- Eu preciso voltar a falar com ele. Preciso saber o que aconteceu…
- Não. De jeito nenhum. Não podemos deixar-te
arriscar. Tu viste a agressividade dele. Ele é violento e perigoso.
- Ele é meu irmão!
- Não sabemos disso ainda. Pode ser uma estratégia
para nos enganar. É preciso muito cuidado.
- Eu conheço aqueles olhos e conheço a tatuagem. Não
pode ser um engano!
O chefe do Conselho estremeceu
um pouco, diante da menção à tatuagem, mas não deixou-se fraquejar. Segurou-lhe
firmemente ambos os braços, com suas mãos pálidas de dedos longos e
aparentemente frágeis. Ela parecia impassível e ele já não sabia como chamá-la
à razão. Os olhos grandes de Leona pareciam, agora, duas esmeraldas banhadas
por fontes de águas cristalinas. Ele sabia que estava prestes a perder uma das
muitas batalhas que travara com ela, vezes e vezes sem par. Esta era outra
daquelas que sabia não ter muitas hipóteses de vencer. Ele quase não conseguia
resistir à súplica no olhar daquela mulher.
- Por favor…
- Liana, use a razão, por favor. Todo cuidado é pouco!
- O nome é Leona!
Ela não conseguiu
manter a seriedade depois de ser chamada pela alcunha que ele lhe havia dado,
há muito tempo atrás. Ela riu, mas lágrimas insistiram em turbar-lhe a visão
clara das coisas. O homem puxou-a para si e abraçou-a com firmeza e carinho.
Ela soluçou aninhada ao peito dele. Seu corpo escondia a fragilidade, protegida
pela veste longa a cobrir-lhe da cabeça aos pés. O capuz escorregou-lhe,
deixando à mostra a cabeça bem desenhada e muito diferente, em formato,
daqueles seres contemporâneos que viviam à sua volta. Os cabelos, cortados
muito curtos, davam a impressão que seus olhos fossem enormes…
- Eu só quero proteger-te. Não quero expor-te a um
perigo desnecessário. Já passamos por perigos maiores... antes...
- Ele é meu irmão!
A voz era um sussurro
desesperado, mas impotente, abafado pelo contato no peito do amante. Ele
apertou-lhe o corpo, mais firmemente, contra o seu. Ela aninhou-se dentro daquele
abraço. Naquele momento as memórias invadiram os pensamentos de ambos com tanta
nitidez, que pareciam estar juntos no mesmo processo mental.
***
- Leona, use a rota de fuga e leve-o daqui, depressa,
antes que eles o descubram.
A ordem do pai era
inquestionável. Ele sabia do perigo que corriam e tinha que proteger a ambos, a
qualquer custo. Alguém acabava de passar pelo sensor do alarme na entrada da
propriedade onde ficava a casa em que estavam.
Eles vinham sendo
constantemente atacados por um bando de assassinos, contratados por uma poderosa
cooperativa químico-farmacêutica, que não tinha interesse nenhum em que suas
pesquisas dessem certo, pois colocariam em risco o comércio de drogas e fármacos
e, consequentemente, os resultados estupendos
daquela lucrativa indústria.
O Doutor era um
renomado - mas humilde - cientista que pesquisava uma vacina capaz de recompor deformidades
no DNA dos seres humanos, com o ingénuo intuito de erradicar as doenças e permiti-los
viver por mais tempo. Vários testes haviam sido feitos a partir de um profundo
e longo estudo do DNA das borboletas Monarca, que possuíam um ciclo de vida muito
maior que qualquer outra de sua espécie e apresentavam uma resistência incomum às
doenças.
Após uma série de testes,
a experiência pareceu, finalmente, dar certo. Além de haver inoculado a si
mesmo, como cobaia, a filha do cientista, Leona, também havia testado a vacina,
com sucesso. O estranho visitante era a prova que o seu experimento havia tido
sucesso. O nome do doutor era parte da história contada no futuro.
O homenzinho havia vindo
ao passado, através de um portal de transporte, para contactar o Doutor, acerca
da longevidade de sua espécie. Em sua época e no planeta em que habitavam, as
pessoas viviam por tempo extremamente longo, livres de quaisquer problemas de
saúde física. Uma onda de depressão, porém, começava a assolar os membros mais
velhos, que já não viam objetivo nem sentiam prazer em viver por tanto tempo. Ele
esperava que o Doutor pudesse ajudá-lo. A interrupção em seu colóquio, deu-se
antes mesmo que o cientista pedisse uma amostra de seu sangue, para comparar
com o seu e da filha. O interesse científico era-lhe, naquele momento, mais
relevante que o problema de depressão da futura geração, mas o doutor escondeu
aquela impressão do visitante.
- Venha depressa, pela passagem por trás da casa.
O homem seguiu a
jovem, sem pestanejar, ambos protegendo-se contra o ataque repentino. A
passagem estava escondida dentro do galpão que ficava na traseira do terreno
onde a casa fora construída. Uma espécie de bunker conduzia-os por uma passagem para uma série de túneis, um dos quais levava até um outro
edifício, cerca de sete quilómetros longe do local original. Os outros túneis fariam
o perseguidor andar em círculos, antes de descobrir o engano. Aquele homem não
tinha forças suficientes para correr todo o percurso, por isso precisou de
algumas paradas, mas a moça começava a perder a paciência com o atraso na fuga.
O pai ficara para trás, para defender-lhes, proteger o filho mais novo e
distrair os intrusos.
Ela já havia passado
por situação semelhante, mas sabia que seu coração não ficaria tranquilo
enquanto não tivesse notícias da origem. Ela e o irmão mais novo já haviam
passado por situação semelhante, por isso ela conhecia bem o procedimento e o
caminho. A moça olhou o homem de aparência estranha a tentar recuperar o fôlego
e deixou de sentir-se incomodada com o atraso. Sentiu apenas pena. Ele percebeu
que era observado e olhou-a, com um ar de quem se desculpa. Ela sorriu, meio
sem jeito, quase sentindo-se culpada por haver estado impaciente.
- Temos que continuar.
O homem tinha uma
expressão desesperada na face. Ela puxou-o pela mão e rumaram para o lugar
seguro. Depois de saírem dos túneis e do tal edifício, teriam que passar por um
pequeno bosque, cruzar uma clareira e um parque, para finalmente chegar à uma
outra casa, que cobria toda a área de um quarteirão, do outro lado da vila.
Ao passarem pelo
bosque, esbarraram nos galhos de uma velha conífera, que tinha uma espécie de
cobertura viva e colorida em tons amarelo-alaranjados,
pretos e com pontículos brancos. Algumas das Monarcas da colônia, à passagem dos intrusos, levantaram voo e
começaram a circular à volta deles. O homem parou, encantado com a visão.
- Oh... O que são?
- São as borboletas Monarca.
- Nunca vi nada igual. São… são…
- São lindas! E frágeis…mas estas são as únicas
borboletas que têm o ciclo de vida mais longo, que pode chegar a nove meses, se não houver nenhum agente externo que cause
sua morte... Como nós… As experiências do meu pai são baseadas nos estudos do DNA
delas...
Ele levantou a mão e
deixou-se tocar pelas asas dos insetos em voo.
Ela percebeu que ele sorriu, pela primeira vez.
Na casa havia uma
cozinha enorme, um amplo espaço, com uma mesa para, pelo menos, doze pessoas.
Na sala havia outra, tão grande quanto aquela. Na varanda havia outra, menor.
- Liana – há muitas mesas nesta casa…
- O nome é Leona…
- Oh... Desculpe.
Ele olhou a moça, com
seus olhos estranhamente azuis, de um tom escuro, quase ultramar e pediu-lhe:
- Fale-me das
borboletas, por favor.
- A migração das Borboletas Monarca é um dos
mais maravilhosos eventos que ocorre em nosso planeta. Começa no final do verão
e elas viajam cerca de cinquenta quilômetros por dia. Esse período também marca
o nascimento de uma nova geração de borboletas que emergem de suas crisálidas.
Essas novas borboletas não acasalarão ou colocarão ovos até a primavera
seguinte. Durante o ciclo da migração muitas perdem suas vidas nos
obstáculos. No total, as Monarcas viajam quatro mil quilómetros, para fugir do inverno e a gordura armazenada
no seu abdômen garante combustível para um voô de até cinco mil
quilômetros. Acredita-se que as borboletas "economizam" combustível
viajando, soltas, a aproveitar as correntes de ar.
- Que coisa absolutamente maravilhosa. Nunca pensei
que tal coisa existisse. É realmente fascinante.
Leona olhou aquele
homem estranho, com a cabeça praticamente sem pelos, olhos grandes e pele muito
pálida e pensou como uma coisa tão banal e que tinha tão pouca importância para
muitos, podia impressionar alguém, daquela forma, naqueles tempos conturbados. Quanta coisa
simples estava sendo deixada para trás. Quanta beleza passando despercebida aos
olhos dos humanos cheios de medos e preocupações banais.
***
- É a terceira vez que eu venho... O que é esta marca
no teu braço? Oh. É uma Monarca…
- É uma tatuagem. Não pode ser apagada. Significa
muito para mim...
O olhar interrogador
do homem para a moça fê-la corar imediatamente. Ela fora surpreendida e não
sabia como explicar porque havia feito a tatuagem.
- É tão linda. Como faço para ter uma igual?
O olhar que a moça dirigiu-lhe
foi tão terno que o homem sentiu uma sensação desconhecida vir de suas
entranhas. Ela aproximou-se e beijou-lhe os lábios pálidos. Uma outra sensação
estranha turvou-lhe os pensamentos e provocou-lhe uma série de reações físicas,
que ele desconhecia totalmente. Instintivamente, passou os braços à volta dela,
apertando-a contra si. Seu corpo reagiu imediatamente e o dela também.
***
- Coça e arde um pouco. É normal?
A mulher olhou o homem
deitado a seu lado: o corpo pálido, os braços pouco musculosos e a cabeça
grande e quase sem cabelos e pensou na ingenuidade e transparência dele. Ele acariciava, com os dedos longos e pálidos, a tatuagem recém impressa na pele. Ela percebeu que estava
cada vez mais envolvida.
- É normal, sim. A tatuagem é um pouco agressiva, no
começo, mas ficou muito bonita na tua pele assim tão branca e fina.
A borboleta Monarca
tatuada no braço do homem era idêntica à dela, representando o símbolo da
transformação e resistência e, também, da fragilidade efêmera da beleza. Passou
a ser também a assinatura da relação entre ela e o chefe do Conselho. Agora
acostumado com o carinho dela, o homem beijou-a.
- Liana… o que é isso que eu sinto?
- O nome é Leona.
Ele riu. Ela também.
- É afeto, o que tu sentes, meu querido…. Deve ser amor!
Leona beijou-o como
se sentisse um misto de desespero e fome. Naquele momento, ele era como um
oásis no meio da aridez do deserto de medo e incerteza em que vivia. Quase se
sentia segura, ali, protegida pelo calor ameno do corpo dele…
Então, como se os
deuses estivessem a brincar com ela, ouviu-se um estrondo vindo da entrada. Ela
saltou da cama, com a agilidade de uma gata e espiou pela janela, enquanto
vestia uma t-shirt e os jeans surrados. O grupo de invasores
acabava de explodir a entrada e entrar na casa. O esconderijo já não era
seguro.
- Temos que fugir… agora…
O homem mal conseguira
vestir-se, quando ela puxou-o pela mão e correu para o fundo do corredor no
segundo andar. Havia ali uma passagem para o lado de fora, através de uma
escada, que ficava ao lado oposto da entrada recém-bombardeada. Fazia algum
tempo que tal não acontecia e já quase sentiam-se seguros. Um trajeto
alternativo até os túneis teve que ser usado. Uma vez lá, tiveram que encontrar
a passagem para o portal de transporte. Este havia sido movido para um local
seguro, de modo a garantir a volta do homem ao seu tempo e lugar no futuro. Ao
chegar lá, ouviram outra explosão e os gritos dos invasores. Leona, mais uma
vez, liderou a fuga.
- Vá depressa. Eu fico a salvo. Sei defender-me e
tenho que ver como estão os outros.
Ele olhou para a
entrada do túnel e viu que os invasores estavam chegando perto demais. Ela
gritou que ele fosse rápido. Num cálculo mental rápido, ele percebeu que ela
não ia conseguir escapar daquela situação, então ao invés de fugir sozinho, puxou-a para dentro do
portal e programou a autodestruição para três segundos depois da transferência.
O túnel explodiu antes mesmo de os invasores chegarem perto deles.
***
O som estridente e
insistente de uma sirene começou a soar poucos segundos depois. A mulher,
abraçada ao corpo do homem pálido, olhou a volta e não reconheceu o lugar. Um
facho de luz branca muito forte desceu do teto, criando um potente campo de força
à volta dos dois, imobilizando-lhes os movimentos.
Um homenzinho de olhos
azuis muito claros olhava-os com um ar bastante grave, entre o de preocupação e
o de desaprovação…
A sirene tocava sem
parar. Ela olhou o rosto do amante e percebeu que, pela primeira vez, desde que
o conhecera, ele parecia constrangido…
***