domingo, 19 de janeiro de 2014

A Cruz Celta (Parte 3)


A mulher bateu com a ponta do dedo indicador sobre a carta que havia colocado sobre a mesa, na posição designada para os Fatores Ambientais – o caminho a envolver a situação, que descrevia, em síntese, a imagem que os outros - amigos e família - fariam do consulente. Aquela carta quase sempre implicava o tipo de reacção que a pessoa devia esperar dos outros com relação à sua situação. A lâmina exibia um homem de pé entre duas mulheres e um cupido pairando acima do grupo, ao mesmo tempo que apontava a seta para a cabeça de uma das mulheres…

- Esta carta em si representa a escolha difícil entre a razão e a emoção, a tradição e a novidade, o passado e o porvir… São dois caminhos que se abrem e tu deves optar por um deles, com bastante consciência e firmeza. Não podes hesitar muito em decidir, porque o tempo não vai esperar por ti.

O homem compreendeu a razão pela qual a mulher não havia acompanhado seu riso, quando a carta dos Amantes fora deitada sobre a mesa. Tinha pouco a ver com o nome, especialmente quando disposta naquela posição da cruz. Uma dúvida despertou em seu consciente.

- A carta anterior dizia que eu devo usufruir de uma parada…

- E é verdade. Uma coisa não invalida a outra. Tu deves usufruir desta pausa, mas a decisão sobre o caminho a tomar não precisa ser da mesma duração da parada. Na verdade, esta decisão pode levar à necessidade daquele intervalo. Sem pressa, significa sem ansiedade, mas não quer dizer que devas levar a vida inteira a tomar uma decisão sobre  o que fazer ou qual caminho tomar…

- Ok. Já percebi…

O homem registrou aquelas palavras, com carinho.


- Precisamos conversar.

- Eu sei…

Ele tinha ciência que aquela conversa estava a ser adiada por muito tempo. Ficou chateado de não haver sido ele a propor, mas ficou feliz pela iminência que agora se apresentava de fazê-lo.


A próxima carta indicava o aspecto psicológico, as esperanças e os medos, os desejos e as ansiedades do consulente e tudo isso se apresentava, magnificamente, numa única carta: a Torre. Esta indicava o fim de um ciclo – uma grande ruptura com o passado. Em algumas posições representaria uma grande e catastrófica cisão e podia ser bastante negativa mas, naquela posição, estava a indicar exactamente o oposto. 


Em que parte do caminho a confiança dele perdeu-se? Aonde apareceu a dúvida? Teria sido no dia em que ela dissera-lhe que nem sabia se o amava, apenas meses depois do casamento oficial? Ou teria sido no dia em que sua razão percebeu, antes de seus olhos, que a intimidade havia-se tornado maior para com os outros do que era dividida consigo?

Embora apegado aos seus princípios e às promessas feitas, ele chegara à conclusão que já não havia muito o que fazer. O relacionamento tornara-se estéril… completamente estéril e sem nenhum futuro. Mesmo assim, demorou-se a desapegar-se, deixando-se ser explorado de maneira ingénua e imprudente.

Menos de meia hora depois da tal conversa que tiveram, estavam os dois sentados em frente ao advogado. A decisão havia sido tomada e era definitiva.

Nunca mais voltou atrás, mas aquela resolução custou-lhe demasiadamente caro, não somente pelas dívidas que ficaram-lhe por sobre os ombros, mas também pela carga pesada que teve de assumir para poder pagá-las.   

Sua saúde fora afectada, bem como o equilíbrio que ele tanto prezava. Mas o caminho a seguir havia sido escolhido e era determinante para o seu futuro e da sua sanidade.

O tempo se encarregaria de fechar as feridas, de propor novas oportunidades, de trazer novas possibilidades de relacionamentos, mas nunca iria apagar as cicatrizes.


Finalmente, a última carta iria trazer a conclusão esperada. Aquela não ia servir para descrever uma situação permanente ou definitiva, mas a consequência natural da situação que ele atravessava no momento, abrangendo, no máximo, um período de seis meses: o Louco – representava um passo dentro do desconhecido. As incertezas, desânimos, falta de vontade de seguir em frente, apresentavam-se ali, naquele momento, mas não davam um resultado, nem propunham uma conclusão àquela situação toda. Era um final inconclusivo e um tanto decepcionante…

Ele olhou a mulher, tentando achar uma explicação mais assertiva para o que acabara de ver. Ela, então, olhou-o nos olhos e disse:

- Que o acaso nos diga algo.

Tomando o baralho em suas mãos, a mulher abriu-o em leque e pediu:

- Retire uma outra carta; somente uma, mas concentre-se bem na questão, antes de escolher.

Ele separou uma carta bem do meio do leque e entregou-a à mulher. Ela sorriu quando viu a lâmina e virando-a, dispôs a mesma, cruzada, sobre a última carta do jogo aberto sobre a mesa.

- Uma escolha muito boa. Muito boa mesmo.

O Ás de Paus indicava um novo vislumbrar da vida, um novo começo do zero e uma oportunidade de resolver os seus problemas com toda a sua criatividade. Prenunciava todo um processo de renascimento, inspiração e façanhas criativas, realizadas com grande ímpeto e energia, acompanhados por uma névoa envolvente de aventura e ação.

- Vê-se bem quais são as tuas preocupações neste momento...

Ele pensou nas coisas que havia deixado para trás, por tanto tempo. Perguntou-se por qual razão um homem deixa seus sonhos de lado, suas habilidades artísticas e seus prazeres simples, em função de uma suposta harmonia em qualquer relacionamento? E depois que separam-se, sobra o que, afinal? Uma sombra passou-lhe pelo olhar.


- Agora pode fazer as perguntas que quiser…

A mulher embaralhou o maço inteiro e abriu as cartas em leque outra vez, pedindo-lhe para retirar três, aleatoriamente. Ele concentrou-se na pergunta, que estava viva em sua mente e retirou-as, devagar, de três posições bem distintas e entregou-as, uma a uma.

A mulher dispôs as mesmas sobre a mesa e olhou-o nos olhos, seriamente...

- Qual foi a pergunta, afinal?

- Eu preciso muito saber sobre este meu amigo.

 Aquele em que ele havia pensado era-lhe deveras especial. Ele considerou, secretamente,  que muito pouca gente podia dar-se ao luxo de preocupar-se somente com os amigos. Ele, certamente, era uma destas poucas pessoas. 

Ela, então, disse:

- Posso-lhe garantir que este, especialmente, é mesmo fiel… e não só porque te respeita e te é profundamente agradecido, pelo que fizeste por ele, mas principalmente porque gosta muito de ti.

O homem olhou a carta principal do grupo de três, disposta sobre a mesa. A imagem de um jovem de cabelos e olhos escuros, bem-apessoado e com um sorriso extremamente atraente, veio-lhe à mente. A forma como o rapaz se locomovia, quando estava em ambiente em que se sentia confortável, lembrava-lhe um felino a caminhar, sempre cheio de si e emanando um magnetismo extremamente charmoso.


O homem de cabelos castanhos aguardava, com os olhos atentos ao grande display do aeroporto, as informações de chegada dos voos, principalmente os provenientes do norte da Europa. A aeronave já encontrava-se em solo, há algum tempo, mas o passageiro que ele fora buscar não havia ainda cruzado a porta de chegada.  

Longos minutos depois, aquele sorriso inconfundível cruzava a porta automática e vinha na sua direcção. Ele estendeu a mão, num gesto amigável e formal. O rapaz puxou-o contra o peito e deu-lhe um abraço fraternal, surpreendendo-o completamente. A mão estendida, evidentemente, não lhe havia sido suficiente.

- Você está como o vinho. Parece cada vez melhor, com o passar do tempo…

- Não exagera, rapaz…

As janelas do carro estavam baixadas e o vento de verão, que entrava sem pedir nem fazer cerimónias, brincava com os cabelos dos dois. Ele ouvira o elogio e tentara, timidamente, dizer-se não merecedor do mesmo. Mas intimamente sabia que deliciava-se com a observação do outro.

- E tu? Como estás?

- Estou bem…

Ele fez uma pequena pausa,  olhando o outro a conduzir o carro, a caminho do hotel.

- Vou casar…

- Oh! Sério?

- Sim. Já está na hora de aquietar-me na vida… Já tenho trinta anos.

Ele piscou o olho para o amigo, com um sorriso malicioso. O outro homem riu.

- Trinta anos… uma criança ainda…

A notícia, entretanto, havia sido um tanto inesperada e ele ainda não sabia o que pensar a respeito do que acabara de ouvir. Conhecia o outro razoavelmente bem, embora estivessem sem se ver por um bom tempo, mas fora pego de surpresa pela notícia. Um poema foi criado em sua mente naquele momento, sem nunca ser proferido em alta voz. Ele simplesmente  olhou para a frente e engoliu as palavras…

Hate me, please.
Don’t pity me
Don’t patronize me,
Don’t look at me like that.
I just can’t stand the way
Your gaze burns
My soul inside
So, please, my dearest friend,
Just hate me
And let me go away…


O homem olhou com uma expressão séria para a cartomante, cujas mãos, agora pousavam, tranquilamente cruzadas, sobre a mesa à sua frente.

- Posso fazer outra pergunta?

- Claro que sim.

Ele concentrou-se e tirou mais três cartas, que ela dispôs sobre a mesa. Uma carta conhecida apareceu-lhe pela segunda vez. Ele esperou a análise, com os olhos presos na sequência disposta à sua fente...  


1 comentário:

  1. Embora eu tenha pensado que a terceira parte ia ser a última, reconheço que deixei-me levar pela história. Terei que usar algumas palavras a mais, porém, para poder finalizar, na próxima parte.

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