domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma noite a mais (Parte 1)



- Deve ser, pelo menos, a quinta vez que ouves esta canção.

- É, eu sei.

- O que se passa?

- Nada… que importe.

- Sei. Se precisares de alguma coisa, fala. Vou deitar-me.

- OK.

Eu não me virei. Estava com a mente ocupada demais a contemplar o imenso vazio à minha frente. Meus olhos perderam-se na escuridão, que se estendia para além da linha do horizonte, ao longo de um oceano pouco iluminado pelas luzes à beira da praia da baía.

Estava uma noite fresca e calma. Era tarde e já não havia quase nenhum movimento nas ruas. Um estranho silêncio enlaçou-me com seus braços frios, provocando um calafrio, que percorreu-me a espinha. Eu tremi, mas sabia que não era de frio.

A canção recomeçou. Eu havia ativado a função de repetição, de propósito. A voz forte e pungente da cantora penetrou-me os pensamentos, como se fosse uma estalactite de gelo, precipitada do teto rústico e sombrio de uma caverna, para dentro de uma lagoa de águas calmas, mas escuras e profundas.

Quantos mistérios e segredos podem esconder-se abaixo da quietude aparente daquela superfície praticamente intocada?

Fechei os olhos e respirei fundo, mergulhando em meus próprios pensamentos. Cada palavra da canção servia de pano de fundo para uma sequência caleidoscópica de imagens, que traziam meu passado e minhas recordações de volta ao presente, com uma nitidez cruel e carregada de emoções tão vívidas quanto aquelas memórias. 

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” …  (*)

Se aquelas palavras eram verdadeiras, eu não havia experimentado nada similar… até então…

***

Acariciei a cicatriz, como se ela fosse um animal de estimação.

Incrível como nos apegamos às marcas deixadas, tanto no corpo, quanto na alma e as acariciamos sempre que nos sentimos frágeis, como se aquilo nos fosse dar alento e abreviar a solidão ou a dor. É como afagar nossos erros, dando-lhes uma visão mais condescendente. É como trazer alento ao coração, amenizar o efeito de um pecado e conceder uma hipótese de salvação à alma do pecador.  

…”So wave goodbye to heaven for me

  I've thrown it all away

 Just to spend one more night with you”…(*)


- Ainda estás assim?

- Assim como?

- Tu sabes. Eu não sou uma criança, que tu possas enganar facilmente.

- Eu sei que não…

Minhas mãos deslizaram suavemente pelas teclas do piano, talvez, procurando, instintivamente, esquecer aqueles mesmos acordes que não me saíam da cabeça ou dos dedos, já há algumas semanas.
Eu li, uma vez, em algum lugar, que as teclas do piano representam nossos sentimentos. Enquanto as brancas denotam nossas emoções positivas, as pretas representam as negativas. A harmonia, entretanto, só é conseguida com um equilíbrio entre ambas. Não se pode fazer boa música, sem usar tanto as teclas brancas quanto as pretas, assim como não se pode viver a vida verdadeira e completamente, sem um equilíbrio entre as emoções boas e as não boas.

- Toque a música até o último acorde. É melhor exorcizar esta dor de uma vez por todas!

Olhei para ela, surpreso. A menina havia-se transformado numa jovem muito perspicaz. Então eu toquei. Não exatamente para exorcizar, mas para sentir a dor, tão vívida como se estivesse sendo experimentada, pela primeira vez, naquele momento.

Começando quase como um noturno, a acariciar, as teclas brancas e a martelar, levemente, as pretas, minha dor foi aumentando numa progressão de notas e acordes, que se misturaram à minha voz baixa e fraca, no início, porém elevando o tom, como num sentido blues, até que todos os meus nervos reagiam àquela sequência de notas e palavras. Meus olhos e minha alma transbordavam.
…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)


Eu ia ao fundo do poço, para tomar impulso e voltar à superfície. Era necessário descer ao mais fundo do fundo, para poder voltar, com as forças redobradas.
***
- Foi aqui?

- Sim.

- Vamos descer.

- Não.

- Vamos, sim. Vem comigo.

Saiu à minha frente, antes que respondesse, descendo pelo caminho ao lado do penhasco. Meu estômago doeu. Eu segui, sem dizer nada. O caminho não era seguro e eu devia estar por perto, caso acontecesse algo, embora soubesse que estava a me preocupar sem razão.    

Quando chegamos ao fundo da trilha, a praia abria-se, convidativa, embora ainda fosse primavera. O mar rugia, como se a ameaçar, embora eu nunca tivesse medo daquele bramido. Eu havia nascido na ilha. O mar sempre fora um amigo. Não tinha por que temer um amigo.  

Caminhamos pela orla, com os pés na água fria do oceano, em silêncio, por uns momentos. Um grupo de ruidosas gaivotas voavam por sobre nossas cabeças e o vento fustigava nossos rostos.

- Foi um acidente, não foi?

- Foi. Um infeliz acidente.

- Vocês se amavam muito, não?

Eu não pensei.

- Nós éramos grandes amigos. Desde o tempo em que estudávamos juntos.

- Isso não é uma resposta.

- Não. Não é.

Olhou-me com aquele ar de quem quer saber a verdade, quando já não há verdades a saber.

- Então por que vocês decidiram que deviam ter um filho?

- Porque era a vontade dela. Era melhor termos um filho, juntos, sabendo do respeito que tínhamos um pelo outro e sabendo que era melhor isso, que esperar por um sentimento que não existia. Ela era uma mulher prática.

- Vocês nunca se arrependeram da decisão?

- Claro que não. Por que razão haveríamos de nos arrepender?

- Sei lá. Não havia amor…

- Havia um respeito e um carinho muito grande. Ela tinha medo de envelhecer, antes de poder ser mãe… coisas de mulheres!

- Haha! Até parece…

Eu ri. Um riso pálido, quase sem graça. Sabia que ia ter que contar a história toda, pela milionésima vez.

- Achas que vocês foram felizes?

- Talvez. Antes de…

- É estranho…

- O que?

- Aquela vossa relação. A doença. O acidente.

- Não é estranho. O acidente foi uma consequência da doença.

- Mas tu também podias ter morrido.

- Acho que não. Eu só tive uma queda feia, quando tentei ajudar. Falta de jeito, mesmo…

- A cicatriz é grande.

- A dor é maior!

Calou-se. O mar parecia explodir contra as rochas. Caminhou uns segundos, em silêncio, e virou-se. Franziu os olhos, como se estivesse tentando ver algo, atrás de mim, à distância. Pareceu-me que uma nuvem negra se passou pela sua face jovem.

- Pai?

- Que foi?

- É ele, lá em cima do penhasco?

- Hã? O que ele faz aqui?

***

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins


***



sábado, 9 de fevereiro de 2019

Provérbio Italiano (Italian Proverb)


Se não há vento, reme! (If there's no wind, row!)

domingo, 3 de fevereiro de 2019

domingo, 27 de janeiro de 2019

sábado, 19 de janeiro de 2019

Obliviar (Epílogo: A Vacina)



- Vai ser necessário recomeçar do zero. Todas as amostras estão contaminadas. Não vale a pena continuar a trabalhar com elas.

- Mas eu não tenho o ADN original para recomeçar. É tarde demais.

- Não é, não!

O doutor e o chefe dos cientistas olharam para o rapaz, mas foi Leona quem percebeu, primeiro, o que ele queria dizer.

- O que estás a dizer? Tu tens o material contigo?

- Eu havia dito que vim para ajudar e tentar salvar o que ainda pode ser salvo, mas estamos lutando contra o tempo.

As pupas estavam quase prontas para darem vida às novas borboletas. Um dos casulos coloridos iria eclodir em pouco tempo e, então, uma amostra dos fluidos que corresse no corpo frágil do insecto, teria que ser recolhida imediatamente e usada para iniciar a produção da vacina.

O doutor e o chefe dos cientistas teriam uma luta contra o tempo e a morte, sendo ambos fortíssimos adversários. Aquela ia ser uma operação arriscada, para ser realizada em um curto espaço de tempo, ou seria muito tarde para salvar aquele pobre ser, que estava a passar por uma mutação muito estranha.

- O que nós podemos fazer?

- É importante obter a amostra quando o fluido começar a correr pelas asas e pelo corpo da nova borboleta, um pouco antes de estar forte suficiente para voar sozinha. São poucos minutos e será quando o ADN estará mais efectivo.

- Foi o que me disseram… por isso eu trouxe as pupas em fases diferentes de maturidade.

- Quanto tempo teremos que esperar?

- Na verdade, muito pouco.

- Vejam! Está eclodindo. Devagar, agora, minha querida…

- Não é melhor ajudar? Ela está sofrendo.

- Nunca! O esforço que ela está a fazer é a parte mais importante do nascimento. Se nós a ajudarmos, ela nunca voará, pois precisa daquele fluido distribuído, convenientemente, pelo corpo todo, através da energia que está a usar. Paciência é o que precisamos, agora e, também, muito cuidado, para colectar o líquido no momento certo.

- Preciso de ajuda, agora. Dê-me uma mão, por favor!

O chefe do laboratório tomou uma seringa, com uma agulha finíssima e preparou-se. O doutor sorriu. O tempo parecia estar do lado deles…

***

- Ainda bem que conseguimos produzir uma nova vacina, que funciona de verdade. Tive medo que nunca conseguíssemos.

Leona estava séria e preocupada. O jovem, de pé ao seu lado, estava pensativo e sentindo-se completamente alheio a aquele drama particular.

- Mas perdemos uma batalha. Alguns dos clones mais afectados pela anomalia não sobreviveram, para serem beneficiados pela vacina.

- É verdade, mas pelo menos salvamos aquele. As hipóteses eram menores, mas não era impossível que fosse recuperado de todo. Ainda bem que era um espécime mais forte.

- Nós podemos produzir mais clones, agora que sabemos que funciona. Temos os meios para fazer os melhores espécimes que já existiram.

- Desta vez vamos escolher o melhor dos melhores e aproveitar uma amostra de seu sangue para produzir seres muito mais perfeitos.

- E ele vai ser a nossa cobaia… um protótipo… para uma nova geração!

Os dois cientistas estavam superexcitados. A morte dos clones havia sido apenas um efeito secundário, em favor da ciência. Eles não paravam de falar, ininterruptamente, como se fossem duas crianças inquietadas com um brinquedo novo.

A mulher olhou para o jovem, parado, em silêncio, atrás deles. Ela sabia que sua viagem, através do tempo e espaço, tinha um propósito muito específico e o preço ainda estava por ser pago. Seus olhos fixaram-se nos dela. Era hora de saldar a dívida.

- É melhor irmos, agora. Venha comigo.

Ele a seguiu pelos corredores da Estação Estelar, até onde a antigo terminal de transporte, que não era usado há muito tempo, estava localizado.

- Terás que prometer não interferir em nada. Tua presença não pode ser detectada, de maneira nenhuma e por ninguém. As consequências serão desastrosas, se não seguires as instruções. É isto ou nada.

- Ok. Não te preocupes.

- Tens certeza que é isto mesmo que tu queres? Estarás confinado…

- Tenho sim. Foi por esta razão que eu vim. Vamos logo com isso. Temos muito pouco tempo.

- Lembra-te: só terás uma hora. Depois disso, serás trazido de volta ao lugar e tempo de onde vieste.

- O quê?

- Tu não poderás voltar para cá… nunca mais!

***

- O que foi que fizeste?

- Eu o mandei de volta... ao passado..  Não era isso que querias?

- O que ele queria aqui? Como é que podes confiar em alguém que nem sequer conheces?

- Ele veio para nos trazer esperança. Trouxe o material original, para produzirmos uma nova vacina. Sabes que as outras já não funcionavam mais e aquela era nossa última hipótese de sucesso.

O Supremo ficou sério, como se um pensamento o estivesse a perturbar.

- Eu sei. E funcionou, afinal?

- Sim. Nós conseguimos salvar o Décimo-Terceiro. Ele recupera-se muito bem e rápido. Deves tomar uma dose também: as manchas estão cada vez mais evidentes.

- É verdade. Obrigado pela preocupação.

- Ele perguntou sobre o ‘Oumuamua’.

- O quê?

- Tu sabes: o primeiro Centauro detectado pelos cientistas da Terra.

- Estes estúpidos viajantes do tempo…

- Pois. Mas ele também disse algo extremamente absurdo.

- Foi? E o que ele disse?

Ela deu uma risadinha meio acanhada.

- Ele disse que tu planeavas destruir o planeta…

- Ah! E por que eu faria uma coisa destas? É ridículo!

- Eu sei. Foi por isso que eu o mandei de volta para o tempo e lugar de onde ele veio… mas eu adicionei um pouco de ‘Oblivion’ na cápsula. Ele vai ficar bem!

- Muito bem! Muito bem pensado, Leona. Foste muito esperta. Eu não faria melhor!

Ela riu.

Ele deixou um suspiro escapar, quando entrou no laboratório e encontrou-se com os dois homens das ciências, trabalhando com afinco, na produção da nova vacina. O Supremo os cumprimentou e estendeu o antebraço, para que a mancha escura fosse examinada, em detalhes.

O doutor tomou uma seringa e apontou para a veia azul, que havia-se evidenciado, ante a pressão de seu dedo. O homem sorriu quando a agulha perfurou sua pele extremamente pálida. Tinha algumas coisas em mente e muito pouco tempo para fazer o que queria… ou devia…

Em poucos minutos ele estava de volta aos seus aposentos. De pé, próximo à ampla janela, ele contemplava a escuridão do céu, lá fora. Ele resmungou algo e programou o computador para duas acções.

Precisava ir ter com o Décimo-Terceiro, para verificar o resultado da vacina sobre ele, antes de accionar a tecla correta. Havia mais uma coisa que ele precisava fazer, antes…

***

- Eu sabia que era perigoso. Ele não vai voltar. Nós o matamos.

- Te acalma, homem. Alguma coisa pode ter acontecido. Ainda não passou tanto tempo…

- Tu disseste uma hora e já se passaram duas. É evidente que nós o matamos!

O jovem soldado sentia-se triste e em estado de desespero e culpa, pelo destino do amigo. Era tarde demais para lamentações, porém. Era tarde demais para qualquer coisa. Ele havia perdido o amigo… seu melhor amigo. Só sentia vontade de chorar.

Ele olhou para o homem pálido, de pé à sua frente, que mantinha o olhar fixo num nicho, ao lado da parede de um dos muitos tubos, que constituíam o intrincado fluxo de túneis, do sistema de esgotos da cidade. Um chiado estranho foi seguido por um clarão. Houve um outro flash e, então, eles viram o rapaz caído. 

- É ele. Ele voltou!

O soldado sentiu um mal-estar no estômago, ao ver o amigo, desacordado, caído ao chão.

- Ele está bem?

- Está inconsciente, mas respira. Vamos levantá-lo.

O jovem soldado abriu os olhos, assim que foi levantado, com a ajuda dos dois outros.

- Putz! Pensei que te havíamos perdido! Onde estiveste, este tempo todo?

- Ahn? Acho que desmaiei. Onde estamos?

- Perto do terminal de transporte, nos túneis.

- O que estamos fazendo aqui?

- Tu não lembras? Tu acabas de viajar ao futuro e voltar…

- De jeito nenhum! Tive um sonho muito estranho, mas não consigo lembrar bem o que foi. Estou tão cansado. Vamos para casa?

Os dois homens trocaram olhares sérios. O jovem soldado sacudiu a cabeça. O homem mais pálido falou exactamente o que lhe passou pela cabeça.

- Oblivion.

- O quê?

Ele riu.

- Eu explico mais tarde.

***