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sábado, 16 de dezembro de 2017

Preso na Mente (Final)


Eu não conseguia esconder quão alarmada estava, quando vi que ele voltou, sozinho, dos subterrâneos do velho edifício. Ele não pareceu surpreso ao me ver ali, parada, observando a gôndola vir na minha direção. Simplesmente saltou do barco e se aproximou de mim, sorrindo levemente.

Com minha cabeça totalmente confusa, eu não conseguia sorrir para ele. Havia uma coisa que estava perturbando a minha cabeça e eu não conseguia pensar em nada, além de dizer:

- Quem és tu? Onde ela está?

- Não entre em pânico, por favor. Eu posso explicar.

Ele estendeu a mão para me tocar. Eu recuei.

- Não. Não me toques...

- Não tenha medo. Eu devo-te uma explicação, pelo menos. Mesmo sabendo que isso te possa chocar e manter-te longe de mim, eu preciso dizer o que está acontecendo.

Claro que eu estava com medo... Eu estava muito assustada, mesmo e não sabia se realmente queria ouvir o que ele ia-me dizer, mas sabia que precisava. Era hora de pôr um fim a aquele mistério, de uma vez.

‘Oh, meu Senhor! Eu preciso ser corajosa! Calma... Muita calma, agora!’

- Diga-me, então. Este mistério já passou do limite... Na verdade, eu já tive o suficiente de toda esta história sem nexo.

Ele abriu a boca para começar a falar, mas então o som alto e desesperado da sirene da brigada de emergência quebrou a tensão da cena. Quando olhamos para o outro extremo do Grande Canal, vimos o barco amarelo e alaranjado da 'Ambulanza' vindo, em alta velocidade, na nossa direção. Com as luzes coloridas a piscar, eles vinham pelo lado oposto, abrindo caminho, na sua passagem, entre os outros barcos e gôndolas. Certamente era uma situação de emergência.

- Vamos ver o que está acontecendo. Eles estão indo na direção da trattoria. Venha para dentro. Rápido!

Havia uma grande confusão no lugar, com as pessoas correndo, todas, para a mesma direção. Saltei da gôndola e tentei-me aproximar e ver o que acontecia. Os paramédicos estavam trabalhando na calçada da "Calle Larga" e muitos curiosos estavam de pé e falando sobre a velha mendiga, que havia falecido, sentada ao sol, no lugar onde ela costumava ficar. As sacolas de plástico ainda estavam lá, jogadas no chão. O xale, no entanto, não estava a seu lado, pois eu ainda o estava segurando nas minhas mãos. Olhei para o seu rosto, quando a moveram e a colocaram no fundo da ambulância e notei que sua expressão era de pura tranquilidade. Eu não podia acreditar no que meus olhos estavam vendo. Eu a vi, caminhando na direção do Canal, apenas alguns minutos antes. Ela ia viva e toda feliz, ao lado do homem que me trouxera tantas alegrias, até então.

Não havia tempo para ela ter voltado. Como seria, de alguma forma, possível?

Perguntei se alguém sabia a que horas acontecera e um rapaz me disse que a mulher estava como a dormir, e ninguém percebeu, até ela cair, com o rosto no chão. Uma mulher, que passava, gritou ao ver a senhora inconsciente e, então, toda a confusão começou. Era simplesmente improvável que tivesse acontecido. Aquilo não fazia sentido.

Eu olhei em volta, desconfiada que sabia quem me poderia explicar o ocorrido, mas ele não estava por perto. Para onde teria ido?

***

Ele não voltou para casa naquela noite. Recebi uma mensagem de texto, simples e direta, me dizendo que ele teria que resolver algo e que não tinha certeza se voltaria aquela noite, que estava bem e que eu não me deveria preocupar.

Como se eu conseguisse...

Minha mente estava cheia de pensamentos obscuros, suspeitas e ansiedade. Eu tinha tantas perguntas, todas sem respostas, que só de pensar, acho que eu poderia explodir. Claro que eu queria respostas. Eu precisava delas. Mas acima de tudo, perguntei-me se estava pronta para as respostas que eu poderia ter e aquilo me deixava ainda mais angustiada. Havia tantos "se’s" a incomodar a minha cabeça, que eu não conseguia nem dormir, de tanta ansiedade e dor. Mas, então, a exaustão superou a minha preocupação e a minha vontade e eu adormeci.

***

A gôndola navegava suavemente pelas águas escuras do canal, nas caves geladas do antigo edifício. O velho passageiro mantinha-se sentado, em silêncio, na parte de trás do barco, com os olhos fixos em frente, tentando ver um traço de luz, que fosse, a brilhar na densa escuridão.

O eco do longo remo atingindo a água era o único som que ouviam, enquanto a viagem durou. O barco pareceu seguir uma curva e então eles viram um ponto de luz, cintilando nas paredes, à frente. Eles estavam perto. O velho passageiro sentiu uma emoção estranha, atingindo seu estômago por dentro. Mas ele não estava com medo. Estava pronto... Por que teria medo, afinal? Ele fechou os olhos.

O aroma do vinho, armazenado e a envelhecer em barris de carvalho francês, encheu suas narinas, com um prazer incomum. Ele simplesmente amava aquele cheiro. Aquilo fazia-o lembrar dos tempos de sua mocidade, quando sua alma era livre e impávida. Sua lembrança voltou à ocasião quando ele estivera com a pessoa por quem tinha mais consideração, em toda a sua vida, a visitar as caves, as trocas de olhares e sorrisos, os toques subtis, quase acidentais, fingindo que estavam prestando total atenção ao guia, quando, na verdade, sentiam o anseio e o desejo de estarem juntos novamente, e, finalmente, a degustação de vinhos e as risadas, para terminar na cama, alguns minutos depois, como adolescentes redescobrindo o sexo e o amor... Ele quase sentiu seu corpo reagir às suas reminiscências.

O homem respirou profundamente, sentindo-se meio emocional, mas de repente se endireitou de novo. Não havia mais tempo para aquela nostalgia.

O barco desacelerou e finalmente parou. O gondoleiro saltou, amarrou-o e estendeu a mão para o passageiro, que colocou seus dedos artríticos na palma do homem mais jovem. Ele não sorriu. Simplesmente olhou para o rosto do outro homem e saiu, pisando firmemente. O barqueiro ajudou-o com uma expressão séria, mas muito gentil, no rosto, mostrando que não havia necessidade de ter medo. O velho passageiro ficou parado, à espera. De onde eles estavam, podiam ouvir o som das sirenes muito longe, quase inaudível, mas continuamente. Os dois homens trocaram olhares, quando outro personagem saiu da sombra de onde estava escondido. Seu rosto anguloso estava velado pelo chapéu de abas largas e seu corpo musculoso e magro coberto por uma capa escura.

- Tu deves seguir sozinho deste ponto em diante.

- Eu sei.

***

Ouvi a porta abrir e depois fechar quando ele entrou. Era tarde da noite, mas eu ainda estava acordada. Fora outra noite sem dormir. Meu coração estava tão inquieto quanto a minha mente e minha alma.

Eu só queria... Eu, realmente, não sabia mais o que eu queria...

Eu estava chateada. Eu estava com raiva. Eu estava assustada. Estava sentindo tudo ao mesmo tempo e minhas emoções estavam todas misturadas e confusas. Queria morrer ou matar...

- Não esperava que tu estivesses acordada.

- O que tu esperavas, afinal?

- Não sei se sei...

- Bem, tu sabes tudo...

- Não seja assim. Tu sabes que isso não é verdade.

- Já não acho que eu saiba mais nada. Estou aqui, sozinha com meus pensamentos e medos e toda essa confusão na minha cabeça. Onde estavas? O que tu fizeste comigo? Estás preso em minha mente, como uma daquelas canções, que ficam repetindo, sem parar e que não me deixa em paz. E no final, nem sei se quero que me deixes sozinha... Eu só quero sentir-me segura, amada e viva...

Comecei a chorar. Ele se aproximou e me abraçou. Chorei como se estivesse sentindo uma dor insuportável. Ele manteve seu silêncio, respeitando a agonia em que minha alma estava. E eu estava com tanto medo...

- Posso sentir a tua dor e posso sentir teu medo. Por favor, não fique assustada... Não há nada de que temer.

- Como é que eu vou saber?

- Confie em mim.

- De que maneira?

- Um salto de fé?

- Tu sempre estás-me pressionando com essa conversa. Eu já dei muito. O que foi que tu me deste?

Lamentei dizer aquilo assim que as palavras saíram de minha boca. As coisas que dizemos quando estamos bravos e angustiados...

Seu rosto estava sério. Seus olhos estavam distantes. Eu sabia muito bem o que aquilo significava.

- Eu sinto muito. Eu não devia ter falado aquilo. Perdoa-me, por favor. Estou fora de controlo. Perdoa-me, por favor.

- Tu sabes que eu tentei proteger-te...

- Do quê, pelo amor de Deus?

- Tu lembras da primeira vez que eu te pedi um salto de fé?

- Claro. Estava tão assustada, mas enfrentei meu medo, graças a ti...

  - De fato. Aquele foi o primeiro passo. Eu queria que tu confiasses em mim e foi o que fizeste. O sexo, como o amor, é bem mais que uma simples busca por prazer. É sobre a confiança e a entrega e é como morrer e voltar a viver novamente... Tu lembras da segunda vez que eu pedi que tu desses um outro salto de fé?

- O dia que desmaiei... sim...

- Tu não desmaiaste.

- Como assim? Claro que eu desfaleci... e eu tive aquele sonho estranho...

Ele pegou minha mão e sorriu gentilmente, dizendo com firmeza.

- Tu não desmaiaste.

- Tu me estás assustando novamente.

Ele olhou para o meu rosto, tocou-o levemente e disse:

- Eu sei, mas isso já não é o que é importante. Talvez agora seja hora de te contar toda a verdade.

Senti uma pontada no meu peito. A verdade era o que eu mais precisava, e estava com tanto medo do que ele me falaria, finalmente.

"Oh, meu Senhor! O que eu faço agora?'

- Vem comigo. O canal deve estar bastante quieto agora. É tarde e ninguém está trabalhando nas gôndolas, à esta hora da noite. Eu vou levar-te para o passeio da verdade... Teu último salto de fé.

***

Seguimos, calados e lado a lado, pelas ruas desertas, até o Canal. Ele me ajudou a entrar na gôndola e viajamos em silêncio, até vermos o antigo edifício e a passagem para os subterrâneos. Meu coração estava batendo tão alto e rápido, que eu nem conseguia ouvir o som do remo a bater nas águas escuras e tranquilas. Era como em meu sonho, mas já não era mais um sonho e eu estava muitíssimo assustada... Ele não olhou para mim. Mesmo que ele o fizesse, eu não saberia, tão escuro que estava. Quando vimos um pouco de luz à frente e os reflexos das águas a dançarem nas paredes, meu estômago doeu.

O barco avançou lentamente até aportar em uma pequena doca e ele saltou, amarrando a corda a um velho poste metálico de amarração. Esperando, sério, que eu me levantasse, ele não tardou a me ajudar a sair da gôndola, gentilmente. Se realmente pudesse ler minha mente, ele saberia como eu estava me sentindo.

Ele não me pediu nada, apenas me levou ao cais e ficou ao meu lado. Um som quase inaudível veio da escuridão à frente e foi só assim que percebi que não estávamos sozinhos.

O personagem que entrava tinha um chapéu largo e seu corpo musculoso estava coberto por um manto escuro, que descia até os tornozelos. Seu rosto angular estava quase escondido pela sombra do chapéu, mas eu podia ver que ele era muito pálido, embora muito bonito.

Ele levantou a mão e, com a palma voltada para cima, estendeu-a, mas sem me tocar. Quase inconscientemente, em um transe, estendi a mão para tocar a dele, mas fui detida no meio do caminho, pelo meu amante gondoleiro.

- Não. Ainda não... Há algo que eu tenho que dizer primeiro.

O outro homem se virou para ele e disse, tentando conter sua raiva:

- Não é assim que funciona, e tu sabes disso.

- É assim que isso funciona, neste caso. É isso ou nada.

- Quem tu pensas que és? Tu trabalhas para mim. Tua função é trazer-me as almas dos moribundos e não tens permissão para questionar as consequências. Sabes bem o que pode acontecer se não as entregares...

- Eu sei e estou pronto para enfrentar as consequências. Se tu queres uma alma, agora, então vais ter que me levar no lugar dela.

- Eu já possuo a tua alma.

- Não completamente. Tenho o dever de te trazer os que estão indo para o outro lado, mas desta vez não posso fazer isso.

- Tu não podes rebelar-te contra mim. Sabes muito bem que eu posso levar-te, a qualquer momento, para o outro lado. Não só a ti, mas à aquela também!

- Sim. Eu sei. Eu tenho que explicar tudo à ela e preciso de mais tempo para fazê-lo. Por favor.

Ele mudou sua abordagem, como se implorasse. Já não era o homem corajoso enfrentando seus medos, mas um hábil negociador, tentando ganhar algum tempo de um poderoso mestre...

- Mas, espera. Agora que eu percebi claramente o que está acontecendo. Tu não estás apaixonado por ela, estás? Sabes o quanto isso é perigoso. Tu sabes o quão doente ela está... Tu não podes comprar mais tempo para ela. Não há nada que possa mudar isso.

- Há uma coisa apenas...

Então o outro homem levou meu amante para um canto e eles começaram a discutir algo, que eu não conseguia definir claramente o que era. Por algum motivo, eu não podia ouvir o que eles estavam dizendo. Os sons pareciam tão ininteligíveis para mim.

Quando voltaram, senti que meu coração estava prestes a explodir. Então o homem de chapéu tocou meu rosto... e todas as luzes apagaram, de repente.

***

- Eu estarei sempre na música que tu ouvires e que te faça cantar, rir ou, por vezes, chorar. Estarei no vento que acaricia teu rosto e teu corpo, quando tu caminhas. E, principalmente, estarei sempre na alma do Canal... Estou dando a minha vida para que tu possas viver. Ele quer uma alma, como seria o normal, nesta ocasião. Por isso, ele vai levar a minha...


- Não. Não posso aceitar isso.

- Tu não tens escolha. Importa é que já não estás mais doente. Já não terás aqueles apagões... Troquei tudo o que tinha, por mais tempo para ti. Mas perdi tudo, nesta troca e ainda tenho que pagar minha parte.

- Não quero que tu voltes para lá. Deve haver uma maneira.

- Ele me encontrará em qualquer lugar, de qualquer forma. Não tenho escapatória. As coisas são assim, quando se trata de Caronte... Ele tem que levar o que veio buscar.

***

Ele não era um anjo, nem era um demônio, mas foi aquele que deu tudo o que tinha... Ele sacrificou seu corpo e alma por um amor, que nem sabia se valia aquilo tudo. E foi levado no meu lugar para o outro lado... para sempre...

Ele ainda está na minha mente, no entanto, como uma canção, a tocar, insistentemente.

"Not really sure how to feel about it
Something in the way you move
Makes me feel like I can't live without you
It takes me all the way
I want you to stay… I want you to stay.”

(Não tenho certeza de como se sentir sobre isso
Algo na maneira como você se move
Me faz sentir como se não pudesse viver sem você
Me leva pelo caminho todo
Eu quero que você fique... Eu quero que você fique. )*

*De: Rihanna - Stay
***

sábado, 2 de dezembro de 2017

Preso na Mente (Parte 2)



- Tu és um anjo?

- Na verdade, não...

- Então?

- Estou aqui para ajudar-te...

- Em quê?

- Em ir para o outro lado…

- Assim me estás assustando.

- Por favor, não tenha medo. Tudo vai ficar bem.

- Agora é que estou com muito medo, mesmo. Isso é de loucos...

- Um salto de fé?

- Outro?

Ele riu. Engraçado, como seu sorriso me fazia sentir tão bem e segura. Algo em minha mente dizia que eu poderia confiar nele. Ao observar aquela bondade claramente expressa em sua face atraente, não sei por qual razão, minhas pernas enfraqueceram e senti que precisava sentar-me. Ele apenas segurou minha mão. Minha vista escureceu. Minha mente ficou vazia. Então eu apaguei... Ou foi todo o resto que desapareceu?

***

- Venha comigo. O canal deve estar bastante quieto agora. É tarde e ninguém trabalha nas gôndolas à esta hora da noite. Vou levá-la para o outro lado...

Ele escolheu uma noite de lua nova, com muita sabedoria. Estava demasiadamente escuro, sem a lua a brilhar no céu. Eu podia ver as estrelas cintilando acima de nossas cabeças, mas não podíamos ver muito adiante de nossos olhos. Senti sua mão quente e firme a segurar a minha. Por uma razão estranha, meu coração estava ardendo, apesar de a noite estar fresca, quase fria. Eu estava sendo habilmente conduzida por ele, noite adentro, através das águas um tanto turvas e silenciosas do canal. As luzes da cidade haviam ficado atrás de nós e o barco seguia para o lado mais escuro do lugar. Eu me sentia cansada, mas estava apreensiva ao mesmo tempo. Não conseguia fechar os olhos, mesmo que fosse por um segundo sequer.

Eu confiava nele e em suas habilidades... Tinha que confiar. Ele conduziu a embarcação por uma entrada que levava pelos porões de um conjunto muito antigo de prédios. De repente, todas as luzes desapareceram e eu só podia ouvir o som intermitente do remo, a bater suavemente na água que nos rodeava. Quase perdi o controlo e segurei-me ao lado do barco, com as duas mãos. Senti que estávamos avançando, porque uma suave e fresca brisa soprava contra meu rosto. Ele estava em silêncio e eu também, mais pelo medo, do que pela consciência, mantendo meus ouvidos em alerta total.

- Onde estamos?

- Shh... Não se preocupe. Confie em mim. Estamos quase lá.

- Lá? Onde?

Ele nunca respondeu. O silêncio era quase insuportável. Desisti e fiquei com a boca fechada, naquela estranha viagem, por uma via totalmente desprovida de luz, até que vi uma luminescência muito pálida, a flamejar bem à frente, como se a bruxulear sua mistura de estranhas sombras, nas paredes cobertas de limo e caruncho. Meu coração batia tão rápido, que eu pensei que ia ter um colapso. Minha mente estava completamente inquieta e eu sentia calafrios, subindo e descendo pela minha coluna. Meus pensamentos se tornaram um, gritando, na minha cabeça, aquele estado anormal e evidente de pavor.

"Oh, Deus! Estou tão terrivelmente assustada agora."

E, então, a situação ficou ainda pior, quando o ouvi dizer:

- Não fiques. Não tens razão para ter medo.

Ele fez aquilo novamente. Como ele poderia saber o que eu estava pensando? Perguntei se eu, algum dia, saberia.

Então ele desacelerou o barco e atracou, pulando rapidamente para uma espécie de minúsculo atracadouro e me ajudando a sair, para o terreno firme. Sua mão estava quente, mas a minha, ao contrário, estava extremamente fria.

E então ele sorriu para mim. Por algum inexplicável motivo, em vez de me sentir segura, senti-me ainda mais assustada, que já estava. Qual seria a sua intenção? Por que aquele estranho sorriso?

Meu coração deu uma outra batida em falso. E, então…

***

- O que é que foi isso?

- Um sonho, eu acho...

- Tu achas? Tu sabes bem o que foi...

Ele apenas sorriu, como se soubesse mais do que realmente dizia.

- Isso é loucura. O que estás fazendo comigo? Estou apavorada.

- Essa não é minha intenção, minha cara. De modo nenhum. Estou apenas te preparando.

- Lá vem aquela conversa de preparação, novamente. Por que tu não dizes tudo? Estou ficando cansada disso...

Ele simplesmente respondeu, da maneira mais calma que podia.

- Já falamos sobre isso.

- Sim, já, mas isso não me faz sentir melhor.

Ele ficou a me olhar, fixamente. Sua expressão era impossível de traduzir. Minha mente vagou no tempo.

***


- Uma razão?

- Saberás, quando o tempo for devido.

- E acho que não vais-me dizer mais nada sobre isso, de antemão...

- Como eu disse, no seu devido tempo, minha cara... Só então...

- Isso é muito irritante, sabias disso? E é um bocado assustador...

- Tu não vais-te machucar. Não tenhas medo.

- Machucar? É essa a tua preocupação?

- Principalmente...

Dei-lhe um soco no braço, tentando machucá-lo, mas, daquela vez, de verdade.

- Ouch!

Ele segurou minha mão, beijou-a e abraçou-me, rindo da minha torpe tentativa de prejudicá-lo.

- Tu vais ficar bem.

Eu sentia que ele estava-me tentando proteger, mas não conseguia definir do que... ou de quem.... Então fechei os olhos e me aconcheguei no seu peito. Ele tocou meu rosto, tão levemente, que imaginei flocos de neve pousando na minha pele, mas com a sensação de que eram muito mais cálidos...

***

- Tive aquele sonho novamente.

- Ah, foi?

Ele estava sorrindo. Perguntei-me o que aquele sorriso maroto poderia significar. Ele sabia. Eu sabia que ele sabia. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo na minha mente... como sempre…

- Por que essa carinha engraçada?

- Tu não sabes tudo? Adivinha.

- Eu não sei tudo. A tua impressão a meu respeito está muito longe da realidade.

- Não está. Tu és sempre tão misterioso e reticente. Me confundes e, então, ris de mim, sem qualquer explicação real... e eu me pergunto onde isso me possa levar, mas suponho que tu não vais-me dizer agora...

- Talvez… um dia…

***

- Conta-me teus segredos... mesmo os mais sombrios... Podes confiar em mim.


- Só se me contares os teus...

Ele simplesmente sorriu, fingindo que estava derrotado. Claro que ele nunca me contaria nenhum dos seus segredos mais secretos. Se realmente pudesse ler minha mente, sabia que muitas das minhas feridas, não reveladas, ainda estavam vulneráveis, para todos os efeitos. Ele poderia tocá-las e me machucar ou, por outro lado, me curar. Era sua opção e sua decisão. Ele tinha-me completamente em suas mãos.

E aquelas mãos... oh, Deus... Aquelas mãos eram tão carinhosas. Seu toque era tão perfeito, a seguir, vagarosamente, as curvas do meu corpo, como se quisesse decorar todas as linhas, na sua mente complexa. Seus lábios roçaram os meus, depois o meu pescoço, meu peito e meu estômago. Ele então desceu pela minha pele, causando-me arrepios, enquanto abria seu caminho com os lábios, a beijar-me suavemente e a segurar meu corpo, firmemente, em suas mãos quentes, como se quisesse certificar-se que eu não iria fugir de suas carícias...

Até parece que, por algum descabido motivo, eu ia, mesmo, tentar fugir...

Como eu poderia pensar em mais alguma coisa, além do prazer, quando estava sendo tocada e mimada daquele jeito? Eu poderia ficar viciada naquilo e nele, a qualquer hora e de qualquer maneira.

Não. Na verdade, não poderia. O caso condicional, aqui, já não podia ser aplicado. Já era tarde demais para isso.

Pensando de forma absolutamente clara, na verdade, eu já estava completamente dependente da presença dele.

Ele poderia fazer qualquer coisa que quisesse e tirar qualquer coisa de mim, que eu certamente me entregaria, sem qualquer sinal de luta. Ele era meu amante e dominava a arte da sedução, fazendo-me esquecer tudo o mais, quando estávamos juntos. O mundo poderia girar sem nós, por uma noite inteira ou mais, se ele quisesse. Eu era um brinquedo em suas mãos, aceitando abertamente o que poderia tirar dele, como se fosse a última coisa que eu conseguisse fazer na minha vida... Então ele poderia assumir todo o controle e me fazer ir para o Céu ou para o Inferno, em segundos, até o mundo inteiro explodir em mim e eu cair das alturas, agarrada ao seu corpo e alma, como se fossemos apenas um.

Cansados e felizes, nós adormeceríamos nos braços um do outro, dormindo juntos e sonhando sonhos separados.

***

- Eu tenho que ir agora.

- Mas ainda é cedo...

- Eu sei e, realmente, não quero sair, mas tenho que ir.

- Eu queria que tu pudesses ficar um pouco mais.

- Não vou-me atrasar esta noite. Eu prometo.

Seus olhos, então, vagaram para longe. Eu conhecia aquele olhar. Meu corpo reagiu imediatamente, ficando tenso e estremecendo um pouco.

- Isso não é um adeus. É apenas um "até depois"...

- Eu sei disso…

Ele sentou-se na beira da cama. Meus olhos tentavam memorizar as linhas de suas costas e braços, enquanto ele lentamente se vestia e preparava-se para sair. Eu estava ocupada a observar seus movimentos quase felinos, ainda impressionada e encantada, depois de tanto tempo juntos, pelo jeito que ele se movia. Ele era surpreendente, no mais belo sentido da palavra. Não só era bonito, mas também muito masculino. Adorava o jeito que ele se cuidava e mantinha seu forte corpo em boa forma.

Ele saiu alguns minutos depois. Eu ainda tinha cerca de uma hora antes da minha hora de levantar, então, simplesmente, rolei para o lado e adormeci, por mais um tempo.

***

Eu caminhava, depois do almoço, perto do Canal, meio desejando que pudesse vê-lo, mas sabia que seria apenas um desejo, pois sua agenda era pouco rígida e nada previsível. Como a alta temporada estava quase terminada, o negócio ainda dependia dos grupos de turistas, que se alinhavam no cais, para dar voltas pelos meandros da cidade. O tempo vinha esfriando e o número de clientes diminuía todos os dias. Já estávamos no meio do outono.

O ar estava mais fresco, perto do canal e a maioria dos mendigos evitava aqueles pontos, embora necessitassem manter-se, sempre, perto dos restaurantes e das ruas mais movimentadas.

Uma velha senhora, que eu costumava ver perto da trattoria, estava sentada na calçada, recostada na parede, tomando um pouco de sol. Parecia estar dormindo, calmamente, e aquecida pelos raios quase pálidos do início da tarde. Por algum motivo, continuei a observá-la, por um tempo. Seu corpo se inclinou um pouco para a frente, como se realmente adormecesse, no local supostamente aquecido, onde ela se encontrava tão confortavelmente aninhada.

Acho que eu era a única pessoa a olhar para aquela criatura. É engraçado que, com o passar do tempo, os mendigos se transformam em pessoas totalmente invisíveis à grande maioria dos transeuntes, como se, nem ao menos, estivessem lá ou se não existissem.

Entrei na trattoria e pedi uma xícara de café, depois de sentar-me junto à janela. A velha mendiga ainda estava lá, na mesma posição, inclinada um pouco para a frente, sentada ao sol. Minha mente estava quase vazia. Eu apenas observava o movimento das pessoas e a velha senhora.

Então, uma silhueta conhecida apareceu, de não sei onde e parou perto dela. Meus olhos se iluminaram e já estava pronta para me levantar e sair, quando o empregado trouxe meu café. Quando pude voltar minha atenção para fora da janela, novamente, vi que o homem estendia, num gesto convidativo, a mão para a mulher que, já acordada, colocava seus dedos enrugados na palma da jovem e forte mão, para poder levantar. Ele a ajudou a ficar de pé e os dois seguiram o percurso, caminhando lado a lado, a passos decididos. Pareciam manter o silêncio, enquanto se afastavam do meu campo de visão.

Eu decidi segui-los, apenas para ver o que ele estava fazendo. Era uma mistura de gentileza, mas, ao mesmo tempo, muito intrigante. Quando eu saí pela porta, notei que o lugar onde a mulher esteve sentada, alguns minutos antes, parecia tão intacto, como se ela ainda estivesse por perto. Suas poucas sacolas de plástico e um velho xale de lã cinza e vermelho ainda estavam lá. Parecia que o tempo havia congelado. Pensei que havia algo errado, por isso peguei o xale em minhas mãos e me afastei com passos rápidos, tentando alcançá-los, mesmo sabendo que tinha poucas hipóteses de conseguir.

Não os avistei na rua à frente, mas segui meu coração e a rota que eu achava que eles tomariam, indo na direcção do Canal. Para variar, eu estava certa. Quando virei a esquina, vi que ele a estava ajudando a entrar na gôndola. Estavam sozinhos. Eu não vi a fila habitual de turistas, no cais. Ela sentou-se calmamente na parte de trás da gôndola e eles saíram a navegar pelo Canal, antes que eu pudesse alcançá-los. Não gritei, pois sabia que ele não iria ouvir-me, de qualquer maneira.

Decidi segui-los o máximo que pude, mesmo sabendo que não fazia muito sentido. Meu coração batia muito rápido. Minha mente estava incomodada. Segui a gôndola por muitas ruas, tentando estar tão perto quanto possível.

De repente, eles saíram da via principal e entraram por um dos braços mais estreitos do Grande Canal.

Enquanto o barco seguia, percebi que o lugar ficava cada vez mais silencioso. Em minha mente, eu reconhecia o lugar. O barco atravessou uma passagem e eles entraram pelos porões de um prédio muito antigo. Tive a impressão que o vi virar-se e olhar na minha direção, mas não tinha certeza de que aquilo realmente aconteceu ou se eu simplesmente imaginei. Meu sangue congelou. Então, eles desapareceram nas sombras.

Eu não conseguiria segui-los mais, mas reconheci que aquele era o mesmo lugar com o qual eu vinha sonhando, por várias noites.

Meu coração deu um salto... ou, talvez, dois.

‘Por Deus! O que ele estava fazendo?’

E eu? O que eu estava fazendo, afinal?

***