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sábado, 13 de outubro de 2018

As Pedras Grandes (Final)



- Claro que ele sabia o nome. Nós vínhamos gritando o nome do bicho pela praia afora!

- Mas ele o chamou de Mefós.

- Pesquisei sobre isso. Segunda consta, é grego e significa ‘ausência de luz’. Está na explicação da origem do nome Mefistófeles, na história do Fausto. Faz sentido, quando fazemos referência à cor do bichano.

- Ele era um homem muito estranho. Ainda bem que não nos levou nosso amiguinho.

- Não era a intenção. Ele queria que ficássemos assustados.

- Eu fiquei!

- Sei que sim, mas não adianta nada parecer assustador, sem dizer a que veio. Tenho a impressão que ainda nos vamos ver uma outra vez.

- Tomara que Mefisto esteja por perto. Ele me dá tranquilidade.

- Ele estava bastante agitado… agressivo… E é um animal tão dócil.

- Por isso eu o quero por perto.

***

- Descobri umas coisas sobre nosso amiguinho de quatro patas. Ele pertencia à uma mulher, muito velha. Já está na vida dela há algumas décadas.

- Como assim? Eles não vivem tanto…

- São várias gerações. O que me disseram, e eu não confirmo, foi que quando o gato ficava velho, ela escolhia um dos filhotes mais parecido com o pai, das ninhadas de sete gatinhos e dava-lhe o mesmo nome. Era como a reencarnação do gato-pai e era o protector da mulher. Dizem que um enviado do diabo anda atrás do bichano…

- Será que isso faz sentido?

- Acho que há bastante de lenda nesta história, pois foi contada pelos pescadores e pelas mulheres deles. Vamos voltar ao Ribeirão da Ilha.

- A sério? Vamos mesmo?

- Precisamos investigar umas coisas, sobre uma certa mulher, muito velha e seu animal de estimação… e, mais alguma coisa , talvez…

***

- Vocês chegaram tarde demais. Ela faleceu no dia da tempestade. Foi logo ao entardecer, quando a chuva começou. Deitou-se para descansar e não acordou mais.

- Oh! Que pena!

Eu olhei para minha filha e ela logo percebeu o que eu não ia querer dizer em voz alta. Foi aproximadamente na mesma hora que o gato entrou em nossa casa… e em nossas vidas.

- Há uns dias, um homem estranho apareceu aqui perguntando por ela. Ele era… assustador, para não dizer pior, mas não conseguiu nada de mim.

A moça descreveu o estranho e nós percebemos que era o mesmo homem que havíamos visto na praia. Fizera muitas perguntas sobre a velha mulher e sobre um gato, que deveria pertencer à ela. O que ele poderia querer, afinal?

- Ela deixou uma coisa para vocês. Pediu-me que entregasse somente a vocês dois. Parece que sabia que viriam atrás dela, uma vez mais.

A moça, então, deu-me uma caixinha de madeira, que trouxe do quarto onde a velha senhora costumava dormir. Nela havia umas fotografias muito antigas. Numa delas, apareciam três pessoas. No verso, uma data, escrita a tinta permanente: 1916. A semelhança era incrível.

- Meu Deus! Como é que pode?

- Isso é uma coincidência muito grande!

A moça sorriu, ante a nossa surpresa.

- O Universo conspira de uma maneira muito única e específica, para determinados fins! Quem poderia questionar o inquestionável?

Eu observei melhor a fotografia.

- Olhe ao pé dos três. 

- Não é possível! É um gato preto! 

***

- Algo não está certo.

- O quê?

- Não sei. Sinto uma tristeza tão grande… Fiquei mesmo chateada com a notícia da morte!

- Eu sei. Eu também fiquei muito triste.

- Fico pensando no que ela disse. O amuleto vai-me proteger…

- Cuidado! Ainda vais ficar impressionada com isso e ficar imaginando coisas. 

- Aquela foto impressionou-me muito. Além de sermos muito parecidos com aquelas pessoas, havia mais algo. O gato aos pés deles era, certamente, o nosso Mefisto! Fiquei com um aperto no peito...



-Não podia ser, por razões óbvias. Ainda tens o amuleto contigo?

- Sim. Por quê?

- Joga fora. Atira-o ao mar.

- Mas ela disse…

- Sabes muito bem que as pessoas são impressionáveis. E tu te estás deixando afectar. Já não me interessa o que ela disse. Joga-o fora. É isso que te está deixando assim. É o poder da sugestão.

- Nós a ajudamos e ela deu-mo de presente, em retribuição. Não posso fazer isso.

- Então faço eu. Foi um presente que revelou-se envenenado, isso sim. São apensas coincidências. Ela te encheu a cabeça com sandices e isso está a ficar incontrolável. Aquela conversa de protecção, de um futuro muito cheio de sucesso e amor… tu sabes que só acontece em sonhos e não se realiza sem muito trabalho.

Ela tirou o cordão do pescoço e ficou a olhar, com pena de separar-se dele.

Arranquei-lhe o amuleto da mão e, indo até a beira d’água, atirei-o mar adentro, com força suficiente para além da zona de formação das ondas. Voltei para dentro, com um ar de satisfação estampado no rosto.

- Não foi justo. Não foi nada justo…

- O quê?

Olhou-me de uma maneira estranha e balançou a cabeça de forma desconsolada, olhando através de mim, com o corpo levemente encurvado para a frente.

- Nada justo… nada justo…

Eu levantei o tom da voz.

- Não brinques com isso! Nunca!

- O quê? Não é brincadeira.

- Não voltes a fazer isso! Nem de brincadeira!

***

Os pescadores estavam a retirar os peixes das redes, com o gato sentado por perto, a espera que sobrasse algum para si. Ele era a diversão dos homens do mar, quando chegavam da lida matutina e recolhiam o produto da pesca de suas pequenas embarcações.

Umas pequenas sardinhas sempre sobravam para o gato, que já estava a ficar arredondado com tanto mimo. Como ele se exercitava bastante, não nos preocupava o aumento de peso.

O tempo havia passado e ele estava cada vez mais confortável connosco. Já conhecíamos um pouco de suas manias e seus hábitos e muitos deles eram bem-vindos, pois mais nos divertiam que incomodavam. O gato já era parte da nossa família e nós nos considerávamos felizes.

Eu ficava a observar, de longe, a afinidade que ele tinha com o pessoal da região, sem me incomodar em estar, necessariamente, por perto. Ele sempre voltava para nós, quando os homens caminhavam de volta para casa a conversar animadamente. Mefisto saudava-me, ganhava um mimo, deitava na varanda e ficava a dormitar.

Um dos pescadores sempre levava mais tempo a brincar com o gato, afagava-lhe a cabeça e oferecia um peixe, que era aceite com alegria. O homem, o mesmo que me havia alertado sobre a tempestade há algum tempo atrás, tinha um carinho especial pelo animalzinho, que retribuía as festinhas que recebia com um pseudo aperto de mãos. Era engraçado, pois ele fazia aquilo com uma pessoa somente: aquele homem simples do mar. Naquela manhã, pareceu ocupar-se mais tempo com Mefisto.

Algo chamou-me a atenção, enquanto observava, distraidamente o movimento na praia.

Não muito adiante, uma silhueta vinha caminhando, na direção do agrupamento de pescadores. De longe, eu só via que era alguém vestido com roupas escuras. Pelo porte e caminhar, eu tinha certeza que era um homem.

O gato pareceu perceber o mesmo que eu e mudou sua atenção do grupo, para o estranho que se aproximava. Alguém saudou aquele homem, que retribuiu o cumprimento e, em seguida, abaixou-se para afagar o gato. Este recusou a carícia, ficando teso e com os pelos eriçados, em posição de ataque. O estranho levou a mão até o animal, mas recuou rapidamente, levantando-se e dando um passo atrás. O gato avançou. O homem vestido de negro, um velho conhecido, retirou-se rapidamente, caminhando na direção de onde havia vindo.

De onde eu estava, não conseguia ouvir a conversa, se é que houve alguma.

O velho pescador tirou o chapéu e coçou a cabeça. Chamou o bichano, mas ele não veio, até ver que o homem de negro estava fora de seu campo de visão. Depois voltou-se e esfregou-se na perna do amigo, que abaixando-se, pegou o gato no colo e veio na minha direcção.

Eu já estava descendo a escada, caminhando ligeiro até eles. O homem saudou-me.

- O que foi que aconteceu?

- Não sei se entendi direito. O homem quis conversar com o gato, chamando-o de Mefós, mas o bichinho parece que não gostou da conversa.

- Eu vi que ele ficou agressivo.

-Foi quando o homem disse que queria levá-lo, mas não conseguiu tocá-lo…

- O quê?

- Pois foi. E nem sei porque saiu daquele jeito, pois o gato não o atacou. Só ameaçou, mas algo deixou o homem com uma expressão de pavor estampada na cara e ele foi embora, ligeiro e sem olhar para trás.

- Que estranho.

- Sem dúvida.

O homem simples do mar entregou-me o gato, que passou de seus braços aos meus, sem protestar. Despediu-se com um afago na cabeça do nosso Mefisto e saiu.

Eu acariciei o bichinho, que já ronronava com tranquilidade. Foi quando eu notei uma estranha peculiaridade: o gato trazia um artefacto bastante conhecido, pendurado num cordão negro em volta do pescoço, junto à coleira vermelha. Eu sabia que era o mesmo que eu havia atirado ao mar, com tanta raiva, uns dias antes.

Teria sido aquele pequeno objecto que afastara o forasteiro, daquele jeito estranho e com tanto pavor?

Minha filha chegou naquele momento e aproximou-se, apanhando o gato de meus braços e abraçando-o com carinho. Ao passar a mão pela cabeça do bichinho notou o cordão enrolado no pescoço dele. Ela franziu o cenho e olhou-me, com uma expressão esquisita, como se a perguntar de onde viera aquilo.

- Afinal isso serviu para alguma coisa...

Dei de ombros. Existem coisas que eu não sei explicar, nem vou tentar entender.

***

sábado, 29 de setembro de 2018

As Pedras Grandes (Parte 3)



- Cuidado como o que tu acreditas. A mente humana é muito poderosa.

- Ela foi muito generosa.

- Ela? As duas são completamente loucas. Toma cuidado…

Riu-se, mas percebi que havia algo por trás daquele sorriso. Talvez fosse somente preocupação ou, até, dúvida, mas uma sombra me passou pelo coração, perturbando minha paz.

***

O vento sul soprava, sem piedade, na baía, remexendo as águas e tingindo o tranquilo verde-azulado em agitados tons de ocre e siena natural.

Por mais que ouvisse imprecativos contra, eu sempre adorei as tardes de ventania. Eu divertia-me. Talvez tivesse recordações queridas daquelas tardes em que caminhar para o colégio era quase uma aventura e o vento que soprava, ensandecido, pelas bocas das ruas que davam para o mar, desalinhavam-me os cabelos longos.

Saí à varanda e fechei a porta atrás de mim. Estava fresco, sem necessariamente estar frio, mas eu não queria as portas batendo, nem as coisas desarrumadas.

Fiquei a observar as pessoas a caminhar, arcadas contra o vento, pela orla. O mar agitado levava meus pensamentos, livres, para além das vagas, para além da ilha à minha frente. Passaram-se várias lembranças, algumas mais profundas que outras, mas nenhuma ficava tempo suficiente, para preocupar-me.

Eu nasci na ilha. Sempre tive o mar como pano de fundo, desde a infância, para minhas viagens mentais. Aprendi a ler as indicações do mar e do céu, na previsão do tempo. Aquele vento era prenúncio de mau tempo. As nuvens cor de chumbo já vinham ligeiras por sobre o Morro do Cambirela, trazendo chuva e temperaturas mais baixas.

As canoas haviam sido guardadas nos ranchos, com as redes e tarrafas enroladas. Não era tempo bom para pesca. O grupo de pescadores terminou a tarefa de recolha das embarcações e tarrafas, subiu a praia e veio caminhando na minha direcção.

- Vamos ter chuva à noite.

O anúncio, na sabedoria simples dos homens do mar, era somente uma confirmação daquilo que eu já previra.

- Com certeza. Amanhã já deve estar mais calmo.

- Que nada! Essa é para três dias, no mínimo. Vem sem a trovoada. Com trovoada vinha e ia rápido, mas não essa…

- É verdade. Bem pensado…

O homem riu. A pele do rosto era vincada e bronzeada, de uma maneira natural. O sorriso era aberto e espontâneo. Estava contente por haver dito algo que eu não pensara. Fazia-o sentir-se superior. Ele ajeitou o velho chapéu de palha e continuou seu caminho, junto com os outros.

Olhei para o céu. As nuvens aproximavam-se, trazendo, com elas, a densa precipitação. Antes mesmo do anoitecer teríamos o tempo a piorar.

- Vem chuva.

Virei-me, sem dizer nada. Estava, de pé, atrás de mim, mas sem sorrir, o que não era comum, quando chamava a atenção para algum facto, assim do nada, pegando-me de surpresa. Com aquela ventania, não ouvira o som da porta a abrir-se.

- Sem dúvida. Vem bastante chuva. Estás bem?

Aproximou-se. O vento desalinhava-lhe os cabelos.

- Estou… acho…

Olhei aquele rosto, que eu conhecia bem, de frente e não me convenci.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não sei. Sinto um aperto no peito.

Neste momento uma lufada de vento soprou contra nós e, abrindo a porta, com violência, desarranjou o tapete e as coisas na sala, batendo portas e causando enorme alvoroço geral.

- Que droga! Vamos para dentro!

A chuva caiu logo em seguida, apressando-nos a nossa recolhida dentro da casa. Eu entrei e segurei a porta, esperando que passasse.

- Ainda bem que estávamos na varanda e não na rua ou na praia.

Um vulto passou por nós, muito rapidamente, enquanto eu ainda segurava a porta.

- Que foi isso?

A face lívida me olhava com os olhos muito arregalados. Parecia que havia visto assombração.

- Não sei!

Eu procurei, na cozinha e na área de serviço. Não achei nada. Quando já ia a caminho da sala, um ruído me faz parar e voltar. Peguei uma lanterna, pois a luz era parca e verifiquei, com cuidado, atrás da máquina de lavar roupas.

Os grandes olhos verdes reflectiram a luz da lanterna. O gato, todo preto, como uma noite sem lua, havia entrado, provavelmente assustado com a chuva e o vento, na primeira porta aberta que viu… a minha.

- Venha cá, mas com cuidado, sem fazer barulho.

- O que foi?

- Ele está assustado. Cuidado para não te atacar. Vê se ainda temos atum em lata, para tentar acalmar o bichinho com um pouco de comida. Ele só vai sair quando se sentir seguro. Ou vai tentar fugir, se for daqueles mais ariscos.

Ainda tínhamos, felizmente, umas latas de atum em conserva. Coloquei um pouco num pires e, falando muito calmamente, empurrei a comida para perto de onde estava. Um pouco mais distante deixei uma tigelinha com água limpa e fresca.

Apaguei a luz da área de serviço e saí. Sentamo-nos na sala, esperando que o melhor acontecesse… mesmo que o melhor fosse o bichinho ir-se embora pela janela aberta da área de serviço.

- Deixei a janela da área aberta, para que ele saia, caso queira. Não quero que se sinta acuado e com medo.

- Deu-me foi um grande susto! Pensei que fosse outra coisa.

Eu ri.

- Não pensavas que era uma assombração, pensavas?

Abriu a boca para falar alguma coisa, mas não disse nada. Passou a mão no peito a acariciou o pequeno amuleto, pendurado ao pescoço. Fingi que não vi.

Ainda estávamos ali, sem dizer mais nada, quando um ruído muito discreto fez-nos olhar para a cozinha. O gato saíra detrás da máquina de lavar roupas e vinha caminhando, ainda meio desconfiado, na nossa direcção. Sem cerimónias e sem olhar para mim, como se eu ali não estivesse, saltou do tapete no colo da minha filha, que foi surpreendida pela atitude do bichinho. Ele apoiou-se em suas pernas e esfregou a cabeça contra suas mãos, como se a pedir um afago. Ela olhou-me e, vendo que eu sorria, deixou a mão aberta, para que o gato soubesse que era bem-vindo.  Ele deu a cabeça e, depois, o dorso para ser acariciado, num gesto de extrema confiança. Depois aninhou-se em seu colo e me olhou, com olhos meio cerrados, mas tranquilos.

- Acho que ganhaste um amiguinho.

- Não parece um gato mal tratado, nem mal alimentado. Ele é tão adorável. Mas deve ter dono.  

- Amanhã procuramos o dono, então.

- Quando a chuva passar…

Acedi. O gato fechou os olhos e dormitou ali mesmo, no colo dela. Estava confortável.

Não me admirava nada. ‘Incrível como os animais percebem logo quem é confiável’, pensei.

***

A chuva e o vento castigaram o lugar por três dias inteiros. O gato estava sempre perto dela. Naqueles três dias, pareciam inseparáveis.

- Se não acharmos o dono, já tenho dois nomes a escolher para ele.

- Não te apegues demais, senão vais sofrer. E que nomes pensaste?

- Ou Mr. Crowley ou Mefisto.

Dei uma gargalhada.

- Ambos os nomes muito sedutores, com certeza.

- Ambos combinam bem com ele.

- Então chamaremos de Mr. Mefisto Crowley. Assim não terás que escolher.

- Assim será, então.

O gato, como se houvesse percebido que falava-se dele, levantou a cabeça e, de um salto, veio ao colo dela, onde ofereceu o corpo para um carinho.

- Olá, Mr. Mefisto Crowley. Você é um bom menino, não é?

Ele piscou os olhos, devagar, como se respondesse com um ‘sim’ e um ‘gosto de ti’.

Procuramos por toda a vizinhança, assim que a chuva parou, inclusive na clínica veterinária local, para saber se alguém havia reclamado, mas ninguém parecia ter dado conta de algum animal perdido.

Passados alguns dias, resolvemos que Mr. Crowley ia ficar connosco para o resto de suas sete vidas. Devidamente desparasitado, vacinado e marcado com um chip e uma coleira de couro vermelha, o bichano passava seus dias a dormitar no sofá da sala ou no seu ponto preferido na cama dela. A mim, dava-me pouca atenção, excepto quando queria comida.

Quando íamos caminhar na praia, porém, ele nos acompanhava, com a cauda em riste, todo prosa e cheio de si. Era destemido e curioso, mas mantinha-se, sempre, por perto de nós, como se estivesse preocupado em não nos perder de vista ou disposto a nos proteger. Os pescadores divertiam-se a ver um gato comportando-se daquele jeito e, às vezes, ofereciam-lhe peixes, que ele aceitava de bom grado, embora preferisse a comida cozida. Era quase como se soubesse que devia manter a rede de contactos bem activa e disponível.

Num final de tarde de domingo estávamos na varanda a gozar um pouco do ar da primavera, com o felino deitado à última réstia de sol que ainda incidia sobre o chão de madeira, quando ele levantou-se, de súbito, e olhou na direcção da praia, onde as grandes pedras estavam. Suas orelhas pareciam dois pequenos radares a procura de algum som, que somente ele havia percebido, com seus sensíveis tímpanos.

Para nossa surpresa, que não víamos nada além das grandes rochas na praia, Mr. Mefisto Crowley deu um salto e correu pelas areias à beira-mar, até onde a rocha mais parecida com uma enorme pessoa, estava assentada.

- Mefisto! Volta cá!

Ele não se virou, nem deu atenção à menina, que já ia a correr, seguida por mim, pelas areias banhadas de sol.

- Mefisto!

O gato estava parado, em cima de uma das rochas, a olhar para trás de uma delas, fixamente. A maré estava calma, mas de repente um forte vento começou a soprar. O gato permaneceu lá, até quando nos viu chegar mais perto. Saltou da rocha e esperou por nós.

- Ele é um animal muito especial!

- O quê?

O homem, que saiu de trás da rocha, agachou-se e estendeu a mão, como se quisesse tocar no gato, mas este deu um passo atrás, arrepiou o pelo do dorso e tomou posição de ataque. O homem, todo vestido de negro, sorriu, de um jeito estranho.

- Então, Mefós, já não me conheces mais?

O gato escondeu-se atrás de nós.

- O nome dele é Mefisto!

- Pois. Coincidentemente, foi um nome muito bem atribuído, se levarmos em conta o passado dele!

***