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domingo, 26 de maio de 2019

Hypnos (Parte 2: Surpresa)





- Vamos tentar ser práticos. Quantos de nós estavam na sala de observação, quando aconteceu aquilo?

- Todos nós. Tu sabes disso.

- Quatro, portanto.

- Por quê? Que diferença faz?

- Faz toda a diferença… porque o que ele viu, tem que estar relacionado com um de nós quatro.

- Como assim? Um de nós quatro?

- Exatamente. Um de nós quatro é o responsável por um suicídio… Ou, um de dois, se desconsiderarmos que nós dois estamos fora da lista de suspeitos… a princípio.

- Explica melhor, pelo amor de Deus!

Ele abriu a boca, mas pareceu que alguma coisa fê-lo pensar duas vezes, antes de falar. Ele olhou a sala contígua, onde a cápsula estava mal iluminada, com vários fios caídos ao chão, ao longo da cama, onde a experiência havia ocorrido. Ele franziu o cenho.

- Será que…

- O que foi, agora?

- Nenhum de nós dois usava os fones, no momento do experimento, certo?

- Certo.

- A ligação pode estar aí…

- Isso não ajuda muito.

- Mas não pode ser somente uma coincidência. Tem de haver uma conexão com o que ele viu e pode ser que esteja, mesmo, nos dois elementos que usavam os auriculares. O que eu vi estava dentro da tua cabeça… e tu estavas com os auriculares.

- Não deve ser assim tão simples. Isso é apenas uma teoria.

- É a única coisa que temos no momento. Vamos tentar seguir uma linha coerente de pensamento.

- Vamos nos ater aos factos, somente.

O jovem cientista olhou nos olhos do amigo. Deu um suspiro e observou as duas cicatrizes nos pulsos do colega.

- Aquilo foi horrível. Eu senti o desespero e a angústia, antes e no momento dos cortes, como se estivessem sendo feitos em mim…

O outro baixou os olhos. Sentiu uma tristeza profunda. O passado devia estar enterrado… e bem profundamente... em sua memória. Há anos que ele não pensava naquilo.

***

Amigos de infância, colegas de escola, separados por um período até bem longo e, depois, reencontrados no mesmo emprego, os dois jovens cientistas estavam, agora, muito mais ligados que, alguma vez, já haviam estado. De uma forma que só o Universo conseguiria determinar, uma tragédia os havia reaproximado. E agora…

- Vamos ter que tentar repetir o experimento, mas sem levantar suspeitas.

- Como? O laboratório está lacrado para investigação.

- Mas isso não vai longe. As testemunhas não serão contestadas. Todos viram o que aconteceu. Ninguém tocou nele. A justiça e a reitoria podem é proibir a prática de novos experimentos… com voluntários externos… mas não será a mesma coisa… com acadêmicos da pesquisa… Se mantivermos sigilo, é claro. Mas ainda temos que convencer aqueles dois a continuarmos os testes.

Pelo sorrisinho, o outro percebeu que havia um plano em formação, na cabeça do colega.

- Vou preparar a defesa da ideia. Ajuda-me com isso.

Embora um tanto desconfiado, se iriam mesmo conseguir ir muito adiante, o jovem cientista aceitou a tarefa, como se fosse um grande desafio. Suas veias investigativas pulsavam em antecipação.

***

Os corredores estavam em silêncio, a não ser pelo som das solas de borracha dos sapatos dos dois, no piso encerado. O laboratório de investigação ainda estava fechado, desde que havia sido lacrado pela Reitoria. As investigações do incidente, como já era de esperar, foram inconclusivas, mormente pela falta de evidências. Todos viram o voluntário, em estado de delírio, romper a segurança e mergulhar pela sacada. As filmagens da câmara de segurança eram nítidas e irrefutáveis.

Embora não pudessem culpar ninguém pelo incidente, o método estava sendo questionado e representava um perigo iminente a quem fosse submetido à experiência.

Persuadidos por bons argumentos, os cientistas haviam decidido desrespeitar o memorando e repetir o procedimento, em nome da ciência. Tinham que desvendar o mistério que ficara sem ser resolvido.

Sabendo a intenção que tinham, os dois jovens amigos decidiram chegar antes e preparar a sala. Se pudessem descobrir o que fez um estudante preferir o suicídio, a encarar alguma coisa que a visão de um… sonho… provocou…

Vamos arranjar as coisas, antes que alguém de fora apareça e ponha areia na engrenagem. Temos muito que fazer, até os outros chegarem.

***

- Vou eu!

- Isso é uma democracia. Devíamos decidir por maioria.

- Meu voto, então, também, é para que seja ele, a participar como cobaia.

- A mim, não faz diferença…

A mulher olhou os três cientistas e baixou os braços. Havia sido vencida.

Os dois rapazes se entre-olharam, sem dizer nada. Os dois entraram na sala, onde a aparelhagem já estava preparada de antemão e iniciou-se o processo de instalar os terminais na cabeça e peito do voluntário, que se deitou na cama encapsulada e cheia de câmaras e outros aparatos de alta definição. Ele não sorria. Estava um pouco apreensivo, mas ao mesmo tempo, curioso. O amigo falou pouco, enquanto o preparava para o experimento. Já haviam falado o suficiente, poucos minutos antes dos outros chegarem.

- Estás bem?

- Não sei, mas não vou pensar nisso. Vamos prosseguir.

O rapaz assentiu e passou as correias de segurança à volta dos pulsos e tornozelos do paciente. Verificou a aparelhagem e bateu, de leve, no ombro do amigo, que já fechava as pálpebras, sob o efeito do sedativo.

O cientista mais experiente sentou-se e colocou os auriculares. A mulher sentou-se ao seu lado e fez o mesmo. O jovem cientista entrou na sala de observação e respirou fundo. Precisava estar atento ao que ia acontecer e sabia que a possibilidade de interromperem o experimento era grande. Ele mesmo já havia passado por aquela experiência e sabia que havia mais que um motivo para ficar preocupado.  

A luz da sala de experiência foi diminuída. As câmaras foram ligadas. O rosto do paciente voluntário apareceu no terminal, em larga escala. O foco estava em seu jovem rosto e ele parecia calmo e relaxado. Sua respiração estava densa, profunda e lenta.

Em poucos minutos, os primeiros movimentos rápidos dos olhos começaram. Ele sonhava.

***

- Foi um bocado assustador, sim! Mas ainda bem que eu me preparei e consegui resistir mais tempo. Assim vi um pouco mais…

- E o que viste?

- Dois homens na praia. Um estava à espera do outro e foi quando eles se encontraram, que eu percebi. Eles são irmãos gémeos... e...

- O quê? Não estou a perceber nada! Que gémeos?

Nós entendemos tudo errado. Não foi aquele rapaz ou nós que corríamos perigo.

- Como não?

- Na verdade, nunca foi!

***

sábado, 19 de janeiro de 2019

Obliviar (Epílogo: A Vacina)



- Vai ser necessário recomeçar do zero. Todas as amostras estão contaminadas. Não vale a pena continuar a trabalhar com elas.

- Mas eu não tenho o ADN original para recomeçar. É tarde demais.

- Não é, não!

O doutor e o chefe dos cientistas olharam para o rapaz, mas foi Leona quem percebeu, primeiro, o que ele queria dizer.

- O que estás a dizer? Tu tens o material contigo?

- Eu havia dito que vim para ajudar e tentar salvar o que ainda pode ser salvo, mas estamos lutando contra o tempo.

As pupas estavam quase prontas para darem vida às novas borboletas. Um dos casulos coloridos iria eclodir em pouco tempo e, então, uma amostra dos fluidos que corresse no corpo frágil do insecto, teria que ser recolhida imediatamente e usada para iniciar a produção da vacina.

O doutor e o chefe dos cientistas teriam uma luta contra o tempo e a morte, sendo ambos fortíssimos adversários. Aquela ia ser uma operação arriscada, para ser realizada em um curto espaço de tempo, ou seria muito tarde para salvar aquele pobre ser, que estava a passar por uma mutação muito estranha.

- O que nós podemos fazer?

- É importante obter a amostra quando o fluido começar a correr pelas asas e pelo corpo da nova borboleta, um pouco antes de estar forte suficiente para voar sozinha. São poucos minutos e será quando o ADN estará mais efectivo.

- Foi o que me disseram… por isso eu trouxe as pupas em fases diferentes de maturidade.

- Quanto tempo teremos que esperar?

- Na verdade, muito pouco.

- Vejam! Está eclodindo. Devagar, agora, minha querida…

- Não é melhor ajudar? Ela está sofrendo.

- Nunca! O esforço que ela está a fazer é a parte mais importante do nascimento. Se nós a ajudarmos, ela nunca voará, pois precisa daquele fluido distribuído, convenientemente, pelo corpo todo, através da energia que está a usar. Paciência é o que precisamos, agora e, também, muito cuidado, para colectar o líquido no momento certo.

- Preciso de ajuda, agora. Dê-me uma mão, por favor!

O chefe do laboratório tomou uma seringa, com uma agulha finíssima e preparou-se. O doutor sorriu. O tempo parecia estar do lado deles…

***

- Ainda bem que conseguimos produzir uma nova vacina, que funciona de verdade. Tive medo que nunca conseguíssemos.

Leona estava séria e preocupada. O jovem, de pé ao seu lado, estava pensativo e sentindo-se completamente alheio a aquele drama particular.

- Mas perdemos uma batalha. Alguns dos clones mais afectados pela anomalia não sobreviveram, para serem beneficiados pela vacina.

- É verdade, mas pelo menos salvamos aquele. As hipóteses eram menores, mas não era impossível que fosse recuperado de todo. Ainda bem que era um espécime mais forte.

- Nós podemos produzir mais clones, agora que sabemos que funciona. Temos os meios para fazer os melhores espécimes que já existiram.

- Desta vez vamos escolher o melhor dos melhores e aproveitar uma amostra de seu sangue para produzir seres muito mais perfeitos.

- E ele vai ser a nossa cobaia… um protótipo… para uma nova geração!

Os dois cientistas estavam superexcitados. A morte dos clones havia sido apenas um efeito secundário, em favor da ciência. Eles não paravam de falar, ininterruptamente, como se fossem duas crianças inquietadas com um brinquedo novo.

A mulher olhou para o jovem, parado, em silêncio, atrás deles. Ela sabia que sua viagem, através do tempo e espaço, tinha um propósito muito específico e o preço ainda estava por ser pago. Seus olhos fixaram-se nos dela. Era hora de saldar a dívida.

- É melhor irmos, agora. Venha comigo.

Ele a seguiu pelos corredores da Estação Estelar, até onde a antigo terminal de transporte, que não era usado há muito tempo, estava localizado.

- Terás que prometer não interferir em nada. Tua presença não pode ser detectada, de maneira nenhuma e por ninguém. As consequências serão desastrosas, se não seguires as instruções. É isto ou nada.

- Ok. Não te preocupes.

- Tens certeza que é isto mesmo que tu queres? Estarás confinado…

- Tenho sim. Foi por esta razão que eu vim. Vamos logo com isso. Temos muito pouco tempo.

- Lembra-te: só terás uma hora. Depois disso, serás trazido de volta ao lugar e tempo de onde vieste.

- O quê?

- Tu não poderás voltar para cá… nunca mais!

***

- O que foi que fizeste?

- Eu o mandei de volta... ao passado..  Não era isso que querias?

- O que ele queria aqui? Como é que podes confiar em alguém que nem sequer conheces?

- Ele veio para nos trazer esperança. Trouxe o material original, para produzirmos uma nova vacina. Sabes que as outras já não funcionavam mais e aquela era nossa última hipótese de sucesso.

O Supremo ficou sério, como se um pensamento o estivesse a perturbar.

- Eu sei. E funcionou, afinal?

- Sim. Nós conseguimos salvar o Décimo-Terceiro. Ele recupera-se muito bem e rápido. Deves tomar uma dose também: as manchas estão cada vez mais evidentes.

- É verdade. Obrigado pela preocupação.

- Ele perguntou sobre o ‘Oumuamua’.

- O quê?

- Tu sabes: o primeiro Centauro detectado pelos cientistas da Terra.

- Estes estúpidos viajantes do tempo…

- Pois. Mas ele também disse algo extremamente absurdo.

- Foi? E o que ele disse?

Ela deu uma risadinha meio acanhada.

- Ele disse que tu planeavas destruir o planeta…

- Ah! E por que eu faria uma coisa destas? É ridículo!

- Eu sei. Foi por isso que eu o mandei de volta para o tempo e lugar de onde ele veio… mas eu adicionei um pouco de ‘Oblivion’ na cápsula. Ele vai ficar bem!

- Muito bem! Muito bem pensado, Leona. Foste muito esperta. Eu não faria melhor!

Ela riu.

Ele deixou um suspiro escapar, quando entrou no laboratório e encontrou-se com os dois homens das ciências, trabalhando com afinco, na produção da nova vacina. O Supremo os cumprimentou e estendeu o antebraço, para que a mancha escura fosse examinada, em detalhes.

O doutor tomou uma seringa e apontou para a veia azul, que havia-se evidenciado, ante a pressão de seu dedo. O homem sorriu quando a agulha perfurou sua pele extremamente pálida. Tinha algumas coisas em mente e muito pouco tempo para fazer o que queria… ou devia…

Em poucos minutos ele estava de volta aos seus aposentos. De pé, próximo à ampla janela, ele contemplava a escuridão do céu, lá fora. Ele resmungou algo e programou o computador para duas acções.

Precisava ir ter com o Décimo-Terceiro, para verificar o resultado da vacina sobre ele, antes de accionar a tecla correta. Havia mais uma coisa que ele precisava fazer, antes…

***

- Eu sabia que era perigoso. Ele não vai voltar. Nós o matamos.

- Te acalma, homem. Alguma coisa pode ter acontecido. Ainda não passou tanto tempo…

- Tu disseste uma hora e já se passaram duas. É evidente que nós o matamos!

O jovem soldado sentia-se triste e em estado de desespero e culpa, pelo destino do amigo. Era tarde demais para lamentações, porém. Era tarde demais para qualquer coisa. Ele havia perdido o amigo… seu melhor amigo. Só sentia vontade de chorar.

Ele olhou para o homem pálido, de pé à sua frente, que mantinha o olhar fixo num nicho, ao lado da parede de um dos muitos tubos, que constituíam o intrincado fluxo de túneis, do sistema de esgotos da cidade. Um chiado estranho foi seguido por um clarão. Houve um outro flash e, então, eles viram o rapaz caído. 

- É ele. Ele voltou!

O soldado sentiu um mal-estar no estômago, ao ver o amigo, desacordado, caído ao chão.

- Ele está bem?

- Está inconsciente, mas respira. Vamos levantá-lo.

O jovem soldado abriu os olhos, assim que foi levantado, com a ajuda dos dois outros.

- Putz! Pensei que te havíamos perdido! Onde estiveste, este tempo todo?

- Ahn? Acho que desmaiei. Onde estamos?

- Perto do terminal de transporte, nos túneis.

- O que estamos fazendo aqui?

- Tu não lembras? Tu acabas de viajar ao futuro e voltar…

- De jeito nenhum! Tive um sonho muito estranho, mas não consigo lembrar bem o que foi. Estou tão cansado. Vamos para casa?

Os dois homens trocaram olhares sérios. O jovem soldado sacudiu a cabeça. O homem mais pálido falou exactamente o que lhe passou pela cabeça.

- Oblivion.

- O quê?

Ele riu.

- Eu explico mais tarde.

***