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terça-feira, 31 de julho de 2018

Tatuagem (Parte 2 de 2)



- A minha é mais bonita.

- Sem dúvida. Foi uma bela escolha.

- É mais moderna, pelo menos.

- Pois é. Ficou muito bem-feita mesmo. Um lindo efeito…

Desta vez era eu quem beijava a tatuagem, estrategicamente gravada, entre as duas covinhas, na parte mais baixa das suas costas. A pele estava morna e reagiu, quando meus lábios tocaram, de leve, aquele ponto estratégico, tatuado na base da sua coluna.

- Eu adoro tuas curvas. Estas duas covinhas são tão sexy… E, agora, há também, este dragão tão bem feitinho e significativo…

Curvou-se um pouco, como se oferecesse o corpo para mais bem-vindas demonstrações de carinho.

Aquilo foi como um gatilho, que disparou uma reacção quase involuntária e quase irreversível, mas eu já não me preocupava com controlo sobre nada, de toda forma. Deitei-me sobre seu corpo, sentindo o sangue a correr-me, quente e acelerado, nas veias e a encher-me o corpo de desejo.

- Uhm… O que foi isso?

Não respondi. Apenas comecei a beijar cada pedacinho de seu atraente corpo. Encolheu-se quando rocei os lábios atrás da orelha e sua pele arrepiou-se de imediato. Era minha deixa…

***

- Nossas peles estão marcadas para sempre.

- Como se fossem almas gémeas…

- Ahaha! Lá vens tu, outra vez, com isso…

- Somos complementares, então.

- Somos pessoas que gostam de estar uma com a outra e nossos corpos sabem disso. Não é o bastante?

- “Que seja eterno enquanto dure”?

- Talvez isso seja suficiente…

Riu-se. Parecia satisfazer-se com aquilo, naquele momento, pelo menos. Nisto éramos tão diferentes.

Eu sempre tentava manter as coisas sob um descontrolo controlado. Sabia que nada na vida seria eterno. Sabia que ter muitas expectativas podia levar a grandes decepções e não queria que aquela “amizade”, por assim dizer, levasse a nada além das boas coisas, que já tínhamos, embora sentisse que estava sendo cruel com ambos, enquanto pensasse daquele jeito.

Eu havia perdido um bocado daquele romantismo que alguma vez tivera. Aquele não era seu caso. Sua cabeça estava sempre nas nuvens, seu corpo sempre pronto, quando estávamos juntos.

- Deixa-te levar. Solta-te. Não te reprimas. Não tenhas medo.

E lá ia eu. Levando-me por uma onda de calor, sabia os riscos do envolvimento. Sabia os riscos da entrega total. Sabia os prazeres que aquilo trazia… e gostava… mas não ousava admitir em alta voz.

***

- Gostas?

- Gosto.

- Mais para cima, um pouquinho.

- Aqui?

- Isso.

Examinou-me, cuidadosamente, com olhos oportunamente lascivos, as faces afogueadas pelo desejo e cantarolou baixinho, junto ao meu ouvido:

“Eu quero ficar no teu corpo, feito tatuagem”…

Passou os dedos, de leve, sobre o desenho, que havia sido gravado, e com muita dor, na lateral esquerda da minha cintura. Chegou-se mais perto e beijou, não só ali, mas em várias outras partes do meu corpo, como costumava fazer, quando o desejo ultrapassava o controlo.

Nossas tatuagens eram quase casadas. Dois dragões tão dissemelhantes, com dois significados tão distintos, impressos nas peles de duas pessoas tão diferentes. Mas, mesmo assim, eram dois dragões: duas figuras da mesma espécie… ou não…

***

- Abraça-me. De verdade…

- Que houve?

- Shhh.

Seu corpo estava quente, como se fosse brasa acesa. Eu não tinha ideia do que se passava, por isso limitei-me a ficar ali, sem dizer palavra alguma, ouvindo sua respiração arquejante e sentindo o coração a bater forte contra meu peito. Algo parecia estar errado, mas eu não sabia o que era.

- Diz-me o que se passa.

- Shhh. Fica só assim, um pouco mais…

Ficamos, o que pareceu-me um tempo interminável, naquele abraço apertado. Quando, por fim, libertou-me, disse, somente, num sussurro quase desesperado:

- Faz amor comigo.

Não respondi, apenas deixei-me levar... completamente… como um bote insuflável, descendo as corredeiras, sem remos e sem leme.

Avançamos como se uma loucura tivesse tomado conta de nós. Nossos corpos ardiam como se acometidos por uma febre alta e tivéssemos o sangue a correr, como lava quente nas nossas veias, pronto a entrar em erupção a qualquer momento. Procurávamos satisfazer uma sede insaciável, enquanto bebíamos de um mesmo veneno, ou seu antídoto, misturado erraticamente em nossas bocas e buscávamos um conforto que não existia. Deixamo-nos tomar pela insanidade que tornava aquele momento único e intenso, em ondas que iam e vinham dentro de nós, como o mar a atirar-se nas areias da praia, naquele vai-e-vem ritmado, ora lânguido, ora enérgico. Navegamos em águas escuras e profundas, como um barco sem timoneiro, que corre o perigo de arrebentar o casco nos arrecifes e nos afiados bancos de corais multicoloridos.

Fechei os olhos, tentando conter a aflição que tomava conta de mim e deixei escapar um grito, como de um animal na floresta, quando aquela explosão vermelha culminou, de um crescendo de sensações já, então, incontroláveis. Meu corpo todo convulsionou, em espasmos repetidos. 

Teoristas poderiam chamar aquele momento de “a pequena morte”. Eu chamava de “a grande queda”. 

Depois, veio aquela sensação de abandono e relaxamento. Nossos corpos ficaram inertes por uns momentos, vencidos pelo cansaço.

Seguiu-se um silêncio, pontilhado, apenas, pelo pulsar de nossas respirações, que iam voltando ao seu ritmo natural.

Perdi a noção do tempo e mergulhei num sono profundo, com sonhos coloridos em matizes vibrantes. Sentia que estava com o corpo e a mente retidos entre o firmamento e a terra… ou entre o céu e o inferno… para quem acreditasse naquilo.

Quando acordei, estava só. A cama parecia enorme e fria, apesar do calor lá fora.

Algo parecia fora do sítio. Havia uma atmosfera estranha e, por um momento, senti-me entristecer. Uma angústia torturava-me o peito.

Minha boca estava muito seca. Precisava de água fresca. Levantei-me e fui até a cozinha. Já era noite e havia uma agradável aragem a entrar pela porta aberta para a varanda. Um movimento do lado de fora chamou minha atenção. Pousei o copo vazio sobre a pia e fui até lá.

***

- Hey.

- Hey.

Minha voz era quase um sussurro. Meu peito, em desconforto, quase me fazia berrar de desespero, por alguma razão que eu não conhecia ainda. Tentei manter a calma.

- Que fazes?

- Penso…

- Atrapalho?

- Claro que não.

Aproximei-me e beijei-lhe as costas e o pescoço, com suavidade. Rocei os lábios, muito de leve, descendo até a tatuagem, quase invisível naquela penumbra. Sua pele arrepiou-se e senti o corpo curvar-se na minha direcção, numa reacção de anuência. Fechei os olhos e inspirei profundamente.

- Eu adoro teu cheiro.

- Hmm…

- És um vício… Tenho a impressão que não posso ficar sem ti.

Virou-se para mim, com o rosto convenientemente escondido pela penumbra.

- Vou-me embora.

- Como assim? Por quê?

- Tem que ser. Tens toda razão. Isso virou um verdadeiro vício. Chego a perder o controlo.

- Mas isso é bom, não é?

- Não sei. Estou sufocando. Não posso continuar assim… Preciso de espaço para mim… tenho muito que pensar…

- Eu não entendo…

- Nem sei se eu entendo, na verdade… mas tenho que fazer algo… e tem que ser urgentemente… Se eu ficar, vou-te fazer infeliz…

- Infeliz? Como?

Não respondeu.

Como podia ser infeliz, se tudo o que tinha era aquele relacionamento? Aquela era minha ideia de felicidade, até o momento, em que tudo caía por terra, com uma sentença incompreensível e inaceitável por minha razão.

Olhou-me com um misto de tristeza e expectativa na expressão.

Fiquei uns minutos, em silêncio, sem saber como reagir. Não sabia o que pensar. Minha mente buscava razões e mais razões, para justificar aquela decisão e não conseguia encontrar nenhuma.

- Sei que tenho que respeitar a tua vontade. Não há nada que eu possa fazer, para mudar isso, não é mesmo?

- Não. Eu tenho mesmo que ir.

- Ok, então, mas isso tudo é muito triste...

- Vamos guardar lindas recordações, não é mesmo?

- Muitas… Sempre teremos as nossas tatuagens, vívidas em nossas peles, para trazê-las à memória.

- Os dragões sempre voltam na Primavera…

- É?

- Uh-hum… Com a primeira lua cheia...

- Nunca havia pensado nisso.

Aqueles seus olhos enormes e a ausência de um simples sorriso eram sinal de uma coisa somente. Já não havia nada mais a ser dito. Aquele era, definitivamente, um adeus.

 ***

Quando entrei no estúdio, minha decisão já estava tomada. Aquela ia ser uma operação angustiante, sob vários pontos de vista. Quando a agulha do mecanismo começou a perfurar minha pele, reavivando os pigmentos com a tinta especial, eu senti lágrimas a me brotarem nos olhos e deixei que caíssem livremente, sabendo que não eram, realmente, devido àquela aflição física…

A tatuagem foi refeita, mudando um pouco a face do dragão e acentuando as linhas e cores da figura original. Aquela era uma pequena mudança, não somente na minha pele, mas era definitiva…

***


segunda-feira, 23 de julho de 2018

Tatuagem (Parte 1 de 2)



- É um dragão.

- Já vi melhores, mas não está mal.

- Eu sei… devo mandar retocar… quero mudar um pouco a figura original.

Beijou-me a tatuagem, suavemente, como quem beija a cabeça de uma criança… ou de um animalzinho de estimação…

Olhou-me como se quisesse ler minhas reações, diante daquela atitude quase infantil e riu-se. Aquele riso veio tão espontaneamente que divertiu-me, fez-me rir, também, e deixou-me, no peito, uma morna sensação de conforto e serenidade.

A imagem, do tamanho de um punho fechado, representava um dragão e estava impressa no lado esquerdo da minha cintura. Eu sabia que deveria reforçar as linhas e cores, pois depois de dez anos, a imagem já não tinha o mesmo brilho inicial, mas tinha primeiro que tomar algumas decisões em relação ao que queria.

Como se estivesse tentando ler meus pensamentos, cantarolou o verso da antiga canção, sorrindo, a me provocar.

“Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem”…*

Eu ri.

- Criatura sem noção! E, ainda mais, com uma canção tão antiga…

- Mas que cabe bem neste momento…

Seus olhos pareciam duas estrelas, que não conseguiam esconder o brilho evidente do desejo, que os lábios acabavam de revelar. Talvez, na verdade, quisesse, apenas, brincar um pouco com minha libido e minhas reações, provocar-me, ou sei-lá-o-quê…

Virei-me e abracei-lhe o corpo, deitando minha cabeça em seu peito. Soltou um longo suspiro e brincou com meus cabelos, passando o outro braço à minha volta.

Eu senti-me como uma criança em seu morno regaço. Aquela manifestação de uma proteção quase onipotente era-me convenientemente agradável. Fechei os olhos.

- Gosto da maciez dos teus cabelos.

- Gosto que me toques a cabeça.

- Dizem que é prova de grande confiança.

- Eu sei…

- Existe alguma coisa que não saibas?

- Muitas, mas não lembro de nenhuma, agora…

Dei uma gargalhada. Quem provocava quem, agora?

***

- Tu acreditas em almas gémeas?

- Eu não acredito nem em almas. Acredito, sim, em afinidades, em respeito aos limites e…

- Não sejas assim. Nós temos muitas afinidades, é verdade. Somos como almas gémeas…

- Ah! Tá!

- Tu já não acreditas em nada que não seja real e solidamente palpável. Perdeste o romantismo e a fantasia…

- Mas não perdi o tacto, pois não?

Sorriu. Olhou-me como se me analisasse, antes de dizer o que pensava.

- Não. O tacto é uma das coisas que mais gosto em ti… e não só…

- Ai, não? Que mais tu gostas?

Não respondeu. Apenas riu, com uma pontinha daquela malícia, que lhe caía tão bem, quando estávamos juntos, daquele jeito, entre os lençóis desalinhados, na cama de casal.

Eu sempre gostei de camas grandes. Quando era criança, nunca tive um quarto todo meu, tendo sempre que dividir meu espaço e dormir em uma cama estreita, que sempre me pareceu diminuta, apesar da minha pequena estatura e do corpo mirrado demais para a minha idade. Talvez meu egoísmo e minha carência de espaço fossem maiores que o meu tamanho físico, mas agora aquilo tudo havia ficado num passado muitíssimo distante.

Minhas lembranças de infância nunca traziam saudades de tempos felizes. Era uma quase melancolia, quando meu passado vinha à memória, mais para inquietar-me, que para fazer-me sorrir.

Não. Eu não fui infeliz, mas nunca senti saudades daqueles tempos, em que eu era apenas uma criança, buscando ganhar uma atenção, que eu nem sabia bem se merecia e sem sentir grandes demonstrações de carinho, por parte de quem, supostamente, deveria mas dar, espontaneamente.

Cresci independente, tentando esconder e controlar a arredia insegurança e a disfarçar a timidez, com uma boa dose de arrogância e rebeldia, características da idade.

Meus pensamentos já iam muito longe, quando sua mão tocou-me o rosto e senti-me como a voltar a assentar meus pés à realidade.

- Onde estavas? Parecias tão distante.

Menti.

- Estava apenas a curtir este momento. É bom estar aqui, sem ter que pensar em nada…

Não convencia nem a mim, obviamente.

- Sei, sei… Sem pensar em nada…

Não consegui sorrir. Eu caía num incontrolável poço de auto-comiseração e não gostava nada daquilo. Agarrei-me à corda lançada, como quem agarra-se à única possibilidade de salvação.

- Ainda bem que cá estás.

- Por quê? 

- Porque assim me dás segurança.

- Ah…

- Não brinques. É importante para mim.

- Ok. Então que seja.

Beijou-me os lábios, de leve. Eu respondi, tentando controlar o desespero que tomava conta de mim naquele momento, mas meu corpo inteiro delatou-me, com um tremor involuntário.

- Estás bem?

- Uh hum…

Aquela resposta bastava. Era, entre nós, sinal que não era hora de falar mais nada.

Costumávamos respeitar nossos silêncios, quando nossos corpos estavam presentes, mas nossas mentes não. Conhecíamos nossos desejos e respeitávamos nossas necessidades de ficarmos assim, sem dizer nada, a ouvir a música que vinha da sala, do computador ligado num canal de rádio e que me atingia, em cheio, no meio do peito, como uma seta envenenada por curare, que paralisava-me os movimentos, mas deixava duas lágrimas salgadas e quentes a brotar-me pelo canto do olho e descer-me pela face abaixo.

“Ando tão à flor da pele,
 Que qualquer beijo de novela me faz chorar;”…
”Ando tão à flor da pele,
 Que meu desejo se confunde
 Com a vontade de não ser;
 Ando tão à flor da pele,
 Que a minha pele tem o fogo do juízo final”…**

***

- Vou fazer uma tatuagem.

- Vais? E o que vai ser?

- Não vou dizer.

- Por que não?

- Quero que seja uma surpresa.

- OK, então. Que seja… sabes as consequências… e sabes que dói…

Riu.

- Quando?

- Logo… ainda não sei direito…

Levantei o sobrolho, como quem desconfia ou condena aquela meia explicação, mas percebi que não causei grande comoção.

Sorriu, apenas. Parecia uma criança que ganhava um brinquedo novo. Aquela não devia ter sido uma decisão muito fácil. Uma tatuagem é, quase sempre, para sempre. É mais duradoura que a maioria dos relacionamentos. Embora muito em moda, sabe-se que pode ser uma decisão bem dolorosa e, dependendo do caso, pode não compensar o “sacrifício”.

Talvez a minha aceitação, assim, tão naturalmente, tenha sido um alívio, afinal. Eu não tinha porque criticar ou condenar. Eu tinha a minha e sabia o quanto doía, mas, também, o quanto era importante para mim tê-la gravada na pele, indelevelmente, para, no meu caso, marcar um evento. Cada um tem seus próprios motivos, afinal.

***

- Vou sair. Não sei a que horas volto.

- Como assim? Não sabes?

- Não sei, simplesmente… Posso demorar… bastante…

Não esperou que eu dissesse mais nada.

Saiu, como quem ia fazer algo especial ou como quem ia encontrar com alguém especial, de tão feliz que estava.

Fiquei a olhar, enquanto se afastava. Um aperto no peito plantou uma semente de dúvida. Uma sombra passou-se em meu discernimento. Já não pensava claramente…

***

* Tatuagem, de Chico Buarque de Holanda
** Flor da Pele, de Zeca Baleiro