sábado, 2 de dezembro de 2017

Preso na Mente (Parte 2)



- Tu és um anjo?

- Na verdade, não...

- Então?

- Estou aqui para ajudar-te...

- Em quê?

- Em ir para o outro lado…

- Assim me estás assustando.

- Por favor, não tenha medo. Tudo vai ficar bem.

- Agora é que estou com muito medo, mesmo. Isso é de loucos...

- Um salto de fé?

- Outro?

Ele riu. Engraçado, como seu sorriso me fazia sentir tão bem e segura. Algo em minha mente dizia que eu poderia confiar nele. Ao observar aquela bondade claramente expressa em sua face atraente, não sei por qual razão, minhas pernas enfraqueceram e senti que precisava sentar-me. Ele apenas segurou minha mão. Minha vista escureceu. Minha mente ficou vazia. Então eu apaguei... Ou foi todo o resto que desapareceu?

***

- Venha comigo. O canal deve estar bastante quieto agora. É tarde e ninguém trabalha nas gôndolas à esta hora da noite. Vou levá-la para o outro lado...

Ele escolheu uma noite de lua nova, com muita sabedoria. Estava demasiadamente escuro, sem a lua a brilhar no céu. Eu podia ver as estrelas cintilando acima de nossas cabeças, mas não podíamos ver muito adiante de nossos olhos. Senti sua mão quente e firme a segurar a minha. Por uma razão estranha, meu coração estava ardendo, apesar de a noite estar fresca, quase fria. Eu estava sendo habilmente conduzida por ele, noite adentro, através das águas um tanto turvas e silenciosas do canal. As luzes da cidade haviam ficado atrás de nós e o barco seguia para o lado mais escuro do lugar. Eu me sentia cansada, mas estava apreensiva ao mesmo tempo. Não conseguia fechar os olhos, mesmo que fosse por um segundo sequer.

Eu confiava nele e em suas habilidades... Tinha que confiar. Ele conduziu a embarcação por uma entrada que levava pelos porões de um conjunto muito antigo de prédios. De repente, todas as luzes desapareceram e eu só podia ouvir o som intermitente do remo, a bater suavemente na água que nos rodeava. Quase perdi o controlo e segurei-me ao lado do barco, com as duas mãos. Senti que estávamos avançando, porque uma suave e fresca brisa soprava contra meu rosto. Ele estava em silêncio e eu também, mais pelo medo, do que pela consciência, mantendo meus ouvidos em alerta total.

- Onde estamos?

- Shh... Não se preocupe. Confie em mim. Estamos quase lá.

- Lá? Onde?

Ele nunca respondeu. O silêncio era quase insuportável. Desisti e fiquei com a boca fechada, naquela estranha viagem, por uma via totalmente desprovida de luz, até que vi uma luminescência muito pálida, a flamejar bem à frente, como se a bruxulear sua mistura de estranhas sombras, nas paredes cobertas de limo e caruncho. Meu coração batia tão rápido, que eu pensei que ia ter um colapso. Minha mente estava completamente inquieta e eu sentia calafrios, subindo e descendo pela minha coluna. Meus pensamentos se tornaram um, gritando, na minha cabeça, aquele estado anormal e evidente de pavor.

"Oh, Deus! Estou tão terrivelmente assustada agora."

E, então, a situação ficou ainda pior, quando o ouvi dizer:

- Não fiques. Não tens razão para ter medo.

Ele fez aquilo novamente. Como ele poderia saber o que eu estava pensando? Perguntei se eu, algum dia, saberia.

Então ele desacelerou o barco e atracou, pulando rapidamente para uma espécie de minúsculo atracadouro e me ajudando a sair, para o terreno firme. Sua mão estava quente, mas a minha, ao contrário, estava extremamente fria.

E então ele sorriu para mim. Por algum inexplicável motivo, em vez de me sentir segura, senti-me ainda mais assustada, que já estava. Qual seria a sua intenção? Por que aquele estranho sorriso?

Meu coração deu uma outra batida em falso. E, então…

***

- O que é que foi isso?

- Um sonho, eu acho...

- Tu achas? Tu sabes bem o que foi...

Ele apenas sorriu, como se soubesse mais do que realmente dizia.

- Isso é loucura. O que estás fazendo comigo? Estou apavorada.

- Essa não é minha intenção, minha cara. De modo nenhum. Estou apenas te preparando.

- Lá vem aquela conversa de preparação, novamente. Por que tu não dizes tudo? Estou ficando cansada disso...

Ele simplesmente respondeu, da maneira mais calma que podia.

- Já falamos sobre isso.

- Sim, já, mas isso não me faz sentir melhor.

Ele ficou a me olhar, fixamente. Sua expressão era impossível de traduzir. Minha mente vagou no tempo.

***


- Uma razão?

- Saberás, quando o tempo for devido.

- E acho que não vais-me dizer mais nada sobre isso, de antemão...

- Como eu disse, no seu devido tempo, minha cara... Só então...

- Isso é muito irritante, sabias disso? E é um bocado assustador...

- Tu não vais-te machucar. Não tenhas medo.

- Machucar? É essa a tua preocupação?

- Principalmente...

Dei-lhe um soco no braço, tentando machucá-lo, mas, daquela vez, de verdade.

- Ouch!

Ele segurou minha mão, beijou-a e abraçou-me, rindo da minha torpe tentativa de prejudicá-lo.

- Tu vais ficar bem.

Eu sentia que ele estava-me tentando proteger, mas não conseguia definir do que... ou de quem.... Então fechei os olhos e me aconcheguei no seu peito. Ele tocou meu rosto, tão levemente, que imaginei flocos de neve pousando na minha pele, mas com a sensação de que eram muito mais cálidos...

***

- Tive aquele sonho novamente.

- Ah, foi?

Ele estava sorrindo. Perguntei-me o que aquele sorriso maroto poderia significar. Ele sabia. Eu sabia que ele sabia. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo na minha mente... como sempre…

- Por que essa carinha engraçada?

- Tu não sabes tudo? Adivinha.

- Eu não sei tudo. A tua impressão a meu respeito está muito longe da realidade.

- Não está. Tu és sempre tão misterioso e reticente. Me confundes e, então, ris de mim, sem qualquer explicação real... e eu me pergunto onde isso me possa levar, mas suponho que tu não vais-me dizer agora...

- Talvez… um dia…

***

- Conta-me teus segredos... mesmo os mais sombrios... Podes confiar em mim.


- Só se me contares os teus...

Ele simplesmente sorriu, fingindo que estava derrotado. Claro que ele nunca me contaria nenhum dos seus segredos mais secretos. Se realmente pudesse ler minha mente, sabia que muitas das minhas feridas, não reveladas, ainda estavam vulneráveis, para todos os efeitos. Ele poderia tocá-las e me machucar ou, por outro lado, me curar. Era sua opção e sua decisão. Ele tinha-me completamente em suas mãos.

E aquelas mãos... oh, Deus... Aquelas mãos eram tão carinhosas. Seu toque era tão perfeito, a seguir, vagarosamente, as curvas do meu corpo, como se quisesse decorar todas as linhas, na sua mente complexa. Seus lábios roçaram os meus, depois o meu pescoço, meu peito e meu estômago. Ele então desceu pela minha pele, causando-me arrepios, enquanto abria seu caminho com os lábios, a beijar-me suavemente e a segurar meu corpo, firmemente, em suas mãos quentes, como se quisesse certificar-se que eu não iria fugir de suas carícias...

Até parece que, por algum descabido motivo, eu ia, mesmo, tentar fugir...

Como eu poderia pensar em mais alguma coisa, além do prazer, quando estava sendo tocada e mimada daquele jeito? Eu poderia ficar viciada naquilo e nele, a qualquer hora e de qualquer maneira.

Não. Na verdade, não poderia. O caso condicional, aqui, já não podia ser aplicado. Já era tarde demais para isso.

Pensando de forma absolutamente clara, na verdade, eu já estava completamente dependente da presença dele.

Ele poderia fazer qualquer coisa que quisesse e tirar qualquer coisa de mim, que eu certamente me entregaria, sem qualquer sinal de luta. Ele era meu amante e dominava a arte da sedução, fazendo-me esquecer tudo o mais, quando estávamos juntos. O mundo poderia girar sem nós, por uma noite inteira ou mais, se ele quisesse. Eu era um brinquedo em suas mãos, aceitando abertamente o que poderia tirar dele, como se fosse a última coisa que eu conseguisse fazer na minha vida... Então ele poderia assumir todo o controle e me fazer ir para o Céu ou para o Inferno, em segundos, até o mundo inteiro explodir em mim e eu cair das alturas, agarrada ao seu corpo e alma, como se fossemos apenas um.

Cansados e felizes, nós adormeceríamos nos braços um do outro, dormindo juntos e sonhando sonhos separados.

***

- Eu tenho que ir agora.

- Mas ainda é cedo...

- Eu sei e, realmente, não quero sair, mas tenho que ir.

- Eu queria que tu pudesses ficar um pouco mais.

- Não vou-me atrasar esta noite. Eu prometo.

Seus olhos, então, vagaram para longe. Eu conhecia aquele olhar. Meu corpo reagiu imediatamente, ficando tenso e estremecendo um pouco.

- Isso não é um adeus. É apenas um "até depois"...

- Eu sei disso…

Ele sentou-se na beira da cama. Meus olhos tentavam memorizar as linhas de suas costas e braços, enquanto ele lentamente se vestia e preparava-se para sair. Eu estava ocupada a observar seus movimentos quase felinos, ainda impressionada e encantada, depois de tanto tempo juntos, pelo jeito que ele se movia. Ele era surpreendente, no mais belo sentido da palavra. Não só era bonito, mas também muito masculino. Adorava o jeito que ele se cuidava e mantinha seu forte corpo em boa forma.

Ele saiu alguns minutos depois. Eu ainda tinha cerca de uma hora antes da minha hora de levantar, então, simplesmente, rolei para o lado e adormeci, por mais um tempo.

***

Eu caminhava, depois do almoço, perto do Canal, meio desejando que pudesse vê-lo, mas sabia que seria apenas um desejo, pois sua agenda era pouco rígida e nada previsível. Como a alta temporada estava quase terminada, o negócio ainda dependia dos grupos de turistas, que se alinhavam no cais, para dar voltas pelos meandros da cidade. O tempo vinha esfriando e o número de clientes diminuía todos os dias. Já estávamos no meio do outono.

O ar estava mais fresco, perto do canal e a maioria dos mendigos evitava aqueles pontos, embora necessitassem manter-se, sempre, perto dos restaurantes e das ruas mais movimentadas.

Uma velha senhora, que eu costumava ver perto da trattoria, estava sentada na calçada, recostada na parede, tomando um pouco de sol. Parecia estar dormindo, calmamente, e aquecida pelos raios quase pálidos do início da tarde. Por algum motivo, continuei a observá-la, por um tempo. Seu corpo se inclinou um pouco para a frente, como se realmente adormecesse, no local supostamente aquecido, onde ela se encontrava tão confortavelmente aninhada.

Acho que eu era a única pessoa a olhar para aquela criatura. É engraçado que, com o passar do tempo, os mendigos se transformam em pessoas totalmente invisíveis à grande maioria dos transeuntes, como se, nem ao menos, estivessem lá ou se não existissem.

Entrei na trattoria e pedi uma xícara de café, depois de sentar-me junto à janela. A velha mendiga ainda estava lá, na mesma posição, inclinada um pouco para a frente, sentada ao sol. Minha mente estava quase vazia. Eu apenas observava o movimento das pessoas e a velha senhora.

Então, uma silhueta conhecida apareceu, de não sei onde e parou perto dela. Meus olhos se iluminaram e já estava pronta para me levantar e sair, quando o empregado trouxe meu café. Quando pude voltar minha atenção para fora da janela, novamente, vi que o homem estendia, num gesto convidativo, a mão para a mulher que, já acordada, colocava seus dedos enrugados na palma da jovem e forte mão, para poder levantar. Ele a ajudou a ficar de pé e os dois seguiram o percurso, caminhando lado a lado, a passos decididos. Pareciam manter o silêncio, enquanto se afastavam do meu campo de visão.

Eu decidi segui-los, apenas para ver o que ele estava fazendo. Era uma mistura de gentileza, mas, ao mesmo tempo, muito intrigante. Quando eu saí pela porta, notei que o lugar onde a mulher esteve sentada, alguns minutos antes, parecia tão intacto, como se ela ainda estivesse por perto. Suas poucas sacolas de plástico e um velho xale de lã cinza e vermelho ainda estavam lá. Parecia que o tempo havia congelado. Pensei que havia algo errado, por isso peguei o xale em minhas mãos e me afastei com passos rápidos, tentando alcançá-los, mesmo sabendo que tinha poucas hipóteses de conseguir.

Não os avistei na rua à frente, mas segui meu coração e a rota que eu achava que eles tomariam, indo na direcção do Canal. Para variar, eu estava certa. Quando virei a esquina, vi que ele a estava ajudando a entrar na gôndola. Estavam sozinhos. Eu não vi a fila habitual de turistas, no cais. Ela sentou-se calmamente na parte de trás da gôndola e eles saíram a navegar pelo Canal, antes que eu pudesse alcançá-los. Não gritei, pois sabia que ele não iria ouvir-me, de qualquer maneira.

Decidi segui-los o máximo que pude, mesmo sabendo que não fazia muito sentido. Meu coração batia muito rápido. Minha mente estava incomodada. Segui a gôndola por muitas ruas, tentando estar tão perto quanto possível.

De repente, eles saíram da via principal e entraram por um dos braços mais estreitos do Grande Canal.

Enquanto o barco seguia, percebi que o lugar ficava cada vez mais silencioso. Em minha mente, eu reconhecia o lugar. O barco atravessou uma passagem e eles entraram pelos porões de um prédio muito antigo. Tive a impressão que o vi virar-se e olhar na minha direção, mas não tinha certeza de que aquilo realmente aconteceu ou se eu simplesmente imaginei. Meu sangue congelou. Então, eles desapareceram nas sombras.

Eu não conseguiria segui-los mais, mas reconheci que aquele era o mesmo lugar com o qual eu vinha sonhando, por várias noites.

Meu coração deu um salto... ou, talvez, dois.

‘Por Deus! O que ele estava fazendo?’

E eu? O que eu estava fazendo, afinal?

***

3 comentários: