domingo, 13 de abril de 2014

Anno Domini: 4553 (Epílogo: Irmãos)



O rapaz alto, de cabelos longos, escuros e visivelmente sujos, observava a invulgar figura a passar pelo outro lado da rua. Bebia um café amargo, preto e forte, fingindo olhar distraidamente para o lado de fora da janela, mas tinha, por instinto, todos os sentidos em estado de alerta. O rapaz estava visivelmente maltratado pelo tempo, com barba comprida e desmazelada, pele e roupas sujas e aspecto de um andrajoso mendigo morador de rua. Aparentava bem mais que os seus parcos vinte e poucos anos de idade, boa parte dos quais vividos a esconder-se nos túneis dos esgotos da cidadela e a fugir dos assassinos do pai, o cientista que havia morrido num incidente causado pelo puro e inescrupuloso interesse económico-financeiro da poderosa indústria química e farmacêutica, quando ele era ainda muito jovem.

O cientista e o filho pré-adolescente haviam sido perseguidos por terem em seu poder uma vacina que agia diretamente no DNA dos seres humanos, aumentando, espontaneamente, a capacidade de combater as doenças e enfermidades, mantendo as células revigoradas e permitindo-lhes, desta forma, ampliar a expectativa de vida.

A irmã havia desaparecido misteriosamente após um ataque à casa onde estava escondida, no lado oposto da vila. O menino afirmava tê-la visto fugir, em companhia de um homenzinho estranho, pouco antes de desaparecer, mas ninguém, além do pai, acreditava nele. Sem saber se ela havia efetivamente conseguido fugir, sem notícias nem vestígios do corpo, o pai e o irmão refugiaram-se dos assassinos nas dependências do laboratório de uma universidade, cujo chefe da unidade de Pesquisa e Desenvolvimento tinha especial interesse no seu experimento. Através de um contacto dele, foi negociado que a fórmula e uma amostra da vacina seriam enviadas a um programa ultrassecreto, onde estariam reunidos os mais brilhantes cientistas do mundo, em uma estação espacial experimental, que objetivava a viabilidade de povoar outros planetas.

O menino estava ausente, no liceu do campus da universidade, quando o laboratório foi invadido, revirado e destruído. O pai havia sido torturado e assassinado e ele passava a correr sério perigo de vida. Aconselhado a esconder-se, até a ameaça passar, pelo amigo do pai na unidade de Pesquisa e Desenvolvimento, o rapaz viveu como pode, com o pouco que obteve do tutor, até não lhe restar mais nada, além de um asfixiante desejo de vingança, que foi crescendo com o passar dos anos.

Apesar da falta de evidências, porém, ele sentia que a irmã estava, de alguma forma, a salvo e, por isso, passou a procurar, desesperadamente, uma maneira de encontrá-la. O homenzinho que passara do outro lado da ampla calçada, onde os transeuntes passeavam ao sol, lembrava-lhe alguém que ele vira há muito tempo atrás. Os olhos profundamente verdes acompanharam o estranho até ele quase desaparecer do campo de visão. O rapaz levantou-se e dirigiu-se à porta, para ver a direção a seguir. Não queria perder de vista a sua oportunidade de ter certeza que ainda havia algo pelo que lutar, além de sua sede de vingança e destruição.

A explosão que seguiu-se, assim que chegou a porta, foi suficiente para pô-lo a correr em desabalada carreira pelo calçadão da Rambla, desviando dos transeuntes e frequentadores dos bares e restaurantes, que não percebiam o que acabara de acontecer. Até então, ele não sabia que estava sendo observado de perto por seus velhos algozes. Escapara por um triz, mas os outros frequentadores do pequeno Café não tiveram a mesma sorte. Sem poder fazer nada além de fugir, ele tomou um desvio à sua esquerda e entrou no movimentado Mercado Público, onde poderia passar por um simples transeunte apressado. Livrou-se do casaco, roubou um chapéu de palha trançada e um par de óculos de sol e saiu pelos fundos da área onde havia o comércio de pescado. Já do lado de fora, seguiu, a largos passos, até a praia. Jogou a camisa, as calças e os sapatos no lixo, ficando somente com os calções que lhe serviam de cuecas. Foi então que avistou dois homens vindo na sua direção.

Tentando manter a calma e para não dar muito na vista, entrou pelo grande tubo de esgoto que levava aos labirintos obscuros das galerias, que tanto conhecia. Correu como nunca na vida, descalço e sem roupas, deixando pelo caminho o chapéu e os óculos e entrando por vários desvios, de modo a dificultar sua perseguição. Foi quando ouviu o som de passos, num dos túneis à sua frente, que parou e escondeu-se atrás de uma coluna de concreto. Com extremo cuidado, espiou a sombra que se movimentava à sua frente e preparou-se para o combate.

O homenzinho estava entrando por uma pequena fenda atrás de uma das colunas, quando foi atacado. Puxado com violência para o meio do túnel, seus olhos mostravam um pavor que o rapaz nunca havia visto antes. Ele protegeu o rosto com os braços pálidos, tremendo de medo e sem conseguir dizer nada. O rapaz reconheceu-o como o estranho transeunte que observava do lado de fora do Café. Ia começar a interrogá-lo, quando ouviu passos atrás de si. Instintivamente puxou o homenzinho para um canto, cobrindo a boca do mesmo com sua mão grande e suja. Os dois perseguidores passaram correndo por eles, sem percebê-los e foram-se afastando. Ele afrouxou a mão da boca do prisioneiro e fez um sinal para o mesmo ficar quieto.

O homenzinho aproveitou o momento, virou-se e empurrou o rapaz para a fenda atrás da coluna, fazendo-o perder o equilíbrio, mas colocando a si mesmo exposto no meio da galeria. O rapaz ainda ouviu o som de um tiro e depois outro, seguido de uma explosão. Fechou os olhos e deixou-se tombar.

Segundos depois ouvia o som estridente de uma sirene, quando caiu no meio de uma sala pouco iluminada. Um forte facho de luz branca, vindo de um ponto no teto, acendeu-se à sua volta, limitando-lhe os movimentos a uma área muitíssimo restrita.  

Um alerta no sistema de segurança indicava que um intruso tentara penetrar nos terminais sem autorização. Sem o código de segurança implantado, ele aguardava na sala intermediária do Limbo, para questionamentos. Seria devidamente higienizado, ficaria em quarentena e deveria ser interrogado, até ser libertado... ou não.

***

- Eu esperei por longos anos. Como pudeste fazer isto connosco? Não pensaste no que deixaste para trás? Não tentaste voltar?

- Eu não podia voltar. Não tinha permissão para tal e não podia colocar em risco a segurança dos outros.

- Foi ele, não foi? Ele quem te induziu a ficar do lado de cá…Como pudeste fazer isto, Leona?

- Isso aqui é o futuro, meu irmão. Esta sociedade desconhece a violência, a ganância, a maldade... e também a beleza e o prazer... Nós, para eles, somos aberrações pertencentes ao passado...não temos nossos desejos, nem as vontades satisfeitas...

- Leona, me tire daqui. Eu sou teu irmão!

- Eu não tenho como fazer isso, por mim própria, mas vou tentar, mesmo assim, convencer o Conselho a libertar-te.

***

- Quando nós chegamos à esta galáxia, há muitos anos atrás, nosso único intuito era preservar a nossa vida e reproduzir o habitat de nosso planeta-casa anterior. Nossa intenção foi de dar à nossa raça sobrevivente, condições de vida. De vida, somente. Não quisemos aceitar que éramos uma estirpe falida e em extinção, como tantas outras que deixamos, por descuido ou propósito, desaparecerem por completo da face da terra. Este planeta era árido e sem vida. Nós tentamos reproduzir a sobrevivência, através do processamento das condições naturais, filtros e reutilização do Oxigénio e outros elementos essenciais. Nossos cientistas eram os mais especializados – a elite dos cérebros mais brilhantes da casta mais douta, selecionados para instalar uma estação de sobrevivência fora da Terra. Quando a estação foi trazida, tínhamos poucas esperanças, por isso fizemos o melhor que pudemos, para construir a 'Acrópole' e extinguir o medo e a insegurança.

Quando conseguimos reprogramar os terminais de transporte, para fazer as viagens também através do tempo, conquistamos um grande marco na nossa história. Tínhamos porém que ser cuidadosos, para não trazer ou levar problemas para onde íamos ou de onde vínhamos. Por este motivo o controle dos terminais de tempo passou a ser atribuição do Conselho.

Como é de vosso conhecimento, os membros são escolhidos por meio de testes de aptidão científica e ainda pelo discernimento e controle emocional. O chefe tem ainda que ser o mais votado, em sessão secreta, por todos os membros do Conselho e ainda tem que ser submetido a uma outra bateria de testes de cunho psicológico. Além de ser especialista em ciência, tem que saber exprimir-se em público e ter controlo emocional suficiente para não provocar o pânico, quando alguma tragédia for reportada.

O que temos em nosso terminal de segregação é um visitante do passado. Ele é filho do grande cientista que desenvolveu a imunidade, que hoje utilizamos e que nos permite viver tão longa e saudavelmente. O que vos peço é que considerem permitir-lhe viver entre nós. O meu voto já foi dado. O vosso é necessário. Votem conscientemente, por favor. O Conselho voltará a reunir-se em dois dias.

***

O chefe do Conselho parecia cansado. Ele sabia que a decisão não era fácil para os membros do Conselho. A responsabilidade sobre a decisão era grande demais, por isso tinha que ser muito ponderada, antes de expressa. Eles experimentavam, naquele momento, uma emoção que há muito não sentiam: medo!

- Leona, agora é uma questão de tempo. A decisão não é minha, somente, como tu sabes.

- Eu sei, meu querido. Sei o que se passa na cabeça de todos e também sei quão difícil será tomar a deliberação. Agradeço muitíssimo a tentativa.

Leona havia sido trazida há bastante tempo atrás. O conceito de beleza e paz havia mudado desde que viera. Ela fora apresentada como a filha do cientista responsável pela longevidade dos habitantes daquele planeta e era vista e respeitada como uma personagem a ser protegida.

- É tão difícil...

- Eu sei, meu amado... eu sei...

- Meu mundo sempre foi frio e monocromático...Nós somos cientistas, não somos guerreiros, nem artistas. Ensina-me, Liana. Eu quero aprender a ver mais beleza nas coisas.

- Meu amado, ela está nos olhos de quem a vê. A razão é, por defeito, míope e não vê a beleza com os mesmos olhos que a emoção a vê.

Ele olhou a mulher com um carinho que não lembrava haver sentido antes. Ela era sábia e segura de si; uma ilha no meio do oceano imenso de incertezas e inseguranças em que o mundo dele vivia. Os olhos, verde-esmeralda, eram tão expressivos, que ele às vezes não precisava de palavras para saber o que ela sentia. Os lábios eram bem desenhados e impressionavam quando ela abria o sorriso de menina e praticamente incendiava a alma do homem, cuja responsabilidade sobre a vida daquela gente, era imensa. Ao estar com ela, ele quase podia esquecer o peso da carga que trazia sobre os ombros.

- Ensina-me mais, por favor. Eu gosto quando tu falas. A tua sabedoria é-me valiosa e deixa-me perplexo, enchendo meu coração de calor e...

Ele hesitou, por uma fração de segundo, apenas. Ela fingiu não perceber. Olhou para ele, como tentasse ler o que havia por trás daquela estranha parada no discurso, mas ele já continuava a falar.

- … de vontade de viver…

Ela continuou, sem deixar transparecer haver percebido a pausa, mas, lá no fundo, seu coração apertou.

- O que importa não é a velocidade, nem a quantidade de coisas que se faz. Tampouco é o exagero. A intensidade é que conta. O sabor das amoras, do chocolate e o aroma do café, o cheiro da terra molhada pela primeira chuva… tudo aquilo que te deu prazer em fazer, em usufruir, em sentir. Isso é o que conta…

Ele desconhecia aquelas sensações. Em seu mundo não havia aroma de café, nem sabor a chocolate ou amoras… Olhou-a como se não percebesse muito bem o que ela queria dizer. Os olhos de Leona brilharam, como se ela tivesse tido uma ideia repentina. Ela sorriu e disse:

- Como o toque das asas das borboletas na pele, então… Faz mais sentido?

Ele assentiu, sorrindo. Aquela era uma sensação que conhecia e que havia despertado nele um interesse inesperado por viver. Ele quase esquecia o peso da carga que teria que assumir, em dois dias, em nome da decisão do Conselho.

***

- O que nós fazemos aqui? Não somos um povo conquistador. Não somos um povo preservador, pois já não há nada a preservar. Não deixamos descendentes; então não há legado. Somos cientistas que mantêm a vida, sem saber direito o porquê. Nossa raça está em decadência… e em depressão. O passado pode nos ensinar a viver o futuro com mais consciência da beleza, pelo menos...

Ele olhou na direção da mulher com a cabeça coberta por um capuz, que escondia boa parte de sua face, mas cujos lábios eram evidentes. Numa multitude de cabeças, quase todas tão iguais, ela destacava-se. Ela ergueu a cabeça e seus olhos pareceram brilhar, ao fixarem nele. Um aperto na garganta quase impediu-o de continuar.

- Vamos ao veredito...

Leona era o único motivo pelo qual ele havia mudado completamente o modo de pensar, nos últimos tempos. Ela havia trazido vida a quem não tinha objetivos e beleza a quem já não sentia prazer em viver. Ele tinha medo de decepcioná-la, se o Conselho tomasse uma decisão desfavorável.

***

Leona abraçou o irmão com ardor. A sentença havia sido dada. Ele passaria por um período probatório, convivendo com os novos humanos da 'Acrópole'. O Conselho iria reunir-se dentro de alguns meses, para tomar a decisão final, baseada no comportamento dele.

O chefe do Conselho entrou no aposento e sorriu ao ver os irmãos abraçados. Leona desvencilhou-se do abraço do irmão e correu em sua direção, com um sorriso do tamanho da gratidão de sua alma.

- Obrigada, meu amado. Sem ti, isso nunca seria possível.

Ela abraçou-o e beijou-lhe os lábios. Fora tomada por uma alegria sem limites e uma sensação de alívio, como há muito não sentia. O irmão aproximou-se e estendeu a mão ao amante da irmã, com um sorriso um tanto sem jeito.

O homem abraça o cunhado, com carinho. O outro retribui o abraço, primeiro levemente, depois com mais ardor e, em seguida, com uma força descomunal, que o chefe do Conselho não sabia que existia. Seu corpo era frágil demais, perto do outro, que apertou-o até ouvir uma série de estalos nos ossos das costelas e o homenzinho começar a esmorecer.

Quando Leona percebeu o que estava acontecendo, gritou-lhe, desesperada, que parasse. O rapaz libertou o homem, que já sangrava pela boca e nariz e caía ao chão, desfalecido.

O rapaz tentou puxar a irmã pelo braço, mas naquele momento um grupo de homens da segurança entrou no aposento e imobilizou-o com uma descarga elétrica de um poderoso 'taser'. A arma nunca havia sido usada antes e o choque deixou-os um tanto apavorados, mas conseguiram conter-se e levar o rapaz, desacordado, de volta ao Limbo.

Leona chorava abraçada ao corpo do amante. A respiração era fraca... difícil...

- Tragam um médico, urgente!

O segurança saiu correndo pela porta afora e deixou-a sozinha, ajoelhada no chão, ao lado do chefe do Conselho, que abriu os olhos, vagarosamente, com um esforço enorme. Sua face mostrava tanto a dor física quanto a da decepção. Sua mente já não conseguia pensar claramente e ele sentia um rio de sangue a inundar-lhe o peito, vindo do pulmão perfurado pelos ossos quebrados das costelas. Ela viu que a vida dele estava por um fio e disse-lhe chorando:

- Foi minha culpa. Eu nunca devia ter deixado...

 - Liana… Eu cometi um erro. Queria ter vivido mais e visto mais coisas; mais beleza, mais prazer... Ah, minha amada Liana...

A moça tenta rir daquela piada comum entre eles. Ela chega-lhe ao ouvido e diz:

- É Leona, meu amado. O nome é Leona…

Ele levanta a mão pálida e frágil e toca-lhe a face, esboçando um sorriso totalmente desajeitado.

- Tu és tão linda!

Ela segura a mão dele contra a face e sente que a vida já não estava mais presente naquele ser tão frágil e pálido, que ela amou tanto. Os olhos encheram-se de lágrimas e um desespero assolou-lhe a alma.

Aquela sociedade nunca havia presenciado a morte daquela forma, como ela havia visto. Os tempos haviam mudado... mas jamais tal violência seria permitida repetir-se...

A moça levantou-se séria e dirigiu-se à sala de segregação do Limbo, disposta a colocar um fim, de uma vez por todas, à qualquer tendência à violência contra aquela raça...


***

1 comentário:

  1. Assim termina a história. No fundo, todos temos um tanto de monstros dentro de nós....

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