domingo, 16 de novembro de 2014

Uma Garrafinha Azul (Parte 2 de 2: Ένα μικρό μπλε μπουκάλι (Éna mikró ble boukáli))


Nós havíamos combinado que voltaríamos àquela mesma região, no começo do Verão seguinte. Ela começava a falar na viagem, semanas antes da data da partida, sempre cheia de planos… detalhados… e que não eram poucos.

Eu achava incrível como ela havia amadurecido naquele ano. Desabrochara como uma rara flor. Era uma miúda inteligente e tinha uma beleza reconhecida por todos, para meu orgulho. Era minha vida.

Ainda não era meio-dia, quando chegamos à praia. Como era de esperar, ela saiu correndo, descalça e a chutar a água salgada e fresca. Voltava a ser a minha menina, que tinha uma enorme fascinação pelo mar. Eu a acompanhei, a passos lentos, pois não tinha vontade de correr. À beira da água, eu gostava mesmo era de caminhar, bem devagar. Perdi-a de vista quando ela venceu a curva da baía, mas sabia para onde se dirigia. Em pouco tempo avistei a silhueta conhecida, a mover-se lentamente à minha frente. Perguntei-me o porquê de estar a caminhar tão devagar, mas logo percebi a razão.

Havia um homem jovem sentado sobre um tronco, na praia, a olhar, muito sério, um ponto além do horizonte, com olhos tão azuis quanto o céu que se estendia por sobre nós. Tinha cabelos negros e fartos, lisos, mas estavam desalinhados pelo vento. Vestia uma camisa branca, com as mangas arregaçadas até os cotovelos e as velhas calças jeans com as bainhas enroladas para cima, estavam um pouco molhadas. O rapaz, que já havia, com certeza, passado dos vinte, mas estava longe dos trinta anos de idade, percebeu nossa chegada, mas não saiu do lugar. Minha filha apertou minha mão, quando viu que ele tinha uma garrafinha azul na mão.

***

- No fim do verão passado, encontrei-a, no outro lado da baía. Tinha esperanças de encontrar a dona, mas não sabia como. Decidi que devia mandá-la de volta ao mar. Tive pena, mas não tinha direito de mantê-la comigo. Quem sabe outro tivesse mais sorte que eu. Mas o poema era tão bonito, que hesitei…

- Poema?

- Sim.

Olhei o rubor tingir a face da minha menina, agora comportando-se como uma jovem mulher. Ela desviou o olhar. Eu a conhecia bastante bem. Aquele tipo de reação só poderia significar uma coisa. Ele também não conseguia disfarçar, satisfatoriamente, o interesse que sentia. A conversa fluía, como se fôssemos conhecidos de longa data. Estávamos sentados na esplanada de um pequeno restaurante, não muito longe da nossa kitchenette, a relaxar e bebericar, enquanto a comida não era servida. Sobre a mesa, jazia uma garrafinha azul, com um velho pedaço de papel, enrolado, dentro. Eu o havia convidado para almoçar connosco, uma atitude que jamais tomaria, se estivesse numa cidade grande. Ali, naquela vila, porém, onde todos pareciam conhecer-se, acreditei que deveria ser a atitude mais educada e inofensiva a tomar.

- Voltei para cá, depois de formar-me. Meu pai, viúvo e de idade avançada, precisou de ajuda e eu resolvi estabelecer-me por cá, por enquanto. Trabalho em um consultório na ilha. Um dia terei o meu, mas preciso de experiência e dinheiro, para investir… Este fim-de-semana teremos uma festa grega. A comunidade mantém certas tradições. Vai ser divertido. Vocês deviam vir.

Minha filha olhou-me, sorrindo. Era evidente que já havia tomado a decisão dela. Eu sorri de volta. Pisquei o olho e ela sorriu, largamente. Festa grega… pensei em danças na rua, pratos quebrados, vinho tinto e muitos frutos do mar…

- Nós viremos.

Ele sorriu, em aprovação. Ela estava radiante.

***

Nikos Vertis e Nikos Oikonomopoulos, Antonis Remos, Vasilis Karras, Paola, Giorgos Mazonakis, Pantelis Pantelidis, Melisses e muitos outros cantores gregos modernos, tocavam noite adentro, nos autofalantes da praça. Os restaurantes estavam abertos e as mesas colocadas do lado de fora. As pessoas vestiam-se de branco e dançavam nas ruas, que estavam fechadas ao trânsito. Quando colocaram a canção mais pungente de Natasa Theodoridou a tocar, o rapaz tomou a mão da minha menina e convidou-a a dançar ali mesmo, no meio da rua. Outros casais faziam o mesmo. Eu lembrei que a mãe dela adorava aquela canção.

“Να 'Σουν Θάλασσα, να μην σ’άλλαζα” (Na soun thalássa, na mi̱n s’ állaza)… ‘Se tu fosses o mar, eu nunca te mudaria’… dizia a cantora, em dueto com Sarbel, com sua voz grave e em perfeito contraste com a dela.

Eu senti uma nostalgia enorme e meus olhos inundaram-se com lágrimas, ao lembrar a última vez que dançamos, exatamente aquela mesma canção. Engoli em seco, tentando desfazer aquele nó que me apertava a garganta, mas não consegui. Sentei-me à uma mesa vazia, com os pensamentos muito longe dali.

- Eles formam um casal tão bonito…

Eu virei-me, para ver quem havia falado. Uma mulher um pouco além da meia-idade, dona de uma das tabernas que participavam do festival, olhava, com ar sonhador, os casais a dançar no meio da rua. Sua atenção estava mais voltada ao jovem de cabelos muito negros e pele morena e à mocinha de cabelos castanhos, emoldurando a face de pele muito clara, decorada com expressivos olhos verdes, que dançavam bem à nossa frente.

- É verdade…

Eu poderia sentir alguma espécie de ciúme ou um instinto protetor qualquer, mas não era o que se passava na minha cabeça naquele momento. Eu os olhava e via outras pessoas, de um passado quase recente. Não era delírio. Era uma névoa que misturava nostalgia, lembranças, sonho e vida real. Na minha visão, ela parecia flutuar e transformar-se na mãe, a dançar com um homem que eu conhecia muito bem... e que já não era o mesmo que a observava, naquele momento. Eu havia mudado... e bastante… No fundo, eu tinha medo que a história, de alguma forma, se repetisse...

No sirtáki dançam-se juntas a forma lenta (argó) e a rápida (grígoro) do hassápiko, que é uma das mais conhecidas manifestações populares, nos festivais de rua. Nas extremidades, como não formam um círculo fechado, os dançarinos giram lenços nas mãos livres. Na tradição, é importante não deixar a mão livre, para não ser segura por algum demónio.

Normalmente, um grande agrupamento se forma, no ponto mais divertido da noite, quando ouvem-se os primeiros acordes do sirtáki de Zorba, como naquele momento.

Um jovem de cabelos muito claros adiantou-se e puxou minha filha pela mão, sendo seguido por uma corrente de outras mãos, que começaram a formar um cordão enorme, no meio da avenida. Um outro cordão de pessoas, com os braços dados, formou-se à frente do primeiro. Nosso amigo esteve na extremidade daquele, mas como distraiu-se e deixou o lenço que segurava ser carregado por um outro, um homem mais velho apressou-se a tomar seu lugar e a festa continuou, como se nada houvesse acontecido. O rapaz franziu o cenho, inicialmente, mas logo voltou ao normal, pois assim ficava mais próximo da posição onde a mocinha dançava e, aparentemente, esqueceu o ocorrido. A multidão ensaiava os passos popularizados por Anthony Quinn, no famoso filme de 1964. Em pouco tempo, todos já seguiam, perfeitamente, a sequência tradicional, como um grande grupo de artistas do bailado. Embora para alguns fosse a primeira vez, para outros, era mais uma… e era divertido para ambos...

- Deem, aos gregos, comida, bebida e música e eles dançarão, felizes, a noite inteira.

- Vejo que é uma grande verdade…

Eu concordava com a senhora, que ainda observava a multidão a brincar, com os olhos um pouco distantes, como se cheios de saudosismo. Quanta história haveria de estar escondida por detrás daquele olhar cansado e nostálgico …

Quando a dança acabou, minha filha correu ao meu encontro, ofegante e a rir, com as faces rosadas. Era evidente que estava a divertir-se muito. Sentou-se ao meu lado e passou o braço no meu, encostando a cabeça no meu ombro. Eu recostei a minha sobre a dela e ficamos a olhar as pessoas a passar. Pouco tempo depois vimos o rapaz aproximar-se de nós, com dois copos de bebida nas mãos. Sentou-se e ofereceu um deles à rapariga, que aceitou, sorrindo. Ele também tinha as faces afogueadas.

- Vamos ao Zorbás? Há música ao vivo e é menos agitado que a rua.

Eu não estava muito animado para ficar num lugar fechado, mas tendo em conta que ela estava tão excitada por concordar, resolvi acompanhá-los. O Zorbás ficava numa das ruas fora do rebuliço da festa e, por isso mesmo, menos movimentadas, o que nos dava um pouco de paz. Quando entramos, entretanto, o lugar estava apinhado de gente a rir e a beber. Alguns dançavam alegremente, mas a maioria somente bebia e conversava. Havia um grupo no palco, a tocar músicas modernas. Passei os olhos à nossa volta, captando os detalhes do lugar. A decoração era simples, mas bastante interessante. Pequenos quadros emoldurados de paisagens e temas típicos da Grécia estavam dependurados nas paredes de pedra nua, à nossa volta. Apesar da pouca luz, alguns pontos estratégicos por sobre as mesas e no bar, assim como no palco, podiam ser vistos com clareza suficiente. Estávamos de pé no meio do recinto, a observar o que se passava. O rapaz pediu licença e deixou-nos. Eu assumi que havia saído para buscar alguma bebida.

Só dei-me conta que ele, ao invés disso, sentara-se numa banqueta de pés altos, no centro do palco, quando começou a cantarolar os primeiros acordes de Thelo na me niosis. A canção, gravada por Nikos Vertis, estava muito bem interpretada na voz do nosso amigo mais recente. Eu não esperava que ele fosse tão afinado e tivesse a voz tão clara. Os outros músicos pareciam conhecê-lo, pela forma como o tratavam. Ele não tirava os olhos da minha filha, enquanto cantava, como se o fizesse somente para ela.

- Να 'ξερες τα βράδια πως μισώ          
  Που με τιμωρούν που σε 'χω χάσει      
  Θέλω να σε δω το ομολογώ                  
  Άλλη τέτοια νύχτα ας μη περάσει         


*(Na 'xeres ta vrádia po̱s misó̱
   Pou me timo̱roún pou se 'cho̱ chásei
  Thélo̱ na se do̱ to omologó̱
 Álli̱ tétoia nýchta as mi̱ perásei)*

- Sabes o que significa?

- Não. Parece triste, por um lado e, mesmo assim, muito bonita e tocante…

- É uma canção de amor… Fala da agonia, que a separação de dois amantes deixa, especialmente quando a noite chega. Tens razão. É romântica e triste, ao mesmo tempo.

- Pois é…

***

*Se soubesses como eu odeio a noite
  Porque sou punido por perder-te
  Eu admito que quero ver-te
  E não quero passar outra noite assim...

***

Pelo jeito que ela tinha toda a sua atenção voltada para o cantor e sorria, enrubescida, tive a impressão que minhas férias daquele verão iam ser, de alguma forma, mais solitárias que haviam sido nos últimos anos. Percebi que eu não estava realmente preocupado, quando aquele pensamento formou-se na minha mente. Quando a performance acabou, ele voltou a juntar-se a nós, sorrindo. Minha menina recebeu-o com um abraço e, consequentemente, com um terno beijo. Vi que estava sendo demais na cena e resolvi dar a noite por encerrada. Ela parecia radiante e, por mais estranho que pudesse parecer, aquilo me deixava feliz. Pedi desculpas e retirei-me. Na saída, esbarrei num rapaz de cabelos muito claros, que entrava apressado e visivelmente alcoolizado.

***

Algumas horas depois, acordei no meio da madrugada, totalmente confuso, com um tumulto de sirenes e vozerio, do lado de fora do condomínio onde ficava a kitchenette. Só dei-me conta do que acontecia, quando minha filha entrou, aos prantos, com a blusa manchada de sangue. Entrei em pânico imediatamente, mas ela não estava ferida.

Um policial, que entrou com ela,  contou-me o que acontecera, já que a menina parecia estar em completo choque. Um rapaz, de cabelos muito claros e visivelmente alcoolizado, entrara no Zorbás e tentara puxar a rapariga para dançar, mas ela recusara-se, sendo defendida pelo parceiro que estava com ela. O outro não aceitou bem a rejeição e partiu para cima do nosso amigo, que esmurrou-o e saiu, antes de causar maior dano. Na porta, chamaram os seguranças, para tomarem providências e controlar o rapaz, que gritava por vingança.

Quando estavam a chegar à casa, algumas horas depois, o rapaz loiro, que os seguira, sem ser visto, puxou uma faca e enfiou-a nas costas do meu futuro genro, um par de vezes e fugiu, quando minha filha gritou, desesperadamente, por socorro. Os ferimentos foram tão profundos, que ele não resistiu até a chegada da ambulância, falecendo no local, esvaindo-se em sangue, pelos pulmões perfurados pela longa e afiada lâmina. Foi tudo muito rápido. Uma verdadeira tragédia, num dia que havia sido tão especial para o jovem casal. Estávamos todos absolutamente horrorizados e revoltados.

***

- Por que, pai? Por que a vida é assim cruel?

- Não sei, filha...

Choramos abraçados, como duas crianças, consolando-nos pelo passado recente e pelo passado distante. A história, que se repetia, tinha a crueldade de demónios que tomam nossas mãos, quando os lenços, inadvertidamente, caem delas.

***

Evitamos voltar ao lugar nos três anos subsequentes, após o trágico acidente. Por insistência dela, porém, retornamos no começo do verão do quarto ano.

Assim que parei o carro na beira da praia, já tão conhecida nossa, o menino de cerca de três anos, com cabelos muito negros, pele clara e olhos azuis, como o céu que se estendia por sobre nós, saltou, impaciente, correndo descalço pela praia, como se fosse um filho de pescador. Ao chegar à beira da água, parou. Ele deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo atrás, virou-se, olhou-nos e correu na direção das ondas, que quebravam próximas, com seu som característico. Ele ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se. A mãe sorriu, divertida, apesar do olhar triste.

- É mesmo meu filho...

- Sem dúvida nenhuma. Meu neto tem uma afinidade muito grande com o grande dragão...

Ela sorriu, mas eu percebi que uma lágrima teimosa, caiu-lhe pelo canto do olho.

O menino correu pela beira da água, até desaparecer na curva da baía. Minutos depois, voltava com uma garrafinha azul numa das mãos e um velho pergaminho, atado com uma linha vermelha, na outra. Disse que havia encontrado a garrafa na praia, meio enterrada na areia, perto de um tronco caído. O papelzinho tinha um pequeno poema escrito.


"Quando me vires,

saberás quem sou,

pela forma como eu te olhar.

Se hesitares em chegar-te,

pensa que eu posso ter esperado

muito tempo

por este encontro

e que já não posso esperar mais.

Se me abraçares,

fá-lo por inteiro,

como se nossos corpos

fossem um só.

Quando me beijares,

então,

que seja como um último,

mesmo que seja o primeiro,

pois o primeiro,

bem pode ser,

também,

o derradeiro."


sábado, 8 de novembro de 2014

A Small Blue Bottle (Part 1 of 2)


- Tell me more about the sea. I like to hear the stories and imagine how immense it must be... maybe even scary...

- It is like an enormous lake, but its waters are always wild, even when they seem calm. It is salty, deep... and cold... In the middle of the night when all the noises disappear, you can hear its roar, like the one of a restless dragon, claiming ownership of something that had always been his, but which had been stolen by some cruel and unfair god...

- I want to go and see it… and feel it... Will you take me there one day?

She looked at me with dreamy pleading eyes, full of a strange and extremely sweet anticipation.

- ...Please?

- I will, yes. One day...

And her green eyes looked to a distant point, longing for the trip... imagining a large auburn dragon, lying on a vast sandy beach, stuck in the anxiety of an unexplained emptiness, roaring restless and helpless, tormented by dreams of freedom and always regretting a great loss.

I was born on the island, on an autumn Friday. Perhaps for this reason, I had always had a close and intimate contact with the sea and the winds, throughout my whole life. They had always been as much a part of me as the blood running through my veins. When I was a boy, the first thing I used to do in the morning was to open my window and look at the sea, to see which side the wind was blowing to. Grandson of a fisherman, I learned how to read the signs of nature and have a rough idea of the weather forecast.

My grandfather used to get up very early in the morning and go to the sea, to collect the net he had placed the night before. I recall seeing him from afar, standing on the boat and bringing the net up full of fishes, at the time they abounded in the bay calm waters. He used to send us some for lunch. I was a child but I knew we had an affinity with the sea and the fishes. My mother said his ancestors were Spaniards.

He was a tall man, but walked half bent by the weight of the years. He had a hooked nose and wore dark rimmed glasses. His bald head was almost always covered with a classic grey felt hat. He wore white shirts with rolled up sleeves and grey pants. On special days or Sundays, he used to wear a pinstriped black suit and matched hat, kept for those occasions. It was quite funny seeing my grandfather all lined up, when on most days, he seemed to wear the same old and dull clothes. He lived on the mainland, to where we moved over when I was five years old.

The island was always in our sight when we opened the windows facing east.

My father taught me how to swim in the sea. I loved spending hours in the warm waters of the bay, swimming and learning how to hold my breath under water. In the summer, the waters were always green except on days with southerly winds, when they were blurred and drab. On clear days in the winter the ocean looked like an oversized mirror. On windy days it always had the same brownish tone, with the waves breaking up, violent, against the rocks and walls of houses built too close to the tide line. I used to spend hours looking at the sea with my thoughts far away, being lulled by the distinctive sound of the waves that constantly and insistently lapped the shore. I loved to walk along the beach with my feet in the water, treading the soft white sands. The sea was my most natural element. It was where I felt more comfortable, quieter and more secure within the boundaries of the respect I had for its greatness and its untamed power.

She had never been confronted with such a powerful and misunderstood force like that dark green vastness, speckled with short white lines in the distance.

When we got to the place I loved as a child and I stopped the car, we jumped off and walked side by side, to the edge of the cliff. I could feel the apprehension and anxiety emanating from her as she tried to control the pace of her steps. She then opened a huge smile and breathed the salty air in, with both her nose and mouth. She seemed hungry for the sea and that moment was a major milestone in her life, when she would finally meet the great, restless, roaring and fearless dragon way down the cliff.

She then put her hand into her bag and rescued a small blue bottle out. There was a small rolled piece of paper tied up with a fine red thread. A small detail, however, called my attention for the exceptional refined element she remembered to implement: the cork was sealed with wax. She thought of everything, incredible as it might have seemed to me. The intention of maintaining the message protected, dry and intact with that subtle detail surprised me to the point of amusement for her cleverness. I would not have thought of that... ever...

- What have you got there?

- It's a message I wrote. My thing... it is not worth bothering yourself with it.

She flung the bottle into the sea, before I could even think on doing anything about that.

Standing at the top of the cliff, we both watched the sea roaring down there with its unrestrained fury, its arms of waves and hands of foam, welcoming and carrying away the bottle that contained an innocent secret message. She raised her hand, but stopped halfway, when she realized that I had noticed her almost involuntary gesture.

- Who were you going to greet? Neptune? Or were you going to wave goodbye to the bottle? I do not believe that at your age you still believe in sea gods and secret messages. You gotta be kidding me...

She blushed, showing an almost feigned irritation. She looked at me and murmured an expletive. Then she told me in a loud voice:

- There’s no use in talking to you about some things. You are very rational... you have no imagination. When I was young you were much more... acceptable... You know what? You lack imagination. This is why your life is so predictable and colourless.

- Well, it's true. At least I know exactly where I’m stepping on. Don’t you think it is better?

She turned away impatiently and walked back to the car. She did not have many arguments against my sad reality. I laughed out loud. My eyes followed the young woman walking away from me, while my thoughts unfurled the threads of time, trying to find a reference point. I turned back to the cliff, overlooking the vast and endless sea and said to myself, in a low voice:

- Where have I lost the ability to dream and fantasize, anyway? When have I stopped hearing the dragon roar on the sands of the beach, chained in its own fears and anxieties? When have my own problems blinded me to the beauty of imagination and my ability to dream?

- Let's go!

She was sitting at the car wheel, honking impatiently. She had an urgent need to get to the beach. She wanted to have her feet drenched in the fresh salty water. I hurried into the car beside her. She looked like a child on her birthday, rushing to the site of the party. I laughed at her. She simply drove to the end of the road and almost without ensuring that the car had stopped, she jumped out, got rid of her shoes and ran on the soft sand that squeaked at every step she took.

She stopped when she reached the edge of the water line. I watched her from afar, studying her reactions. She stepped ahead, then walked a step back, turned around, looked at me and then ran towards the waves breaking nearby. She laughed and jumped the waves, soaking her clothes without any worry. I saw the same child who used to hear the stories about dragons and the great and wide sea, facing fearlessly her initial shock and behaving as if she had always been as close to it as I had since my boyish days.

***

- Do you hear it?

- Uh-huh... It's calm... It seems like it is purring...

Lying on the couch at the porch, she had her eyes closed and her head leaning on my legs. She smiled, then she jumped up, wide-eyed, looking at me as if she had had the gleam of a brilliant idea.

- I wonder where the bottle is. Do you think anyone has found it?

- It must be on the other side of the beach. The tides usually carry the pieces of wood from one side to the other... the bottle must not be far away...

She was serious and seemed disappointed.

- Oh. I thought it was going so much further away...

- Sometimes ... it will depend on the force of the tides...

I tried to keep her hopeful, but I was not even sure of what I had said. She laid her head on my legs again and listened to the silence of the night and to the dragon snoring softly... She fell asleep right there. I took her in my arms and laid her on the bed that she had prepared, after dinner. I had to sleep in the living room because the small kitchenette that we rented for a week had one room only.

Every morning, we strode along the beach, holding each other, while we washed our feet in the water. We used to have lunch in the village and hike nearby, but the sea was our most frequent point. We used to spend hours and hours watching the waves break or the seagulls fly, feeling the stillness of life and without saying anything.

In the morning of the day we were prepared to travel back to our normal lives, I did not see her when I got up. The door was unlocked. It was still early in the morning. She had gone out for a walk... alone. I prepared a fresh coffee and waited a little, but there was no sign of her. Before I got too worried, I put a sweatshirt on and went out looking for her at the beach. I followed a track of footprints left in the sand by a pair of small feet I assumed were hers. I found her sitting on a fallen log and watching the skyline, with the dreamiest expression I had ever seen on her face.

She looked different. I got closer and sat beside her, saying nothing. We were both looking at the horizon. She sighed.

- I have never found the bottle. It must have been taken too further away from here... This is good.... I think...

I wrapped my arm around her and pulled her closer to me. She leaned her head on my chest and fell silent.

- Do you wanna talk about it?

- No.

I respected her privacy and secrecy. She probably did not believe that I could understand the fantasy she created around the message which I could never come to know the content. I stood up and invited her to walk back to our quarters and eat something.

- Can we stay a day longer? I want to be sure that I will not find the bottle smashed somewhere on the beach.

I raised an eyebrow. She scowled.

- Please...

- This was not the plan but that's okay. We have to see if we can stay in the kitchenette for one night longer.

She jumped up and smiled, hugging me and kissing my cheek.

- Thank you.

I tried to be a lenient father ever since she lost her mother. There was no harm in indulging once in a while, as she was not very demanding on her requests. The sea was a separate issue, however. It was a fascination she had since childhood, when she still believed both in fantasies and in dragons.

I admitted that I did not want to come back either. I felt so good, there at the beach. She behaved definitely like a legitimate daughter, demonstrating an enormous affinity with an element with which she came into contact for the first time that summer. The sea was our natural element. It was in our blood, undoubtedly.

My grandfather would be proud of his great-granddaughter.


domingo, 2 de novembro de 2014

Uma Garrafinha Azul (Parte 1 de 2)


- Fala-me do mar. Eu gosto de ouvir as histórias e de imaginar como deve ser… imenso… talvez até assustador…

- É mesmo como um imenso lago, mas com as águas sempre revoltas, mesmo quando parece calmo. É salgado, profundo… e frio… No meio da noite, quando os ruídos todos desaparecem, pode-se ouvir seu rugir, como se fosse um dragão inquieto, a reclamar a posse de algo que sempre havia sido seu, mas que lhe fora roubado por algum deus cruel e injusto…

- Eu quero conhecer o mar. Levas-me, um dia?

Ela olhava-me com os olhos de súplica, sonhadores e cheios de uma antecipação estranha e extremamente doce.

- …Por favor?

- Levo, sim. Um dia…

E seus verdes olhos miravam um ponto distante, a desejar a viagem… a imaginar um grande dragão pardo, deitado sobre um imenso areal, preso na angústia de um vazio inexplicado, a rugir inquieto e impotente, atormentado por sonhos de liberdade e a lamentar uma grande perda.

Eu nascera na ilha, numa sexta-feira de Outono. Talvez por este motivo, sempre tivera um estreito e íntimo contacto com o mar e os ventos, durante toda a minha vida. Eram tão parte de mim, como o sangue que me corria nas veias. Quando menino, a primeira coisa que fazia, ao levantar, era abrir a janela e olhar o mar, para ver de que lado o vento soprava. Neto de pescador, aprendi a ler os sinais da natureza, para ter uma previsão aproximada do tempo.

O avô levantava cedo e ia para o mar, buscar a rede que havia colocado na noite anterior. Eu sempre o via, de longe, na canoa, a recolher a rede com os peixinhos, que ele sempre trazia, no tempo em que abundavam na baía. Muitas vezes mandava alguns para o nosso almoço. Eu era uma criança, mas sabia da afinidade que tínhamos com o mar e os peixes. Minha mãe dizia que ele descendia de espanhóis.

Era um homem alto, mas já andava meio curvado pelo peso dos anos. Tinha o nariz adunco e usava óculos com aro de tartaruga. A cabeça calva, estava sempre coberta por um chapéu de feltro, clássico e cinzento. Vestia sempre camisas brancas, com as mangas arregaçadas e calças cinzentas. Em dias de gala, ou de missa, vestia um terno preto, de risca de giz e o chapéu, também preto, reservado para aquelas ocasiões. Era engraçado vê-lo alinhado, quando na maioria dos dias, parecia vestir a mesma roupa. O avô morava no continente, para onde nos mudamos, quando eu tinha cinco anos de idade.

A ilha ficava sempre à nossa vista, quando abríamos as janelas, que tinham face para o leste. O pai ensinara-me a nadar. No mar. Eu adorava passar horas dentro da água quase morna da baía, a nadar, mergulhar, aprender a segurar o fôlego dentro da água. No verão, as águas eram sempre verdes, exceto em dias de vento sul, quando ficavam turvas e pardacentas. No inverno, em dias claros, o mar parecia um espelho. Em dias de vento tinha o mesmo tom pardacento, com as ondas a quebrar-se, violentas, contra as rochas e as paredes das casas, construídas muito próximas da linha das marés. Eu passava horas a olhar o mar, com os pensamentos longe, sendo embalado pelo som característico das ondas, que lambiam as areias, constante e insistentemente. Adorava caminhar pela orla, com os pés dentro da água, a pisar a areia fofa e branca. O mar era meu elemento mais natural. Era onde eu me sentia mais à vontade, mais tranquilo e mais seguro, dentro do limite do respeito que tinha, pela sua grandeza e força indomada.

Ela nunca havia estado frente a frente com uma energia tão poderosa e tão incompreendida, como aquela imensidão verde escura, salpicada de linhas brancas, entrecortadas, na distância.

Quando chegamos ao local que eu amava, desde criança e parei o carro, nós saltamos e caminhamos, lado a lado, até a beira do penhasco. Eu podia sentir a apreensão e a ansiedade que emanava dela, enquanto tentava controlar o ritmo de seus passos. Ela, então, abriu um sorriso imenso e inspirou o ar salino, com ambos, o nariz e a boca. Parecia faminta de mar e aquele momento era um grande marco em sua vida, quando ia finalmente conhecer o grande e inquieto dragão, que rugia, intrépido e inconformado, lá em baixo.

Ela, então, meteu a mão dentro da bolsa, donde resgatou uma pequena garrafa azul, que tinha, dentro, um rolinho de papel amarrado com uma linha vermelha e com um detalhe, que eu considerei de um requinte excepcional: a rolha estava lacrada com cera. Ela pensara em tudo, por incrível que pudesse parecer-me. A intenção de manter a mensagem protegida, seca e intacta, com aquele subtil pormenor, surpreendeu-me, a ponto de achar graça da esperteza dela. Eu não teria pensado naquilo… jamais...

- O que tens aí?

- É uma mensagem que eu escrevi. Coisa minha… não vale a pena incomodar-se com isso.

Ela jogou a garrafinha ao mar, antes mesmo que eu pudesse pensar em fazer qualquer coisa. 

De cima do penhasco, ficamos, os dois, a olhar o mar a bramir lá em baixo, com sua fúria incontida, seus braços de ondas e suas mãos de espuma, a receber e a carregar, para longe, a garrafinha que continha uma inocente mensagem secreta. Ela levantou a mão, mas parou o movimento a meio, quando deu-se conta que eu havia percebido seu gesto quase involuntário.

- A quem tu ias saudar? Neptuno? Ou ias acenar um adeus à garrafinha? Eu não acredito que, na tua idade, ainda acredites em deuses do mar e mensagens secretas. Deves estar brincando comigo…

Ela enrubesceu, com uma irritação quase fingida. Olhou-me e soltou um imprecativo qualquer, entre dentes. Depois disse-me em voz alta:

- Não adianta conversar contigo sobre certas coisas. Tu és muito pragmático… não tens imaginação. Quando eu era criança, tu eras bem mais… aceitável… Sabes o que mais? Falta-te fantasia. Por isso tua vida é tão previsível e sem cor.

- Pois é verdade. Assim, pelo menos, sei exatamente onde piso. Não achas que seja melhor?

Ela virou-se, impaciente e caminhou de volta ao carro. Não tinha muitos argumentos contra minha triste realidade. Eu ri alto. Meus olhos acompanharam aquela jovem mulher, a seguir, com passos firmes, para longe de mim, enquanto meus pensamentos desbobinavam os fios do tempo, tentando encontrar um ponto de referência. Virei-me de volta para o penhasco, a olhar o imenso e infinito mar e disse, para mim mesmo, em voz baixa:

- Onde foi que eu perdi a capacidade de sonhar e de fantasiar, afinal? Quando foi que deixei de ouvir o dragão a rugir sobre as areias da praia, acorrentado em seus próprios medos e angústias? Quando foi que os meus próprios problemas cegaram-me, ante a beleza da imaginação e da minha capacidade de sonhar?

- Vamos!

Ela estava ao volante, a buzinar. Tinha uma necessidade premente de chegar à praia. Queria molhar os pés na água salgada. Apressei-me a entrar no carro, ao seu lado. Ela parecia uma criança, num dia do aniversário, correndo para o local da festa. Eu ri dela. Ela simplesmente conduziu até o fim da estrada e, quase sem assegurar-se que o carro estava mesmo parado, saltou e tratou de livrar-se dos sapatos, enquanto corria na areia fina e fofa, que rangia a cada passo que dava.

Parou quando chegou a beira da linha da água. Eu a observava de longe, estudando sua reação. Ela deu um passo curto e molhou as pontas dos pés. Meio passo atrás, virou-se, olhou-me e correu na direção das ondas que quebravam próximas. Ela ria e saltava as ondas, molhando a roupa toda, sem preocupar-se. Eu via a mesma criança que ouvia as histórias sobre os dragões e o grande e imenso mar, a enfrentá-los, destemida, apesar do choque inicial e a portar-se como se fosse tão íntima deles quanto eu havia sido, desde meus tempos de menino.

***

- Ouves?

- Uhum… Está calmo… Parece que ronrona…

Deitada no banco da varanda, ela tinha os olhos fechados, a cabeça recostada nas minhas pernas e sorria. Deu um salto, com os olhos arregalados, a olhar-me como se tivesse tido o lampejo de uma brilhante ideia.

- Onde será que está a garrafinha? Será que alguém a achou?

- Deve estar no outro lado da praia. Normalmente as marés carregam os pedaços de madeira de um lado ao outro… a garrafinha não deve estar muito longe…

Ela ficou séria. Pareceu-me grandemente decepcionada.

- Oh. Pensei que ia bem mais longe…

- Às vezes vai… depende das marés…

Tentei deixá-la esperançosa, mas eu não tinha certeza do que dizia. Ela deitou a cabeça nas minhas pernas, outra vez, e ficou a ouvir o silêncio da noite e o ressonar, baixinho, do dragão… Adormeceu ali mesmo. Tomei-a no colo e deitei-a na cama que ela mesma havia preparado, depois de jantar. Eu tinha que dormir na sala, porque a pequena kitchenette que alugamos, para uma semana, tinha apenas um quarto.    

Todas as manhãs, saíamos a caminhar pela praia, abraçados, a molhar os pés na água. Almoçávamos na aldeia, passeávamos, mas o mar era nosso ponto mais frequente. Ficávamos horas e horas a olhar as ondas a quebrar, ou as gaivotas a voar, a sentir a quietude da vida e sem dizermos nada.

Na manhã do dia da partida, quando acordei, não a vi. A porta estava destrancada. Era cedo ainda. Ela saíra, sozinha, a caminhar. Preparei um café fresco e esperei um pouco, mas não havia sinal dela. Antes de ficar preocupado demais, vesti uma sweatshirt e saí a procurá-la na praia. Segui as poucas pegadas deixadas na areia, por um par de pés pequenos. Deviam ser dela. Encontrei-a sentada sobre um tronco caído, a olhar a linha do horizonte, com a expressão mais sonhadora que jamais havia visto.

Ela parecia diferente. Eu aproximei-me e sentei-me ao seu lado, sem dizer nada. Estávamos ambos a olhar o horizonte. Ela suspirou.

- Nunca chegamos a encontrar a garrafinha. Deve ter sido levada para mais longe… Isso é bom…. Acho…

Eu passei o braço por trás dela e puxei-a para mim. Ela recostou a cabeça no meu peito e ficou quieta.

- Queres falar sobre isso?

- Não.

Respeitei sua privacidade e seu secretismo. Ela não acreditava que eu pudesse compreender a fantasia que criara e a mensagem que, talvez, nunca viesse a saber o teor que continha. Levantei-me e convidei-a para caminhar de volta, para comer alguma coisa.

 - Podemos ficar um dia a mais? Quero ter certeza que não vou encontrar a garrafinha destruída, na praia.

Eu levantei o sobrolho e ela fez um muxoxo.

- Por favor…

- Não era este o plano, mas tudo bem. Temos que ver se podemos ficar na kitchenette por mais esta noite.

Ela deu um salto e, sorrindo, abraçou-me, beijando-me a face.

- Obrigada.

Eu tentava ser um pai complacente, desde que ela perdera a mãe, fazendo-lhe algumas vontades e restringindo outras. Ela não era muito exigente, mas o mar era uma questão à parte. Era um desejo que tinha desde menina, quando ainda acreditava em fantasias e dragões. 

Reconheci que eu mesmo não tinha vontade de voltar. Estava tão bem, ali na praia. Ela, portando-se, definitivamente, como minha única e legítima filha, demonstrou uma afinidade descomunal, com um elemento com o qual entrava em contacto pela primeira vez. O mar era nosso elemento natural. Estava no nosso sangue, sem dúvida alguma. 


O meu avô teria orgulho da bisneta.


sábado, 25 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 2 de 2)





O ar frio da manhã nevoenta não me foi impedimento para sair à rua. Eu precisava espairecer, sentir o vento no rosto, estar fora de casa, por umas horitas, pelo menos. Talvez a temperatura baixa do Inverno fizesse minha mente trabalhar em outro ritmo e pensar mais racionalmente. Eu estava cheio de dúvidas e as desconfianças torturavam-me a cada passo que dava, nas calçadas ainda enregeladas pelo orvalho da madrugada. Caminhei por minutos incontáveis, sem rumo certo. Meus pés doíam menos que minha cabeça. Eu queria desaparecer por uns instantes, deixar de pensar, parar de martirizar meu coração, mas o desejo tinha força menor que as minhas dúvidas, que insistiam em complicar-me a vida.

- E se eu estivesse certo? E se eu estivesse errado? Oh, meu Deus! Eu queria ter, pelo menos, alguma certeza e menos desconfiança…

Até aquele dia, nunca havia sido injusto, nem sentido ciúmes infundados ou desejos de vingança. Naquela caminhada, porém, todos estes sentimentos vieram povoar-me a cabeça, com a força de fortes invasores em terras férteis, mas incultivadas. Sentia desejos contraditórios de matar e morrer, a crescerem dentro de mim, com uma facilidade incomum. Eram monstros alimentados pelo ódio e pelo medo… e eles multiplicavam-se e cresciam, como uma colônia de parasitas dentro do meu cérebro. Senti calor, apesar do frio da rua. Desabotoei o casaco e arranquei o cachecol do pescoço. Devia estar febril. Precisava, urgentemente, de um café forte. Tinha que parar. Entrei num Café, na esquina e sentei-me encostado a uma grande janela, mas sem olhar para fora. Eu queria, pelo menos por um simples segundo, parar de pensar. Queria sumir do mundo…

- Que m…!

- Bom dia. Algo errado, senhor?

O empregado de mesa olhava-me com uma expressão de, ao mesmo tempo, curiosidade e preocupação. Provavelmente eu devo ter falado em voz alta, mas não tinha certeza.

- Ahn… Bom dia… Não… Nada errado. Apenas traga-me um café forte e quente, por favor.

Ele assentiu e saiu, com um sorrisinho estranho no canto da boca. Dei-me conta que eu estava sendo ridículo demais, não só pelo martírio mental a que me submetia, quanto por falar sozinho, em voz alta. Tinha que assentar os pés no chão e pensar com clareza. Briguei comigo mesmo e disse, baixinho, entre dentes, para não ser ouvido, daquela vez:

- Chega disso! Já tenho idade e experiência suficiente para agir como um adulto! Já passei por isso outras vezes e não há motivo para mais dramas que o estritamente desnecessário…

Tomei o café, levantei-me e saí. Estava resolvido a enfrentar o ar gelado da rua e a fria realidade.

Ao chegar de volta ao apartamento, vi que havia um bilhete depositado sobre a cômoda no pequeno hall de entrada. Li a mensagem mecanicamente e fui tomar banho, sem pensar muito. Era sexta-feira e ainda tinha um dia inteiro e mais o fim-de-semana, antes de voltar ao trabalho. Pretendia fazer minhas coisas, escrever, nem que fosse um desabafo qualquer e tentar desenhar e pintar. Sim. Havia decidido que pintar, pelo menos, não exigiria muito da minha capacidade de raciocínio e poderia relaxar-me um pouco. Resolvera deixar o acontecido em banho-maria, pelo menos até passar aquela angústia.

Tomei um longo duche, de modo a aquecer o corpo, depois ingeri um comprimido para dormir. Em pouco tempo estava na cama, a tentar recuperar o sono que perdera. Dormi até perto do meio-dia. Quando acordei, meu primeiro pensamento, como não podia deixar de ser, foi para o acontecido nas últimas horas. Levantei-me de um salto e dirigi-me à cozinha, preparar algo quente para comer. No caminho, apanhei o bilhete e levei-o comigo, lendo e relendo, incontáveis vezes, enquanto tomava uma sopa instantânea, que preparei em menos de oito minutos…

***

Dois dias depois do incidente recebi o primeiro contacto, via internet. Eu ainda estava magoado e inseguro, por isso não respondi com mais que uma fria educação, sem demonstrar muita afeição. Ela deve ter percebido, mas não questionou-me nada. Não discutimos o assunto e somente trocamos umas poucas palavras, polidas e politicamente corretas. Esperava que os próximos dias fizessem melhor efeito sobre minha teimosia, mas estava cada vez mais irritadiço e sem paciência para conversas, por isso, sempre respondia com polidez, mas com pouquíssimas palavras. Nossos contactos esfriaram e rarearam, com o passar dos dias. Ela havia-me dito que estava tão ocupada que só viria dentro de quatro semanas, aproximadamente. Não protestei, nem ofereci-me para visitá-la, entrementes. Apenas respondi-lhe com um seco ‘OK’.

No mesmo dia em que recebera aquela notícia, também recebi, por e-mail, uma mensagem de uma sala de chat num site de relacionamentos. Era, aparentemente, um convite de um conhecido meu. Não percebi que era uma mensagem automática e acedi ao site, fiz minha inscrição e resolvi fazer uma visita a alguns perfis, que pareceram-me mais interessantes. Vi que os perfis mais visitados eram os que tinham fotografias, por isso fiz o upload de uma foto minha e deixei-a lá, para ver o efeito que causaria. Quando voltei a aceder o site, por curiosidade, poucas horas depois, havia uma mensagem na caixa de entrada. Abri-a e não consegui deixar de dar uma sonora gargalhada. Era minha primeira risada, em semanas…

***

- Eu não posso acreditar que tu pensaste isso de mim.

- E o que é que tu querias que eu pensasse, afinal?

- Eu achei que estavas sendo compreensivo e me dando espaço e  tu me fazes isso? Tu sabias que eu estava ocupada com o meu trabalho e que precisava de envolvimento total… É minha arte, ‘for heaven’s sake’… É minha vida!

Ela misturava as linguagens, quando ficava nervosa e eu achava aquela característica simplesmente adorável. Olhei-a mudo, sem saber o que dizer. Ela odiava quando eu silenciava no meio de uma briga. Já tinha feito a minha quota de asneiras e não queria piorar o que já estava ruim demais. Mas para ela, como mulher, o meu silêncio era uma afronta.

Mirei aqueles olhos antes tão cheios de vida e serenidade, com um misto de culpa e de apreensão. O olhar cristalino e de um verde que sempre havia sido tão tocante, pelo menos para mim, agora só trazia uma tristeza imensa.

Senti uma consistente confusão instalar-se confortavelmente dentro da minha cabeça e visualizei-a, vestida de robe e calçando pantufas com formato de bichinho, sentada num sofá macio e confortável, na minha sala de visitas, a assistir minha desgraça, de camarote.

Não havia muito a dizer, já que era totalmente culpado de haver feito o filme completo na minha cabeça, de achar que estava certo ao procurar outra forma de relacionar-me, de pensar que estava sendo traído, de haver sido biltre e otário, ao mesmo tempo. Fui tolo ao julgar, sem ter certeza; ao trair, por achar que estava sendo traído; a deixar-me levar pela minha dúvida, sem questionar nada, sem ter certeza de nada. Eu havia-me deixado levar pela grande e promíscua fatia de hedonismo e leviandade que nasceu dentro de mim, no dia em que fui contactado pela personagem responsável por despertar, em mim, uma tola vaidade. Pensava que estava sendo esperto em fazer o que pensava que Liana fazia a mim, sem sentir culpa, nem pesar. Não era, porém, por qualquer sentimento de vingança… era apenas por uma carência afetiva, uma sensação de abandono, uma tristeza impotente, que só crescia com a dúvida e a impressão de ter sido trocado por outro.

Oh, Deus… e como eu estava errado… 

Ela desistiu de brigar, de importar-se, de tentar fazer-me sentir mais culpado que eu já sentia. Foi-se embora no mesmo dia que chegou, dizendo que voltava para buscar suas coisas num outro dia, quando estivesse mais calma, mais centrada, menos decepcionada e com menos raiva de mim. 

***

Aquele olhar, cristalino e distante, com uma distinta pincelada da verde e pálida tristeza, fitou-me pela última vez, da janela embaçada do trem. Plantado, sozinho, a olhar o vagão afastar-se, senti minha alma inundar-se com aquele sentimento de angústia e impotência que nos assola, quando o dantes improvável transforma-se no absolutamente possível; quando nos vemos por uma derradeira vez, numa despedida seca e quase impessoal. É triste perceber como os sentimentos mudam tanto, diante de uma grande mágoa.

Não sei porque, naquela ocasião, faltou-me coragem, vontade de quebrar barreiras, de jogar tudo para o alto, ou se simplesmente já não importava-me mais com o futuro daquela relação. Sei, apenas, que aquela última conversa ficara gravada a ferro em brasa na minha memória, por muito tempo, a latejar e a molestar-me.

- Eu tenho que ir sozinha. Será um partir para sempre, como morrer de vez. O tempo vai curar as feridas. A distância vai facilitar a recuperação. Mas eu, simplesmente, não consigo perdoar-te. Não tenho armas para lutar contra um inimigo cujo poder ultrapassa os meus e cujas armas eu desconheço totalmente. Essa impotência ressecou-me o coração e quebrou as correntes que nos mantinham ligados um ao outro, de uma vez por todas. E eu não consigo viver com esta aridez a incomodar-me o peito deste jeito.

Os olhos da minha tigresa, antes tão cheios de vida e luz, mostravam, agora, uma baça melancolia, que era-me altamente perturbante e enchia-me de uma culpa irremediável. Eu queria conseguir fazer alguma coisa, mas um nó apertava-me a garganta, impedindo-me de falar. Se, antes, dizer-lhe um simples ‘eu te amo’ era-me difícil, é de imaginar-se quão muito mais difícil era-me dizer-lhe, então, ‘perdoa-me’. Eu, simplesmente, não conseguia. Minha mente até concluía o discurso, mas minha voz não saía de jeito nenhum. Eu sabia que a havia magoado e também sabia que, mesmo que ela me perdoasse, ia sempre sentir-se incomodada, desconfiada e em dúvida se eu não ia fazê-la passar pela mesma situação vezes e vezes sem conta, dali por diante…

- Levas-me à estação… pela derradeira vez?

- Claro.

Engoli em seco. Meu coração pesava. Minha vontade era dizer-lhe que não, que se virasse sozinha. Excomungar até sua última geração, dizer-lhe uma série de palavrões, mas não podia. Como podia amaldiçoar uma pessoa que havia sido ferida pela minha crueldade? Minha alma estava dilacerada. Eu remoía indignação, frustração e culpa, mas já não havia nada que eu pudesse fazer. Eu, no lugar dela, teria sido menos nobre, tanto nas ações quanto nas palavras. Nunca havia percebido como éramos tão diferentes. Ela era distinta, controlada e generosa. Eu era rasca, vulgar, impulsivo e mesquinho.

Mas eu sentia raiva. Muita raiva. Dela e, mais ainda, de mim. Eu havia sido descuidado e vítima da minha própria ingenuidade, hedonismo e arrojo. Que grande burro havia sido! Diante de uma cena de flagrante sexual com outra pessoa, onde as evidências são inquestionáveis, o que é que eu poderia dizer?

Eu sabia que ela tinha que recomeçar, sozinha, sua própria vida, longe de mim e eu não tinha o direito de impedi-la. Ela estava ferida. Suas asas haviam crescido e seu voo já a havia afastado de mim. Ela sentia-se no direito de voar alto e para longe e eu não queria sentir-me mais culpado que já estava, se tentasse demovê-la da ideia. Ela precisava de espaço e eu tinha a obrigação de dar-lhe, já que eu havia quebrado muitos elos das correntes que nos uniam.

A tigresa pulava para o outro lado da cerca, para ser livre, outra vez...

Olhei aqueles olhos por uma última vez, com imensa melancolia. Minhas entranhas eram roídas por sentimentos contraditórios, tanto de irritação, quanto de culpa. Ela partiu. Sozinha. Triste. Eu fiquei ali, a olhar o vazio sobre os trilhos, depois que o trem sumiu na curva, no meio da neblina de Outono. No mesmo vagão, partiu, para sempre, não somente minha grande amiga – a bela e terna tigresa - mas também minha confiança nos relacionamentos e no ser humano.

Na saída da estação, ainda a cruzar a calçada, esbarrei num transeunte que trazia umas sacolas e que caíram ao chão, com o impacto. Apressei-me, instintivamente, a desculpar-me e a ajuntar os pacotes caídos na calçada, quase sem olhar para quem eu ajudava, por pura vergonha. Foi somente quando entreguei-lhe os embrulhos, que notei aqueles olhos muito claros e verdes a fitar-me com curiosidade e um certo ar de gracejo.

Alguém lá em cima deve gostar muito de brincar comigo…


domingo, 19 de outubro de 2014

Os Olhos da Tigresa (Parte 1 de 2)




Quatro jovens tigres caminhavam, tranquilamente, ao meu redor e roçavam-se contra minhas pernas, como se fossem tão amistosos quanto dóceis gatos domésticos. Era como se estivessem a pedir-me algum carinho ou a marcar-me para reconhecimento, com suas glândulas de feromonas, espalhadas em pontos estratégicos de seus pujantes corpos. Eu sentia-me confortável e nem um pouco intimidado por qualquer um deles.

Um dos animais, uma belíssima fêmea com expressivos e cristalinos olhos, de um tom muito luminoso de verde, levantou-se nas patas traseiras e abraçou-me com afeição, numa atitude que eu realmente não esperava. Ela esfregou sua magnífica cabeça contra meu rosto, depois chegou-a mais para frente e mordeu-me a orelha, com cuidado. Alguém falou:

- Acho que ela gosta de ti. Este não é um comportamento comum.

Passei meus braços à volta do seu belo corpo, dando-lhe um abraço. Seu pelo era macio e luzidio. Provavelmente não sabia a força que tinha e o poder que dela emanava, quando deixou-se envolver por meu abraço. Não fiquei exatamente surpreso quando ela sussurrou ao meu ouvido:

- Deixa-me ir para o outro lado da cerca, onde posso ter mais liberdade. Por favor...

Ajudei-a a pular por sobre o cercado, dando-lhe impulso para ir-se, apesar de desejar que ela ficasse comigo, por muito mais tempo. Sabia, porém, que não tinha qualquer influência sobre seus desejos de independência. Mais cedo ou mais tarde, ela teria que ir-se para além das fronteiras do meu domínio… ou seria eternamente infeliz.

Senti um distinto aperto no peito, ao vê-la afastar-se. Ela olhou para trás e balançou a cabeça, de maneira carinhosa, como se agradecesse o impulso que eu dera, para que atingisse sua emancipação. Aqueles olhos, extremamente magnéticos, porém, tocaram-me a alma, de uma maneira que eu não esperava. Um sentimento estranho tomou conta de mim, numa mistura de melancolia com nostalgia, ao ver minha tigresa partir. Os outros grandes felinos juntaram-se à ela, do outro lado da cerca metálica, levando-a para longe de onde estávamos. Uma lágrima escorreu-me pelo canto do olho e senti a inquietação em minha alma aumentar e envolver-me, com muito mais força que minha tigresa abraçou-me o corpo. Um soluço cresceu dentro de mim e eu fechei os olhos, tentando controlar o pranto, mas já era tarde demais…

Acordei, chorando alto, no meio da madrugada, sentindo uma angústia enorme a pesar sobre meu peito, que arfava, descontrolado. A escuridão do quarto disfarçou a tristeza, mas não diminuiu a sensação de imensa solidão e abandono que aquele sonho me trouxe. Chorei como criança, sem conseguir conter os soluços e a dor que sentia, naquele momento, abraçado ao meu próprio corpo, deitado na cama de casal, que pareceu-me imensa, deserta e fria…

***

Liana tinha, em torno de si, uma suave aura de felina feminilidade. Seus olhos verdes, extraordinariamente expressivos e cristalinos, pareciam-me sempre inquietos, como se procurassem, em algum lugar ou, talvez, em algum tempo, vestígios de uma inocência perdida. Ela sabia ler-me como ninguém. E examinava-me com aqueles seus grandes olhos, despia-me a alma, como se conseguisse penetrar nos meus pensamentos, fazendo-me enrubescer, desajeitado, ante a sua singela majestade e a maneira como conseguia compreender, sem perguntar, meus estados de humor e da alma.

Eu costumava perder-me, completamente, a contemplar aquela sublime e meiga grandeza, por horas e horas a fio, sem precisar dizer nada e, ainda assim, a sentir-me totalmente compreendido e amado pela mulher que havia-me transformado no homem que eu passei a ser. Perto dela, eu sentia-me completo e sereno. Pela primeira vez na minha vida, a presença de uma pessoa, não violava minhas necessidades de ter meus momentos de silêncio. Ela respeitava meu espaço e compreendia que eu necessitava estar só, às vezes, para poder centrar-me, escrever, ou simplesmente ouvir música e pintar, numa tentativa de ilustrar minhas histórias amadoras: meus hobbies favoritos e que davam-me grande satisfação.

Ela aproveitava estes raros momentos para isolar-se, também, e fazer o que já gostava fazer, antes de conhecer-me. Liana era uma artista sensível e perfeccionista. Suas aquarelas eram hiper-realistas e detalhadas. Para fazê-las com esmero, costumava passar horas num dos quartos do apartamento onde morávamos, transformado em seu pequeno estúdio... um oásis de beleza e tranquilidade, que eu raramente invadia, a não ser quando convidado, por puro respeito ao espaço dela. Suas peças estavam expostas em galerias de artistas novos e promissores e ela havia sido convidada, mais que apenas algumas vezes, a viver num centro maior, onde teria mais reconhecimento e oportunidades artísticas. Ela nunca dera nenhuma resposta aos agentes, acerca dos tais convites. Dizia-se feliz onde estava, a produzir sua arte, em seu próprio ritmo. Tinha receio que uma grande metrópole fosse transformá-la em uma artista menos sensível, mais preocupada com a produção que com a sensibilidade.   

Eu compreendia seus medos, mas incentivava a ideia de ela abrir suas asas imensas por paragens mais desbravadas e por ares mais desafiadores. Ela tinha talento e merecia voar alto, mas dizia-se despreparada.

Eu sabia que parte daquele receio estava ligada ao nosso relacionamento. Eu tinha uma carreira, no lugar onde vivíamos e não poderia acompanhá-la, pelo menos no início. Ela inventava muitas de suas desculpas, dizendo-se feliz e satisfeita onde estava, mas eu a conhecia muito bem, para convencer-me que seus receios estavam  relacionados apenas à massificação de sua arte.

Um dia, quando cheguei em casa, depois do trabalho, percebi que ela estava bastante séria e pensativa. Havia recebido uma proposta praticamente irrecusável, mas que não havia aceitado de imediato. Ficara de pensar e dar a resposta em alguns dias. Claro que a proposta implicava em uma grande mudança. Ela iria lecionar uma cadeira na faculdade de Belas Artes, numa grande universidade, alguns dias, durante a semana e teria um estúdio, para produzir seus próprios trabalhos artísticos e desenvolver uma série de projetos, com outros novos artistas, para uma promissora galeria, em Londres.

Ela estava entre vários estados, bastante diversos. Se de um lado sentia uma euforia enorme, em relação ao reconhecimento do seu talento e aos projetos que iria participar, por outro lado, sentia-se totalmente insegura se ia corresponder às expectativas e, por um outro lado ainda,  estava triste, por termos que nos afastar durante semanas.

Tentei fazê-la ver que uma oportunidade destas não aparece mais que uma vez e que ela deveria aceitar. Era a possibilidade de vencer e mostrar seu trabalho e eu não poderia, jamais, deixar de incentivá-la a ir em frente. Prometi que nos veríamos semana sim, semana não... um ou outro viajaria e conseguiríamos vencer os obstáculos que, já sabíamos, iriam aparecer.

- O mundo é muito pequeno e as comunicações estão cada vez mais fáceis. Estaremos sempre em contacto.

Eu disse-lhe a frase esperada, tentando tranquilizá-la, mas meu peito acusava um desconforto, que traduzia o medo que eu sentia, de que algo não corresse tão linearmente como eu assegurava.

Os primeiros meses foram difíceis de suportar, mas fáceis de mantermos o contacto. Quando o estúdio começou a exigir mais do seu tempo e dedicação, até mesmo nossas comunicações começaram a rarear. Sabia que era natural que tal acontecesse, pois ela desabrochava, naturalmente, dentro de seu genuíno meio de expressão. Ela estava cada vez melhor, mais feliz, mais produtiva e mais ocupada que jamais estivera.

Eu, porém, sentia-me cada vez mais desamparado. Apesar da necessidade de estar só ainda tomar parte do meu tempo, não tê-la por perto corroía-me a alma. Pelo menos - tentava convencer-me - tínhamos as férias de fim de ano para estarmos juntos. Eu ansiava por aquele tempo junto dela e contava os dias que antecediam o período, já que nossos fins de semana juntos praticamente haviam desaparecido. Escrevíamos quase diariamente, deixávamos mensagens um ao outro, tentávamos sempre saber como iam as coisas, o trabalho, a vida... mas o tempo é cruel...e a distância também... 

Ficamos meses sem nos ver, a não ser pela internet, já que ela estava ocupada demais com seu trabalho, incluindo nos fins de semana.

Quando nos encontramos, em Dezembro, ela parecia diferente e distante. Algo havia mudado. Onde, antes havia uma imensa vivacidade e alegria de viver, havia, agora, um quê de tristeza, um intrigante mistério, uma distância quase inatingível. Ela disse que era somente cansaço. Estava com excesso de coisas a fazer. O projeto ia muito bem e ela precisava daquela chance de mostrar o trabalho do grupo e, mais especificamente, o seu, em particular. A mais famosa galeria de artes em Londres havia-lhe solicitado uma mostra individual e ela trabalhava em novas obras com avidez. Sabia que aquela seria sua grande oportunidade. O reconhecimento de sua individualidade artística era evidente e ela não podia deixar passar, sem fazer seu melhor.

Fiquei feliz por ela. Disse-lhe que aproveitasse, incentivei-lhe a ir adiante, mas disse-lhe também para cuidar de sua saúde, pois estava bastante magra e abatida. Ela afirmou que mal tinha tempo para alimentar-se, mas eu protestei. Ela prometeu cuidar-se. Aproveitamos aqueles poucos dias de inverno, para ficarmos mais juntos. Tratei de preparar-lhe meus melhores pratos, numa tentativa de dar um pouco de cor ao rosto, que eu adorava, e de compensar a perda de peso, que havia-se tornado evidente, no corpo que eu tanto desejei, desde que nos conhecemos. Ela contestou, no começo, mas cedeu à minha insistência e em poucos dias parecia mais vivaz e com as faces mais rosadas.

Uma noite, naqueles poucos dias em que estávamos juntos, eu adormeci no sofá, enquanto ela trabalhava no estúdio. Acordei, ao ouvir vozes. Ela estava ao telefone e parecia ter uma discussão com alguém. Tive a impressão de ouvi-la dizer, num tom mais baixo:

- Já te disse para não ligar-me aqui...

Levantei-me e fui até o quarto, mas assim que cheguei perto, ela desligou. Perguntei quem era.

- Nada importante... apenas assuntos de trabalho... Não te preocupes.

O semblante dela não era o mesmo. A luz vermelha da desconfiança acendeu na minha mente insegura, mas eu não insisti em saber o que acontecia. Pelo jeito a intimidade, que antes havia entre nós, quando compartilhávamos tudo, já não existia. Afastei um pensamento ruim, com um abano de cabeça e saí do estúdio, com o cenho franzido. Fui para a cama, mas não conseguia adormecer...

Uma noite mal dormida só agrava os pensamentos nefastos... e eu amplifiquei minha insegurança e minha paranoia, elevando-as à potências de dez...

Não tenho muita certeza se realmente ouvi vozes, durante a madrugada, ou se adormeci e sonhei, no estado de tortura mental em que me encontrava. Quando amanheceu, eu ainda estava de olhos abertos e ela não havia vindo para a cama. Levantei-me e procurei-a pela casa. Estava na cozinha, a olhar para fora, com o olhar baço e os pensamentos tão distantes, que mal conseguiu ouvir-me aproximar. Ela virou-se para mim e disse, muito séria:

- Tenho que voltar a Londres... hoje mesmo, se conseguir um voo.

- Aconteceu alguma coisa?

- Nada que eu não possa resolver sozinha...

Aquela resposta, seca e num tom que eu desconhecia, apanhou-me de surpresa e deixou-me de queixo caído. Ela passou por mim, apanhou a bolsa de cima da cômoda na entrada e saiu pela porta afora, sem olhar para trás.

Eu fiquei ali, de pé, no meio da cozinha, a matutar o que poderia ter acontecido que a deixara daquele jeito. Aquela luz vermelha da insegurança piscava como um grande farol na beira da praia, parecendo gritar, na minha mente torturada:

Alerta! Alerta! Alerta!

sábado, 4 de outubro de 2014

Obliviar (Fase 3 do Esquecimento: Ultimar)



Minha mente vai-se,

agora,

esvaziando

pouco a pouco.

Eu já não consigo

pensar

claramente

naquelas coisas

– todas -

que deixaram suas marcas,

tão profundas,

gravadas

na minha alma.

Sinto-me mentalmente cansado

e meu corpo

está mostrando sinais

desta exaustão.

Os tempos de outrora,

que insistiam em voltar

para assombrar-me,

de vez em vez,

de quando em quando,

foram, finalmente,

deixados para trás.

O que eu sofri,

o que eu chorei,

o que eu vivi,

o que acabou,

finalmente,

por morrer...

e tudo o que uma vez

já esteve tão vivo,

como se fosse

em uma outra existência...

vai-se, agora, desaparecendo

de uma vez

por todas

e, espero,

para todo o sempre...

Como se cingido

por frios braços

de águas da cor do cobalto

neste imenso 

e desolado mar,

eu vou submergindo

lentamente

e experimento

um gradual

e intenso torpor...

Fecho meus olhos

e deixo-me ir

mais fundo

no fundo

do mais profundo abismo...

Mas desta vez,

enquanto abandono-me

ao confortável vazio

do Oblívio,

sinto surgir novas chamas

de paixão

a arder,

brandamente,

naquele cantinho

oculto

do meu coração ferido

e a aquecer

subtil

e ternamente

minha alma 

dantes tão sofrida...