domingo, 4 de junho de 2017

Olhares (Parte 4)



- Vamos falar sobre coisas sérias.

- Já é mais que hora de falarmos a sério…

Ele chegou-se um pouco para frente e começou a falar. Eu, de minha parte, a ouvir com atenção, não conseguia deixar de ficar impressionado pelo que aquele homem ruivo dizia.

***
- Nós somos prisioneiros.

- Como assim? Prisioneiros?

- Ainda não percebeste que tudo o que nós fazemos tem uma consequência? Nós somos prisioneiros das nossas vontades, dos nossos vícios e dos nossos medos.

- Isso é retórica…

- Será? Eu sei que tu gostas daquela frase. E é uma verdade.

- Qual frase?

Ele sorriu. Eu sabia à qual frase ele se referia, mas como sempre, queria que fosse ele a ser claro e específico. Eu sempre precisava de uma confirmação.

- Tu sabes… ah, sabes… e sabes muito bem!

Eu sorri. A ele não se podia enganar.

- Que mal há em desejar? Se o desejo for mesmo firme… se acreditarmos…

- Aí é que está o perigo… Por sorte, nem todos acreditam o suficiente… “Se tiverdes fé como um gão de mostarda” …

Eu ri, um tanto desconcertado. Não esperava que ele fosse usar uma citação daquelas.

- Tu deves saber que eu não defendo as coisas transcendentais, nem sigo nenhuma religião. A frase, entretanto, faz mais sentido que possas imaginar.

- Assim como minha frase preferida… Mas não esperava uma citação desta, de alguém que se diz “não-seguidor” de religiões.

- Nós dois sabemos que foram os homens, nos seus primórdios, que inventaram seus deuses para compensar a inépcia em explicar os fenómenos naturais, dando nomes românticos e atribuindo, assim, super-poderes às forças do universo.

E ele desfiou um longo discurso sobre como foram criadas as religiões e como a manipulação do conhecimento, pelos mais eruditos, ricos e espertos, conseguiu atravessar as eras e impingir o medo naqueles que não podiam - ou não deviam - tomar ciência da verdade.  

- Os homens têm sido enganados ao longo deste tempo todo, levados a acreditar numa grande mentira, tentando dar sentido às suas vidas insípidas e salvar suas almas pecadoras. Se soubessem a força que possuem, acima desta mentira toda, mudavam o curso da História…

- Por outro lado, não acreditar em nada pode ser tão ou mais perigoso ainda. Veja o que acontece com o mundo, quando as pessoas não têm no que acreditar ou estão simplesmente perdidas, sem fé e sem direcção. Elas não têm medo da impunidade, não tem consciência e não sentem culpa. Veja o caos que o mundo acabou se tornando, com os crimes mais absurdos e hediondos, não só uns contra os outros, mas também contra si mesmos. Nunca se cometeram tantos homicídios, nem suicídios como agora.

- Num mundo onde o acesso às informações é tão imediato, as mentiras e as notícias sem profundidade e sem sentido, espalham-se com a velocidade de um incêndio na palha seca, levado pelo vento. Poucos querem ler os jornais, mas todos acreditam no que lêm nas redes sociais. Alguma coisa precisa ser feita urgentemente.

- Mas eu sou muito pequeno para promover qualquer mudança que possa ser considerável…

- Será que és mesmo?

***

Eu nunca havia pensado naquilo, daquela forma. Era bastante triste, complexo e profundo, embora muito verdadeiro e credível.

O som de um estranho e intermitente bip começou a perturbar-me a cabeça, quando ele me estendeu a mão e disse:

- Está na hora de voltares ao outro lado…

Eu olhei para o fim daquele emaranhado de túneis, numa galeria muito iluminada, cada qual com um tipo diferente de saída, onde pessoas vestidas de negro iam e vinham apressadas. Ele conduziu-me até um dos terminais de passagem e disse-me que dali para diante eu tinha que ir sozinho, mas que tudo ia dar certo...

Confesso que tive um certo receio, quando vi o carro preto e reluzente parado do lado de fora, mas quando a porta se abriu, tive a sensação de ser sugado para fora, com uma violência inesperada, na direcção de uma luz muito forte.

Os bips pareceram mais altos e intermitentes e em cadência mais rápida.

Fechei os olhos com força. Eu, porém, sabia que tinha de encarar os factos. Senti um calor sobre meu rosto e abri os olhos, gradualmente. Uma luz muito forte ainda parecia cegar-me, mas foi diminuindo a intensidade, conforme eu piscava os olhos, tentando manter o foco nas figuras disformes à volta dela.

Poucos segundos depois, ouvi uma voz agradável, que acompanhou a solidez e forma do rosto suave e conhecido da mulher vestida de branco.

‘Um rosto familiar afinal’...

Eu sorri e ela correspondeu.

- Que bom vê-la novamente.

Ela sorriu, condescendentemente e falou, com muita delicadeza.

- O senhor acaba de sair do coma em que estava, desde que sofreu o acidente de carro. Esteve naquele estado há vários meses.

- Mas eu saí do hospital, logo em seguida… Nós já nos encontramos depois daquilo e até conversamos…

- Só se foi em sonho. É normal sonhar sonhos muito realísticos, em alguns estados comatosos. Mas agora tudo vai ficar bem. Só tem que tomar os medicamentos e fazer a fisioterapia direitinho. Em pouco tempo vai voltar à sua vida de antes…

‘Isso é impossível! Não pode estar a acontecer. Acho que estou dentro de um pesadelo recorrente’

- E o meu amigo? Ele veio fazer-me uma nova visita, pelo menos?

- Que amigo? O senhor não teve nenhuma visita.

- Aquele que se veste sempre com roupas pretas…

Ela riu e puxou o lençol, cobrindo-me até o peito. Ajustou o fluxo do medicamento intravenoso, pediu-me para ficar calmo e saiu do quarto, em silêncio.

Fechei os olhos, meio entorpecido pelo efeito dos analgésicos. Senti-me a cair num poço sem fundo, em câmara lenta, não sei por quanto tempo.

***

No canto do quarto, um homem vestido de negro mantinha os olhos fixos em mim.

- Deixei ali uma mensagem importante para ti, dentro da gaveta. Vais reconhecer pelo símbolo desenhado no papel dobrado.

Eu senti-me muito cansado, de repente, e fechei os olhos.

***

Quando abri olhos novamente, já não havia ninguém, além de mim, no pequeno quarto do hospital. Ouvi o silêncio, para ter certeza que eu estava mesmo sozinho.

Com um pouco de esforço, abri a gaveta da cómoda, na cabeceira da cama e procurei por qualquer coisa deixada lá, mas não encontrei nada, além de um Novo Testamento deixado pelos Gideões Missionários. Pensei que estava mesmo a delirar. Eu já devia saber que havia tido outro sonho…

Tive sede. Precisava de água. Olhei à volta. Havia uma garrafa plástica com água mineral, sobre a mesinha. Ao lado dela, um copo. Tentei mudar para uma posição mais sentado que deitado, para alcançar ambos, mas como não segurei a garrafa com firmeza, ela caiu no chão, com um estrondo seco e rolou pelo piso térmico.

- Que droga!

- Calma. Eu ajudo.

- O quê? Como…?

Ela juntou a garrafa, pegou o copo e serviu-me um pouco de água, que eu bebi com satisfação. Tive a impressão que não bebia água há muito tempo.

Ela sentou-se numa cadeira, cruzou as pernas e ajustou o casaco do tailleur de um moderno tweed cinzento-escuro, muito elegante, que trajava. Passou a mão pelos cabelos, trazendo uma mecha para trás da orelha direita, certificando-se que o coque estava bem preso atrás, no alto da cabeça. 

Eu ainda estava atónito, a olhar para ela, que me falou, sorrindo:

- Podes fechar a boca… Pareces muito surpreso de me ver aqui.

- Estou, claro. Não te vi entrar… Pensei que estivesse sozinho...

- Tu nunca estás sozinho.

Ela sorriu. Impressionante como parecia tão senhora de si… e, dependendo do que estava lá a fazer, talvez, também, senhora de mim…

- Tu não procuraste direito na gaveta. Devias ter aberto o livro…

Naquele instante a porta abriu-se e a enfermeira entrou e falou firme e directamente à outra mulher.

- Já acabou o horário de visitas. Ele precisa descansar.

A mulher levantou-se, aproximou-se da cama e deu-me uma palmadinha na mão.

- Eu volto outro dia, com mais tempo. Ainda temos muito a conversar…

Encarou a enfermeira, olhando-a nos olhos e saiu sem dizer mais nada. A enfermeira não pareceu abalar-se com o confronto, ainda mais que a outra obedeceu as regras do hospital.

- Se amanhã estiver bem, retiramos a intravenosa e iniciamos com as sessões de fisioterapia.

- OK.

Quando ela saiu, eu abri a gaveta e tomei o livrete de capa cinzenta, distribuído gratuitamente pelos missionários, com o objectivo de fornecer conforto espiritual aos doentes de corpo e alma. Folheei, rapidamente, as finíssimas páginas, para confirmar a informação que havia recebido. Um pequeno bilhete dobrado havia, realmente, sido deixado bem no meio do livro, onde se lia o Salmo 91. Reconheci o símbolo desenhado do lado de fora, assim que pousei meus olhos no papel.

Comecei a abrir o bilhete, com dedos trémulos. Meu coração deu um salto e senti um desconforto no estômago, como acontece quando levamos um susto, ou quando temos que enfrentar uma situação desagradável.

Era hora da verdade…


segunda-feira, 1 de maio de 2017

Stares (Part 3)

‘This time it seemed so real... What could that possibly mean?’

The day had barely begun, and I was already unusually confused. That dream seemed more like a realistic vision, so vividly intense it had been.

I looked out through the large glass door that led to the balcony, with a cup of hot coffee in my hand. I noticed that it was rainy and windy, as if it were a winter day, although spring had already begun a few weeks before.

I thought about going back to bed, but I soon gave up, because I did not want to risk falling asleep and dreaming again. It was better to occupy myself with something more fruitful, until I understood what was going on with my head... or forget, for once, the dream I had had.

***

Sitting next to a large window, in the Café at the corner, I was distractedly gazing out when the phone rang. Not surprisingly, I heard the same hoarse, monotonous voice, already familiar to me. I listened attentively and quietly without answering more than a few grunts. I got up, paid the bill and went off to the garage, got into my car and headed out to the beach. I wanted to get over with it or I would not have peace of mind.


Avoiding thinking too much, during the drive of little longer than fifteen minutes, I put the sound louder and sang at the top of my lungs until I reached my destination. Deep down, I had a certain fear flying around my head and upsetting my reason.

When I got to the parking lot of a small restaurant, the rain was still falling heavily. I thought it was a bad day for any kind of meeting, especially at the beach.

I was neither happy nor very patient. I waited a few minutes and, as no one showed up, I decided to leave and go back to my life. I switched the engine on, pressed the clutch and engaged the rear gear. When I turned the steering wheel, and was going to leave the parking lot, the passenger door opened and he got into the front seat, by my side. I was sure the door was locked from inside, but did not say anything

***

- Speed up and go straight forward...

- But that's suicide!

- Don’t be a coward! Do you believe it or not?

I do not like to be challenged, nor to be called out a coward. I did not look away. The car was running up the road and I should take a turn to the right, but I did not move the wheel. I pushed the throttle harder and drove ahead.

I thought I was going to wake up as the car ran over the edge of the cliff, breaking the little wooden fence and flying toward the sea a few dozen feet below us, but that was not a dream. It was the harsh reality. The man sitting next to me, however, was smiling contentedly.

The sound that followed was abnormally deafening. I felt a strange taste in my mouth and then I lost conscience.

***

- It was quite a fall. It could have killed you. If we think about it, seriously, the result of the accident was not as serious as it might have been, considering the height of the cliff... If it were not for the surfers who saw the accident and went to your aid very soon...

- Oh, really? And the man who was with me? What happened to him?

I barely even recognized the sound of my own voice, which seemed just an echo of what it used to be. The doctor looked at me, without hiding a manifest concern.

- There was no one with you in that car...

I stared at the man dressed in white. A strong anguish nested in my chest. I heard the sound of the 
the beeps in the device attached to my body speed up, almost at the same time.

- Calm down, please. Now, it is better, first, to take all medicines, strictly. I added some tablets with Lithium salts, just to test a theory. At first it cannot be anything very serious, but it is convenient to be sure before diagnosing anything...

I took a deep breath and closed my eyes, thinking of what I had just heard.

'Theory ... Theory, my ass!'

I knew for what kind of disorders Lithium salts were used to. It was inconceivable that was happening to me.


When I reopened my eyes, the doctor was already walking down the aisle, toward the X-ray room, with a large envelope containing my X-rays in my hand.

My head ached.

The nurse gave me a plastic cup with a mouthful of pills and asked me to swallow them all at once with a little water. Until then, I had not even noticed she was in that room. She watched me carefully, making sure I swallowed the drugs and then she left.


I could still hear her talking softly to someone, but I could not make out what she was saying, or whom she was talking to. It seemed to me, however, that it was something like:

'Everything will be fine'...

She pulled the door behind her, leaving me alone, lying almost motionless, in the hospital bed, on account of two broken legs and some fractured ribs.

I heard a very light knock at the door and waited, but my eyes closed down and I could not see if someone was coming in. The effect of the painkillers was very powerful and I fell asleep very quickly, in a sound and dreamless sleep...

***


A few months later, with lots of therapy and the very strict use of medication, I left the hospital and went back to my life again. I fetched the cat, who had stayed at my niece's house and brought him back with me. That simple act meant that my life was going back to normal, gradually, and that I could resume my routines and my job.

I still had to undergo physiotherapy until I recovered my normal movements and had to visit the hospital at least once a week.

On one of those visits, I ran into the nurse who was in the room the day I first woke up after the accident. She recognized me and greeted me with a broad smile.

- I see you're feeling better. How's your friend? He was very worried when he saw you in bed, all plastered...

- What friend?

- The one who always dresses in black...


I must have shown a very strange expression, for she soon completed.


- He came here several times, until the day you regained consciousness. That same day, he said he was going to travel, for a while...


- Of course. I have not seen him for ages. Thank you for your concern.

***

Saturday morning, I was at home, organizing my clothes, when I noticed that, in one of the pockets of a coat, there was a piece of folded paper. I recognized the small symbol drawn in black, as soon as I held it in my hand. I again unfolded that little message delivered to me by a restaurant clerk a few months before and read it with new interest.

It was like my head was traveling back in time. I stayed there, I do not know for how long, with the note in my hand, thinking about what had happened...

The cat came in, reminding me that it was his time to eat and I went to the kitchen, served him a portion of his food, but he stopped in front of the bowl of water, which was empty. I was sure I had it filled right after breakfast, but I filled it again, to his satisfaction. He thanked me with a slight butt and brushed his body against my legs. I stroked his back and head, hearing his satisfied purr.

I decided to go out and have something to eat somewhere else. I put on my coat and left, intending to go to the subway station. I still could not drive normally, and besides, I did not have the car. When I reached the lobby of the building, I saw that there was a symbol drawn on the dusty glass of the front door, which I recognized immediately. I looked for some trace of the author of that feat, outside, but there was no one around.

'Someone's kidding me.'

***

I was sitting on the terrace of a small restaurant by the beach, with my thoughts wandering far away. A glass of a fresh green white wine, halfway down, rested beside the fish dish I had just finished.

- I thought you preferred red wine...

I recognized the tone of that voice as soon as I heard his first words. The same monotonous and hoarse timbre, typical of him, denounced the interlocutor.

- And I really do, but given the heat and the lightness of the dish, I decided on the white. Sit down, please.

He sat in front of me and in the shade of the parasol. Dressed in black, like that, was not common at lunchtime or on the terrace of a beachside restaurant. I considered it in my mind, but did not comment anything.

His blue eyes rested on mine, in that staring and provocative way, which was characteristic of him and which annoyed me terribly. I felt a shiver going down my spine. He soon noticed and smiled.

- I see you look much better...

- Hopefully, in a while, I'll be one hundred percent... I saw the sign you left at the door.

He smiled again.

- I did not leave any signal.

- Oh, did you not? And who did it, then?

- When are you going to believe me? Have you not had enough evidence yet?

- Believe you? I almost died, for the sake of believing you... Do you expect more than that? Look how I broken I am now. Get out of my life for once. This must end... for once and for all…

- Even if I wanted to, that would no longer be possible.

He waited for my reaction, still staring at me. He probably noticed the confusion in my eyes, by the way he frowned.

- Let's get out of here.

He got up and waited for me to pay the bill and to go outside, where the sidewalks were crowded with people walking happily in the sun. His hair gleamed in the early afternoon light and his head seemed to be on fire. Mine felt like it was going to explode...

We walked on for a few minutes, without speaking, when a black car, with the windows protected by dark layers, stopped at the curb side and he said:

- Let's go!

- But this is the car that nearly hit me some time ago!

- But you were well protected. Were you not pulled back at the right time? We are always very attentive...

- That woman…

He laughed and opened the door. I followed my instinct and got into the car with him. Sitting in the backseat and with my eyes on the driver, I still felt a little stunned by what I had just heard... and saw...


***

terça-feira, 25 de abril de 2017

Olhares (Parte 3)


‘Desta vez pareceu-me tão real… O que será que poderia significar, afinal?’

O dia mal começava e eu já estava estranhamente confuso. Aquele sonho pareceu-me mais uma verdadeira visão, de tão realístico e intenso que havia sido.

Olhei para fora, através da grande porta de vidro que levava à varanda, com uma xícara de café quente na mão. Percebi que chovia e ventava, como num dia de inverno, embora a Primavera já tivesse começado há algumas semanas.

Cheguei a pensar em voltar para a cama, mas logo desisti, pois não queria correr o risco de voltar a adormecer e sonhar. Era melhor ocupar-me com alguma coisa mais proveitosa, até compreender o que se passava com minha cabeça… ou esquecer, de vez, o sonho de alguns momentos atrás.

***

Sentado ao lado de uma grande janela, no Café da esquina, eu olhava distraidamente para fora, quando o telefone tocou. Não foi surpresa, quando ouvi a mesma rouca e monótona voz, já velha conhecida minha. Ouvi, com atenção, sem responder mais que uns poucos resmungos. Levantei-me, paguei a conta e fui até a garagem, entrei no meu carro e saí em direção à praia. Tinha vontade de acabar com aquilo de vez, ou não teria paz.

Evitando pensar muito, durante o percurso de pouco mais de quinze minutos, aumentei o volume do som e fui cantando a plenos pulmões, até chegar ao meu destino. No fundo, eu tinha um certo medo a rondar minha cabeça e perturbar minha razão e discernimento.

Quando cheguei ao meu destino, a chuva ainda caía insistentemente. Pensei que era um péssimo dia para qualquer tipo de encontro, ainda mais sendo na praia.

Não estava bem-disposto, nem muito paciente. Esperei uns minutos e, como não apareceu ninguém, resolvi sair dali e voltar à minha vida. Dei partida no carro, engatei a marcha à trás e pressionei o acelerador, devagar. Quando virei o volante e ia sair do estacionamento do pequeno restaurante, à beira da praia, a porta do passageiro abriu-se e ele entrou, para meu espanto, pois julguei que estava trancada por dentro.

***

- Acelera e vai em frente, em linha reta...

- Mas isso é suicídio!

- Não sejas covarde! Acreditas ou não?

Eu não gosto de ser desafiado, nem de ser chamado de covarde. Não olhei para o lado. O carro subia a estrada e eu devia fazer a curva, mas não virei o volante. Acelerei e fui em frente.

Pensei que ia acordar, quando o carro passasse do limite do penhasco, quebrando a pequena cerca de madeira e voando, na direção do mar, algumas dezenas de metros abaixo de nós, mas aquilo não era um sonho. Era a dura realidade. O homem, entretanto, sorria satisfeito, sentado ao meu lado.

O som que se seguiu foi estranhamente ensurdecedor. Senti um gosto estranho na boca e apaguei completamente.

***

- Foi uma bela queda. Poderia ter sido morte certa. Se pensarmos bem, o resultado do acidente até que nem foi tão grave, como poderia ter sido, tendo em vista a altura do penhasco… Se não fosse pelos surfistas que viram o acidente e foram logo em teu socorro…

- Será? E o homem que estava comigo? O que aconteceu com ele?

Eu quase nem reconhecia o som da minha própria voz, que parecia, apenas, um eco do que costumava ser. O médico olhou-me, muito sério, sem esconder uma manifesta preocupação.

- Não havia ninguém contigo no carro…

Encarei, com os olhos arregalados, aquele homem vestido de branco. Uma forte angústia aninhou-se em meu peito. Eu ouvi o som do aparelho ligado ao meu corpo acelerar o ritmo dos bips, quase ao mesmo tempo.

- Acalme-se, por favor. Agora, é melhor, primeiramente, tomar todos os medicamentos, com rigor. Acrescentei uns comprimidos com sais de Lítio, só para testarmos uma teoria. A princípio não pode ser nada muito grave, mas é conveniente termos mais certezas...

Respirei fundo e fechei os olhos, pensando no que havia ouvido.

‘Teoria… Teoria, o cacete!’

Eu sabia para que tipo de distúrbios os sais de Lítio eram usados. Era inconcebível que aquilo estivesse acontecendo comigo.

Quando reabri os olhos, o médico já seguia pelo corredor, andando na direcção da sala de Raio-X, com um grande envelope, que continha minhas radiografias, na mão.

Minha cabeça doía.

A enfermeira estendeu-me um copinho plástico com um bocado de comprimidos e pediu-me que ingerisse todos de uma vez, com um pouco de água. Até então, nem havia dado por sua presença naquele quarto. Ela observou-me com cuidado, certificando-se que eu engolia os medicamentos e saiu em seguida.

Ainda a ouvi conversar baixinho com alguém, mas não consegui perceber o que dizia, nem com quem ela falava. Pareceu-me, entretanto, que era algo como: ‘tudo vai ficar bem’…

Ela puxou a porta atrás de si, deixando-me sozinho, deitado, quase imóvel, por conta de duas pernas quebradas e umas costelas fracturadas, na cama do hospital.

Ouvi uma batida muito leve na porta e esperei, mas meus olhos fecharam-se, sem que eu conseguisse enxergar se via alguém a entrar. O efeito dos analgésicos era muito poderoso e eu adormeci muito rapidamente, naquele sono sem sonhos…

***

Poucos meses depois, com muita terapia e o uso rigoroso dos medicamentos, deixei o hospital e recomecei minha vida. Fui buscar o gato, que havia ficado na casa da minha sobrinha e trouxe-o de volta comigo. Aquele ato simples representava que minha vida voltava ao normal, aos poucos e que eu podia retomar minhas rotinas e meu emprego. 

Ainda tinha que fazer fisioterapia até recuperar meus movimentos na normalidade e visitava o hospital, pelo menos, uma vez por semana.

Numa das visitas, topei com a enfermeira que estava no quarto no dia em que acordei pela primeira vez, depois do acidente. Ela reconheceu-me e cumprimentou-me com um largo sorriso.

- Vejo que está melhor. Como vai seu amigo? Ele demonstrou uma preocupação muito grande quando o viu na cama, todo engessado…

- Que amigo?

- Aquele que se veste sempre de negro…

Devo ter feito uma cara muito estranha, pois ela logo completou.

- Ele veio cá várias vezes, até o dia em que você recuperou a consciência. Naquele mesmo dia, disse que ia viajar, por uns tempos…

- Pois. Já não o vejo há algum tempo. Obrigado pela preocupação.

***

No sábado, ainda de manhã, estava em casa arrumando minhas roupas, quando senti que, num dos bolsos de um casaco, havia um papel dobrado. Reconheci o pequeno símbolo desenhado em negro, assim que o tive na mão. Desdobrei, novamente, aquela pequena mensagem, entregue a mim, por um funcionário de um restaurante, alguns meses antes e li-a, com novo interesse.

Foi como se minha cabeça voltasse no tempo. Fiquei ali, não sei por quanto tempo, com o bilhete na mão, pensando no que havia acontecido…

O gato entrou, lembrando-me que era sua hora de comer e eu fui até a cozinha, servir-lhe a ração, mas ele parou diante da tigela de água, que estava vazia. Eu tinha certeza que havia enchido a mesma, logo depois do café da manhã, mas voltei a preencher, para satisfação do bichano, que bebeu em seguida. Ele agradeceu com uma leve cabeçada e roçou o corpo nas minhas pernas. Acariciei-lhe o dorso e a cabeça, ouvindo seu ronronar satisfeito.

Resolvi almoçar fora. Vesti o casaco e saí, com intenção de ir na direção da estação de metro. Ainda não podia conduzir normalmente e, ademais, não tinha o carro. Quando cheguei ao saguão do prédio, vi que, no vidro empoeirado da porta de entrada, havia um símbolo desenhado e que eu reconheci de imediato. Procurei algum vestígio do autor daquela façanha, do lado de fora, mas não havia ninguém por perto.

‘Alguém anda de brincadeiras comigo.’

***

Estava sentado na esplanada, num pequeno restaurante à beira da praia, com os pensamentos a vaguear muito longe. Um cálice de vinho verde, branco e fresco, pela metade, descansava ao lado do prato de peixe, que eu havia terminado há pouco.

- Pensei que preferias vinho tinto…

Reconheci o tom da voz assim que ouvi as primeiras palavras. A mesma monotonia e o timbre rouco, típicos dele, denunciaram o interlocutor.

- E prefiro, mas dado ao calor e à leveza do prato, acabei decidindo pelo branco. Senta-te.

Ele sentou à minha frente e à sombra do para-sol. Vestir-se de negro, daquele jeito, não era comum na hora do almoço e nem na esplanada de um restaurante à beira da praia, mas não comentei nada. 

Seus olhos azuis pousaram sobre os meus, naquela maneira fixa e provocadora, que era característica dele e que me incomodava sobremaneira. Senti um arrepio. Ele logo percebeu e sorriu.

- Vejo que estás bem melhor…

- Em pouco tempo estarei a cem por cento… Vi o sinal que deixaste na porta.

Ele sorriu, novamente.

- Não fui eu quem deixou o sinal.

- Ai, não? E quem foi, então?

- Quando é que vais acreditar? Ainda não tiveste provas suficientes?

- Acreditar? Eu quase morri, por tua causa e por acreditar… Queres mais que isso? Olha como eu estou. Saia da minha vida de uma vez. Isso tem que acabar…

- Mesmo que eu quisesse, isso já não seria possível.

Ele esperou pela minha reação, olhando-me fixamente. Senti que a confusão transpareceu nos meus olhos, pela forma como ele franziu o cenho.

- Vamos sair daqui.

Ele levantou-se e esperou que pagasse a conta e viesse para o lado de fora, onde as calçadas estavam povoadas de gente a caminhar ao sol. Seus cabelos reluziam com a luz de início de tarde e sua cabeça parecia incendiar. A minha parecia que ia explodir…

Caminhamos por uns minutos, sem falar nada, quando um carro preto, com os vidros protegidos por películas escuras, parou ao lado da calçada e ele disse:

- Vamos!  

- Mas esse é o carro que quase me atropelou há tempos atrás!

- Mas tu estavas bem protegido. Não foste puxado para trás, na hora certa? Nós estamos sempre atentos…

- A mulher…

Ele riu e abriu a porta. Eu segui meu instinto e entrei, com ele, no carro, que partiu imediatamente dali. Sentado no banco de trás e com os olhos no motorista, eu ainda me sentia meio atordoado pelo que acabara de ouvir... e de ver...

***

sábado, 15 de abril de 2017

Stares (Part 2)


By the time I got to work the next day, I was almost too late, because it took me way too long to fall back asleep. It was Thursday, and to confirm my displeasure for the worst day of the week, I was called up for a meeting that lasted all morning long and did not allow me any time to think of anything else but the decisions I had to make during the meeting.

When I left for lunch, it was way past my normal time and I had to go to a restaurant near the office, along with some of my colleagues who attended the same meeting.

I ordered a grilled fish with rice and salad, which was better than I expected, for the meal it was. I was distracted by the informal conversation when the waiter brought a glass of red wine and placed in front of me. As I had not ordered wine to drink, because it was a normal work day, I declined the offer, but he pointed at a table on the opposite end of the large room and said:

- It's a courtesy from that client...

I looked in that direction and saw a man dressed in dark clothes lifting his glass of wine and moving his lips in what seemed to me he was saying 'cheerio'.

For some reason, I felt a pinch in my stomach and did not want to drink it, but I thought better and decided that it was more convenient to force myself and take it in spite of the apprehension I felt. My colleagues finished their meal before I did and got up, but I said it would take me a while longer, still.

When I was alone, I looked in the direction where my beneficiary had once sat, but I did not see him anymore. I got up and walked on to the cashier. The young man on duty told me that the bill was already paid, which I found it odd, once we did not usually pay each other's bills on a work day.

- The customer who paid the bill asked me to give you this...

It was only then that I realized that it had not been any of my colleagues who had paid off my small debt for that simple meal. He handed me a folded paper with a little sign scribbled in black on the outside of the message.

I unfolded the paper and looked around, but I no longer saw the man. I was intrigued as I remembered what he had told me on the phone.

I should have suspected that the offer of a glass of wine was not exactly what I should call a conversation, as he had clearly indicated, when he called me at that hour of the night at home. Since I did not go to lunch alone, he decided to postpone the conference for another occasion, which left me somewhat relieved. But having my meal paid for by a stranger, made me feel rather uncomfortable.

Anyway, I did not know if I was ready for a conversation with that character... yet...

I had no way of knowing what he wanted from me and I found that story very strange. In fact, he gave me more time to prepare for when the time came. Postponing such a meeting was the best thing one could do.

As I prepared to cross the street, I felt a strain on my arm and turned around, surprised and frightened.

A well-dressed woman in a dark grey suit and hair tied behind her head in a well-fitted bun had pulled me back, milliseconds before a black car passed at high speed, very close to the curb where we were.

- Careful! He crossed a red light!

I felt completely stupid.

- Thank you. My mind was elsewhere...

- It's not a good strategy being that distracted when you cross the street.

- True... I'll be more careful. Thank you so much.

She smiled condescendingly, crossing the pedestrian lane and disappearing among the passers-by who were walking in and out the busy sidewalk. A cold sweat ran down my body, although it was a pleasant and warm day.

'Careless fool! And to make matters worse, as if I needed it, this happens on the day of the week I hate most! Fucking odd Thursday!'

***

By mid-afternoon I was so immersed in an assignment that I did not notice the phone ringing insistently. A colleague called my attention and I picked it up immediately. The hoarse, familiar voice on the other end said:

- You must be more careful when crossing the streets. Careless people might get hurt...

- Yes. I know…

- Was the wine any good? I think it tasted a bit too fruity to match the fish.

- It was a full-bodied one, I agree. But that's how I like it. It was very good. Thanks for the offer.

- Great. You’re welcome.

Before I said anything else, I heard the line go off and I stayed there, with the phone still in my ear, as if I thought the conversation was yet not finished. It was getting bored and a little disturbed, to say the truth.

Someone called me to attend another unscheduled meeting and there I was busy for the rest of the afternoon and a little bit of the evening after the normal closing of the day, once again.

When I left the office, it was already past eight o'clock and I was visibly tired. I thought it would be a good idea buying something in a take-away on the way, instead of preparing any food, so I had less work and could eat as soon as I got home. Then I could finally rest from the long day. I could not even think very clearly. I just wanted to get home, eat something and lie down immediately afterwards.

The BBQ chicken was still hot when I started eating and the chips were crunchy and tasty. I pondered on how good it was to be simple. The cat got his small portion of chopped chicken breast and he was still happy savouring it when I finished my dinner. After having the dishes placed in the washing machine, I checked the cat’s bowl of water just to make sure I was not going to miss anything and prepared to rest.

I fell asleep in no time.

In the middle of the night, I woke up with the impression that there was someone else in the apartment. I looked around and noticed that the cat, my reference, was awake and staring out of the room. I got up and switched all the lights on, went to the kitchen, then to the living room but I did not see anyone else.

I also checked the entrance door to certify it was well locked from inside.

‘I must have dreamed of something I can’t remember... or I am starting to go somewhat deranged...

When I turned around to go back to my bedroom, I realized the living room window was open, to my complete astonishment. That was unacceptable, as I used to keep all windows shut so the cat would not go out without my knowing. I did not remember having opened it at all. I would never be that careless… or would I?

‘I have to stop this nonsense! I'm going to end up in a padded cell!’

***

The next day I was so busy that I did not have time to think about any other thing but work. Fortunately, it was the last day of the week and thus I could rest for the next two days. I was looking forward to it.

I got home so tired that even the cat was surprised he did not get enough attention, but he lay down beside me on the couch and fell asleep with me, as if he understood that I needed his support too.

The phone rang just a few minutes before midnight.

The same hoarse voice, quiet and monotonous, showed an affinity that he did not really possess.

- You should not sleep on the couch. You will get up with a sore back and neck.

- And how do you know I'm on the couch?

- You're still not convinced, are you? What do you believe, anyway?

- I'm a man with a totally rational mind. I do not believe in anything I cannot prove scientifically.

- There are many baffling mysteries in this world. You should be more open to the experiences you cannot support with your logic. Who guarantees that there are no other dimensions beyond this one?

- Other dimensions? You must be kidding me...

The man did not argue. I could hear his heavy breathing on the other side of the line. I did not know what was coming next. To my surprise, before I said anything else, he hung up.

‘What does he want from me? Other dimensions? What the hell was that? I only know three dimensions... and sometimes I’m not even sure of those!

***
- You must be open to perception. It is not enough to believe. You must accept it.

- But this can only be an illusion... I cannot believe it!

- Open your mind. There is nothing impossible, as you can well see.

I shut up. I was being preposterous. If that was not enough to believe, then what would it be?

He showed me the way, letting me go though and then began to walk beside me. I did not even know what to think. There was nothing minimally appropriate to say. When looking around, it all seemed to be like a souvenir shop, with many galleries opening, like the sewer tunnels underneath the city... with the exception we were not under the city and the galleries were not empty or dark. The various entrances and exits led to many strategic points, as if they were access portals to that place. They changed places, constantly, as if designed to prevent them from being detected, which made a certain sense.

- This side serves as a balance to the other, but now it's totally chaotic, because of the mercilessness that are continuously happening on that side. Things have gotten out of control and the balance is getting harder and harder to reach.

- And why am I here?

The man stopped and looked at me with a strange face, as if he could not believe my naivety.

- Someone on this side has sent me to show you what's going on and ask for your help.
- Help? Who could need my help?

He just looked over my shoulder.

- Me.

I turned around quickly to see who had spoken. My legs shook and I almost choked. I tried to sound normal, but my voice betrayed me completely.


- I should have known better...