como se sentir
sobre isso
Algo na maneira como você se move
Me faz sentir como se não pudesse viver sem você
Me leva pelo caminho todo
Eu quero que você fique... Eu quero que você fique. )*
*De: Rihanna - Stay
***
A última parte, finalmente, de uma das histórias mais estranhas que eu escrevi, mas que, agora, deixa-me com saudades das personagens.
ResponderEliminarAqui os mistérios se revelam e mexem com as fantasias e a mitologia dos nossos tempos...