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domingo, 5 de maio de 2019

Hypnos (Parte 1: O Experimento)




Havia uma certa tensão no ar. A sala de estudos do laboratório de Polissonografia havia sido preparada para um novo experimento, relacionado ao estímulo de certas áreas da cabeça, por meio de impulsos elétricos emitidos e controlados pelo computador, segundo um programa desenvolvido na Universidade, que imitava os impulsos cerebrais. O objetivo era simular o relaxamento das áreas, que os pacientes com apneia do sono não conseguiam, de maneira natural e espontânea.


O método era novo, mas não era arriscado. Poderia ser uma mudança radical nos procedimentos existentes, mas era apenas o início de um tratamento que trazia muitas questões de continuidade dentro do Departamento, além de não ser fácil de ser aplicado fora das clínicas.


Era o início de uma nova era, porém, para muita gente, numa época em que o sono estava cada vez mais legado a um segundo plano e onde o stress do dia-a-dia só agravava e aumentava o número de pacientes com o mesmo problema.


O pequeno grupo de cientistas preparou o paciente, um universitário, que possuía uma bolsa de estudos e que se havia voluntariado, mais pelo dinheiro, que por preocupação com seu ronco constante, suas noites mal dormidas e seu cansaço, que vinham diminuindo seu desempenho como aluno.
Parecia um astronauta, dentro de uma cápsula, cheio de sensores, para leituras de todas as suas funções cerebrais e cardíacas e de mais um pouco, além daquilo tudo.
- Agora feche os olhos e relaxe. Conte de cem até um, de trás para frente.
- Isto é estúpido e assustador.
- Não tenhas medo. Feche os olhos. Tu te voluntariaste, afinal.
- OK. Mas foi pelo dinheiro… e eu já não tenho certeza se quero…
O procedimento começara como se fosse uma simples sessão de regressão. Podia-se acompanhar a gravação da câmara no visor de alta resolução. Os sensores haviam sido colados em vários pontos ao longo da cabeça e no peito. Enviavam leituras para os registos de encefalogramas e eletrocardiogramas. Os braços e pernas estavam fixos por correias de couro, presas à cama, para conter os movimentos involuntários, que pudessem ocorrer.
Os investigadores tomaram as posições na sala de observação. Dois deles tinham auscultadores de alta resolução nos ouvidos e conseguiam ouvir os mínimos ruídos, incluindo a respiração do paciente, de dentro da sala e da cápsula de vidro, cheia de terminais de leitura e computadores.
Os olhos do rapaz começaram a ficar pesados. A respiração tornou-se mais profunda e lenta, devido ao efeito de um sedativo. Os REM foram percebidos em poucos minutos, para satisfação dos observadores. Ele sonhava. Parecia tranquilo…
De repente, os movimentos dos olhos começaram a ficar mais evidentes e mais agitados. Os sensores começaram a pulsar com mais energia. O cardiograma parecia aproximar-se de uma fibrilação em larga escala.
Ele gritou uma vez. Depois outra… e outra. Começou a agitar-se, aos berros.
- Há algo errado! Abortar! Abortar! Tragam-no de volta!
O procedimento foi abortado imediatamente. Os investigadores correram e acudiram o homem que se havia submetido ao “experimento”. Ele parecia amedrontado e completamente fora de si. Além de agitado, parecia querer sair dali a qualquer custo. Quando teve os pulsos e os tornozelos soltos, saiu correndo pelo corredor do laboratório da clínica, praticamente nu.
- Segurem este homem!
- O que aconteceu?
- Não sei. Mas deve ser algo preocupante, senão ele não corria daquele jeito. Temos de trazê-lo de volta.
Os seguranças mal tiveram tempo de fechar a porta e impedir a saída. 

A mulher, que vinha pelo corredor, tinha os cabelos muito lisos e escuros, amarrados em um coque, no alto da cabeça. As regras do local não permitiam que se usasse os cabelos soltos, dentro do laboratório.
O homem arregalou os olhos e gritou.
- Afastem-se de mim.
- Calma, homem. O que foi que aconteceu? Vamos conversar.
- Não. Não. Não.
Ele atravessou a porta de vido e jogou-se pela varanda aberta… do 15º andar... O que ele havia visto, fora provavelmente tão perturbador e assustador, que fê-lo preferir mergulhar contra a morte certa, a encarar o experimento ou as consequências do mesmo.
***
- Como vamos saber o que ele viu?
- Vamos ter de continuar o experimento, antes que fechem os laboratório e nos impeçam de continuar com as experiências, mas precisamos escolher o voluntário, desta vez, com mais cuidado.
- Vamos ver as leituras do ECG. Quem sabe possamos identificar alguma coisa.
- Não acredito. Não temos histórico para comparar.
- Tem razão. Vamos ter de criar um histórico, então.
- Será que precisamos? Isso foi um caso isolado. Talvez um em um milhão...
- Talvez… Mas não temos um milhão e, talvez, nem tenhamos, depois deste incidente e acho que devemos mudar o perfil dos voluntários.
- Como assim?
O olhar do outro respondeu à questão, sem ao menos emitir um som.
- Ah. Já percebi. E quem vai antes?
- Vamos os dois.
- O quê?
***
O corredor estava vazio, à aquela hora da noite. O segurança não questionou os dois, quando estes entraram, pois já estava habituado a ver os cientistas aparecerem naquela área, em horas estranhas, de modo a acompanhar os experimentos, que eram muitos e variados.
Na sala de fora, o cientista colocou os auscultadores e aumentou a sensibilidade do som. Dentro da cápsula, o outro fechava os olhos.
- Está tudo pronto? Vamos usar os mesmo estímulos que o do voluntário? E se não der certo?
- Não comeces com teus medos. Temos de ter uma pista do que ele viu. Aquilo não foi normal.
- Eu sei. Vamos a isso, de uma vez.
Ele respirou fundo, fechou os olhos e tentou relaxar. O fármaco começou a fazer efeito. Ele adormeceu.
Atento aos terminais e ao programa, o cientista começou o procedimento, exatamente como do “paciente” anterior.
O cientista e paciente, em pouco tempo, começou a apresentar evidentes movimentos rápidos dos olhos, os REM’s. Ele sonhava.
- Ora, vamos. O que vem a seguir?
Os sensores pareciam normais. O relaxamento havia sido atingido. O voluntário anterior poderia ter tido uma reação alérgica ao fármaco, embora não estivesse em seus registos nenhuma informação relativa à qualquer alergia. Poderia ter sido influenciado pelos estímulos elétricos, associados ao cansaço e stress? Quem poderia saber?
Ele olhou o amigo adormecido e relaxou um pouco a guarda.
- Provavelmente efeitos colaterais… que droga!
Ouviu um bip. A linha do cardiograma moveu-se em ritmos mais frequentes e rápidos. Ele não havia mudado nada na programação. Devia ser uma reação ao sonho. O homem agitou-se e começou a mover a cabeça de um lado para o outro.
- Oh, oh… e agora?
Ele não podia mudar o programa a meio do experimento. O cardiograma parecia aos saltos, numa sequência de pulsos repetidos. O paciente fechou as mãos e começou a mover-se em espasmos. Gritou uma vez. Depois outra.
- Fuuck! Não outra vez…
 Ele desligou os aparelhos, tirou os fones e entrou na sala, abriu a cápsula e arrancou os terminais do corpo do colega. Aplicou-lhe glicose e cafeína, sem soltar-lhe os braços. Chamou-o pelo nome, levantando-lhe o torso e agitando-o. O outro reagiu, meio sonolento, depois olhou o cientista, com os olhos esgazeados.
- Putaquepariu! O que foi aquilo?
- O que foi que tu viste? Conta!
Ele olhou o amigo cientista nos olhos e disse, devagar e em baixo tom:
- Eu já sei o que aconteceu…  Nós estamos com um problema… e grande!

***

sábado, 19 de janeiro de 2019

Obliviar (Epílogo: A Vacina)



- Vai ser necessário recomeçar do zero. Todas as amostras estão contaminadas. Não vale a pena continuar a trabalhar com elas.

- Mas eu não tenho o ADN original para recomeçar. É tarde demais.

- Não é, não!

O doutor e o chefe dos cientistas olharam para o rapaz, mas foi Leona quem percebeu, primeiro, o que ele queria dizer.

- O que estás a dizer? Tu tens o material contigo?

- Eu havia dito que vim para ajudar e tentar salvar o que ainda pode ser salvo, mas estamos lutando contra o tempo.

As pupas estavam quase prontas para darem vida às novas borboletas. Um dos casulos coloridos iria eclodir em pouco tempo e, então, uma amostra dos fluidos que corresse no corpo frágil do insecto, teria que ser recolhida imediatamente e usada para iniciar a produção da vacina.

O doutor e o chefe dos cientistas teriam uma luta contra o tempo e a morte, sendo ambos fortíssimos adversários. Aquela ia ser uma operação arriscada, para ser realizada em um curto espaço de tempo, ou seria muito tarde para salvar aquele pobre ser, que estava a passar por uma mutação muito estranha.

- O que nós podemos fazer?

- É importante obter a amostra quando o fluido começar a correr pelas asas e pelo corpo da nova borboleta, um pouco antes de estar forte suficiente para voar sozinha. São poucos minutos e será quando o ADN estará mais efectivo.

- Foi o que me disseram… por isso eu trouxe as pupas em fases diferentes de maturidade.

- Quanto tempo teremos que esperar?

- Na verdade, muito pouco.

- Vejam! Está eclodindo. Devagar, agora, minha querida…

- Não é melhor ajudar? Ela está sofrendo.

- Nunca! O esforço que ela está a fazer é a parte mais importante do nascimento. Se nós a ajudarmos, ela nunca voará, pois precisa daquele fluido distribuído, convenientemente, pelo corpo todo, através da energia que está a usar. Paciência é o que precisamos, agora e, também, muito cuidado, para colectar o líquido no momento certo.

- Preciso de ajuda, agora. Dê-me uma mão, por favor!

O chefe do laboratório tomou uma seringa, com uma agulha finíssima e preparou-se. O doutor sorriu. O tempo parecia estar do lado deles…

***

- Ainda bem que conseguimos produzir uma nova vacina, que funciona de verdade. Tive medo que nunca conseguíssemos.

Leona estava séria e preocupada. O jovem, de pé ao seu lado, estava pensativo e sentindo-se completamente alheio a aquele drama particular.

- Mas perdemos uma batalha. Alguns dos clones mais afectados pela anomalia não sobreviveram, para serem beneficiados pela vacina.

- É verdade, mas pelo menos salvamos aquele. As hipóteses eram menores, mas não era impossível que fosse recuperado de todo. Ainda bem que era um espécime mais forte.

- Nós podemos produzir mais clones, agora que sabemos que funciona. Temos os meios para fazer os melhores espécimes que já existiram.

- Desta vez vamos escolher o melhor dos melhores e aproveitar uma amostra de seu sangue para produzir seres muito mais perfeitos.

- E ele vai ser a nossa cobaia… um protótipo… para uma nova geração!

Os dois cientistas estavam superexcitados. A morte dos clones havia sido apenas um efeito secundário, em favor da ciência. Eles não paravam de falar, ininterruptamente, como se fossem duas crianças inquietadas com um brinquedo novo.

A mulher olhou para o jovem, parado, em silêncio, atrás deles. Ela sabia que sua viagem, através do tempo e espaço, tinha um propósito muito específico e o preço ainda estava por ser pago. Seus olhos fixaram-se nos dela. Era hora de saldar a dívida.

- É melhor irmos, agora. Venha comigo.

Ele a seguiu pelos corredores da Estação Estelar, até onde a antigo terminal de transporte, que não era usado há muito tempo, estava localizado.

- Terás que prometer não interferir em nada. Tua presença não pode ser detectada, de maneira nenhuma e por ninguém. As consequências serão desastrosas, se não seguires as instruções. É isto ou nada.

- Ok. Não te preocupes.

- Tens certeza que é isto mesmo que tu queres? Estarás confinado…

- Tenho sim. Foi por esta razão que eu vim. Vamos logo com isso. Temos muito pouco tempo.

- Lembra-te: só terás uma hora. Depois disso, serás trazido de volta ao lugar e tempo de onde vieste.

- O quê?

- Tu não poderás voltar para cá… nunca mais!

***

- O que foi que fizeste?

- Eu o mandei de volta... ao passado..  Não era isso que querias?

- O que ele queria aqui? Como é que podes confiar em alguém que nem sequer conheces?

- Ele veio para nos trazer esperança. Trouxe o material original, para produzirmos uma nova vacina. Sabes que as outras já não funcionavam mais e aquela era nossa última hipótese de sucesso.

O Supremo ficou sério, como se um pensamento o estivesse a perturbar.

- Eu sei. E funcionou, afinal?

- Sim. Nós conseguimos salvar o Décimo-Terceiro. Ele recupera-se muito bem e rápido. Deves tomar uma dose também: as manchas estão cada vez mais evidentes.

- É verdade. Obrigado pela preocupação.

- Ele perguntou sobre o ‘Oumuamua’.

- O quê?

- Tu sabes: o primeiro Centauro detectado pelos cientistas da Terra.

- Estes estúpidos viajantes do tempo…

- Pois. Mas ele também disse algo extremamente absurdo.

- Foi? E o que ele disse?

Ela deu uma risadinha meio acanhada.

- Ele disse que tu planeavas destruir o planeta…

- Ah! E por que eu faria uma coisa destas? É ridículo!

- Eu sei. Foi por isso que eu o mandei de volta para o tempo e lugar de onde ele veio… mas eu adicionei um pouco de ‘Oblivion’ na cápsula. Ele vai ficar bem!

- Muito bem! Muito bem pensado, Leona. Foste muito esperta. Eu não faria melhor!

Ela riu.

Ele deixou um suspiro escapar, quando entrou no laboratório e encontrou-se com os dois homens das ciências, trabalhando com afinco, na produção da nova vacina. O Supremo os cumprimentou e estendeu o antebraço, para que a mancha escura fosse examinada, em detalhes.

O doutor tomou uma seringa e apontou para a veia azul, que havia-se evidenciado, ante a pressão de seu dedo. O homem sorriu quando a agulha perfurou sua pele extremamente pálida. Tinha algumas coisas em mente e muito pouco tempo para fazer o que queria… ou devia…

Em poucos minutos ele estava de volta aos seus aposentos. De pé, próximo à ampla janela, ele contemplava a escuridão do céu, lá fora. Ele resmungou algo e programou o computador para duas acções.

Precisava ir ter com o Décimo-Terceiro, para verificar o resultado da vacina sobre ele, antes de accionar a tecla correta. Havia mais uma coisa que ele precisava fazer, antes…

***

- Eu sabia que era perigoso. Ele não vai voltar. Nós o matamos.

- Te acalma, homem. Alguma coisa pode ter acontecido. Ainda não passou tanto tempo…

- Tu disseste uma hora e já se passaram duas. É evidente que nós o matamos!

O jovem soldado sentia-se triste e em estado de desespero e culpa, pelo destino do amigo. Era tarde demais para lamentações, porém. Era tarde demais para qualquer coisa. Ele havia perdido o amigo… seu melhor amigo. Só sentia vontade de chorar.

Ele olhou para o homem pálido, de pé à sua frente, que mantinha o olhar fixo num nicho, ao lado da parede de um dos muitos tubos, que constituíam o intrincado fluxo de túneis, do sistema de esgotos da cidade. Um chiado estranho foi seguido por um clarão. Houve um outro flash e, então, eles viram o rapaz caído. 

- É ele. Ele voltou!

O soldado sentiu um mal-estar no estômago, ao ver o amigo, desacordado, caído ao chão.

- Ele está bem?

- Está inconsciente, mas respira. Vamos levantá-lo.

O jovem soldado abriu os olhos, assim que foi levantado, com a ajuda dos dois outros.

- Putz! Pensei que te havíamos perdido! Onde estiveste, este tempo todo?

- Ahn? Acho que desmaiei. Onde estamos?

- Perto do terminal de transporte, nos túneis.

- O que estamos fazendo aqui?

- Tu não lembras? Tu acabas de viajar ao futuro e voltar…

- De jeito nenhum! Tive um sonho muito estranho, mas não consigo lembrar bem o que foi. Estou tão cansado. Vamos para casa?

Os dois homens trocaram olhares sérios. O jovem soldado sacudiu a cabeça. O homem mais pálido falou exactamente o que lhe passou pela cabeça.

- Oblivion.

- O quê?

Ele riu.

- Eu explico mais tarde.

***

domingo, 13 de abril de 2014

Anno Domini: 4553 (Epílogo: Irmãos)



O rapaz alto, de cabelos longos, escuros e visivelmente sujos, observava a invulgar figura a passar pelo outro lado da rua. Bebia um café amargo, preto e forte, fingindo olhar distraidamente para o lado de fora da janela, mas tinha, por instinto, todos os sentidos em estado de alerta. O rapaz estava visivelmente maltratado pelo tempo, com barba comprida e desmazelada, pele e roupas sujas e aspecto de um andrajoso mendigo morador de rua. Aparentava bem mais que os seus parcos vinte e poucos anos de idade, boa parte dos quais vividos a esconder-se nos túneis dos esgotos da cidadela e a fugir dos assassinos do pai, o cientista que havia morrido num incidente causado pelo puro e inescrupuloso interesse económico-financeiro da poderosa indústria química e farmacêutica, quando ele era ainda muito jovem.

O cientista e o filho pré-adolescente haviam sido perseguidos por terem em seu poder uma vacina que agia diretamente no DNA dos seres humanos, aumentando, espontaneamente, a capacidade de combater as doenças e enfermidades, mantendo as células revigoradas e permitindo-lhes, desta forma, ampliar a expectativa de vida.

A irmã havia desaparecido misteriosamente após um ataque à casa onde estava escondida, no lado oposto da vila. O menino afirmava tê-la visto fugir, em companhia de um homenzinho estranho, pouco antes de desaparecer, mas ninguém, além do pai, acreditava nele. Sem saber se ela havia efetivamente conseguido fugir, sem notícias nem vestígios do corpo, o pai e o irmão refugiaram-se dos assassinos nas dependências do laboratório de uma universidade, cujo chefe da unidade de Pesquisa e Desenvolvimento tinha especial interesse no seu experimento. Através de um contacto dele, foi negociado que a fórmula e uma amostra da vacina seriam enviadas a um programa ultrassecreto, onde estariam reunidos os mais brilhantes cientistas do mundo, em uma estação espacial experimental, que objetivava a viabilidade de povoar outros planetas.

O menino estava ausente, no liceu do campus da universidade, quando o laboratório foi invadido, revirado e destruído. O pai havia sido torturado e assassinado e ele passava a correr sério perigo de vida. Aconselhado a esconder-se, até a ameaça passar, pelo amigo do pai na unidade de Pesquisa e Desenvolvimento, o rapaz viveu como pode, com o pouco que obteve do tutor, até não lhe restar mais nada, além de um asfixiante desejo de vingança, que foi crescendo com o passar dos anos.

Apesar da falta de evidências, porém, ele sentia que a irmã estava, de alguma forma, a salvo e, por isso, passou a procurar, desesperadamente, uma maneira de encontrá-la. O homenzinho que passara do outro lado da ampla calçada, onde os transeuntes passeavam ao sol, lembrava-lhe alguém que ele vira há muito tempo atrás. Os olhos profundamente verdes acompanharam o estranho até ele quase desaparecer do campo de visão. O rapaz levantou-se e dirigiu-se à porta, para ver a direção a seguir. Não queria perder de vista a sua oportunidade de ter certeza que ainda havia algo pelo que lutar, além de sua sede de vingança e destruição.

A explosão que seguiu-se, assim que chegou a porta, foi suficiente para pô-lo a correr em desabalada carreira pelo calçadão da Rambla, desviando dos transeuntes e frequentadores dos bares e restaurantes, que não percebiam o que acabara de acontecer. Até então, ele não sabia que estava sendo observado de perto por seus velhos algozes. Escapara por um triz, mas os outros frequentadores do pequeno Café não tiveram a mesma sorte. Sem poder fazer nada além de fugir, ele tomou um desvio à sua esquerda e entrou no movimentado Mercado Público, onde poderia passar por um simples transeunte apressado. Livrou-se do casaco, roubou um chapéu de palha trançada e um par de óculos de sol e saiu pelos fundos da área onde havia o comércio de pescado. Já do lado de fora, seguiu, a largos passos, até a praia. Jogou a camisa, as calças e os sapatos no lixo, ficando somente com os calções que lhe serviam de cuecas. Foi então que avistou dois homens vindo na sua direção.

Tentando manter a calma e para não dar muito na vista, entrou pelo grande tubo de esgoto que levava aos labirintos obscuros das galerias, que tanto conhecia. Correu como nunca na vida, descalço e sem roupas, deixando pelo caminho o chapéu e os óculos e entrando por vários desvios, de modo a dificultar sua perseguição. Foi quando ouviu o som de passos, num dos túneis à sua frente, que parou e escondeu-se atrás de uma coluna de concreto. Com extremo cuidado, espiou a sombra que se movimentava à sua frente e preparou-se para o combate.

O homenzinho estava entrando por uma pequena fenda atrás de uma das colunas, quando foi atacado. Puxado com violência para o meio do túnel, seus olhos mostravam um pavor que o rapaz nunca havia visto antes. Ele protegeu o rosto com os braços pálidos, tremendo de medo e sem conseguir dizer nada. O rapaz reconheceu-o como o estranho transeunte que observava do lado de fora do Café. Ia começar a interrogá-lo, quando ouviu passos atrás de si. Instintivamente puxou o homenzinho para um canto, cobrindo a boca do mesmo com sua mão grande e suja. Os dois perseguidores passaram correndo por eles, sem percebê-los e foram-se afastando. Ele afrouxou a mão da boca do prisioneiro e fez um sinal para o mesmo ficar quieto.

O homenzinho aproveitou o momento, virou-se e empurrou o rapaz para a fenda atrás da coluna, fazendo-o perder o equilíbrio, mas colocando a si mesmo exposto no meio da galeria. O rapaz ainda ouviu o som de um tiro e depois outro, seguido de uma explosão. Fechou os olhos e deixou-se tombar.

Segundos depois ouvia o som estridente de uma sirene, quando caiu no meio de uma sala pouco iluminada. Um forte facho de luz branca, vindo de um ponto no teto, acendeu-se à sua volta, limitando-lhe os movimentos a uma área muitíssimo restrita.  

Um alerta no sistema de segurança indicava que um intruso tentara penetrar nos terminais sem autorização. Sem o código de segurança implantado, ele aguardava na sala intermediária do Limbo, para questionamentos. Seria devidamente higienizado, ficaria em quarentena e deveria ser interrogado, até ser libertado... ou não.

***

- Eu esperei por longos anos. Como pudeste fazer isto connosco? Não pensaste no que deixaste para trás? Não tentaste voltar?

- Eu não podia voltar. Não tinha permissão para tal e não podia colocar em risco a segurança dos outros.

- Foi ele, não foi? Ele quem te induziu a ficar do lado de cá…Como pudeste fazer isto, Leona?

- Isso aqui é o futuro, meu irmão. Esta sociedade desconhece a violência, a ganância, a maldade... e também a beleza e o prazer... Nós, para eles, somos aberrações pertencentes ao passado...não temos nossos desejos, nem as vontades satisfeitas...

- Leona, me tire daqui. Eu sou teu irmão!

- Eu não tenho como fazer isso, por mim própria, mas vou tentar, mesmo assim, convencer o Conselho a libertar-te.

***

- Quando nós chegamos à esta galáxia, há muitos anos atrás, nosso único intuito era preservar a nossa vida e reproduzir o habitat de nosso planeta-casa anterior. Nossa intenção foi de dar à nossa raça sobrevivente, condições de vida. De vida, somente. Não quisemos aceitar que éramos uma estirpe falida e em extinção, como tantas outras que deixamos, por descuido ou propósito, desaparecerem por completo da face da terra. Este planeta era árido e sem vida. Nós tentamos reproduzir a sobrevivência, através do processamento das condições naturais, filtros e reutilização do Oxigénio e outros elementos essenciais. Nossos cientistas eram os mais especializados – a elite dos cérebros mais brilhantes da casta mais douta, selecionados para instalar uma estação de sobrevivência fora da Terra. Quando a estação foi trazida, tínhamos poucas esperanças, por isso fizemos o melhor que pudemos, para construir a 'Acrópole' e extinguir o medo e a insegurança.

Quando conseguimos reprogramar os terminais de transporte, para fazer as viagens também através do tempo, conquistamos um grande marco na nossa história. Tínhamos porém que ser cuidadosos, para não trazer ou levar problemas para onde íamos ou de onde vínhamos. Por este motivo o controle dos terminais de tempo passou a ser atribuição do Conselho.

Como é de vosso conhecimento, os membros são escolhidos por meio de testes de aptidão científica e ainda pelo discernimento e controle emocional. O chefe tem ainda que ser o mais votado, em sessão secreta, por todos os membros do Conselho e ainda tem que ser submetido a uma outra bateria de testes de cunho psicológico. Além de ser especialista em ciência, tem que saber exprimir-se em público e ter controlo emocional suficiente para não provocar o pânico, quando alguma tragédia for reportada.

O que temos em nosso terminal de segregação é um visitante do passado. Ele é filho do grande cientista que desenvolveu a imunidade, que hoje utilizamos e que nos permite viver tão longa e saudavelmente. O que vos peço é que considerem permitir-lhe viver entre nós. O meu voto já foi dado. O vosso é necessário. Votem conscientemente, por favor. O Conselho voltará a reunir-se em dois dias.

***

O chefe do Conselho parecia cansado. Ele sabia que a decisão não era fácil para os membros do Conselho. A responsabilidade sobre a decisão era grande demais, por isso tinha que ser muito ponderada, antes de expressa. Eles experimentavam, naquele momento, uma emoção que há muito não sentiam: medo!

- Leona, agora é uma questão de tempo. A decisão não é minha, somente, como tu sabes.

- Eu sei, meu querido. Sei o que se passa na cabeça de todos e também sei quão difícil será tomar a deliberação. Agradeço muitíssimo a tentativa.

Leona havia sido trazida há bastante tempo atrás. O conceito de beleza e paz havia mudado desde que viera. Ela fora apresentada como a filha do cientista responsável pela longevidade dos habitantes daquele planeta e era vista e respeitada como uma personagem a ser protegida.

- É tão difícil...

- Eu sei, meu amado... eu sei...

- Meu mundo sempre foi frio e monocromático...Nós somos cientistas, não somos guerreiros, nem artistas. Ensina-me, Liana. Eu quero aprender a ver mais beleza nas coisas.

- Meu amado, ela está nos olhos de quem a vê. A razão é, por defeito, míope e não vê a beleza com os mesmos olhos que a emoção a vê.

Ele olhou a mulher com um carinho que não lembrava haver sentido antes. Ela era sábia e segura de si; uma ilha no meio do oceano imenso de incertezas e inseguranças em que o mundo dele vivia. Os olhos, verde-esmeralda, eram tão expressivos, que ele às vezes não precisava de palavras para saber o que ela sentia. Os lábios eram bem desenhados e impressionavam quando ela abria o sorriso de menina e praticamente incendiava a alma do homem, cuja responsabilidade sobre a vida daquela gente, era imensa. Ao estar com ela, ele quase podia esquecer o peso da carga que trazia sobre os ombros.

- Ensina-me mais, por favor. Eu gosto quando tu falas. A tua sabedoria é-me valiosa e deixa-me perplexo, enchendo meu coração de calor e...

Ele hesitou, por uma fração de segundo, apenas. Ela fingiu não perceber. Olhou para ele, como tentasse ler o que havia por trás daquela estranha parada no discurso, mas ele já continuava a falar.

- … de vontade de viver…

Ela continuou, sem deixar transparecer haver percebido a pausa, mas, lá no fundo, seu coração apertou.

- O que importa não é a velocidade, nem a quantidade de coisas que se faz. Tampouco é o exagero. A intensidade é que conta. O sabor das amoras, do chocolate e o aroma do café, o cheiro da terra molhada pela primeira chuva… tudo aquilo que te deu prazer em fazer, em usufruir, em sentir. Isso é o que conta…

Ele desconhecia aquelas sensações. Em seu mundo não havia aroma de café, nem sabor a chocolate ou amoras… Olhou-a como se não percebesse muito bem o que ela queria dizer. Os olhos de Leona brilharam, como se ela tivesse tido uma ideia repentina. Ela sorriu e disse:

- Como o toque das asas das borboletas na pele, então… Faz mais sentido?

Ele assentiu, sorrindo. Aquela era uma sensação que conhecia e que havia despertado nele um interesse inesperado por viver. Ele quase esquecia o peso da carga que teria que assumir, em dois dias, em nome da decisão do Conselho.

***

- O que nós fazemos aqui? Não somos um povo conquistador. Não somos um povo preservador, pois já não há nada a preservar. Não deixamos descendentes; então não há legado. Somos cientistas que mantêm a vida, sem saber direito o porquê. Nossa raça está em decadência… e em depressão. O passado pode nos ensinar a viver o futuro com mais consciência da beleza, pelo menos...

Ele olhou na direção da mulher com a cabeça coberta por um capuz, que escondia boa parte de sua face, mas cujos lábios eram evidentes. Numa multitude de cabeças, quase todas tão iguais, ela destacava-se. Ela ergueu a cabeça e seus olhos pareceram brilhar, ao fixarem nele. Um aperto na garganta quase impediu-o de continuar.

- Vamos ao veredito...

Leona era o único motivo pelo qual ele havia mudado completamente o modo de pensar, nos últimos tempos. Ela havia trazido vida a quem não tinha objetivos e beleza a quem já não sentia prazer em viver. Ele tinha medo de decepcioná-la, se o Conselho tomasse uma decisão desfavorável.

***

Leona abraçou o irmão com ardor. A sentença havia sido dada. Ele passaria por um período probatório, convivendo com os novos humanos da 'Acrópole'. O Conselho iria reunir-se dentro de alguns meses, para tomar a decisão final, baseada no comportamento dele.

O chefe do Conselho entrou no aposento e sorriu ao ver os irmãos abraçados. Leona desvencilhou-se do abraço do irmão e correu em sua direção, com um sorriso do tamanho da gratidão de sua alma.

- Obrigada, meu amado. Sem ti, isso nunca seria possível.

Ela abraçou-o e beijou-lhe os lábios. Fora tomada por uma alegria sem limites e uma sensação de alívio, como há muito não sentia. O irmão aproximou-se e estendeu a mão ao amante da irmã, com um sorriso um tanto sem jeito.

O homem abraça o cunhado, com carinho. O outro retribui o abraço, primeiro levemente, depois com mais ardor e, em seguida, com uma força descomunal, que o chefe do Conselho não sabia que existia. Seu corpo era frágil demais, perto do outro, que apertou-o até ouvir uma série de estalos nos ossos das costelas e o homenzinho começar a esmorecer.

Quando Leona percebeu o que estava acontecendo, gritou-lhe, desesperada, que parasse. O rapaz libertou o homem, que já sangrava pela boca e nariz e caía ao chão, desfalecido.

O rapaz tentou puxar a irmã pelo braço, mas naquele momento um grupo de homens da segurança entrou no aposento e imobilizou-o com uma descarga elétrica de um poderoso 'taser'. A arma nunca havia sido usada antes e o choque deixou-os um tanto apavorados, mas conseguiram conter-se e levar o rapaz, desacordado, de volta ao Limbo.

Leona chorava abraçada ao corpo do amante. A respiração era fraca... difícil...

- Tragam um médico, urgente!

O segurança saiu correndo pela porta afora e deixou-a sozinha, ajoelhada no chão, ao lado do chefe do Conselho, que abriu os olhos, vagarosamente, com um esforço enorme. Sua face mostrava tanto a dor física quanto a da decepção. Sua mente já não conseguia pensar claramente e ele sentia um rio de sangue a inundar-lhe o peito, vindo do pulmão perfurado pelos ossos quebrados das costelas. Ela viu que a vida dele estava por um fio e disse-lhe chorando:

- Foi minha culpa. Eu nunca devia ter deixado...

 - Liana… Eu cometi um erro. Queria ter vivido mais e visto mais coisas; mais beleza, mais prazer... Ah, minha amada Liana...

A moça tenta rir daquela piada comum entre eles. Ela chega-lhe ao ouvido e diz:

- É Leona, meu amado. O nome é Leona…

Ele levanta a mão pálida e frágil e toca-lhe a face, esboçando um sorriso totalmente desajeitado.

- Tu és tão linda!

Ela segura a mão dele contra a face e sente que a vida já não estava mais presente naquele ser tão frágil e pálido, que ela amou tanto. Os olhos encheram-se de lágrimas e um desespero assolou-lhe a alma.

Aquela sociedade nunca havia presenciado a morte daquela forma, como ela havia visto. Os tempos haviam mudado... mas jamais tal violência seria permitida repetir-se...

A moça levantou-se séria e dirigiu-se à sala de segregação do Limbo, disposta a colocar um fim, de uma vez por todas, à qualquer tendência à violência contra aquela raça...


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