terça-feira, 18 de agosto de 2015

Homens do Mar (Parte 3)


Deitado, em silêncio, no sofá da sala e a olhar, fixamente, para um ponto inexistente no teto, o rapaz tentava organizar os pensamentos, depois de tudo o que já vira, ouvira e, obviamente, lera. Apesar da quietude da noite, sua cabeça estava a trabalhar ruidosamente, como os dentes de engrenagens secas e enferrujadas, a ranger uns contra os outros, num campo fértil em ideias conflituantes. Era bastante tarde, mas ele não conseguia dormir, por mais que tentasse.
Segundo constava no relatório da Polícia, uma testemunha vira-o ser assaltado, espancado e jogado dentro de um carro, que arrancou em alta velocidade, a muitas centenas de quilômetros dali. O que acontecera depois era, ainda, uma incógnita.
Ele tentava lembrar de algo, mas aquele relatório e aquela informação, nele contida, não batia muito dentro de sua mente, fazendo com que tudo parecesse muito surreal, para ser verdade. Apesar de estar com o pensamento assim, tão inquieto e de tentar resgatar qualquer coisa que pudesse, de sua memória de longo prazo, entretanto, tudo o que ele conseguia era imaginar alternativas… possibilidades, apenas… do que acontecera, mas sem quaisquer fundamentos. O fino e frágil fio da memória havia-se rompido em algum ponto e, inexplicavelmente, ele não conseguia encontrar as partes, para juntá-las novamente.
Na verdade, ele nem sabia quem era. Podia ser tanta coisa… tanto boa, quanto má. Podia ter sido uma vítima ou ter tido muito azar. Podia ter entrado em confronto com alguém mais forte que ele. Podia ter sido, realmente, atacado por assaltantes. Podia não ser nada daquilo, por mais bizarro que pudesse ser…
O cansaço e o esforço infrutífero fizeram-no, finalmente, adormecer e sonhar…
***
No único quarto da pequena e modesta habitação, construída à beira da praia, o pescador rolava de um lado para o outro em sua simples e antiga cama de madeira escura e resistente, sem conseguir pregar sono. Sua mente também estava perturbada, especialmente depois da conversa mais informal, que tiveram com o doutor. A investigação continuava, baseada no relatório emitido pela Polícia, mas ele tinha um pressentimento de que algo não estava certo. Como padrão, não costumava confiar na sua intuição, mas daquela vez, sentia algo muito forte e não podia deixar de ouvir aquela voz na sua cabeça, a dizer para vasculhar os factos mais a fundo e não confiar piamente em tudo que lera.
Claro que um testemunho era melhor que nada, mas ele preferia contar com o que seu hóspede conseguisse lembrar, em seu próprio tempo, para certificar-se que não estavam enganados. Aquela situação estava cada vez mais angustiante.
Ele havia desenvolvido uma grande afeição pelo rapaz e, descobrir a verdade, bem como recobrar sua memória, de uma vez por todas, tornaram-se suas prioridades. Ele sentia que o mais provável que acontecesse, assim que estivesse recuperado, era que o outro voltasse a viver sua própria vida e deixasse a ilha, talvez para sempre e, aquela quase certeza, também, o afligia. 
Mas, ele tinha que pensar com a razão e não com o coração. Por mais tolo que pudesse parecer, porém, avaliar com o coração era exatamente o que ele vinha fazendo, ultimamente, cada vez que ficava sozinho, com seus próprios pensamentos. De esquivo pescador com, somente, a quase impercetível companhia de seu velho e silencioso amigo felino, ele agora tinha um bem-vindo parceiro, tanto para conversar, quanto para ajudá-lo no trabalho e aquilo parecia divertir a ambos. Embora gostasse da assistência do rapaz, não podia ser egoísta e pensar no que ele gostava ou queria para si, somente. Sentia que ia perder seu camarada, mais cedo ou mais tarde, assim que as coisas voltassem ao seu normal. Mas não podia deixar de desejar que mantivessem a amizade, pelo menos por algum tempo.
Como tudo na vida, a distância iria, invariavelmente, arrefecer aquela relação e os afastar, aos poucos, até que seus contactos desaparecessem de vez. Admitia que iria sentir muita falta do rapaz. Aquele devia ter sua vida e, talvez, uma namorada, uma família e possivelmente, até, um cão ou dois.
Ele, por sua vez, tinha somente seu casebre, seu gato e seu velho barco de pesca... e, absolutamente, nenhuma outra vida para a qual pudesse voltar. Decidira seu destino e tinha que viver com aquilo. Aprendera a viver com muito pouco e de mais não necessitava. Vivia apenas um dia após o outro, sem pensar em um futuro muito longínquo.
Se aquela vidinha era-lhe suficiente, ele já não tinha mais tanta certeza. Sabia somente que, até conhecer o inquilino, que dormia profundamente no sofá da sala, ele havia abdicado de muitas ambições e que não almejava muito mais que aquilo que presentemente possuía.
Agora queria saber mais do outro, vê-lo vencer na vida, testemunhar seu sucesso e, talvez, conhecer sua namorada, vê-lo casar e ter filhos de cabelos rebeldes como do pai. Talvez até pudesse participar de alguma atividade com eles, como um caro e bem-vindo amigo…
Que bobagem! Ele era apenas um velho casca grossa e sem nenhuma relação com o rapaz. Não adiantava iludir-se e achar que poderia ter, no futuro, alguma parte na vida dele.
Havia mudado tanto assim naqueles últimos dias? Um incidente daqueles não devia mexer tanto com sua rotina e sua vida. Era melhor enfrentar a dura realidade: ele iria, em breve, voltar a ser aquele homem solitário, carrancudo e distante, com tão poucas expectativas em relação ao seu próprio futuro.
O homem escarneceu de si mesmo. Estava ficando velho e piegas. Aquele coração ressecado e endurecido não deveria ter-se deixado amolecer tanto, em tão poucas semanas Esteve tão acostumado com sua velha amiga solidão, que esquecera os prazeres de uma boa companhia. Agora, sentia - ou melhor, ressentia – ter que voltar a ficar sozinho, quando a presença do outro, embora tão recente em sua rotina, trouxera mais cor à sua própria existência…
Sentiu-se triste, de repente. Estava cansado de pensar. Na verdade, estava cansado de muita coisa… Fechou os olhos, que começavam a ficar, por aquilo que considerava uma tola razão, tão húmidos quanto as delicadas pétalas das flores, que amanhecem róscidas de orvalho, nas manhãs de outono. Adormeceu… e logo começou a sonhar…
***
- A água está tão boa… Vem ter comigo. 
- Tu és louco! Está frio!
- Não está nada frio. Está bom… Vem.
 O rapaz nadava, tranquilamente, à volta do barco, divertindo-se a desafiar a namorada a mergulhar e nadar com ele, naquele imenso e quieto oceano. Embora o sol estivesse alto, sabia que a temperatura da água estava fresca demais para ela. Para ele, entretanto, estava perfeita. Ela não caiu na conversa dele. Apenas acenou-lhe, jogou-lhe um colchão insuflável e os óculos de sol e deitou-se sobre uma toalha, no convés, a tomar sol. Ele aproveitou e deitou-se no colchão, que flutuava serenamente, entre a intensidade do azul quase cobalto do céu e do verde-esmeralda do oceano, deixando-se levar pelo agradável balanço das ondas e com o pensamento a vagar muito longe dali. Sentiu um peso nas pálpebras e fechou os olhos, adormecendo logo em seguida.
De repente, aquele balanço confortável de seu sono pareceu mudar para um estado mais agitado e violento. O rapaz virou-se, involuntariamente, perdeu o equilíbrio e caiu ao mar. O choque com a água fez com que acordasse totalmente e em estado de confusão total. Ele sentiu que afundava na água fria e salgada do oceano e que seu fôlego fugia-lhe rapidamente. Tentou bater os braços e nadar, mas o movimento das ondas era muito violento. Ele engolia água e sentia-se enfraquecer. Uma dor na parte de trás da cabeça causava-lhe desconforto e ao passar os dedos, viu que estava a sangrar. Ele tentou manter-se na superfície, mas o esforço era muito grande. Sabia que se ficasse com o rosto na água, ia afogar-se, por isso tentou ficar de costas. A água fria ajudaria a aliviar a dor na cabeça. Ele fechou os olhos e deixou-se levar por uns minutos, esforçando-se por boiar, mas as ondas eram cruéis. Uma delas passou por cima dele e, engolindo água, sentiu-se afundar. Ele debateu-se, mas parecia em vão. Seus pulmões estavam inundados, seu corpo cansado e ele sentiu que as forças faltavam-lhe. Aceitou, finalmente, seu destino e deixou-se submergir, lentamente…
Pensou, enquanto afundava, que era muito jovem para morrer… O ar faltou-lhe de vez. Era a morte a envolver-lhe, num frio abraço, com mais afeição que ele esperava. O rapaz ainda pensou, antes de deixar-se desfalecer, que a ideia que tinha de morte era de uma agonia muito maior que aquela…
Um clarão acendeu-se por cima dele, num repente, fazendo-o crer que a lenda popular de que havia uma luz, que todos falavam e que ele nunca acreditou, quando se passa da vida para a morte, era mesmo verdadeira. Aquela luz, tão intensa e muito forte, bateu, em cheio, sobre seus olhos. Naquele momento, ele sentiu uma paz enorme e confortavelmente morna...
Abriu os olhos e viu, entre os raios de sol que entravam pela janela da sala, a familiar silhueta do gato malhado, sentado tranquilamente sobre o descanso da esquadria de madeira pintada de um já-fora-verde-musgo-algum-dia e que agora estava muito desbotada. O animalzinho olhava para fora, aproveitando o sol da manhã, que começava a elevar-se horizonte acima, num azul muito limpo e intenso, como somente o céu de inverno podia ser. Aquele ia ser um dia bonito, afinal… e, também, bastante frio.
O rapaz percebeu que havia tido, apenas, um sonho bastante vívido e pormenorizado, afinal. Sorriu, levantou-se, vestiu-se rapidamente e foi para a cozinha, seguido pelo gato, que esfregava-se em suas pernas, quase fazendo-o perder o equilíbrio, na sua faina de ganhar algum afago ou comida.
***
O homem levantou-se, como de costume e ao passar pela sala, não viu o rapaz deitado no sofá. Estranhou que a porta da varanda estivesse destrancada. Intrigado, vestiu um casaco e saiu. O rapaz estava a alguns metros da margem, caminhando lentamente, cada vez mais para dentro do mar. Ele ficou a observar, por uns instantes, o que acontecia. Apesar da temperatura da água, ele avançava, como se fosse alto verão. Não olhava para trás, nem hesitava. Parecia determinado a algo, que o outro não percebeu, a princípio. Prosseguiu, até onde a água batia-lhe, à altura do peito, deu mais alguns passos e submergiu, em silêncio.
Uma má sensação percorreu a espinha do pescador. O instinto gritou-lhe, mais alto que a razão, dentro de si. Ele livrou-se do casaco, tirou a camisa e os calçados e atirou-se ao mar. A adrenalina, que corria-lhe intensamente pelo corpo, não permitia que sentisse o frio a enrijecer-lhe os músculos. Sem conseguir avistar o rapaz, mergulhou, à procura do corpo, nas águas geladas do oceano. Viu uma sombra à frente, parecendo ser o corpo a afundar e nadou naquela direção, emergindo para tomar fôlego e mergulhando novamente, de modo a resgatar seu protegido.
O homem não pensava; apenas agia, movido pelo desespero e pelo medo de perder o amigo, para um inimigo cujas armas desconhecia completamente. Ele aproximou-se e tentou alcançar os braços do outro, que estavam esticados para cima, já sem movimento algum. Ele fechou os dedos à volta dos pulsos do outro e puxou-o para cima, com energia, para que emergisse, facilitando o resgate e permitindo-lhe, também, encher os pulmões de ar. Ainda deu um impulso no corpo, enquanto via-o subir, antes de alcançar a superfície da água.
Ao emergir, passou o braço à volta do peito do rapaz, que estava inconsciente, mantendo a boca e o nariz acima da linha da água. Ele aprumou-se e começou a nadar, arrastando-o para a praia, quase sem dificuldade e deitando-o, de costas, na areia, iniciando a massagem cardíaca, logo em seguida, na tentativa desesperada de trazê-lo de volta à vida.
- Por que fizeste isso? Onde é que estavas com a cabeça?
O homem não compreendia a atitude descabeçada do rapaz... E agora não conseguia fazê-lo respirar e despertar do estado inconsciente. Segurou-lhe o nariz, abriu-lhe a boca e soprou ar para dentro, voltando a massajar o peito do rapaz.
- Vamos lá! Vamos lá! Acorda, por favor!
Repetiu o procedimento, desta vez, soprando com mais força. Ao apertar-lhe o peito, com as duas mãos, percebeu uma espécie de convulsão e o rapaz tossiu, expelindo a água que havia engolido. O homem sacudiu-o e viu que ele abriu os olhos, confuso, como se não soubesse o que acabara de acontecer.
O pescador levantou-o, abraçando-o e, sem dizer nada, simplesmente chorou, sentindo um misto de alívio e alegria.  Um pouco abaixo da linha do peito, uma estranha pontada de dor sinalizou que algo estava errado.
Fechou os olhos e afrouxou o abraço, sentindo-se cair, numa espécie de desmaio. O esforço que fizera, até aquele momento, talvez houvesse sido demasiado para ele. A pontada ficou mais perfurante e pareceu mover-se com uma pressão a subir-lhe o peito.
Uma sensação fria na ponta do nariz e um leve e contínuo ronco, fê-lo abrir os olhos e deparar com o gato a mirar-lhe nos olhos e pressionar-lhe uma unha na altura do peito. Deu uma risada e levantou-se, percebendo que havia tido um sonho absolutamente invulgar.
***
 - Tive um sonho muito estranho e detalhado.
- Por isso estás levantado tão cedo?
- Já não é tão cedo assim. É quase hora de sairmos para o mar. Já preparei o café…
- Também tive um sonho pouco comum. Acho que ficamos impressionados pelo relatório que o médico nos trouxe…
- Provavelmente…
- Queres falar sobre isso?
- Não. Não, ainda…
***
Quando voltaram da lida matutina, numa ensolarada quinta-feira, algumas semanas depois, notaram um movimento diferente na rotina do cais. Havia um burburinho maior que nos dias normais. A matrona vinha pelo madeirame, com seus passos pesados e sua face rosada, castigada pelo sol e vento do inverno. Ao aproximar-se dos dois, disse-lhes, meio ofegante:
- Ainda bem que chegaram. O doutor quer vê-los imediatamente.
- Aconteceu alguma coisa?
- O doutor disse para trazê-los com urgência. Não me perguntem mais do que eu sei…
Mas eles já a conheciam e perceberam que ela evitava olhar-lhes diretamente. Escondia algo, com certeza, mas havia sido instruída para não dizer-lhes nada, além do necessário. Os dois homens trocaram olhares preocupados e apressaram o passo, atrás da esbaforida mulher, na direção do consultório, no pequeno Posto de Saúde da ilhota.
Quando chegaram, foram recebidos pelo médico, que estava acompanhado de um desconhecido, vestido de maneira muito formal para a rotina insular. O visitante cumprimentou-os com um firme aperto de mãos e, concentrando sua atenção no rapaz, perguntou-lhe:
- Sabes quem eu sou?
- Não. Não sei. Deveria?
O homem sorriu, de uma maneira estranha. O rapaz e o pescador tentaram esconder a preocupação que passou-lhes pelas faces, quando entreolharam-se.
O estranho limpou a garganta, com um típico ‘hahn-hahn’ e começou a falar…

 ***

sábado, 25 de julho de 2015

Of Sea and Men (Part 2)


- Are you feeling well? Do you have any sign of pain?

The frown and the blank stare showed evidence that the boy was quite confused and making a huge effort to realize what was happening in the small hospital room, surrounded by people dressed in white, who were absolute strangers to him.

There was also a more mature man, wearing normal clothes, watching the whole scene, with very sharp attentive eyes, but without uttering any word. He had a somewhat friendly face, auburn beard and light brown hair thinned at the top of the head. For some reason he could not explain, he felt an immediate sympathy for the man leaning against the immaculately white wall of the hospital room.

The doctor had tested all his vital signs, auscultated his body and was now examining him with a small flashlight. They had already made all possible tests, including X-rays and ultrasound, to check how healthy his organs were. Physically, the young man was in good shape. They still needed to ascertain whether the head injury brought any side effects to his mental or cognitive response… or both…

- Can you understand what I say? Are you able to remember your name, where you come from, who you are... anything at all?

The boy showed no change in that faraway look, just a quick, almost unnoticeable eyebrow frown. He was probably trying hard to adjust the brain work and understand the message expressed by the words of the doctor, who had just examined him completely and insisted on knowing anything about him.

- Can you understand what I say?

- I understand the words, but it's all so confusing...

The pressure that was being placed on him, with those questions, did not seem to help much. It was better to leave the boy alone for some time. He needed some rest. The doctor called the older man out of the room with a nod.

***

- You were found by me on the beach, unconscious, completely naked and with a rather dreadful wound on the back of your head. We were expecting that the memory would be affected by a concussion. Can you understand what I mean?

The boy nodded.

- As much as I try, I cannot recall anything. My mind is just completely blank...

The ferry cruised toward the island, bringing those two men so different from each other, sitting side by side, each one with his own history. In each head, a different intention in relation to their complex pasts: one trying to rescue what had been forgotten and the other trying to forget what had never failed to be painfully reminded...

***

The fisherman felt he had some responsibility for the boy, for having found him and, in agreement with the hospital administration, decided to bring him back to the island to try and help him recover the lost memory.

They walked along the beach, heading for the place where he was found by the fisherman, after the stormy night. The boy slowed his pace down and looked at the man, as if he knew him well and said:

- Why do you hide yourself in this island, far from everything and everyone and with this profession that is not yours?

- How do you know that?

- I do not know how to explain. I just feel it. And I also feel that there is much more to say, but you keep on avoiding it...

- I do not avoid anything...

The older man smirked, avoiding the direct staring from the young man, who was walking beside him. He thought to himself that he did not have to give any satisfaction to him, but a strange feeling that he could trust the other man and open his heart up, crossed his mind flippantly.

Messing with the past, after all that time, did not seem to be a good thing anyway. Some skeletons ought to be kept in the cupboard forever. Best to leave the past where it well belonged in: far away in the most possible distant and untouched bygone times...

The boy carefully looked back at the man and smiled, more to himself than to be noticed, at that response, triggered, almost impatiently and without any eye contact.

- I have to respect you, not only for what you are doing to me, but for wanting to keep your secrets away from everyone. If that's what you prefer, there is nothing I can say or do. I hope you know what you're doing.

- I do know what I’m doing. Trust me... This is the place. It was here where I found you, almost dead. Do you want to be alone?

The boy looked around. Although he acknowledged the place was quiet and its natural beauty was almost untouched and wild, bringing him a sense of serenity, it did not evoke any true recollection in his mind.

- I don’t know. This place does not mean anything to me. The fact that I was found here, does not imply that the accident... or incident… took place around here, anyway.

He was right. So much could have happened: an accident, an assault, an unfortunate coincidence... The site might not have anything to do with what really happened to him.

The man looked at the boy. He did not seem to be worried about finding out where he came from or where he would go, who he had been or what he might come to find out, when he recovered his memory. Apparently, the only thing that mattered to him was being alive. He did not need to carry the unnecessary burden of a past to remember. That seemed to be enough for a man who knew so little about himself that far.

What a strange feeling! He made a quick trip inside himself and wondered how different they were. Not having a past to remember seemed to be so much easier to live with than struggling to conceal or bury one...

They were both standing side by side, looking at the horizon, each man absorbed in his own thoughts... so close and yet so far at the same time. The boy closed his eyes and felt the wind messing with his fair hair, touching his pale skin, bringing the pleasant aromas of the ocean and the seaweed and filling him with a gust of life.

Life. That was an unusually strong and weak concept at the same time. It was a reality or an illusion that we always carry along with us? How unpredictable can it be? How unreasonable it is to remain physically healthy and mentally sane? Why did those thoughts fill his mind like the air filled his chest? Why did he feel good, knowing there was nothing dearly to him in that place? Why there were so many questions and no answers at all?

He sighed, breathing the ocean air in. That place had become his all: his present and his future... and perhaps his only refuge, until now...

- Let's go back, shall we? I'm hungry. I will prepare something to eat. If you want to be left alone here for a while, it's up to you...

- I'd like just to stay here just a little longer, if it is not a problem... I enjoy this peace and this sense of silence in my soul.

- No problem, of course. Stay as long as you wish. I’ll be home anyway.

***

The older man stood up and collected the plates from the table. They had dined without exchanging many words. Although they appreciated each other's company, they did not extend the conversation long, as the issues would tend to turn around a very limited sphere of subjects which were avoided by both.

The boy picked the rest of the crockery and cutlery up and put them carefully in the sink. He turned around, walked out to the veranda and leant on the deck rail, looking at the empty darkness and listening, not far away, the soft, monotonous song of the sea. The air was cold, but he did not care much. He liked the mild fresh air of the autumn and the typical sounds of the night on the island.

The other man was watching, from inside the house, that man so much younger than him, with so much life still ahead and no memory to relive at all. At least, he thought, he had no reason to feel any nostalgia...

How many plans might have been made at some point in his short life, and were abandoned without any completion? How many possibilities would also be opened for him in the future? Probably many of them would be regarded as if they had never been planned, although they had been... A page... or many, yet all blank and with so much still to be written by the hands of fate. It was as if the previous pages had been torn apart from that precious book, leaving it almost like new and ready to be used as if it were the first time. All he had to do was to start from that point on and rewrite many interesting new stories...

The fisherman thought of himself and how he wished he could have a chance, too, to rewrite his own life story. He sadly laughed at himself, thinking that there, in the same house, there were two human beings so different from each other and with such opposite intentions in relation to their pasts. Funny thing, however, they had yet so much future ahead of them.

He walked into the porch with a mug of hot coffee in his hands and offered the other man, who accepted it, smiling. He leaned on the railing next to the boy. They were both looking at the immense open darkness around them, with their thoughts flying free with the night wind and listening to the monotonous lapping of the ocean continuously caressing the island coastline.

- You already paid for your mistakes. You could have already forgiven yourself and moved on with your life.

- How do you know if I’ve already paid? How can you tell me to get on with my life? Am I not living another life already?

- It's not what your eyes show... They always have such a great aloofness and this sadness is so touching...

The man closed himself in his shell. He did not want to relive the anguish and the sense of guilt he once felt. Yes, he had already paid that painful punishment.

A surgical procedure, where the patient had not survived the intervention, was a severe enough reason to stay live in his memory for long. Yes, he had operated drunk, but what choice did he have? Anyway, he had been tried and convicted. The verdict was manslaughter and he was incarcerated for three years for the crime, without any right for bail, due to his act of negligence. He had duly paid his guilt in its entirety, despite the reduction attempts, made by an expensive lawyer known by his expertise. The process culminated with the loss of the license and the right to exercise the medical profession, definitely.

Between the feelings of remorse and indignation, he had buried everything inside his heart and restarted, on that island, away from everyone he had known one day and that had abandoned him completely, while he was imprisoned. There, in the island, he was a total stranger and his past did not matter to anyone. What he liked in the community, was that he could have his own private life and no one seemed interested in knowing more than what he wanted to show. He had no interest in knowing about the lives of others either. He had no time or curiosity about their histories anyway.

But towards the young man with no past, he felt a genuine interest. Somewhere inside his soul and for a reason he did not really care about, he felt he should help him out of that situation. In his heart, he felt responsible for that boy, at least until he recovered his memory and moved on with his own life.

***

 The doctor came, as usual, on a pale cold Thursday and called them to his office. He examined the boy and asked how he was feeling. Then he asked him to sit down. By the way he started the conversation, he seemed set to make a serious statement. He picked up a brown envelope from inside his briefcase, cleared his throat out and said:

- I just received this Police Report. I believe you will find it pretty interesting...

He handed the envelope in to the boy and waited for his reaction. He opened it, read the report and handed it in to the fisherman, so he could read it too. The doctor acknowledged that was a clear demonstration of trust. The older man flipped through the few pages and returned the report to its rightful owner.

- It does make sense. Do you think that helps?

- I don’t know yet. For now, there is nothing much I can say. It seems my memory is not instantly restored simply by reading the report, after all. It does not work that way, no matter how hard I try to do so.

The doctor finished a complete check-up and dismissed himself from work, since there was no one else to be seen that day. He invited the two men to go along with him to the Coffee Shop and chat a little more relaxed.


The doctor knew that the heads of the two... and his also... were working briskly. The coffee was just a subtle excuse to discuss what they had just read and, besides that, he still had some time before going back to the mainland that night…

***

sábado, 18 de julho de 2015

Homens do Mar (Parte 2)


- Estás bem? Sentes alguma dor?
O cenho franzido e o olhar vazio mostravam evidências que o rapaz estava bastante confuso e fazendo um enorme esforço para perceber o que se passava, naquele momento, no pequeno quarto de hospital, rodeado por pessoas, vestidas de branco e que ele desconhecia totalmente.
Havia, também, um homem mais maduro, vestido com roupas mais normais, a observar a cena toda, com olhos muito atentos, mas sem proferir nenhuma palavra. Tinha o rosto arredondado e amigável, barba castanho-avermelhada e os cabelos castanho-claros rareavam no topo da cabeça. Por alguma razão, que ele não conseguia explicar, sentiu uma simpatia imediata por aquele homem encostado contra a parede imaculadamente branca do quarto de hospital.
O médico acabara de testar todos os seus sinais vitais, auscultara-o e, agora, examinava-o com uma pequena lanterna. Já haviam feito todos os possíveis exames, incluindo raios X e ultrassons, para verificar a saúde dos órgãos. Fisicamente, o jovem estava bem. Restava-lhes saber se a batida na cabeça trouxera algum efeito colateral à sua capacidade mental e resposta cognitiva.
- Consegues compreender o que eu digo? Lembras de alguma coisa? Qualquer coisa: teu nome, de onde vens, quem tu és…
O rapaz não exibia qualquer alteração naquela expressão distante. Talvez estivesse, mesmo, fazendo uma tentativa descomunal para ajustar o cérebro e compreender a mensagem, expressa pelas palavras do médico, que acabara de examiná-lo, completamente e que insistia em saber qualquer coisa a seu respeito.
- Compreendes o que eu digo?
- Eu percebo as palavras, mas é tudo tão confuso…
A pressão, que era colocada nele, com aquelas perguntas, não parecia ajudar. Era melhor deixar o rapaz descansar um pouco. O médico chamou o homem mais velho para fora do quarto, com um sinal de cabeça.
***
- Foste encontrado por mim, na praia. Estavas completamente nu e com um ferimento bastante feio na cabeça. Já esperávamos que a memória fosse afetada por uma concussão. Consegues compreender bem o que eu digo?
O rapaz acenou que sim, com a cabeça.
- Por mais que eu tente, não consigo trazer nada à memória. A minha mente é só um branco completo...
O ferry seguia, em direção à ilha, em sua velocidade de cruzeiro, trazendo, junto consigo, aqueles dois homens tão diferentes, sentados lado a lado, cada qual com sua própria história e com seus complexos passados. Em cada cabeça, uma intenção diferente: tentar resgatar o que estava esquecido e tentar esquecer o que nunca deixava de ser relembrado…
***
O pescador havia sentido que tinha certa responsabilidade sobre o rapaz, por havê-lo encontrado e, em comum acordo com a administração do hospital, decidira trazê-lo consigo à ilha, para tentar ajudá-lo a recuperar a memória perdida.
Caminhavam pela praia, indo na direção do local onde fora encontrado, pelo pescador, depois da noite de tempestade. O rapaz diminuiu o passo e olhou para o homem, como se o conhecesse bem e disse:
- Por que te escondes nesta ilha, longe de tudo e de todos e nesta profissão que não é a tua?
- E como sabes disso?
- Não sei explicar. Apenas sinto. E também sinto que há muito mais a dizer, mas evitas…
- Não evito nada…
O homem mais velho franziu o cenho e evitou olhar diretamente para o jovem, que caminhava ao seu lado. Pensou consigo mesmo que não tinha que dar nenhuma satisfação ao outro, mas uma sensação estranha de que podia confiar no rapaz e abrir-se, passou por sua mente.
Mexer com o passado, depois de tanto tempo, não parecia-lhe uma boa coisa, entretanto. Alguns cadáveres não precisavam ser exumados. Melhor deixar seu passado onde ele ficava melhor: lá atrás e bem longe, nos tempos mais pretéritos possíveis. Quanto mais distante e intocado, melhor…
O rapaz voltou a olhar o homem, com atenção e sorriu, mais para si do que para ser percebido, ante aquela resposta, disparada, quase impacientemente e sem contato visual.
- Eu tenho que respeitar-te, não somente pelo que fazes por mim, mas por quereres manter teus segredos bem guardados. Se é assim que preferes, não há o que se possa dizer. Espero que saibas o que fazes.
- E sei… É este o lugar. Foi aqui que te encontrei. Queres ficar sozinho?
O rapaz olhou à volta. Embora constatasse que o lugar era calmo e de uma beleza natural praticamente intocada e quase selvagem, trazendo-lhe uma sensação de tranquilidade, não evocava-lhe nenhuma lembrança.
- Não sei. Este lugar não me diz nada. O facto de haver sido encontrado aqui, não significa que o acidente… ou incidente… tenha ocorrido aqui por perto, de qualquer jeito.
Ele tinha razão. Tanta coisa poderia ter acontecido: um acidente, um assalto, uma infeliz coincidência... O lugar poderia não ter relação nenhuma com o que realmente havia acontecido.
O homem olhou para o rapaz. Ele não parecia preocupado em descobrir de onde viera, para onde iria, quem havia sido, ou o que poderia vir a descobrir, quando recuperasse a memória. Aparentemente, a única coisa que importava, a ele, era estar vivo. Um passado do qual lembrar, era um peso desnecessário, que ele não carregava consigo. Aquilo parecia ser suficiente para um homem que tão pouco sabia sobre si mesmo.
Que sensação estranha! Ele fez uma viagem rápida dentro de si e pensou em como eram tão diferentes. Não ter um passado parecia ser bem mais fácil que esforçar-se para esconder-se do seu...
Estavam os dois de pé, lado a lado, a olhar o horizonte, cada qual absorto em seus próprios pensamentos... Tão próximos e tão distantes, ao mesmo tempo. O rapaz fechou os olhos e sentiu o vento a mexer com seus cabelos claros, a tocar sua pálida pele, a trazer os aromas agradáveis do salitre e das algas e a encher-lhe de vida.
Vida. Que conceito estranhamente forte e frágil, ao mesmo tempo. Era uma realidade, ou uma ilusão que nós sempre carregamos? Quão imprevisível pode ser o viver? Quão despropositado é manter-se fisicamente sadio e mentalmente são? Por que aqueles pensamentos enchiam-lhe a cabeça, como o ar enchia-lhe o peito? Por que ele sentia-se bem naquele lugar, sabendo que nada ali era-lhe caro? Por que tantas perguntas e nenhuma resposta? Ele suspirou, inspirando o ar do oceano, naquele lugar que passara a ser seu tudo: seu presente e seu futuro… e, talvez, seu único refúgio, até aquele momento…
- Vamos voltar? Estou com fome. Vou preparar alguma coisa para comermos. Se quiseres ficar mais um pouco, é contigo...
- Eu gostaria de ficar só um pouco mais, se não for incômodo... Gosto desta paz e desta sensação de silêncio na alma.
- Não é problema, claro. Até já.
***
O homem mais velho levantou-se e retirou os pratos da mesa. Haviam jantado, sem trocarem muitas palavras. Apreciavam a companhia um do outro, mas eram, ambos, económicos nas conversas, já que os assuntos ainda tenderiam a girar numa esfera muito restrita de assuntos, que eram evitados, na sua maioria, pelos dois.
O rapaz recolheu o restante da louça e os talheres e pousou-os na pia, com cuidado. Virou-se, caminhou até a porta que dava para a varanda e saiu, debruçando-se sobre o pequeno parapeito, a olhar o vazio da escuridão, ouvindo, não muito longe, a cantiga suave e monótona do mar. O ar estava um tanto frio, mas ele não se importava. Gostava do frio quase ameno do outono e dos sons típicos da noite da ilha.
O outro homem ficou a observar, de dentro da casa, aquele indivíduo tão mais jovem que ele, com tanta vida ainda pela frente e nenhuma memória a reviver. Pelo menos, pensou, não havia como sentir qualquer tipo de nostalgia…
Quantos planos deveriam ter sido feitos em algum ponto de sua curta vida e, agora, estavam abandonados, sem conclusão? Quantas possibilidades ainda iriam abrir-se, para ele, no futuro? Provavelmente, muitas delas viriam a ser encaradas como se nunca houvessem sido planejadas, mesmo já havendo sido... Uma página… ou muitas, todas ainda em branco e com tanto ainda a ser escrito pelas mãos do destino. Era como se as páginas anteriores houvessem sido estranhamente arrancadas daquele livro, deixando-o como novo e pronto a ser reusado. Só restava-lhe recomeçar daquele ponto e reescrever novas histórias...
O pescador pensou em si mesmo e como gostaria de poder ter uma oportunidade, também, de reescrever sua vida. Riu de si mesmo, ao pensar que ali, na mesma casa, estavam dois seres tão opostos e com objetivos tão díspares, em relação ao passado e, mesmo assim, com tanto futuro pela frente.
Entrou na varanda com uma caneca de café quente nas mãos e ofereceu ao outro, que aceitou, sorrindo. Debruçou-se no parapeito, ao lado do rapaz. Ficaram os dois a olhar para a grande escuridão aberta à frente deles, a ouvir o monótono marulhar do oceano a acariciar a ilha, cada qual a deixar seus próprios pensamentos voarem com o vento da noite.
- Tu já pagaste pelo teu erro. Já podias ter-te perdoado e tocado a vida adiante.
- Como podes saber se já paguei? Como podes dizer-me para levar a vida adiante? Já não estou vivendo uma outra vida?
- Não é o que os teus olhos dizem... Eles tem sempre um distanciamento tão grande e uma tristeza tão tocante...
O homem fechou-se, em sua casca. Não queria reviver sua angústia e seu sentimento de culpa. Sim, ele já havia pago a sua dolorosa pena.
Uma cirurgia, em que a paciente não sobrevivera à intervenção, era motivo grave suficiente, para ficar vivo na memória, por muito tempo. Sim, ele havia operado embriagado, mas que outra opção tivera? De todas as formas, fora julgado e condenado. O veredito fora homicídio culposo, com pena de prisão por três anos. O crime foi considerado inafiançável, devido ao grau de negligência e culminara com a perda da licença e do direito de exercer a profissão de médico, definitivamente. A sentença havia sido devidamente cumprida, na sua totalidade, apesar das tentativas de redução, feitas por um advogado caro e conhecido pela sua competência.
Entre sentimentos de culpa e uma indignação muito grande, ele havia enterrado tudo e recomeçado, naquela ilha, longe de todos aqueles com os quais conviveu e que o abandonaram, completamente, enquanto cumpria a pena na penitenciária. Ali, era um completo desconhecido e seu passado não interessava a ninguém. O que ele gostava, naquela comunidade, era que podia ter sua vida e ninguém parecia interessado em saber mais que ele quisesse mostrar ou, de alguma forma, julgá-lo. Ele também não tinha interesse em saber das vidas dos outros. Não tinha tempo, nem vontade para aquilo.
Mas, ao rapaz sem passado, ele alimentava um genuíno interesse. Sentia que devia ajudar aquela criatura a encontrar-se e tocar sua vida adiante, também. Por algum motivo, ele sentia-se responsável pelo rapaz, pelo menos até que recuperasse a memória.
***
 O médico veio, como habitualmente, numa pálida quinta-feira e chamou os dois ao consultório. Examinou o rapaz, rotineiramente, perguntou como se sentia e pediu para sentar-se. Pela forma como começou a conversa, parecia que ia fazer uma declaração séria. Pegou um envelope pardo de dentro da maleta, pigarreou e disse:
- Recebemos um relatório da Polícia. Acredito que vocês vão achar interessante…
Entregou o envelope ao rapaz e esperou, para ver sua reação. O rapaz abriu, leu e entregou ao pescador, para que o lesse também. O médico reconheceu naquele ato, uma prova de confiança. O homem folheou as poucas páginas e devolveu o relatório ao seu legítimo dono.
- Faz sentido. Achas que ajuda?
- Não sei, ainda. Por enquanto, não há nada que eu possa dizer. Não é tão fácil ler isto e achar que minha memória é logo restituída. Parece que não funciona assim, afinal, por mais que me esforce para tal.
O médico terminou a consulta e dispensou a si mesmo do trabalho, já que não havia mais ninguém a ser atendido naquele dia. Convidou os dois a acompanharem-no até o Café, para conversarem um pouco mais relaxadamente. O médico sabia que as cabeças dos dois… e a dele também… estavam a trabalhar ferventemente. 

O café era, na verdade e apenas, um pretexto subtil para discutirem o que haviam acabado de ler e, além do mais, ele ainda tinha algum tempo, antes de voltar para o continente.

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