sábado, 16 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 1: Intro)


Uma brisa amena de final de Primavera soprava na esplanada à beira do rio, perto da foz. Ele havia saído do trabalho à hora mais ou menos certa - coisa bastante rara nos últimos tempos - e decidira beber uma taça de um suave e fresco vinho verde e relaxar um pouco, antes que o fim-de-semana começasse. Não estava interessado nos transeuntes, mas em olhar as águas a correrem na direção do mar. Aquela visão deixava-o relaxado e absorvia-lhe os pensamentos, levando sua imaginação para terras quase nunca dantes percorridas. Sentia a mente sensivelmente vazia. Não queria pensar em nada; só deixar os odores do fim da tarde preencherem suas narinas, o sabor do vinho fresco a aguçar-lhe os sentidos e os sons do anoitecer tomarem conta do ambiente à sua volta. Ele desligara a parte do cérebro que distinguia as vozes e conversas. Estava mais interessado nos outros sons, menos ouvidos na vida normal: o gralhar das gaivotas, a água a correr, um cão a ladrar ao longe, a peculiar e característica música da noite a chegar…

Um solitário saxofonista, vestindo um colete aberto preto sobre uma t-shirt branca e usando um chapéu coco, também preto, começara a tocar uma melodia bastante melancólica, cujas notas ele alongava com exímia destreza – quase como num ‘noturno’ - na calçada, bem próximo de onde o homem estava. A música sempre mexera com seus sentidos e aquela fazia sua imaginação vaguear, completamente solta e sem qualquer tipo de amarras.

Um grupo de jovens, provavelmente estudantes, aproximou-se em algazarra, rindo alto e fazendo-o voltar à terra. Uma das moças esbarrou no pé da sua cadeira, ao passar e, voltando-se, pediu desculpas, sorrindo e ficou a olhá-lo, sem seguir adiante. Tinha olhos muito claros e um sorriso encantador. Ele sorriu de volta e ficaram a olhar-se, por uns pouquíssimos segundos, até que alguém a chamou pelo nome.

- Elena! Vamos!

Ela voltou para o grupo e ele ficou a observar enquanto os jovens afastavam-se, ainda às galhofas. A maioria das pessoas trajava roupas leves, camisas de mangas arregaçadas, t-shirts ou blusinhas de mangas curtas. A temperatura estava por volta dos 23 graus Centígrados - o que, para o homem de meia-idade, bastante pálido e com ralos cabelos castanhos, já há muito tornando-se brancos à altura das têmporas, ainda era bastante calor – especialmente àquela hora do dia.

Levantou-se, pagou a conta e decidiu caminhar até o parking, que ficava a uma boa distância de onde estava, quase no outro extremo da movimentada ribeira. Uma fina faixa de luz ainda tingia o horizonte com cores quentes e fortes, mas o céu acima dele já exibia fortes matizes de índigo, salpicado de minúsculos pontos brilhantes. 

Quando desceu a rampa, já onde estava o carro estacionado, viu que um pequeno grupo de homens, vestidos com casacos escuros, que iam até a altura dos joelhos, caminhava na sua frente. Estranhou as vestimentas, já que não estava nem um pouco frio. Eles caminhavam, sem olharem uns para os outros e sem conversarem.

Alguém passou por ele, bateu contra seu braço e passou adiante, sem ao menos pedir desculpas. Viu que era um outro homem vestido da mesma maneira dos outros que caminhavam à sua frente e que apressava-se em juntar-se ao grupo. O estranho foi que eles não o cumprimentaram quando ele aproximou-se, nem ele, tampouco, ao grupo. Apenas continuaram a caminhar, lado a lado, sem se olharem, até um carro preto estacionado perto do seu. Os quatro estranhos entraram, quase ao mesmo tempo e quase automaticamente, cada um por uma das portas do veículo.

O homem olhava-os de uma maneira distraidamente interessada, se é que isto era, de alguma maneira, possível. Chegou ao seu carro mesmo a tempo de ver o outro veículo passar por ele e pela primeira vez percebeu o tipo que estava ao volante, já que era a única janela aberta e os outros vidros estavam levantados e eram cobertos por uma película escura. O condutor tinha cabelos muito negros e pele azeitonada, sem ser bronzeada e olhos parcamente emoldurados por quase inexistentes sobrancelhas. Ainda conseguiu ver que o outro homem, sentado ao seu lado, tinha características físicas bastante similares, mas não se pareciam um com o outro. Deviam ser da mesma origem étnica, pensou.

Um calafrio correu-lhe pela espinha quando percebeu que o motorista virou-se para fitá-lo, ao passar. Era o mesmo homem que esbarrara no seu braço, mas tinha uma expressão ameaçadora no olhar. O estranho havia reduzido a marcha ao aproximar-se e, assim que olhou o outro, acelerou e foi em direção à saída do estacionamento. O homem apressou-se em entrar no carro, já resolvido a sair dali o quanto antes. Seu sensor de perigo já estava a girar em amarelo.

Apesar de um pouco assustado pelo que vira, ele estava, também, um tanto intrigado com o incidente, afinal havia sido abalroado pelo sujeito e ele ainda decidira encará-lo, como se quisesse ameaçá-lo ou intimidá-lo. O sangue subiu-lhe à cabeça, quando pensou naquilo. Viu o veículo parado no semáforo à sua frente, mas o condutor furou o sinal, assim que percebeu não vir nenhum outro carro das ruas adjacentes.

Deviam estar com pressa, pensou. Com aquele tipo de condução, não admiraria se causassem um acidente e, entre dentes e em voz alta, desejou mesmo que se envolvessem em um. Era sua veia vingativa falando mais alto que ele. Observou-os subir a rua, esperou o sinal abrir e seguiu seu caminho, já entretido com suas músicas favoritas a tocar no CD player.

A alameda estava iluminada por fortes luzes amarelas, o que dava uma atmosfera surrealista ao local. Por uns instantes, esqueceu do sucedido há poucos minutos, pois adorava passar por entre as árvores, naquela região, a caminho de casa. Seu estômago roncou e ele deu-se conta que havia passado do horário usual do jantar. Havia estado a tarde toda em reunião e não tinha tido tempo de comer nem uma fruta. Estava com fome. Ele, agora, pensava somente no que iria preparar para comer, quando chegasse em casa.

De repente, um vulto saltou à frente do carro e passou correndo do lado esquerdo para o direito da rua. Ele pisou no freio, automática e violentamente. Por sorte não vinha ninguém atrás de si, que pudesse causar um inconveniente acidente de viação. Se o que cruzara seu caminho era um gato, devia ser um animal enorme, pensou o homem, ainda com o coração acelerado. Olhou para o lado direito, tentando distinguir se avistava qualquer sinal dele, quando viu o veículo preto estacionado num pequeno complexo de edifícios comerciais, ao qual nunca havia prestado atenção anteriormente.

Sua curiosidade acendeu-se novamente e, apesar de saber que não era a coisa mais certa a fazer, resolveu ir até lá, estacionando o mais longe possível do tal veículo preto. Por sorte, seu carro não era mais que um modelo dos mais populares, de cor bastante comum, que passaria quase despercebido, no meio dos outros ali estacionados, muitos da mesma cor cinzenta. Havia uma loja de conveniência, um pequeno restaurante ‘take-away’, uma lojinha de equipamentos informáticos e outras menores, perto de uma razoavelmente maior, de móveis e uma farmácia. Bem ao fundo, um tanto separado das lojas, havia uma construção diferente das outras, um pouco mais escura e rústica. Devia ser algum restaurante típico ou talvez até mesmo um bar. Perguntou-se por que razão nunca havia-se dado conta da existência daquele lugar. Percebeu que o conglomerado de estabelecimentos estava construído ao pé de um pequeno bosque, que havia no lado oeste e que dava, ao complexo, um certo ar de tranquilidade.

Estava ainda a olhar para o fundo e para o edifício escuro, quando viu o grupo de homens a caminhar com passos firmes e apressados, naquela direção. Ainda estavam vestidos com os casacos escuros, o que destoava dos outros transeuntes, que usavam trajes mais leves. A indumentária tornava-os bastante chamativos e inconfundíveis, como um grupo de pinguins a caminhar sobre o gelo extremamente branco.

Esperou que entrassem pela escura porta de madeira e foi atrás, um pouco hesitante, mas cheio de curiosidade . A construção era, por dentro, ainda mais sombria e rústica, que vista por fora. Era feita de madeira bruta e tinha dois lances de escadas firmes, separados um do outro por uma curva em noventa graus, com tábuas muito espessas, suportadas por fortes vigas de troncos brutos e cilíndricos, de cor muito escura, como se pintadas com um pigmento de sépia queimada. Ele subiu, com cuidado e constatou que no andar de cima havia uma espécie de bar.

Aparentemente, os personagens que havia seguido conversavam com um outro homem, que ele não conseguia ver claramente, já que os quatro estavam de costas voltadas para a porta, formando uma barreira à sua visão e o outro estava de frente para eles. Lembrou-se da forma com que o motorista havia olhado para si, com evidente hostilidade e decidiu que não podia deixar-se revelar. Eles estavam em maior número, de qualquer forma. Resolveu que o melhor a fazer, era mesmo sair dali o quanto antes. Deu meia volta e desceu as escadas, apressado, mas com cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível. Sua fuga foi subitamente protelada antes de chegar à porta de saída, lá em baixo, pois viu que alguém entrava por uma quase invisível porta lateral. Encostou-se na parede e pôs-se a observar, da penumbra, sem deixar-se ser visto.

Um homenzinho, visivelmente velho e vestido com roupas castanho-escuras, bastante surradas, acabara de entrar. Tinha a pele espessa e marcada, como a de um ancião, que trabalha ao sol, como os agricultores ou pescadores. Tinha olhos escuros, sobrancelhas muito espessas e lábios finos, quase inexistentes, numa boca larga. Trazia, pendurada do cinto, uma espécie de machadinha de lâmina estreita e chata.

Ele puxou-a do cinto e, sobre a lâmina, colocou uma pequena borboleta azul, morta, com as asas abertas, que estava embrulhada num papel pardo, que tirou de um dos bolsos do casaco de couro castanho.

O homem de cabelos castanhos, que ainda estava escondido, franziu a testa e arregalou os olhos, pois aquilo pareceu-lhe, realmente, muito estranho. 

Mas ele não estava minimamente preparado para o que veria na sequência dos acontecimentos. O que o homenzinho fez, então, deixou-o completamente boquiaberto… isso para dizer o mínimo.

***

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Como um Príncipe


Há exatamente um ano, ele fez sua viagem definitiva para o infinito. Foi sem bagagem. Embarcou leve e em silêncio. Não olhou para trás; olhou para mim, uma última vez, antes de partir para sempre... sereno... impávido... nobre…

Levou uma parte de mim com ele. Deixou atrás de si uma falta enorme e um vazio impreenchível.

Ele foi, com toda certeza, meu grande amor. Foi meu filho, meu maior amigo, minha grande paixão. Acompanhou-me por mais de treze anos, em praticamente todos os momentos, especialmente nos mais difíceis e só me trouxe alegrias, para além de uma paz sublime demais. Fez de mim, com certeza, um homem melhor e muito mais humano.

Escrever qualquer coisa sobre ele, hoje, é bastante árduo, sem ter os olhos cheios de lágrimas e a mente e o peito cheios de lembranças… todas lindas… mesmo porque todas as lembranças que eu guardo dele são mesmo as mais bonitas.

Tiger adorava estar onde eu estava. Tinha sempre que ter a certeza que não havia sido deixado sozinho. Gostava de usar minha cadeira, especialmente no inverno, quando eu ainda estava sentado nela, aninhando-se atrás de mim e empurrando-me cada vez que virava de lado. Deixava-me dar-lhe banho, uma vez por mês e escovar-lhe os dentes, duas vezes por dia. Adorava ter o corpo escovado, deitar sobre meu peito, brincar de esconder-se atrás das cortinas e das portas.

Esperava-me, invariavelmente, à porta, todos os dias. Às vezes, quando eu chegava em casa mais tarde que o normal, ele ronronava tão alto ao ver-me, que parecia que ia explodir, de tanta satisfação por ter-me de volta perto dele. Acalmava-se somente quando eu deitava a cabeça sobre seu ombro e acariciava, levemente, toda a extensão de seu longo corpo, ruivo e branco.

Meu tigre foi a melhor coisa que me havia acontecido. Ensinou-me muitas coisas, entre as quais, como viver com simplicidade e amar sem preocupações e sem quaisquer limites.

Ele tinha estilo; tinha porte; tinha presença. Foi um gato sem igual.

Passou por este mundo como um príncipe e como tal foi tratado. Foi amado, mimado, servido e respeitado como um igual...e como igual foi sempre considerado, porque éramos mesmo muito parecidos, em comportamento, apesar de todas as possíveis diferenças entre nossas espécies.

Era conversador e exigente. Claro que tinha um milhão de manias, mas eram quase todas toleráveis. Quando queria alguma coisa, era insistente. Não descansava enquanto não conseguia. A hora de dormir era sagrada. Precisava que eu desligasse a TV e apagasse as luzes. Passava uma vistoria pela casa toda e, somente depois, vinha para o meu lado, avisando quando entrava no quarto. Os horários das refeições também eram, obviamente, controlados, especialmente ao acordar e aos fins-de-semana.

Tiger era super carinhoso, sempre presente, sempre atento a tudo que acontecia à sua volta e, também e especialmente, a mim, seu brinquedo favorito.

Nasceu em África, morou cerca de seis anos no Brasil, veio a morrer em Portugal, depois de quase sete anos a conviver comigo nesta terra distante.

Meu tigre foi-se, para sempre, desta vida, mas estará sempre vivo na minha memória e no meu coração. Ele abriu-me a alma para uma espécie de sentimento que eu não sabia existir. Mostrou-me que o amor tem que ser assim, sempre: incondicional e ilimitado.

Saudades do meu príncipe... 

Ele será, eternamente, uma memória querida, que guardarei por toda a vida e que me fará, sempre, sorrir, ao ser lembrado!




sábado, 2 de agosto de 2014

Obliviar (Fase Dois do Esquecimento)


Do calor suave

da tua sublime boca,

eu bebo

um poderoso veneno:

frio, incolor,

e com um delicado

e doce-amargo sabor…

Uma estranha fisgada 

de dor

liberta-me

das melancólicas

e angustiantes garras

 das memórias sombrias,

que continuavam insistindo

em ascender

do meu imperecível passado.

Aquelas recordações,

algumas ainda mais vivas

do que outras,

começam lentamente

a dissipar-se

em uma bem-vinda,

acrómica e amena

névoa

de esquecimento,

que acaba,

eventualmente,

esvanecendo no ar

e recuperando-me da dor,

(mas não sem deixar

algumas das suas cicatrizes

mais dolorosas

e profundas)...

Chega de reminiscências

não solicitadas,

levantando vivas

das pálidas dunas

no deserto

da minha mente.

Chega de lembranças

de uma realidade,

que costumava ser boa

para absolutamente nada.

O que ficou foi, tão-somente,

um desolado vazio...

(o imenso

e confortável

vácuo do oblívio)...

Minha vida está, agora,

mais do que pronta

para ser reforjada  

e moldada,

uma vez mais,

à sua singular e distinta

forma e cor...

Por fim

E depois de tudo...


domingo, 27 de julho de 2014

Oblivion (Phase Two)



From the soft warmth

of your exquisite mouth,

I drink a powerful,

drab,

cold

and bitter-sweet poison

of forgetfulness.

An eerie sting

of pain

heals me

from the dreary

and throbbing claws

of gloomy memories

that keep on insisting

to ascend

from my abiding past.

Those memories,

some previously more vivid

than others,

then, slowly

start fading

into a sweet

and colourless haze

of welcome oblivion,

that ends up,

eventually,

vanishing into the air

and healing my pain,

but not without leaving

some of its deep scars…

No more unsolicited

reminiscences

coming up alive

into the pale

deserted

sand dunes

of my mind.

No more recollections

of a reality

that used to be good

for nothing at all.

There is now only

a desolate emptiness left…

the immense

and comfortable void

of Lethe…

My life is now

more than ready

to be shaped

and wrought

back again

into its unique

and distinct outline

and colour...

after all...

domingo, 20 de julho de 2014

Obliviar (Fase Um do Esquecimento)



Tu ainda lembras de mim,

Minha criança?

Lembras como eu costumava

Olhar-te, sem conseguir

Esconder

Toda a afeição

Que eu sentia por ti?

Sabias que,

Às vezes,

Eu ainda penso

Em ti,

Minha criança?

(...E que meus olhos

Não conseguem

Disfarçar

O vazio

Que ficou no meu coração

Quando partiste?...)

Tu ainda lembras

Daquele último abraço,

Minha criança?

(Aquele que separou

Nossas vidas

Por todo este sempre?)

Alguma vez pensaste

Quão triste

Eu senti-me,

E por tanto tempo,

Desde aquele dia?

Mas, então,

Por alguma razão

Que eu não consigo explicar,

O Universo decidiu

Que ia dar-me

Uma outra chance

E, embora tu ainda vivas

Em algum compartimento

Secreto

No meu coração,

As lembranças que eu tinha

De ti

Foram-se tornando,

Vagarosa,

Mas firmemente,

Apenas doces recordações,

Que vão-se desbotando

Numa névoa

Irreversível

De esquecimento...

domingo, 13 de julho de 2014

Oblivion (Phase One)



Do you still remember me, 
my child? 
Do you remember how
I used to look at you 
and how I would not be able
To hide 
all the affection I felt 
towards you? 
Did you know 
I still think of you, 
every now and then, 
my child? 
My eyes cannot disguise
the emptiness my heart was left 
when you were gone… 
Do you still remember 
that last embrace, 
my child? 
The one which separated 
our lives 
for good 
and forever? 
Have you ever thought 
how miserable I had felt 
for such a long time 
since that day? 
But, then, somehow 
and for a reason
I cannot really understand,
the Universe has decided 
to give me another chance 
and although you still live 
in some secret place 
in my heart, 
your memories have turned into 
just sweet recollections 
that are slowly,
but definitely, 
fading into 
a misty 
and irreversible 
state of oblivion…  


sábado, 5 de julho de 2014

A Conjugar o Verbo... (Parte 2)


Por princípio, acredito que não exista qualquer segurança cega, nada de totalmente sólido e palpável, tampouco algum conforto completo, quando trata-se de relacionamentos. Embora nós ainda evitássemos usar a palavra, era evidente que estávamos bem longe de considerarmos nosso agradável convívio como resultado de apenas uma fortuita aventura, sem grandes compromissos.

Vínhamos nos encontrando há um bom tempo e sabíamos que as ocasiões que passávamos juntos não tinham nada de casual. Apesar de uma distância física considerável nos separar e de não ser possível nos vermos mais frequentemente, era, inegavelmente, um relacionamento, mesmo que não o chamássemos pelo devido nome, por pudor, receio, insegurança ou, simplesmente, por uma tola cautela. Éramos dois adultos, comportando-nos como hesitantes adolescentes e tínhamos total conhecimento do tipo de trama emocional em que estávamos envolvidos.

Aquela percepção, entretanto, não era suficiente para tranquilizar a mente de ninguém. Dava, apenas, uma clara noção dos factos, que já poderiam haver sido assumidos por ambas as partes, há algum tempo. Como era mais confortável deixar a situação desenrolar-se por si própria, nunca discutíamos o óbvio… pelo menos até aquele momento, em que ouvi a tal frase, imprevista e inusitada, que dava início a uma discussão, a meu ver, talvez, desnecessária.

A estranha expressão a referir que estava com a vida ‘totalmente desconfigurada’ assustou-me, inicialmente, causou-me um certo pânico e colocou-me em estado de alerta.

Conscientemente eu desejei fugir, correr dali, negar que havia ouvido o angustiante início de colóquio, mas aqueles pouquíssimos e breves segundos de reflexão não me deram hipótese alguma de escapar. Uma estranha sensação, como a de borboletas a bater asas na boca do estômago, porém, avisava-me a amplificar o estado de prontidão, quando a torrente de palavras saiu ininterrupta de sua boca, antes mesmo que eu pudesse fazer qualquer coisa para impedir.

***

- Tenho tantas dúvidas a afligir-me a cabeça… Sei que a nossa relação (e ainda tenho receio de usar esta palavra!) é injusta para ti, que nunca reclamas do pouco que eu te dou e sinto que sou egoísta em cada momento que percebo isto; e porque me sinto confortável com a situação, me fui acomodando a tudo o que me dás, gratuitamente, sem nem ao menos pedir nada em troca. Às vezes penso que não te valorizo suficientemente, nem o que temos e até acho que devias ir em busca de algo mais consistente… de alguém com uma vida menos complicada. Ao mesmo tempo que quero que sejas livre nas tuas escolhas e que encontres uma situação melhor que esta, tenho um medo terrível e insuportável de perder-te e não posso negar que sinto uma insegurança enorme... daquelas de tirar-me, das noites, o sono.

- Shhh… Cala-te, por favor. Não estás a levar em consideração que não sou nenhuma criança e que sempre soube, desde o começo, onde estava a meter-me. Achas que eu não sou livre? Achas que não sei as consequências das minhas… ou melhor, das nossas… atitudes? Quem disse que eu preciso de uma situação melhor que esta?

Eu não sentia irritação, mas minha agitação não conseguia esconder um certo desassossego. Tinha em mente, naquele momento, apenas, que precisava fazer ver o meu ponto de vista, que eu considerava ser mais que manifestamente adequado, na nossa situação. Da minha parte era a mais pura verdade. No fundo, porém, eu tinha um receio incómodo e pouco fundamentado de que aquele fosse o começo do fim…

- Como eu posso aceitar, pacificamente, que vivas em estado de martírio mental, com uma intranquilidade destas, se a vida nem ao menos nos dá certeza de nada? Se alguém, alguma vez em, qualquer tempo, teve segurança absoluta do destino de uma relação emocional com outra pessoa, que atire a primeira pedra. Se os poucos momentos, em que se desfruta o prazer da companhia da pessoa com quem se quer estar, for torturado pela inquietação e pela dúvida, de que vale estar-se juntos?

Olhou-me, com uma expressão meio constrangida, provavelmente sem conseguir encontrar quaisquer novos argumentos, que me pudessem convencer a abrir mão, sem luta, daquela espécie de mágica que havia-se consolidado entre nós.

- Não te chateies, por favor, porque foi inevitável ver-me numa situação tão… digamos… insegura. Sabes que, apesar de não dizer claramente, eu sinto algumas coisas bastante profundas a teu respeito. Às vezes não digo o quanto gosto de ti, nem como tens sido importante para o meu equilíbrio. Não falo como me sinto bem quando estou contigo e como gosto dos nossos momentos, tanto na cama quanto na mesa, quanto em qualquer outro lugar também! Sei que, normalmente, esqueço-me ou evito, propositadamente, de falar-te estas coisas; talvez por ser-me cómodo, ou por ser-me mais conveniente, mas nunca por ter as coisas dadas como garantidas, entre nós. Por isso, não tens porque te importunares. Pelo menos, valeu para dizer que gosto muito de ti!

Eu corei, instantaneamente, pois não esperava por aquela constatação, tão diversa do que ouvira minutos antes. Só consegui terminar a conversa com um último pedido... quase uma súplica.

- Deixa-te de cobrar uma certeza sobre o incerto. Se sabes o que sentes, deixa-te levar pelo momento. De que valem as preocupações se temos tão pouco tempo juntos? Abandona-te, pelo menos enquanto estiveres comigo… fica comigo e somente comigo… deixa as tuas preocupações lá fora…

Olhou-me como se não tivesse mais fundamentos plausíveis e como se aceitasse, finalmente, que os meus argumentos faziam sentido, afinal. Recostei, então, a cabeça em seu peito macio e aninhei-me ali, sentindo-me em completa proteção. Deixei-me envolver por um abraço, que trazia-me um conforto morno e a impressão que a vida real ficava tão distante de nós, naquele momento, que estávamos completamente resguardados de todo o mal. Éramos, pelo menos naqueles breves instantes, simplesmente, invencíveis e imortais.

Cerrei as pálpebras e tentei relaxar, ao mesmo tempo que engolia as lágrimas, que somente eu sabia estarem a brotar, involuntariamente, em mim. Dei um longo suspiro e deixei-me cair num imenso vazio…

***

- Adormeci…

Sussurrei aquela frase minimalista, sem virar-me, nem abrir os olhos. Não tinha ideia de quanto tempo havia-se passado.

- Eu percebi… Ver-te assim, a dormir, como uma criança, aparentemente tão frágil e vulnerável, deu-me uma vontade quase incontrolada de abraçar-te, mas não quis perturbar teu sono inocente. Por isso apenas afaguei teu corpo, teus cabelos e teu rosto e beijei-te bem suavemente, tentando não despertar-te. Tive a impressão que tocava um anjo adormecido, tão desamparado… tão indefeso. Meu desejo, na verdade, era ficar ali, a acariciar-te e proteger-te para sempre… nos meus braços… até fundir-me em ti...

Virei-me para olhar em seus olhos. Havia, neles, uma ternura com a qual eu não sabia se alguma vez já imaginara contar. Embora aquela expressividade não me fosse conhecida, eu tinha consciência do que significava. Era evidente demais para ser ignorada. Beijei-lhe os lábios e colei meu corpo no seu, num abraço apertado, deixando as nossas inseguranças e imperfeições encaixarem-se umas nas outras, como se fossem peças de um doce quebra-cabeças.

Sabia que estávamos mais envolvidos que jamais estivéramos e também sabia os riscos que corríamos… mas eu não tinha receio nenhum de enfrentá-los. O que é a vida, final, sem desafios? O que é o presente, senão uma coleção de momentos simples e plácidos, como aquele?

Se tudo o que eu vivera em meu passado havia representado a perfeita ilustração de um Pretérito Imperfeito, daqueles que ficam suspensos entre as eras, inacabados e em modo de espera, o presente havia-se transformado em um novo tempo… como se o Universo estivesse a ensinar-me a conjugar o verbo ‘viver’ em tempo Mais-Que-Perfeito, do Modo Indicativo…