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terça-feira, 28 de agosto de 2018

As Pedras Grandes (Parte 1)



- Como assim, pedras grandes?

- Itá, em Tupi-Guarani, significa pedra e gûasu, significa grande…

- Foram os índios que deram esse nome?

- Não sei ao certo, mas faz sentido. O mais engraçado é a lenda local.

- Que lenda?

- Das bruxas…

Seu interesse aumentou.

- Conta, vai. Quero saber a lenda.

- Diz que as bruxas da ilha queriam fazer uma grande festa e escolheram aquela praia por ser a mais linda da região. Convidaram todos os seres fantásticos…

- Quem eram estes?

- Os lobisomens, os vampiros, a mula sem cabeça e, até, o Curupira, Boitatá e todos os outros seres do folclore local…

- Uau!

- Mas não convidaram, de propósito, o diabo.

- Por quê?

- Porque o diabo cheirava mal, a enxofre e, porque, na sua arrogância de superioridade, o bicho sempre fazia as bruxas lhe beijarem o rabo, para demonstrar submissão a ele.

- Uff! Que nojo!

- Pois é.

Dei uma gargalhada e continuei. Eu adorava a plateia de uma pessoa só.

- Quando a festa estava em alta e todos se divertiam a valer, adivinha quem aparece, de surpresa e muito irritado, a trovejar sua ira desaprovadora…

- O diabo?

- Exatamente. Ele estava muito enfurecido mesmo e, para castigar as bruxas, por terem deixado de lado sua majestosa figura, lançou uma maldição e transformou-as em pedras… grandes… que ficaram presas ao local, desde então.

- Oh!

- Por isso, o nome do lugar é justamente este: Itaguaçu, ou pedras grandes.

- Isso não é verdade, é?

- É uma lenda… É mitologia. Claro que acredita quem quiser, mas é uma história engraçada e interessante.

Ouvi um trovão. Aparentemente teríamos chuva naquela noite quente.

Com o clarão dos raios, seus olhos ficaram meio arregalados, assim meio perdidos, como se estivesse a imaginar a história, em detalhes. Deixei que sua imaginação voasse solta.

Outro raio. Aquele caiu mais perto, pois o estrondo foi maior e o tempo, entre o raio e o trovão, muito curto. Lembrei das aulas de ciências, na escola.

- Vamos entrar. A chuva não tarda.

- Vamos.

Entrou com pressa, como se estivesse com medo. Eu ri.

Os trovões continuaram e em pouco tempo tivemos uma tempestade de verão, daquelas poderosas. Eu, para falar a verdade, gostava das tempestades de verão, pois elas limpavam o ar e refrescavam a terra.

Um clarão, mais forte que os anteriores, foi seguido de um estrondo muito forte. Aquele caiu muito próximo de nós e levou a energia eléctrica da rua inteira. Provavelmente havia atingido um poste, ali na redondeza. Já não era tão cedo, por isso decidi que iria para a cama, ao invés de esperar que a energia voltasse. Pela manhã, já estaria tudo normal.

Adormeci quase de imediato, assim que deitei a cabeça no travesseiro. Não pensava que estivesse com tamanho cansaço.

Tive um sonho estranho, com as pedras grandes da praia. No meu sonho, uma das pedras havia sido atingida por um raio e havia aberto ao meio. A rocha era oca e tinha o formato de uma pessoa escavado por dentro da mesma. Achei aquilo muito peculiar. Eu ainda examinava o interior da pedra, quando alguém, atrás de mim, disse:

- Esperei tanto tempo por este momento.

Eu virei-me e vi aquela mulher muito magrinha, vestida de negro, com os cabelos brancos desalinhadamente presos por um lenço de cabeça, também negro. Lembrava uma daquelas figuras eu havia visto, quando criança, de uma carpideira. A pele era tão enrugada, que parecia um pergaminho.

- Qual momento?

- Não foi justo. Não foi nada justo.

Ela repetiu a frase, sem me responder, mas apertou os olhinhos escuros, como para ver-me melhor. Ela levantou a esquelética mão e tocou-me a face. Seus dedos eram assustadoramente frios.

- Não foi nada justo. Não foi, não.

Ela balançou a cabeça e virando-se, começou a caminhar pela praia, na direção oposta à minha casa. Eu ainda a ouvia murmurar aquela frase estranha, enquanto ia-se embora, absorta em seu mundo próprio e a balançar a cabeça, de forma desconsolada, com o corpo levemente curvado para a frente.

- …Nada justo… nada justo…

***

- Tive um sonho estranho.

- Eu também…

- Deve ter sido por causa da conversa de ontem e da tempestade.

- Pois…

Seus olhos pareceram viajar. Devia estar a lembrar-se do sonho.

Pegou a caneca de café recém-passado e foi até a varanda, a observar a praia. Ficou por uns minutos a olhar numa única direcção, como se observasse, atentamente, algo que se passava. Eu fui até ao seu lado e olhei na mesma direcção.

Um grupo de homens, ao longe, parecia ocupado com algo na beira da água. Eles estavam de pé, formando um círculo, à volta daquilo que eu julguei ser um animal morto, provavelmente arrastado pelo mar até a praia, depois da tempestade da noite anterior.

- Deve ser algum animal, trazido pela maré.

- Pois. Mas não é para aquilo que eu estou a olhar. Olha mais adiante, um pouco, aquela figura atrás da outra rocha, como se estivesse a esconder-se dos homens.

- Onde?

Apontou o dedo para a área atrás de uma das grandes pedras, justamente aquela que tinha o formato mais humano, com uma cabeça, formada por uma pedra redonda, que jazia em cima daquela maior, que parecia constituir o corpo.

- Lá!

Por detrás da grande rocha, estava uma pessoa, meio encurvada e vestida com roupas escuras. A impressão que tinha era que estava a esconder-se dos homens, por algum motivo. O que tornava a figura mais estranha era a semelhança com a personagem com a qual sonhara na noite anterior. Mas minha surpresa ainda estava por tornar-se maior, a partir do momento em que ouvi:

- Parece com aquela velha que eu sonhei na noite passada…

- O quê?

Como seria possível que nós dois tivéssemos sonhado com a mesma personagem, na mesma noite?

- A sério? Eu também sonhei com uma figura assim…

- Isto é tudo muito estranho! Ou, então, é uma grande coincidência. Vamos até lá!

- Vamos!

***

- Algo não está certo.

- O quê?

- Não sei. Sinto uma tristeza tão grande…

- Ainda tens o amuleto?

- Sim. Por quê?

- Joga fora. Atira-o ao mar.

- Mas ela disse…

- Não interessa o que ela disse. Joga-o fora. É isso que te está a influenciar. É o poder da sugestão.

- Nós a ajudamos e ela deu-mo de presente. Não posso fazer isso.

- Então eu faço. Foi um presente envenenado, isso sim. Ela encheu tua cabeça de sandices.

Arranquei-lhe o amuleto da mão e, indo até a beira d’água, atirei-o mar adentro. Pela força que eu usei, ia ser praticamente impossível resgatá-lo, se por algum motivo quisesse. As águas da baía estavam calmas e o facto de atirar o objeto para além da zona de formação das ondas, iria dificultar qualquer busca, se houvesse, mais ainda. Voltei para dentro, com um ar de satisfação estampado no rosto.

- Não foi justo. Não foi nada justo…

- O quê?

Olhou-me de uma maneira muito estranha, como se uma possessão tivesse tomado conta de seu corpo. Balançou a cabeça de forma desconsolada, olhando através de mim, com o corpo levemente encurvado para a frente.

- Nada justo… nada justo…

***



domingo, 1 de abril de 2018

Pelo Litoral (Epílogo)


- Monarca? 

- Mas isso não é um tipo de borboleta? 

- Todo este investimento gasto em uma pesquisa baseada em estudos sobre uma borboleta? 

- Não se enganem. A pesquisa é muito séria e os resultados são garantidos… 

- Quem disse? Ainda não começamos a produção e não sabemos se os resultados são garantidos. Quem pode confiar nisso? 

- Eu posso! 

O Conselho estava dividido. De um lado, os investidores e os membros da direcção estavam confusos e achavam que apostaram no cavalo errado. Cada vez mais, sentiam que haviam sido enganados… e em grande! 

Do outro lado, o Director Geral estava certo das origens e do resultado da pesquisa e tinha certeza que ia ficar muito rico. Ele sabia mais que os outros, mas não podia realmente revelar de onde vinha uma certeza tão grande. 

Ele lembrou do dia em que encontrou o homenzinho estranho, pela primeira vez. 

*** 

A figura era muito pouco comum. Praticamente um albino, o homenzinho parecia uma estranha mistura de um alienígena com um hominídeo qualquer, para não dizer outra coisa. Parecia saído de um filme de ficção científica, com sua pele pálida e sua cabeça grande, desproporcional ao corpo mirrado. 

- Vou enviar a cápsula através de uma fenda no tempo, no que será percebido como daqui a uma semana. Até lá, não voltaremos a conversar. Aquele será o sinal, para iniciarmos as negociações. Esta operação deverá manter-se em sigilo, até que tenhamos segurança suficiente para não levantar suspeitas indesejadas. 

- É justo. Se a cápsula não for entregue, não temos negócio e a vida vai continuar normalmente e sem mais problemas que já temos. 

- Não lhe peço para acreditar em nada, sem as devidas provas. Aqui está a chave para abrir a cápsula. Sem ela, é apenas uma esfera metálica, encontrada no oceano. Não há outra forma de abri-la… 

- Por que vai ser jogada no oceano? Podia ser entregue em outro lugar… de outra forma… 

- Por causa da dimensão que tem. Além do mais, o oceano servirá como um bom amortecedor da queda. Em terra firme, iria chamar muita atenção e poderia sofrer danos ao cair. A amostra estará dentro de um pequeno recipiente, devidamente protegido. 

- Se a amostra vem em um recipiente pequeno, para que precisa de uma cápsula de grande dimensão? 

O homenzinho sorriu. Sua face parecia pouco acostumada com demonstrações de simpatia. Seu semblante ficou sério novamente, quase que de imediato. 

- Porque a amostra não será a única coisa que será enviada dentro da cápsula. 

*** 

Os dois rapazes seguiram na direcção da entrada, sem olhar para trás. Do lado de fora do Campus, começava uma grande confusão de sons de sirenes a berrar pelas ruas e vindo na direcção deles. Dentro do Campus, o incêndio aumentava as proporções, destruindo tudo o que havia sido o então laboratório de pesquisas. Os dois seguiram pelo caminho contrário e entraram na primeira estação do metro, sem conversar e sem olhar para trás. 

Ao passarem para a plataforma, viram que uma carruagem acabava de aportar e entraram nela, sem titubear. Tinham pressa de sair dali o quanto antes. 

Na superfície, o caos estava armado, apesar daquela hora da noite. Além dos bombeiros, policiais e equipas de segurança do Campus, um afluxo de curiosos também lotava o local. 

No subterrâneo, os vagões do metro avançavam em velocidade controlada, afastando-se cada vez mais da região onde estava instalada a Universidade. 

O rapaz de óculos quebrou o silêncio, depois de um tempo. Ainda estava pálido e nervoso. 

- O que foi aquilo? 

- Ainda não sei direito. Mas foi assustador. 

- Se foi. Ainda sinto aquela mão fria no meu ombro. Tenho receio do que vi. De onde será que ele veio? Parecia saído de um filme de ficção científica! 

O outro tentou esboçar um sorriso, mas estava muito preocupado, para brincar com o que acabara de acontecer. 

- Ele deve, provavelmente, ter saído de lá, antes que os bombeiros e a polícia chegassem. Não deve ter esperado por ninguém, para sumir dali, ou teria que dar muitas explicações. Não acredito que alguma explicação possa ser fácil de ser dada, de todo jeito. 

- E o que nós faremos agora? Nunca encontraremos respostas para nossas dúvidas e não poderemos confirmar nossas teorias. Perdemos a viagem… 

- Talvez não… acho que, de alguma forma, vamos ter que voltar a ver o nosso homem misterioso… Ainda não sei como, mas acho que ele pode ter respostas. 

- Oh, não! Lá vamos nós, outra vez! 

*** 

A notícia vinha em letras grandes, na primeira página do jornal mais vendido no país: N.M.E. sendo investigada, por alterações na genética dos alimentos. 

O artigo trazia detalhes de alterações genéticas, que conduziam à uma dependência química, como nas drogas ditas ilegais. O mesmo acontecia com a industrialização de medicamentos, numa fase mais avançada dos negócios da empresa, que também se suspeitava que viciavam os usuários. O consumo de ambos havia aumentado vertiginosamente, o que levou às suspeitas de que havia algo acontecendo na empresa, para ter os resultados aumentados exponencialmente, em tão pouco tempo e sem grandes estratégias evidentes de marketing. 

O rapaz de óculos estendeu o jornal ao amigo, depois de ler atentamente toda a matéria publicada. 

- Eu sabia que havia alguma coisa muito errada. 

- Só que não conseguimos provar nada, nem ao menos encontrar evidências, depois do incidente com o laboratório da Universidade. 

- Depois de passado este tempo todo, a única coisa que eu lembro de bom, foi que aquelas férias terminaram logo. De resto, só perdemos nosso tempo e dinheiro, além das confusões em que estivemos envolvidos. 

- Pois… E nem ao menos encontramos aquele homenzinho estranho outra vez… Será que…? 

O rapaz olhou o amigo, depois daquela pergunta malfeita, sabendo que, aparentemente, sua cabeça estava a trabalhar em alta velocidade, como sempre acontecia, quando estava a planear alguma coisa. Mais de um ano havia-se passado, desde que os dois voltaram daquelas férias, que foram totalmente estragadas pelas circunstâncias. 

A vida no quartel voltava ao normal, mas a aventura ficava com um gosto de situação não resolvida. Com o tempo foi mais fácil deixar aquela sensação de lado, mas, agora, aquela notícia trazia tudo de volta. 

- O que tu achas de voltarmos lá? 

- Estás louco? Aquilo já não é para nós. Deixa a polícia encarregar-se deles. Não há nada que possamos fazer. 

- Não sei, não… Eles são criminosos e na matéria do jornal só há menção às falcatruas relativas aos alimentos e medicamentos, o que nós chegamos a suspeitar também. Nunca associaram a empresa ao crime contra os dois rapazes, mortos, inocentemente, em nosso lugar… nem à explosão do laboratório. Por que será? 

- Ai, meu Deus! 

*** 

- Eu não quero estar envolvido num escândalo destas proporções. Não foi para isso que eu lhes vendi a fórmula. Eles vão acabar vasculhando muita coisa e chegar até mim. Isso não vai acabar bem. 

- Por que isso o incomoda? O que eu faço com o resultado da pesquisa e das modificações, que nós trabalhamos tanto para implementar, é somente da minha conta e, claro, da companhia. 

- Eu saí do meu exílio porque não estou de acordo com o rumo que as coisas tomaram. A intenção era outra, desde o começo…e eu lhe disse isso… 

- Não devias ter voltado para cá. Nosso contrato foi fechado há muito tempo. Eu paguei bastante caro por tudo isso. E estou somente colhendo os dividendos… 

- Dividendos? Aprimorar a fórmula dos medicamentos para retardar o envelhecimento e vender o produto por milhões de Euros, apenas para uns poucos magnatas, que têm medo de morrer, não é somente colher dividendos, na minha opinião. A humanidade… 

- Quem se importa com a humanidade? Estes pobres seres nem sabem por qual motivo ainda caminham neste planeta… Não merecem o chão que pisam! Eu não vou alterar um milímetro do que eu consegui até agora, por causa dos teus escrúpulos. Eles não existiam quando fizemos o acordo e fechamos o contrato. Por que esta recaída, agora? Que eu saiba, tu destruíste um planeta inteiro, com todos os habitantes ainda vivendo lá… 

- Todos menos um… dois… para falar a verdade. Mas isso foi uma medida desesperada. Não havia salvação para aquele planeta… 

- Nem tampouco para este! O que está feito, está feito. É minha decisão. E não te preocupes. Nunca chegarão a ti. Não para onde vais… 

- Como assim? Eu não vou dizer-te para onde vou… 

- Digo-te eu! E não vais para longe da minha vista… 

O homem abriu uma gaveta e tirou uma arma automática de dentro dela, apontou para o homenzinho estranho e atirou. O único projéctil lançado pelo silenciador instalado no cano da arma, atingiu o outro bem no meio da testa. Um tiro fatal, com pouco sangue derramado. 

O director ligou para a segurança e esperou. 

- Façam o que já lhes disse para fazer. E mandem limpar esta sujeira, antes que alguém faça perguntas. Eu quero o corpo deste humanóide embalsamado e depositado dentro daquela cápsula, de modo que nunca ninguém encontre vestígios do que aconteceu aqui. E mandem instalar a maldita cápsula no meio daquele jardim, para onde eu possa olhar todos os dias… 

O chefe da segurança assentiu, chamou os homens e tratou de fazer o que lhe fora mandado, sem perguntas e sem hesitar. 

Àquela hora da noite não havia quase ninguém na empresa. Eles tinham toda a liberdade para fazer o que era necessário, sem levantar suspeitas. 

*** 

- Liga a TV. Estão mostrando uma coisa que vais querer ver. 

- O que foi? 

O rapaz ligou a TV. O noticiário mostrava uma matéria sobre uma certa grande produtora de medicamentos, que anteriormente produzia somente alimentos. Uma investigação levou à descoberta de uma série de incidentes, todos associados ao director da N.M.E., incluindo a um crime contra dois rapazes, no norte do país. 

A investigação apontou para o chefe da segurança da empresa, que depois de muitas contradições nos depoimentos que prestou, acabou por ceder e confessar o tal crime. O diretor ainda estava sob investigação e a polícia acabava de chegar ao escritório com um mandato de prisão contra ele. 

Advogados muito bem pagos trabalhavam para conseguir um habeas corpus, mas não tiveram tempo de impedir que o homem fosse levado para a delegacia. 

A câmera da TV mostrava o homem sendo abordado pela polícia, quando estava ainda no parque interno da empresa. Era visível que ele mantinha os olhos num estranho objecto plantado no meio do jardim bem cuidado. Uma grande esfera de metal, toda lacrada, jazia, como um monumento ou um troféu, no centro daquele jardim, ladeada por fileiras concêntricas de serralhas e outros tipos de asclépias, muito bem plantadas, num desenho geométrico harmonioso. 

Os dois rapazes estavam estáticos. Conheciam muito bem aquela esfera. 

- Que diabos! 

A reportagem continuava. 

Quando o carro da polícia chegava à delegacia, com as câmeras todas atentas, à volta, a registar o acontecimento, a TV mostrava o homem sendo arrastado, aparentemente inconsciente, na direcção do prédio. Uma ambulância já estava à espera, com os paramédicos prontos a prestar atendimento imediato. 

Um repórter anunciou que o homem chegara morto ao local. Outro ventilou que ele se envenenou, a caminho, para evitar as consequências da prisão, confirmando as suspeitas do primeiro. 

A imagem estava fixa na carrinha branca da ambulância. No volante, para choque dos dois rapazes que assistiam, atentos, um homem muito pálido e de aparência estranha, levava o carro para longe da delegacia e da confusão a que os repórteres e curiosos acabavam de presenciar…

***

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Pelo Litoral (Parte 4)


- Voltou a sangrar? 

- Sim. Eu devia ter apertado a bandagem mais forte. 

- Temos que dar um jeito nisso, mas sem levantar suspeitas. Se formos a um pronto-socorro, eles vão chamar a polícia. 

- Não há necessidade. É uma questão de tempo. Foi só um raspão. 

- Por sorte. Mas se infecionar, não teremos alternativa. 

- Não nos preocupemos com isso, agora. Vai ficar tudo bem. 

O rapaz de óculos assentiu, preocupado. Não era apenas um raspão. A bala havia entrado e saído, felizmente, sem atingir nenhum órgão vital, pelo menos aparentemente. Ainda assim era um ferimento de bala e podia infecionar. Foi o que eles ganharam por enfrentar homens armados, tendo como defesa apensa as roupas e pedaços de metal dentro delas.

Eles tinham que passar despercebidos, por isso o ferimento tinha que estar contido, ou, então... 

E eles já não tinham certeza de nada… 

*** 

- Incompetentes. Estou rodeado por incompetentes! Como é que três dos meus seguranças, escolhidos a dedo, por serem os mais habilitados, deixam escapar dois rapazes daqueles. 

O chefe da Segurança não respondeu. Sabia que o homem não ouvia ninguém quando estava enfurecido. Era uma questão de tempo e de paciência até a razão voltar e ele, mais calmo, dar novas ordens ou arquitetar um plano, para sair de alguma situação. Aquela era grave. Era um furo no procedimento e um risco muito grande. Se os rapazes descobrissem o que havia por trás da operação, da qual ele sabia pouco, mas tinha certeza que era muito importante, eles estavam em grande perigo de exposição. 

- Vocês tem até o fim do dia para acabarem com isso. Resolvam isso já! 

O chefe da Segurança virou-se e saiu. Não tinha a mínima ideia de como resolver, mas sabia que se não fizesse nada, tinha a cabeça a prêmio. 

*** 

No dia seguinte ao incidente, os dois desceram para a cidade, foram ao banco, resolveram a questão com os cartões e com o dinheiro e arranjaram um Airbnb mais decente para ficarem, porém sem muita exposição, de modo a poderem planear o que fariam em seguida. A escolha era baseada no facto de serem mais dificilmente identificados, do que se ficassem em um hotel. A quinta era suficientemente discreta e bem arranjada, além de muito bem localizada, numa das ruas secundárias, pouco distante do centro da cidade. Era uma escolha muito conveniente. 

Ainda pela manhã, foram até a Biblioteca Pública fazer uma pesquisa sobre os negócios da N.M.E. e descobriram que a mesma estava para fechar um contrato para pesquisa e desenvolvimento de medicamentos. A princípio aquilo pareceria normal, se não fosse um pequeno detalhe escrito no final do artigo. O rapaz de óculos estranhou o facto e comentou com o amigo. Valia uma investigação mais profunda. 

- Vamos ter que ir mais a fundo nisso. Melhor ir até lá! 

- Estás louco? Ir direto à boca do lobo? Isso é suicídio. Eles já estão à nossa procura. Não nos vão deixar sair de lá, vivos! 

- Tem que haver um jeito. 

Airbnb não ficava longe da Biblioteca. Quando estavam chegando à esquina, viram que havia um carro preto parado, perto da quinta, onde estavam hospedados. Os dois perderam, completamente, a naturalidade, sentindo seus músculos a enrijecer. Eles voltaram uns passos e enveredaram pelo portão atrás da pequena igreja, no alto do morro e ficaram a observar, escondidos. 

Dois outros rapazes, mais ou menos da mesma idade que eles vinham descendo a rua, conversando displicentemente, naquele exato momento. O carro arrancou e avançou contra os dois, que pegos de surpresa, não escaparam do atropelamento fatal. O motorista acelerou e enveredou pela rua, deixando as duas vítimas a sangrar no local do crime. 

- Estamos ferrados! Acho que eles pensavam que éramos nós! Não pode ser uma coincidência. 

- Isso está cada vez mais estranho e perigoso. Temos que sumir daqui. Nem podemos pensar em chegar perto da sede deles… Vamos ser mortos! 

- É verdade. Aquilo não foi apenas um incidente. Agora trata-se de um crime. 

*** 

O homenzinho sentou-se. O outro parecia pouco à vontade, mas abriu a pasta de documentos e folheou o dossier, com olhos bem alertas. 

- É essa a documentação que necessitamos para iniciar o processo? 

- Sim. Está tudo aí… para a primeira fase e para estudar a primeira amostra… 

- Primeira fase? Que brincadeira é essa? 

- Não é brincadeira. É a garantia de que vou sair daqui vivo e ileso. A segunda parte será enviada quando eu estiver seguro. 

- Isso não fazia parte do contrato. É uma fraude. 

- Não é. Eu tinha que tomar minhas precauções. Eu soube o que foi feito aos dois rapazes… 

- Efeito colateral. Nada mais que isso. 

- Não gosto dos vossos métodos, mas não tenho nada com isso e nem quero ter. Só me interessa terminar essa transação e retirar-me daqui. Tenho mais o que fazer e me preocupar… E para mostrar que eu falo sério, vou deixar uma segunda amostra. 

- Quem me garante que isso é suficiente, para iniciarmos a produção dos medicamentos? 

O homenzinho ignorou o comentário em forma de pergunta e continuou. 

- Há uma clara diferença no comportamento das duas amostras, embora tenham vindo da mesma origem. Esta segunda está recuperada, mas tem o ciclo de vida mais curto. Para transformar a primeira numa outra, em perfeito estado, com o ciclo de vida muito mais longo, é fácil, com os dados certos. Vocês têm a resposta numa matéria-prima em abundância, aqui mesmo. Foi um erro que cometemos, quando não aproveitamos o tempo que ainda tínhamos. Quando chegamos à resposta, já era tarde. Felizmente, eu tive tempo de recuperar a pesquisa, antes… 

- Recuperou? Mesmo? 

- Passe a informação e a amostra para o laboratório e mande-os comparar as duas. Eu mando o resto da informação, assim que estiver longe daqui. 

- É o que farei. 

O homenzinho esboçou um riso esquisito, como de alguém que não era acostumado a sorrir ou demonstrar simpatia. Sua face era quase impassível e desprovida de marcas de expressão, com exceção da região entre os olhos, onde apareciam profundas rugas de preocupação. Seu riso era, apenas, um pequeno movimento de lábios, sem muita expressividade. Ele parecia um fantasma… ou… 

- Muito bem. Aguardem meu contacto. 

*** 

- Isso não pode estar certo. 

- E não está. 

- Deve ser por isso que eles tem coisas a esconder e acham que nós sabemos mais do que realmente sabemos. 

- Mas a ponto de nos matar? 

- Isso é mais grave que uma infeliz coincidência. Como vamos descobrir mais sobre as falcatruas deles? 

- Não sei e nem quero saber. O melhor que nós fazemos é voltar para casa. Chega desta história. 

- Deixa-me pensar. Tem que haver um jeito… 

- Oh, não. Eu sei onde isso vai acabar. 

- Pelo menos agora temos uma hipótese. Eles pensam que estamos mortos! E eu acabo de ter uma ideia. 

- Oh, meu Deus! Estou ferrado! 

- Vem! 


***

sábado, 2 de dezembro de 2017

Preso na Mente (Parte 2)



- Tu és um anjo?

- Na verdade, não...

- Então?

- Estou aqui para ajudar-te...

- Em quê?

- Em ir para o outro lado…

- Assim me estás assustando.

- Por favor, não tenha medo. Tudo vai ficar bem.

- Agora é que estou com muito medo, mesmo. Isso é de loucos...

- Um salto de fé?

- Outro?

Ele riu. Engraçado, como seu sorriso me fazia sentir tão bem e segura. Algo em minha mente dizia que eu poderia confiar nele. Ao observar aquela bondade claramente expressa em sua face atraente, não sei por qual razão, minhas pernas enfraqueceram e senti que precisava sentar-me. Ele apenas segurou minha mão. Minha vista escureceu. Minha mente ficou vazia. Então eu apaguei... Ou foi todo o resto que desapareceu?

***

- Venha comigo. O canal deve estar bastante quieto agora. É tarde e ninguém trabalha nas gôndolas à esta hora da noite. Vou levá-la para o outro lado...

Ele escolheu uma noite de lua nova, com muita sabedoria. Estava demasiadamente escuro, sem a lua a brilhar no céu. Eu podia ver as estrelas cintilando acima de nossas cabeças, mas não podíamos ver muito adiante de nossos olhos. Senti sua mão quente e firme a segurar a minha. Por uma razão estranha, meu coração estava ardendo, apesar de a noite estar fresca, quase fria. Eu estava sendo habilmente conduzida por ele, noite adentro, através das águas um tanto turvas e silenciosas do canal. As luzes da cidade haviam ficado atrás de nós e o barco seguia para o lado mais escuro do lugar. Eu me sentia cansada, mas estava apreensiva ao mesmo tempo. Não conseguia fechar os olhos, mesmo que fosse por um segundo sequer.

Eu confiava nele e em suas habilidades... Tinha que confiar. Ele conduziu a embarcação por uma entrada que levava pelos porões de um conjunto muito antigo de prédios. De repente, todas as luzes desapareceram e eu só podia ouvir o som intermitente do remo, a bater suavemente na água que nos rodeava. Quase perdi o controlo e segurei-me ao lado do barco, com as duas mãos. Senti que estávamos avançando, porque uma suave e fresca brisa soprava contra meu rosto. Ele estava em silêncio e eu também, mais pelo medo, do que pela consciência, mantendo meus ouvidos em alerta total.

- Onde estamos?

- Shh... Não se preocupe. Confie em mim. Estamos quase lá.

- Lá? Onde?

Ele nunca respondeu. O silêncio era quase insuportável. Desisti e fiquei com a boca fechada, naquela estranha viagem, por uma via totalmente desprovida de luz, até que vi uma luminescência muito pálida, a flamejar bem à frente, como se a bruxulear sua mistura de estranhas sombras, nas paredes cobertas de limo e caruncho. Meu coração batia tão rápido, que eu pensei que ia ter um colapso. Minha mente estava completamente inquieta e eu sentia calafrios, subindo e descendo pela minha coluna. Meus pensamentos se tornaram um, gritando, na minha cabeça, aquele estado anormal e evidente de pavor.

"Oh, Deus! Estou tão terrivelmente assustada agora."

E, então, a situação ficou ainda pior, quando o ouvi dizer:

- Não fiques. Não tens razão para ter medo.

Ele fez aquilo novamente. Como ele poderia saber o que eu estava pensando? Perguntei se eu, algum dia, saberia.

Então ele desacelerou o barco e atracou, pulando rapidamente para uma espécie de minúsculo atracadouro e me ajudando a sair, para o terreno firme. Sua mão estava quente, mas a minha, ao contrário, estava extremamente fria.

E então ele sorriu para mim. Por algum inexplicável motivo, em vez de me sentir segura, senti-me ainda mais assustada, que já estava. Qual seria a sua intenção? Por que aquele estranho sorriso?

Meu coração deu uma outra batida em falso. E, então…

***

- O que é que foi isso?

- Um sonho, eu acho...

- Tu achas? Tu sabes bem o que foi...

Ele apenas sorriu, como se soubesse mais do que realmente dizia.

- Isso é loucura. O que estás fazendo comigo? Estou apavorada.

- Essa não é minha intenção, minha cara. De modo nenhum. Estou apenas te preparando.

- Lá vem aquela conversa de preparação, novamente. Por que tu não dizes tudo? Estou ficando cansada disso...

Ele simplesmente respondeu, da maneira mais calma que podia.

- Já falamos sobre isso.

- Sim, já, mas isso não me faz sentir melhor.

Ele ficou a me olhar, fixamente. Sua expressão era impossível de traduzir. Minha mente vagou no tempo.

***


- Uma razão?

- Saberás, quando o tempo for devido.

- E acho que não vais-me dizer mais nada sobre isso, de antemão...

- Como eu disse, no seu devido tempo, minha cara... Só então...

- Isso é muito irritante, sabias disso? E é um bocado assustador...

- Tu não vais-te machucar. Não tenhas medo.

- Machucar? É essa a tua preocupação?

- Principalmente...

Dei-lhe um soco no braço, tentando machucá-lo, mas, daquela vez, de verdade.

- Ouch!

Ele segurou minha mão, beijou-a e abraçou-me, rindo da minha torpe tentativa de prejudicá-lo.

- Tu vais ficar bem.

Eu sentia que ele estava-me tentando proteger, mas não conseguia definir do que... ou de quem.... Então fechei os olhos e me aconcheguei no seu peito. Ele tocou meu rosto, tão levemente, que imaginei flocos de neve pousando na minha pele, mas com a sensação de que eram muito mais cálidos...

***

- Tive aquele sonho novamente.

- Ah, foi?

Ele estava sorrindo. Perguntei-me o que aquele sorriso maroto poderia significar. Ele sabia. Eu sabia que ele sabia. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo na minha mente... como sempre…

- Por que essa carinha engraçada?

- Tu não sabes tudo? Adivinha.

- Eu não sei tudo. A tua impressão a meu respeito está muito longe da realidade.

- Não está. Tu és sempre tão misterioso e reticente. Me confundes e, então, ris de mim, sem qualquer explicação real... e eu me pergunto onde isso me possa levar, mas suponho que tu não vais-me dizer agora...

- Talvez… um dia…

***

- Conta-me teus segredos... mesmo os mais sombrios... Podes confiar em mim.


- Só se me contares os teus...

Ele simplesmente sorriu, fingindo que estava derrotado. Claro que ele nunca me contaria nenhum dos seus segredos mais secretos. Se realmente pudesse ler minha mente, sabia que muitas das minhas feridas, não reveladas, ainda estavam vulneráveis, para todos os efeitos. Ele poderia tocá-las e me machucar ou, por outro lado, me curar. Era sua opção e sua decisão. Ele tinha-me completamente em suas mãos.

E aquelas mãos... oh, Deus... Aquelas mãos eram tão carinhosas. Seu toque era tão perfeito, a seguir, vagarosamente, as curvas do meu corpo, como se quisesse decorar todas as linhas, na sua mente complexa. Seus lábios roçaram os meus, depois o meu pescoço, meu peito e meu estômago. Ele então desceu pela minha pele, causando-me arrepios, enquanto abria seu caminho com os lábios, a beijar-me suavemente e a segurar meu corpo, firmemente, em suas mãos quentes, como se quisesse certificar-se que eu não iria fugir de suas carícias...

Até parece que, por algum descabido motivo, eu ia, mesmo, tentar fugir...

Como eu poderia pensar em mais alguma coisa, além do prazer, quando estava sendo tocada e mimada daquele jeito? Eu poderia ficar viciada naquilo e nele, a qualquer hora e de qualquer maneira.

Não. Na verdade, não poderia. O caso condicional, aqui, já não podia ser aplicado. Já era tarde demais para isso.

Pensando de forma absolutamente clara, na verdade, eu já estava completamente dependente da presença dele.

Ele poderia fazer qualquer coisa que quisesse e tirar qualquer coisa de mim, que eu certamente me entregaria, sem qualquer sinal de luta. Ele era meu amante e dominava a arte da sedução, fazendo-me esquecer tudo o mais, quando estávamos juntos. O mundo poderia girar sem nós, por uma noite inteira ou mais, se ele quisesse. Eu era um brinquedo em suas mãos, aceitando abertamente o que poderia tirar dele, como se fosse a última coisa que eu conseguisse fazer na minha vida... Então ele poderia assumir todo o controle e me fazer ir para o Céu ou para o Inferno, em segundos, até o mundo inteiro explodir em mim e eu cair das alturas, agarrada ao seu corpo e alma, como se fossemos apenas um.

Cansados e felizes, nós adormeceríamos nos braços um do outro, dormindo juntos e sonhando sonhos separados.

***

- Eu tenho que ir agora.

- Mas ainda é cedo...

- Eu sei e, realmente, não quero sair, mas tenho que ir.

- Eu queria que tu pudesses ficar um pouco mais.

- Não vou-me atrasar esta noite. Eu prometo.

Seus olhos, então, vagaram para longe. Eu conhecia aquele olhar. Meu corpo reagiu imediatamente, ficando tenso e estremecendo um pouco.

- Isso não é um adeus. É apenas um "até depois"...

- Eu sei disso…

Ele sentou-se na beira da cama. Meus olhos tentavam memorizar as linhas de suas costas e braços, enquanto ele lentamente se vestia e preparava-se para sair. Eu estava ocupada a observar seus movimentos quase felinos, ainda impressionada e encantada, depois de tanto tempo juntos, pelo jeito que ele se movia. Ele era surpreendente, no mais belo sentido da palavra. Não só era bonito, mas também muito masculino. Adorava o jeito que ele se cuidava e mantinha seu forte corpo em boa forma.

Ele saiu alguns minutos depois. Eu ainda tinha cerca de uma hora antes da minha hora de levantar, então, simplesmente, rolei para o lado e adormeci, por mais um tempo.

***

Eu caminhava, depois do almoço, perto do Canal, meio desejando que pudesse vê-lo, mas sabia que seria apenas um desejo, pois sua agenda era pouco rígida e nada previsível. Como a alta temporada estava quase terminada, o negócio ainda dependia dos grupos de turistas, que se alinhavam no cais, para dar voltas pelos meandros da cidade. O tempo vinha esfriando e o número de clientes diminuía todos os dias. Já estávamos no meio do outono.

O ar estava mais fresco, perto do canal e a maioria dos mendigos evitava aqueles pontos, embora necessitassem manter-se, sempre, perto dos restaurantes e das ruas mais movimentadas.

Uma velha senhora, que eu costumava ver perto da trattoria, estava sentada na calçada, recostada na parede, tomando um pouco de sol. Parecia estar dormindo, calmamente, e aquecida pelos raios quase pálidos do início da tarde. Por algum motivo, continuei a observá-la, por um tempo. Seu corpo se inclinou um pouco para a frente, como se realmente adormecesse, no local supostamente aquecido, onde ela se encontrava tão confortavelmente aninhada.

Acho que eu era a única pessoa a olhar para aquela criatura. É engraçado que, com o passar do tempo, os mendigos se transformam em pessoas totalmente invisíveis à grande maioria dos transeuntes, como se, nem ao menos, estivessem lá ou se não existissem.

Entrei na trattoria e pedi uma xícara de café, depois de sentar-me junto à janela. A velha mendiga ainda estava lá, na mesma posição, inclinada um pouco para a frente, sentada ao sol. Minha mente estava quase vazia. Eu apenas observava o movimento das pessoas e a velha senhora.

Então, uma silhueta conhecida apareceu, de não sei onde e parou perto dela. Meus olhos se iluminaram e já estava pronta para me levantar e sair, quando o empregado trouxe meu café. Quando pude voltar minha atenção para fora da janela, novamente, vi que o homem estendia, num gesto convidativo, a mão para a mulher que, já acordada, colocava seus dedos enrugados na palma da jovem e forte mão, para poder levantar. Ele a ajudou a ficar de pé e os dois seguiram o percurso, caminhando lado a lado, a passos decididos. Pareciam manter o silêncio, enquanto se afastavam do meu campo de visão.

Eu decidi segui-los, apenas para ver o que ele estava fazendo. Era uma mistura de gentileza, mas, ao mesmo tempo, muito intrigante. Quando eu saí pela porta, notei que o lugar onde a mulher esteve sentada, alguns minutos antes, parecia tão intacto, como se ela ainda estivesse por perto. Suas poucas sacolas de plástico e um velho xale de lã cinza e vermelho ainda estavam lá. Parecia que o tempo havia congelado. Pensei que havia algo errado, por isso peguei o xale em minhas mãos e me afastei com passos rápidos, tentando alcançá-los, mesmo sabendo que tinha poucas hipóteses de conseguir.

Não os avistei na rua à frente, mas segui meu coração e a rota que eu achava que eles tomariam, indo na direcção do Canal. Para variar, eu estava certa. Quando virei a esquina, vi que ele a estava ajudando a entrar na gôndola. Estavam sozinhos. Eu não vi a fila habitual de turistas, no cais. Ela sentou-se calmamente na parte de trás da gôndola e eles saíram a navegar pelo Canal, antes que eu pudesse alcançá-los. Não gritei, pois sabia que ele não iria ouvir-me, de qualquer maneira.

Decidi segui-los o máximo que pude, mesmo sabendo que não fazia muito sentido. Meu coração batia muito rápido. Minha mente estava incomodada. Segui a gôndola por muitas ruas, tentando estar tão perto quanto possível.

De repente, eles saíram da via principal e entraram por um dos braços mais estreitos do Grande Canal.

Enquanto o barco seguia, percebi que o lugar ficava cada vez mais silencioso. Em minha mente, eu reconhecia o lugar. O barco atravessou uma passagem e eles entraram pelos porões de um prédio muito antigo. Tive a impressão que o vi virar-se e olhar na minha direção, mas não tinha certeza de que aquilo realmente aconteceu ou se eu simplesmente imaginei. Meu sangue congelou. Então, eles desapareceram nas sombras.

Eu não conseguiria segui-los mais, mas reconheci que aquele era o mesmo lugar com o qual eu vinha sonhando, por várias noites.

Meu coração deu um salto... ou, talvez, dois.

‘Por Deus! O que ele estava fazendo?’

E eu? O que eu estava fazendo, afinal?

***