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sábado, 9 de março de 2019

Uma noite a mais (Parte 2)




- Não sei.

- Nem eu… Mas devias saber, afinal foste tu que vieste para cá, assim, depois de tanto tempo.

- Não me julgues, por favor. Já nem sei o que pensar. Tive saudades e uma sensação estranha que devia vir até este lugar… Foi aqui que nós…

 - Não achas que é estranho sentires saudades?

- Não faças isso. Não é justo para nenhum de nós.

Um gritinho de excitação, do lado de fora, chamou a nossa atenção, momentaneamente. Aquela pequena distração era mais que oportuna, para atenuar o clima.

- Olha para ela, lá fora, a brincar com o mar… Algumas coisas não mudam… desde pequena que é fascinada pelo mar!

- Ela cresceu tanto…

- É uma mulher, quase. Um presente dos céus.

- Ora. E desde quando tu acreditas em “céus”? Ela é um presente, sim… da vida… do Universo. Sinto vossa falta, sabias?

Senti uma nostalgia… tinha certeza que ele também. Via a tristeza naqueles olhos. Minha alma estava dolorida, assim como minha cabeça. Olhei para fora e vi que ela vinha caminhando na direção do restaurante, onde bebíamos café, quase distraidamente, na esplanada.

- Olha isso! Molhei as pernas das calças quando o mar pegou-me de surpresa. Tenho que tentar secar isso… e preciso de uma água!

Nós rimos.

- Pede lá dentro, no balcão, meu amor. Não há muita gente para atenderem…

Ela correu para dentro. Acompanhei seus passos, com os olhos. Senti que era observado e virei-me. Olhava-me com uma expressão que eu conhecia bem.

- Que foi?

- Sinto falta de nós…

Meu peito doeu. Minha alma doeu. Meus olhos arderam. Não consegui dizer nada, mas senti lágrimas a me descerem pelo rosto.

- Não chores.

- Eu? Chorar? Claro que não! Não sejas ridículo!

Ele riu. Claro que não acreditava no que eu dizia.

- Pai? Está tudo bem?

- Está tudo bem, meu amor! Senta aqui, connosco.

- Então? Como estão as coisas, na escola?

Ela aprumou-se. Gostava de falar da escola e dos planos que tinha para a faculdade.

***

O mar estava sempre daquele jeito. Parecia um leão a rugir, insistente, mas nunca me conseguia amedrontar, por mais que o tempo passasse, por mais que, na minha cabeça, eu imaginasse que ele, de alguma forma, até tentava. Aquele bramir, ao contrário do que podia ser esperado, me deixava calmo e fazia-me pensar... Fazia minhas viagens na mente… nas lembranças… no passado.

Eu gostava daquele lugar. Tinha boas e, também, más memórias dali, mas as boas sobrepunham as outras. Naquele penhasco, acima da minha cabeça, eu me via, há um bom tempo atrás…

- Precisa de algo?

- Hã? Não. Estou bem, obrigado.

Aquela pele pálida não combinava com o lugar. Nem aqueles olhos. Ele parecia um estrangeiro.

- Posso perguntar uma coisa? Não quero ser atrevido. É uma curiosidade.

- Pode, mas não prometo responder.

- Claro.

A intromissão havia sido um tanto brusca, mas o homem estava, provavelmente, aborrecido por não ter com quem conversar. Eu não estava acostumado a falar com estranhos, especialmente nesta terra, mas vinha tantas vezes a aquele mesmo restaurante, que já conhecia o gerente, que sempre me atendia com cortesia e um sorriso e já não o considerava, de facto, um desconhecido. Ele não era, entretanto, um amigo… ainda…

- Quer que eu peça para trazer uma nata, para acompanhar o café?

- Era esta a pergunta? Se era, a resposta é sim, mas quero uma somente…

Ele riu. Sabia que eu havia percebido que ele estava tentando ganhar confiança, ou coragem, para fazer a pergunta verdadeira. Pediu para a empregada ao balcão trazer-me duas natas, apesar do meu protesto.

- Já faz algum tempo que tenho observado que vem, sempre, aos sábados à tarde, traz o bebé, pede um café, senta-se na esplanada, sozinho e em silêncio, a olhar o mar, e depois vai embora.

- E… ?

- E pergunto-me por que não vem com a mãe da criança. Estão separados?

- Estamos… por assim dizer…

- OK. Já percebi. Desculpe a intromissão e a curiosidade.

- Não há problema.

Ele não havia percebido o que eu quis dizer. Por alguma razão, eu tive vontade de contar-lhe mais, o que não era comum, mas não vi problema em falar ao estranho, que desculpava-se por haver talvez ultrapassado a fronteira da curiosidade.

- Ela faleceu. Éramos grandes amigos. Este lugar me traz boas recordações.

O homem olhou-me, sério, meio sem graça. A criança dormia, na cadeirinha, ao meu lado.

- Eu sinto muito. Não quis ser intrometido.

- Sem problemas. Foi um acidente. Não há nada que ainda possa ser feito.

- Pode-se viver. É o melhor para ela, que está aí, com uma vida inteira pela frente.

- Pois. É uma grande verdade. Ela é o meu bem mais precioso.

- Eu acredito.

Ele olhou-me nos olhos, por uma fração de segundos. Eu mantive o meu olhar no dele. Ele enrubesceu de imediato, como uma criança que é flagrada fazendo alguma peraltice.

-Vou deixá-los a sós.

Saiu, quase às pressas. Eu acompanhei com o olhar, enquanto ele entrava no restaurante. Na porta, deu uma paradinha e virou-se pra trás. Daquela vez, quem ficou vermelho foi eu.

Resmunguei, entre dentes.

- Ora, ora… o que foi aquilo, afinal?

***

Eu estava deitado na espreguiçadeira, com a camisa semiaberta, tomando um pouco de sol. Ele tocou, com os dedos pálidos, a estranha cicatriz, mal desenhada no meu peito. Eu tremi.

- Não tenha medo. Não tenho intenções de machucar.

- Não tenho medo.

- É uma grande cicatriz.

- Foi um acidente: um estúpido acidente, de um homem desajeitado.

- Não acredito que tenha sido estúpido. Tem a ver com o que aconteceu à esposa?

- Ela estava muito doente. O tumor foi detetado após a gravidez estar bastante adiantada. Não podia fazer tratamento químico, sob pena de afetar a criança. Mas a doença enfraqueceu sua saúde. Estávamos a descer a trilha que desce o penhasco, quando ela sentiu-se mal e caiu. Eu vinha atrás e tentei impedir a queda, mas foi tudo muito brusco e eu não tive forças para segurar. Escorreguei e caí de peito na rocha, ao lado dela. Não foi aquele acidente que a matou. Ela foi hospitalizada, após a queda, mas foi enfraquecendo, com o passar do tempo. Optamos por retirar o bebé e fazer o tratamento químico, mas era tarde demais. A menina sobreviveu, mas a mãe não conseguiu. Não foi uma morte súbita, mas foi muito dolorosa… para todos nós.

- Ainda dói?

- Um pouco… às vezes…

- Pois eu nunca casei. Não encontrei a pessoa certa, acho…

- Nós só casamos por causa da gravidez. Era o mais certo, para a criança, na época.

- Eu compreendo. Achas que farias tudo outra vez?

- Eu nunca me arrependi. Mas isso não é um jogo. É a vida. Não se volta a fazer as mesmas coisas, ou cometer os mesmos erros, por opção ou por vontade. O tempo muda as pessoas… as circunstâncias também…

- Vocês se amavam?

Aquela pergunta, mais uma vez, e que eu respondia, sempre, da mesma forma.

- Nós éramos grandes amigos. Sempre havíamos sido um tanto cúmplices, desde o tempo em que estudávamos juntos. Fomos para a mesma universidade, nos formamos na mesma época, saímos de casa na mesma ocasião, dividimos um apartamento e partilhamos nossa liberdade.

- Mas não era amor…

- Mas não era amor, no sentido físico. Era uma coisa mais fraternal, acho.

- Eu compreendo.

Teria eu percebido um leve sorriso, naquela resposta quase inofensiva? Ou teria sido somente uma inocente impressão minha?

***

…”For a taste of your love and 
     I need to taste some more 
    Wave goodbye to heaven for me 
    I've thrown it all away 
    Just to spend one more night with you”…(*)

(*) One more night with you : Ged McMahon



- Gosto desta versão. Não tem o mesmo poder da voz feminina, mas é muito boa também. Parece-me tanto com uma história que eu conheço tão bem…

Olhei para ela e imitei seu jeito de falar.

- Se eu contasse tudo que sei…

- Hah! Melhor não contar nada.

- Pois.

Rimos. Ela levantou-se de onde estava e veio deitar-se no sofá, com a cabeça no meu colo.

- Pai?

- Hum?

- Não seria problema se ele viesse morar novamente connosco, seria?

- Como assim?

- Eu sei que é isso que ele quer. Acho que não é problema, não achas? Ele gosta de nós… e nós gostamos dele…

- Como sabes? Ele não falou nada.

- Ainda… mas é o que eu sinto.

- Foi ele quem se afastou… sabe Deus se foi pelo motivo que alegou. Pareceu-me um tanto covarde…

- As pessoas mudam, pai. Ele deve ter sofrido.

- Só ele?

Ela beijou minhas mãos. Seus olhos fixaram-se na minha face séria. Esboçou um sorriso, tentando ser complacente com o pai emotivo e que ela conhecia tão bem. Tentei não chorar…

***

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma noite a mais (Parte 1)



- Deve ser, pelo menos, a quinta vez que ouves esta canção.

- É, eu sei.

- O que se passa?

- Nada… que importe.

- Sei. Se precisares de alguma coisa, fala. Vou deitar-me.

- OK.

Eu não me virei. Estava com a mente ocupada demais a contemplar o imenso vazio à minha frente. Meus olhos perderam-se na escuridão, que se estendia para além da linha do horizonte, ao longo de um oceano pouco iluminado pelas luzes à beira da praia da baía.

Estava uma noite fresca e calma. Era tarde e já não havia quase nenhum movimento nas ruas. Um estranho silêncio enlaçou-me com seus braços frios, provocando um calafrio, que percorreu-me a espinha. Eu tremi, mas sabia que não era de frio.

A canção recomeçou. Eu havia ativado a função de repetição, de propósito. A voz forte e pungente da cantora penetrou-me os pensamentos, como se fosse uma estalactite de gelo, precipitada do teto rústico e sombrio de uma caverna, para dentro de uma lagoa de águas calmas, mas escuras e profundas.

Quantos mistérios e segredos podem esconder-se abaixo da quietude aparente daquela superfície praticamente intocada?

Fechei os olhos e respirei fundo, mergulhando em meus próprios pensamentos. Cada palavra da canção servia de pano de fundo para uma sequência caleidoscópica de imagens, que traziam meu passado e minhas recordações de volta ao presente, com uma nitidez cruel e carregada de emoções tão vívidas quanto aquelas memórias. 

…” They say that love can move a mountain
    They say love can break your heart 
   They say love can make you forget 
   Things that happened in the past” …  (*)

Se aquelas palavras eram verdadeiras, eu não havia experimentado nada similar… até então…

***

Acariciei a cicatriz, como se ela fosse um animal de estimação.

Incrível como nos apegamos às marcas deixadas, tanto no corpo, quanto na alma e as acariciamos sempre que nos sentimos frágeis, como se aquilo nos fosse dar alento e abreviar a solidão ou a dor. É como afagar nossos erros, dando-lhes uma visão mais condescendente. É como trazer alento ao coração, amenizar o efeito de um pecado e conceder uma hipótese de salvação à alma do pecador.  

…”So wave goodbye to heaven for me

  I've thrown it all away

 Just to spend one more night with you”…(*)


- Ainda estás assim?

- Assim como?

- Tu sabes. Eu não sou uma criança, que tu possas enganar facilmente.

- Eu sei que não…

Minhas mãos deslizaram suavemente pelas teclas do piano, talvez, procurando, instintivamente, esquecer aqueles mesmos acordes que não me saíam da cabeça ou dos dedos, já há algumas semanas.
Eu li, uma vez, em algum lugar, que as teclas do piano representam nossos sentimentos. Enquanto as brancas denotam nossas emoções positivas, as pretas representam as negativas. A harmonia, entretanto, só é conseguida com um equilíbrio entre ambas. Não se pode fazer boa música, sem usar tanto as teclas brancas quanto as pretas, assim como não se pode viver a vida verdadeira e completamente, sem um equilíbrio entre as emoções boas e as não boas.

- Toque a música até o último acorde. É melhor exorcizar esta dor de uma vez por todas!

Olhei para ela, surpreso. A menina havia-se transformado numa jovem muito perspicaz. Então eu toquei. Não exatamente para exorcizar, mas para sentir a dor, tão vívida como se estivesse sendo experimentada, pela primeira vez, naquele momento.

Começando quase como um noturno, a acariciar, as teclas brancas e a martelar, levemente, as pretas, minha dor foi aumentando numa progressão de notas e acordes, que se misturaram à minha voz baixa e fraca, no início, porém elevando o tom, como num sentido blues, até que todos os meus nervos reagiam àquela sequência de notas e palavras. Meus olhos e minha alma transbordavam.
…” They say that love can last forever
    They say love can last a day 
    They say love is like an ocean 
    For us to sail away” … (*)


Eu ia ao fundo do poço, para tomar impulso e voltar à superfície. Era necessário descer ao mais fundo do fundo, para poder voltar, com as forças redobradas.
***
- Foi aqui?

- Sim.

- Vamos descer.

- Não.

- Vamos, sim. Vem comigo.

Saiu à minha frente, antes que respondesse, descendo pelo caminho ao lado do penhasco. Meu estômago doeu. Eu segui, sem dizer nada. O caminho não era seguro e eu devia estar por perto, caso acontecesse algo, embora soubesse que estava a me preocupar sem razão.    

Quando chegamos ao fundo da trilha, a praia abria-se, convidativa, embora ainda fosse primavera. O mar rugia, como se a ameaçar, embora eu nunca tivesse medo daquele bramido. Eu havia nascido na ilha. O mar sempre fora um amigo. Não tinha por que temer um amigo.  

Caminhamos pela orla, com os pés na água fria do oceano, em silêncio, por uns momentos. Um grupo de ruidosas gaivotas voavam por sobre nossas cabeças e o vento fustigava nossos rostos.

- Foi um acidente, não foi?

- Foi. Um infeliz acidente.

- Vocês se amavam muito, não?

Eu não pensei.

- Nós éramos grandes amigos. Desde o tempo em que estudávamos juntos.

- Isso não é uma resposta.

- Não. Não é.

Olhou-me com aquele ar de quem quer saber a verdade, quando já não há verdades a saber.

- Então por que vocês decidiram que deviam ter um filho?

- Porque era a vontade dela. Era melhor termos um filho, juntos, sabendo do respeito que tínhamos um pelo outro e sabendo que era melhor isso, que esperar por um sentimento que não existia. Ela era uma mulher prática.

- Vocês nunca se arrependeram da decisão?

- Claro que não. Por que razão haveríamos de nos arrepender?

- Sei lá. Não havia amor…

- Havia um respeito e um carinho muito grande. Ela tinha medo de envelhecer, antes de poder ser mãe… coisas de mulheres!

- Haha! Até parece…

Eu ri. Um riso pálido, quase sem graça. Sabia que ia ter que contar a história toda, pela milionésima vez.

- Achas que vocês foram felizes?

- Talvez. Antes de…

- É estranho…

- O que?

- Aquela vossa relação. A doença. O acidente.

- Não é estranho. O acidente foi uma consequência da doença.

- Mas tu também podias ter morrido.

- Acho que não. Eu só tive uma queda feia, quando tentei ajudar. Falta de jeito, mesmo…

- A cicatriz é grande.

- A dor é maior!

Calou-se. O mar parecia explodir contra as rochas. Caminhou uns segundos, em silêncio, e virou-se. Franziu os olhos, como se estivesse tentando ver algo, atrás de mim, à distância. Pareceu-me que uma nuvem negra se passou pela sua face jovem.

- Pai?

- Que foi?

- É ele, lá em cima do penhasco?

- Hã? O que ele faz aqui?

***

(*) One more night with you : Ged McMahon featuring Kaz Hawkins


***



sábado, 29 de setembro de 2018

As Pedras Grandes (Parte 3)



- Cuidado como o que tu acreditas. A mente humana é muito poderosa.

- Ela foi muito generosa.

- Ela? As duas são completamente loucas. Toma cuidado…

Riu-se, mas percebi que havia algo por trás daquele sorriso. Talvez fosse somente preocupação ou, até, dúvida, mas uma sombra me passou pelo coração, perturbando minha paz.

***

O vento sul soprava, sem piedade, na baía, remexendo as águas e tingindo o tranquilo verde-azulado em agitados tons de ocre e siena natural.

Por mais que ouvisse imprecativos contra, eu sempre adorei as tardes de ventania. Eu divertia-me. Talvez tivesse recordações queridas daquelas tardes em que caminhar para o colégio era quase uma aventura e o vento que soprava, ensandecido, pelas bocas das ruas que davam para o mar, desalinhavam-me os cabelos longos.

Saí à varanda e fechei a porta atrás de mim. Estava fresco, sem necessariamente estar frio, mas eu não queria as portas batendo, nem as coisas desarrumadas.

Fiquei a observar as pessoas a caminhar, arcadas contra o vento, pela orla. O mar agitado levava meus pensamentos, livres, para além das vagas, para além da ilha à minha frente. Passaram-se várias lembranças, algumas mais profundas que outras, mas nenhuma ficava tempo suficiente, para preocupar-me.

Eu nasci na ilha. Sempre tive o mar como pano de fundo, desde a infância, para minhas viagens mentais. Aprendi a ler as indicações do mar e do céu, na previsão do tempo. Aquele vento era prenúncio de mau tempo. As nuvens cor de chumbo já vinham ligeiras por sobre o Morro do Cambirela, trazendo chuva e temperaturas mais baixas.

As canoas haviam sido guardadas nos ranchos, com as redes e tarrafas enroladas. Não era tempo bom para pesca. O grupo de pescadores terminou a tarefa de recolha das embarcações e tarrafas, subiu a praia e veio caminhando na minha direcção.

- Vamos ter chuva à noite.

O anúncio, na sabedoria simples dos homens do mar, era somente uma confirmação daquilo que eu já previra.

- Com certeza. Amanhã já deve estar mais calmo.

- Que nada! Essa é para três dias, no mínimo. Vem sem a trovoada. Com trovoada vinha e ia rápido, mas não essa…

- É verdade. Bem pensado…

O homem riu. A pele do rosto era vincada e bronzeada, de uma maneira natural. O sorriso era aberto e espontâneo. Estava contente por haver dito algo que eu não pensara. Fazia-o sentir-se superior. Ele ajeitou o velho chapéu de palha e continuou seu caminho, junto com os outros.

Olhei para o céu. As nuvens aproximavam-se, trazendo, com elas, a densa precipitação. Antes mesmo do anoitecer teríamos o tempo a piorar.

- Vem chuva.

Virei-me, sem dizer nada. Estava, de pé, atrás de mim, mas sem sorrir, o que não era comum, quando chamava a atenção para algum facto, assim do nada, pegando-me de surpresa. Com aquela ventania, não ouvira o som da porta a abrir-se.

- Sem dúvida. Vem bastante chuva. Estás bem?

Aproximou-se. O vento desalinhava-lhe os cabelos.

- Estou… acho…

Olhei aquele rosto, que eu conhecia bem, de frente e não me convenci.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não sei. Sinto um aperto no peito.

Neste momento uma lufada de vento soprou contra nós e, abrindo a porta, com violência, desarranjou o tapete e as coisas na sala, batendo portas e causando enorme alvoroço geral.

- Que droga! Vamos para dentro!

A chuva caiu logo em seguida, apressando-nos a nossa recolhida dentro da casa. Eu entrei e segurei a porta, esperando que passasse.

- Ainda bem que estávamos na varanda e não na rua ou na praia.

Um vulto passou por nós, muito rapidamente, enquanto eu ainda segurava a porta.

- Que foi isso?

A face lívida me olhava com os olhos muito arregalados. Parecia que havia visto assombração.

- Não sei!

Eu procurei, na cozinha e na área de serviço. Não achei nada. Quando já ia a caminho da sala, um ruído me faz parar e voltar. Peguei uma lanterna, pois a luz era parca e verifiquei, com cuidado, atrás da máquina de lavar roupas.

Os grandes olhos verdes reflectiram a luz da lanterna. O gato, todo preto, como uma noite sem lua, havia entrado, provavelmente assustado com a chuva e o vento, na primeira porta aberta que viu… a minha.

- Venha cá, mas com cuidado, sem fazer barulho.

- O que foi?

- Ele está assustado. Cuidado para não te atacar. Vê se ainda temos atum em lata, para tentar acalmar o bichinho com um pouco de comida. Ele só vai sair quando se sentir seguro. Ou vai tentar fugir, se for daqueles mais ariscos.

Ainda tínhamos, felizmente, umas latas de atum em conserva. Coloquei um pouco num pires e, falando muito calmamente, empurrei a comida para perto de onde estava. Um pouco mais distante deixei uma tigelinha com água limpa e fresca.

Apaguei a luz da área de serviço e saí. Sentamo-nos na sala, esperando que o melhor acontecesse… mesmo que o melhor fosse o bichinho ir-se embora pela janela aberta da área de serviço.

- Deixei a janela da área aberta, para que ele saia, caso queira. Não quero que se sinta acuado e com medo.

- Deu-me foi um grande susto! Pensei que fosse outra coisa.

Eu ri.

- Não pensavas que era uma assombração, pensavas?

Abriu a boca para falar alguma coisa, mas não disse nada. Passou a mão no peito a acariciou o pequeno amuleto, pendurado ao pescoço. Fingi que não vi.

Ainda estávamos ali, sem dizer mais nada, quando um ruído muito discreto fez-nos olhar para a cozinha. O gato saíra detrás da máquina de lavar roupas e vinha caminhando, ainda meio desconfiado, na nossa direcção. Sem cerimónias e sem olhar para mim, como se eu ali não estivesse, saltou do tapete no colo da minha filha, que foi surpreendida pela atitude do bichinho. Ele apoiou-se em suas pernas e esfregou a cabeça contra suas mãos, como se a pedir um afago. Ela olhou-me e, vendo que eu sorria, deixou a mão aberta, para que o gato soubesse que era bem-vindo.  Ele deu a cabeça e, depois, o dorso para ser acariciado, num gesto de extrema confiança. Depois aninhou-se em seu colo e me olhou, com olhos meio cerrados, mas tranquilos.

- Acho que ganhaste um amiguinho.

- Não parece um gato mal tratado, nem mal alimentado. Ele é tão adorável. Mas deve ter dono.  

- Amanhã procuramos o dono, então.

- Quando a chuva passar…

Acedi. O gato fechou os olhos e dormitou ali mesmo, no colo dela. Estava confortável.

Não me admirava nada. ‘Incrível como os animais percebem logo quem é confiável’, pensei.

***

A chuva e o vento castigaram o lugar por três dias inteiros. O gato estava sempre perto dela. Naqueles três dias, pareciam inseparáveis.

- Se não acharmos o dono, já tenho dois nomes a escolher para ele.

- Não te apegues demais, senão vais sofrer. E que nomes pensaste?

- Ou Mr. Crowley ou Mefisto.

Dei uma gargalhada.

- Ambos os nomes muito sedutores, com certeza.

- Ambos combinam bem com ele.

- Então chamaremos de Mr. Mefisto Crowley. Assim não terás que escolher.

- Assim será, então.

O gato, como se houvesse percebido que falava-se dele, levantou a cabeça e, de um salto, veio ao colo dela, onde ofereceu o corpo para um carinho.

- Olá, Mr. Mefisto Crowley. Você é um bom menino, não é?

Ele piscou os olhos, devagar, como se respondesse com um ‘sim’ e um ‘gosto de ti’.

Procuramos por toda a vizinhança, assim que a chuva parou, inclusive na clínica veterinária local, para saber se alguém havia reclamado, mas ninguém parecia ter dado conta de algum animal perdido.

Passados alguns dias, resolvemos que Mr. Crowley ia ficar connosco para o resto de suas sete vidas. Devidamente desparasitado, vacinado e marcado com um chip e uma coleira de couro vermelha, o bichano passava seus dias a dormitar no sofá da sala ou no seu ponto preferido na cama dela. A mim, dava-me pouca atenção, excepto quando queria comida.

Quando íamos caminhar na praia, porém, ele nos acompanhava, com a cauda em riste, todo prosa e cheio de si. Era destemido e curioso, mas mantinha-se, sempre, por perto de nós, como se estivesse preocupado em não nos perder de vista ou disposto a nos proteger. Os pescadores divertiam-se a ver um gato comportando-se daquele jeito e, às vezes, ofereciam-lhe peixes, que ele aceitava de bom grado, embora preferisse a comida cozida. Era quase como se soubesse que devia manter a rede de contactos bem activa e disponível.

Num final de tarde de domingo estávamos na varanda a gozar um pouco do ar da primavera, com o felino deitado à última réstia de sol que ainda incidia sobre o chão de madeira, quando ele levantou-se, de súbito, e olhou na direcção da praia, onde as grandes pedras estavam. Suas orelhas pareciam dois pequenos radares a procura de algum som, que somente ele havia percebido, com seus sensíveis tímpanos.

Para nossa surpresa, que não víamos nada além das grandes rochas na praia, Mr. Mefisto Crowley deu um salto e correu pelas areias à beira-mar, até onde a rocha mais parecida com uma enorme pessoa, estava assentada.

- Mefisto! Volta cá!

Ele não se virou, nem deu atenção à menina, que já ia a correr, seguida por mim, pelas areias banhadas de sol.

- Mefisto!

O gato estava parado, em cima de uma das rochas, a olhar para trás de uma delas, fixamente. A maré estava calma, mas de repente um forte vento começou a soprar. O gato permaneceu lá, até quando nos viu chegar mais perto. Saltou da rocha e esperou por nós.

- Ele é um animal muito especial!

- O quê?

O homem, que saiu de trás da rocha, agachou-se e estendeu a mão, como se quisesse tocar no gato, mas este deu um passo atrás, arrepiou o pelo do dorso e tomou posição de ataque. O homem, todo vestido de negro, sorriu, de um jeito estranho.

- Então, Mefós, já não me conheces mais?

O gato escondeu-se atrás de nós.

- O nome dele é Mefisto!

- Pois. Coincidentemente, foi um nome muito bem atribuído, se levarmos em conta o passado dele!

***