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domingo, 9 de setembro de 2018

As Pedras Grandes (Parte 2)


- Precisa de ajuda?

- Oh. Eu tinha esperança que vocês viessem. Tenho medo do que eles me possam fazer.

- Eles não lhe vão fazer nenhum mal. Por que fariam?

- Eu preciso voltar para a ilha, mas já não vejo a embarcação.

- Embarcação? Não sei de nenhuma embarcação. Por que não vai de carro ou de ónibus?

Ela olhou-nos com uma expressão estranha, como se não soubesse do que falávamos.

‘Deve estar com Alzheimer. Melhor tentar ajudar. Ela parece tão velha’, pensei

- Venha connosco.

Demos-lhe o braço e ela aceitou a ajuda, caminhando ao meio, apoiada aos nossos braços. Parecia mais tranquila. Do que ela tinha medo, afinal?

Os homens mal notaram que nós íamos saindo do local, com a estranha mulher junto de nós. Estavam ocupados com outra coisa.

Já no centro da cidade, depois de atravessar a ponte, deixamo-la no terminal urbano, para pegar o ónibus para o Ribeirão da Ilha, onde ela disse que vivia. Antes de passar pelo portão, todavia, voltou-se e deu um abraço afectuoso em cada um de nós. Depois tirou um pequeno artefacto do bolso do vestido, ao qual estava preso um cordão preto. Entregou-o e disse que usasse para protecção contra todos os males. Aquele amuleto era muito poderoso, segundo ela.

Eu não disse nada. Fiquei a olhar e a imaginar as coisas que as pessoas acreditavam, ainda, em pleno século XXI, mas fiquei feliz que ela estivesse bem e agradecida pelo pequeno gesto que fizemos. Vivemos numa época tão estranha. Por vezes sinto saudades daquela ingenuidade da crença em bruxas e outros seres fantásticos.

Ficamos ao portão do terminal até vê-la entrar, hesitante, no colectivo que ia levá-la de volta à casa, não sem antes olhar para trás e certificar-se que estávamos ali, ainda. Acenamos, uma última vez e fomos embora.

***

Uma velha mulher, vestida de negro, caminhava pelas ruas do Ribeirão da Ilha, à procura de uma determinada casa. Ela parecia um tanto perdida, pois o lugar estava muito diferente do que ela conhecia. Na dificuldade de localizar-se, com precisão, tentava falar com as pessoas que por ela passavam, mas pouca atenção tinha, daqueles que caminhavam às pressas, pelas ruas do bairro, localizado no interior da Ilha.

Teve uma indicação, finalmente, de um jovem, para tentar a rua que descia na direcção da praia, onde havia uma casa antiga, com a cobertura de telhas em calha, muito ‘encarunchadas’ pelo tempo. A casa era pintada de branco, com janelas azuis e era fácil de ser reconhecida, por ser a segunda casa depois da igreja e pelo roseiral, sempre florido, na frente. A descrição que o rapaz fez, pareceu satisfazê-la, pois seus olhinhos negros abriram-se um pouco, com um brilho diferente e uma expressão de agrado iluminou-lhe a face enrugada pelo tempo.

Ela olhou na direcção indicada, deu um longo suspiro e partiu rumo ao seu pretenso destino. Quando chegou à rua da igreja, reconheceu logo a casa e chamou do portão, com a voz meio afectada por causa da idade e da garganta seca pela sede. Apesar de haver chamado somente uma vez, a porta logo abriu-se e uma moça muito bonita veio atendê-la.

A jovem acolheu a estranha, com bondade, apesar de pensar que tratava-se de uma mendiga, de passagem por ali. A anciã sorriu para ela, de maneira um pouco desajeitada e estendeu-lhe a mão esquerda. A moça retribuiu o cumprimento, sem dizer nada, mas com um sorriso aberto, como se reconhecesse uma velha amiga. A velha sorriu, tranquila.

- Tu és uma de nós. Tu sabes porque eu estou aqui…

A moça assentiu, balançando a cabeça, muito levemente, ainda a sorrir e convidou-a a entrar. No mesmo instante, ouviu-se um trovão, não muito longe, e nuvens escuras cobriram o céu da tarde.

Acordei em sobressalto.

- O que foi aquilo?

***

- Andei a ler sobre as bruxas da ilha.

- Ah, sim?

- Uh-hum… É interessante, mas descobri que muita coisa que se dizia era baseada em crendices e, algumas eram mesmo invenções das pessoas…

- Como todas as lendas.

- Acho que muita gente foi prejudicada pela maldade de outras.

- Sempre foi. Maldade, ignorância e medo.

- E interesse.

- Isso mesmo!

- Será que a nossa ‘amiga’ teria sido uma delas? Ela parecia bastante assustada e com medo daqueles homens.

- Não sei dizer.

- Por qual razão as pessoas fazem este tipo de coisas? Que prazer há em fazer maldades?

 - Já tens idade para saber que o ser humano é extremamente complexo. Inveja, medo e ignorância podem causar grandes males. Sabes que, em inglês, a Idade Média, era chamada 'The Dark Ages', não sabes?

- Sabia que foi uma das piores épocas da história da humanidade. Muitas bruxas foram queimadas vivas. Bastava uma pessoa ter pensamentos contrários ao que a Igreja queria que pensassem, para serem acusados de bruxaria e serem condenados. Sei que muitos livros, com informações importantíssimas, foram destruídos. Muitos inocentes foram mortos. Até pelas pestes aquelas pobres pessoas foram acusadas e condenadas.

-  Até pouco tempo atrás acreditava-se que as bruxas foram mais caçadas no auge da Idade Média, porém pesquisas e documentos provaram que foi no fim daquela época e no início da Idade Moderna, já no Iluminismo, quando o protestantismo foi criado. Sabias que muitas das coisas que se afirmavam sobre os poderes das bruxas, como voar nas vassouras e coisas do género, eram alucinações provocados por um fungo que crescia no centeio e que, mais tarde seria usado para sintetizar o LSD? O centeio era armazenado por muito tempo e os fungos cresciam livremente. Quando faziam o pão, nunca se preocupavam em verificar nada. Era uma época difícil e eles não iam jogar o cereal fora, a custo de não terem o que comer.

- A sério?

- Podes imaginar as coisas que as mentes deturpadas e ignorantes podiam fazer, dizer, acusar, sob o efeito de alucinogénos?

- Mas nem todas as bruxas eram más. Havia aquelas que eram também parteiras, especialistas em ervas, em rezas… Algumas das nossas ancestrais devem ter vindo para cá, com estas "especialidades", fugidas das perseguições na Europa.

- Não sei dizer, ao certo, se a maioria era boa ou má, mas sei que, ainda hoje, pessoas inseguras, invejosas, maldosas e ignorantes levantam calúnias umas contra as outras e as pessoas tomam aquilo com verdades, sem nem ao menos verificar a origem das acusações. Basta ires às redes sociais e tens um milhão e meio de exemplos… e já não precisamos de fogueiras para queimar as bruxas modernas.

- Basta um ‘click’, um ‘like’, um ‘share’ ou um comentário…

- Estás a ver? Isso é pior que fogo em palha seca. E vira um incêndio em muito pouco tempo, pois todos têm, sempre, uma opinião sobre aquilo que, na verdade, nem conhecem.

- Pois. É pior que histeria em massa. Eu li sobre a lenda de uma mulher muito bonita que foi acusada de bruxaria na ilha, porque enfeitiçava os homens e dava nós nas roupas penduradas a secar e cortava e emaranhava as tarrafas e redes dos pescadores...

- Uma mulher bonita “enfeitiça” os homens… Na verdade, são eles que se enfeitiçam, mas sabes muito bem como uma mulher determinada pode causar muitos “danos”, por assim dizer.

Riu-se. Sabia muito bem do que eu falava.

- E também como mulheres invejosas podem difamar uma boa moça, por puro despeito… ou os homens, por rejeição. Não há limites para a maldade humana…

***

- Foi tão gentil da parte dela me dar este amuleto. Sorte é sempre bom.

- Cuidado com as coisas em que acreditas.

- Não tem a ver com o que eu acredito e, sim, com gentileza.

- Mesmo assim. Cuidado.

- Vou ter… Será que traz sorte no amor, também?

Olhou para mim com um sorriso. Eu só levantei o sobrolho, em sinal de desconfiança e desaprovação. Deu uma gargalhada.

- Eu sabia que ias fazer esta cara.

Saiu, na direcção da praia, a passos apressados. Não ia esperar por uma resposta, de todo jeito.

Fiquei a olhar, da varanda, enquanto caminhava pela praia, com os pés na água do mar. Parecia uma criança. Parou perto das grandes pedras e ficou a olhar, como se as examinasse. Aquelas histórias de bruxas pareciam ser a fascinação do momento e, as grandes rochas, o ponto de maior interesse.

Eu ri. É bom que tenha interesses por coisas menos corriqueiras e consiga pensar e tirar, por si, conclusões sobre o que lê.

***

Estávamos sentados na varanda, a olhar as luzes reflectidas no mar, à noite, como costumávamos fazer, quando o tempo estava bom. As canecas de café jaziam vazias sobre a mesinha. Estávamos perdidos em pensamentos, sem necessariamente falar. Cada qual ocupava-se com seus próprios pensamentos, …ou quase…, tendo as grandes rochas como pano de fundo. 

- Lembras da primeira coisa que ela disse?

- Não. Tu lembras?

- Claro. Ela disse: “Eu tinha esperança que vocês viessem. Tenho medo do que eles me possam fazer.”

- Ah. Ela estava assustada, como sabes.

- Eu me referia ao “eu tinha esperança que vocês viessem”. Como ela podia ter esperança que NÓS viéssemos? Como poderia saber?

- Foi força de expressão.

- Será?

- Não queres que eu pense que ela sabia, queres? Essa história já deu o que tinha que dar. Não te impressiones mais que o necessário.

- E se ela, realmente, sabia?

- Como poderia saber? Mandaste alguma mensagem por e-mail ou chat? Nem imagino aquela mulher, tão velha, com um computador nas mãos… nem com as mãos em um computador.

Percebi que não achou graça da minha piada, por isso, não continuei a conversa. Passados uns minutos, em que parecia estar com os pensamentos muito longe dali, voltou a comentar.

- Esta história ainda não me deixa dormir.

Lembrei do meu sonho e questionei.

- Tens sonhado? Algum sonho incómodo?

- Mais ou menos.

- Tens sonhado ou não?

Voltou-se e olhou-me directa e seriamente.

- Tenho.

Ouvi, com atenção, o sonho, que era idêntico ao que eu havia tido. Impressionante como as histórias eram tão iguais, até mesmo nos pequenos detalhes. Devia haver alguma explicação plausível para aquilo.

Estávamos, ambos, impressionados pela conversa que havíamos tido, conhecíamos o lugar, havíamos discutido detalhes… mas por qual razão os sonhos eram idênticos nos mínimos detalhes, eu ainda não sabia dizer.

Fiquei em silêncio e aquilo foi suficiente para lançar um pouco mais de lenha à fogueira da dúvida e da imaginação. Aquele sorrisinho era um sinal de vitória, mas eu fiz de conta que não o percebi.

- Não achas melhor irmos ao Ribeirão da Ilha, fazer uma pequena pesquisa?

- Subtil… muito subtil… mas acho que devemos, sim.

***

- Ó de casa!

Riu-se de mim, ante a minha demonstração de conhecimento da cultura local.

- O quê? Não é assim?

- É sim.

A porta azul abriu-se e uma moça muito bonita apareceu na soleira da mesma. Reconheci-a no momento que ela sorriu. Pelo jeito, tivemos o mesmo pensamento, pois ambos sorrimos com satisfação. A casa era aquela mesma… e a moça também.

Tínhamos tantas perguntas a fazer, mas mesmo antes que abríssemos a boca para dizer qualquer coisa, vimos o vulto vestido de negro aparecer por detrás da mocinha.

- Entrem. Já esperávamos por vocês.

***