Numa bela tarde de sol, eu estava
empenhado em fazer a tarefa de casa, sentado à mesa improvisada, construída por
minha mãe, a partir de tábuas de caixotes, para que eu pudesse estudar no
quarto, que dividia com meu irmão mais novo.
Eu tinha que fazer uma redação acerca
do texto que Dona Alba, uma austera mulherzinha de meia-idade, que sempre
vestia-se de preto, havia lido para a turma de Português,
da 1ª série do segundo grau. Era um texto introdutório ao livro Menino de
Engenho, de José Lins do Rego. Fui, talvez, um pouco ingénuo, ao caprichar na
execução da tarefa, mas eu não era um estudante que fazia as coisas mal feitas.
Eu levava a vida a sério e meus deveres também. Mesmo assim, senti-me estranho
quando a grande maioria dos meus colegas de classe lia suas redações e elas todas
soavam do mesmo jeito. Eu achava que estava errado, até o momento que ela
pediu-me que lesse a minha.
“Embora
corresse e brincasse como qualquer menino da sua idade, José Lins do Rego”…
-
Pare já!
Eu parei. Todos ficaram a olhar-me e
eu nem sabia o que estava a acontecer. Então ela levantou a voz e disse, com
uma rispidez, que ficou marcada a fogo na minha lembrança:
-
Eu não admito que os pais façam as tarefas dos alunos, em hipótese alguma. Isso
é uma falta de responsabilidade e jamais vou tolerar este tipo de coisas nas
minhas classes.
-
Mas fui eu quem…
-
Chega! Não quero ouvir mais nada.
Eu calei-me. Já havia percebido que
ela não era nem razoável, nem ouvia além de sua própria voz e razão. Meus
colegas, que já conheciam-me e ao meu estilo de estudar e apresentar meus
trabalhos, olharam-me com um misto de pena e confusão, mas não disseram nada.
Eu que me defendesse sozinho, mas nem isso eu ia conseguir fazer.
Nem preciso dizer que minha confusão e
embaraço diante daquela situação, transformou-se num ódio mortal e eu jurei que
ela iria engolir todas aquelas palavras. O facto é que ao invés de ficar desanimado,
eu sabia que tinha que provar que ela estava errada, por isso empenhei-me cada
vez mais em melhorar minha redação. Era uma verdadeira questão de honra para mim. Eu, que nunca tinha dificuldade em
escrever, passei a ler mais, a usar os dicionários e exceder-me a cada novo
desafio, que a mulher lançava e dos quais ela duvidava que eu fosse o autor,
fazendo questão de humilhar-me na frente da classe, semana após semana.
Como era de esperar, chegou o dia do
teste bimestral e ela anunciou que deveríamos trazer uma folha de papel almaço,
para fazer uma redação. Não devo ter-me sentido intimidado, pois não lembro de
nada até o momento em que ela deu o tema da redação: “A força do vento do sul
sobre a antiga casa”. Eu tive um choque. Quem, em sã consciência, poderia pedir
uma redação, sobre um tema daqueles? Eu pensava, pensava e pensava... e não
conseguia começar a alinhavar meu texto.
Os outros colegas estavam já a
escrever e eu ainda ali, com as mãos na cabeça, a reconhecer que ela havia, finalmente,
conseguido. Quase percebia o ar de vitória em sua face, ao ver-me, finalmente,
derrotado, provando que ela estava certa, desde o início.
Eu sentia-me um incapaz. Olhei à volta.
Todos empenhados a escrever. Dez preciosos minutos haviam passado. Ela não podia
vencer-me assim.
Fechei os olhos e pensei. Vou escrever qualquer coisa. Dane-se. Estou malvisto mesmo. Minhas orelhas ferviam. Resolvi comparar o vento e a casa às adversidades da vida e aos homens que conseguem suportá-las. Quando ela anunciou que faltavam apenas mais cinco minutos para o fim da aula e do teste, eu senti o corpo todo a queimar. Quando entreguei a folha escrita nos quatro lados, senti-me como se fosse a criatura mais infeliz do mundo.
Fechei os olhos e pensei. Vou escrever qualquer coisa. Dane-se. Estou malvisto mesmo. Minhas orelhas ferviam. Resolvi comparar o vento e a casa às adversidades da vida e aos homens que conseguem suportá-las. Quando ela anunciou que faltavam apenas mais cinco minutos para o fim da aula e do teste, eu senti o corpo todo a queimar. Quando entreguei a folha escrita nos quatro lados, senti-me como se fosse a criatura mais infeliz do mundo.
Ela havia vencido. Eu recusava-me a
falar sobre o assunto, quando alguém perguntava se eu havia conseguido escrever
algo coerente. Eu apenas dizia que não tinha ideia nenhuma. Tinha corrido muito
mal. Cerca de duas semanas depois, como ela tinha que entregar as notas, trouxe
os testes de volta e, antes de devolvê-los, disse:
-
Eu quero que vocês ouçam com muita atenção o que eu vou ler.
E começou a ler, em voz alta, palavra
por palavra e pausadamente, uma certa redação. Ela parecia saborear o momento,
quase num êxtase.
Reconheci algumas partes, mas como
havia ficado completamente arrasado durante a prova, minha mente recusava-se a
aceitar o pior. Eu não tinha muita certeza de nada. Algumas partes pareciam-se
mesmo, com a minha redação. Eu só queria sumir, morrer, ou mesmo desejar que
ela parasse, mas era apenas um desejo, que não se realizaria… Na sua natural
crueldade, ela jamais pararia de humilhar-me e fazia questão de ler a redação
até o final, o que evidentemente o fez. Quando terminou, não fez nenhum
comentário - nem positivo, nem negativo. Simplesmente colocou o papel de volta
na pilha de testes, que eventualmente começou a devolver aos alunos.
Quando recebi meu teste, tive a
certeza que ela havia lido, na íntegra, a minha obra mais lamentada. Não havia
nota, nenhuma correção gramatical, nenhuma correção ortográfica. Recebi o papel
sem nenhum comentário. À parte de toda aquela ausência de vestígios, havia,
apenas um rabisco, que pensei ser sua assinatura, no topo direito da folha.
Mais nada.
Nunca havia-me sentido tão humilhado e
enxovalhado.
Jamais mencionei que a leitura havia
sido do meu texto, por ter experimentado uma vergonha enorme e um desconforto
insuportável. Ninguém da classe jamais soube como eu senti-me. Mantive o
segredo com o peso que ele tinha na minha consciência e a vergonha que a
ocasião trouxera. Eu era acostumado a ler e escrever, informalmente, textos,
poemas, peças de teatro e outras pequenas obras, que nunca seriam lidas, nem
publicadas e que ficariam totalmente apagadas pelo tempo. Não esperava que
fosse desenvolver um interesse maior na literatura, além daquelas pequenas aventuras.
Muito mais tarde, somente, compreendi
o que havia acontecido, mas já estava na Universidade, passando por uma outra
fase em relação aos meus escritos. Entre uma etapa e outra, haviam-se passado
alguns anos. As aulas de Português eram grandes desafios para aquele
adolescente inseguro. Mesmo assim, havia aprendido que se não fizéssemos
corretamente as análises sintáticas dos textos e poemas, nunca os
compreenderíamos ao todo. Aquelas pequenas lições, porém, eu absorvia de
maneira muito menos dolorosa que havia passado através de Dona Alba.
No primeiro ano da faculdade de
Engenharia, havia uma cadeira de Português. O professor era um catedrático e também
escritor já de algum renome no nordeste do país, mas não tão conhecido no sul,
onde eu estava. Suas avaliações eram feitas com base na destreza escrita dos
novos engenheiros em formação. Em outras palavras, em avaliação de nossas
redações. Lembro-me bem que quando entregou-me de volta o primeiro teste do
semestre, havia uma mensagem escrita, com uma letra praticamente ilegível.
“Você
tem grandes capacidades fictícias. Como não acho que vai manter o nível, vou
retirar-lhe um ponto da nota e, se o mantiver, devolvo-lhe no final”.
Pela segunda vez, eu sentia-me
desafiado, nas minhas capacidades e desanimava com os resultados, mas sentia um
orgulho secreto de haver deixado aquelas dúvidas nas cabeças de meus
professores. Eu acreditava em mim e treinava minhas habilidades de maneira informal,
sem censura e sem vontade de ser avaliado novamente, com receio que as
injustiças anteriores repetissem.
Não foi surpresa, quando percebi que aproximadamente
a mesma mensagem acompanhava meus dois outros testes feitos posteriormente, na
mesma cadeira. Nem preciso dizer que ele nunca devolveu-me os tais pontos e que
minha média semestral ficou B, ao invés de A, em Língua Portuguesa, por causa
daquilo…
Perlo jeito, não era fácil encontrar engenheiros
que gostassem de escrever qualquer tipo de literatura, além dos relatórios
formais das aulas de Física Experimental, Laboratório ou outra coisa que o valesse.
Desisti de escrever por uns tempos,
limitando-me a rabiscar alguns poemas aqui e acolá, durante a minha vida de
estudante, mesmo assim, para pouquíssimos olhos os lerem. Como ninguém lia,
ninguém criticava…. Nem elogiava tampouco… Ainda escrevi umas duas ou três
peças para teatro e muitos poemas, mas nada que me fizesse sentir qualquer
vontade de publicar. Naquela época, não havia internet. Publicar nem chegava a
ser um sonho, pois só poderia ser através de coletâneas, concursos, ou nos
varais literários da Universidade, nos quais nunca quis participar.
Depois de algumas décadas, quando já
vivia só e depois de passar por uma fase em que minha inspiração para a
literatura e o desenho voltavam a aflorar lentamente, fui convidado a deixar o
país pela segunda vez, a trabalho. A distância da terra, da família e dos
amigos levava-me a produzir pequenos textos, onde contava minhas aventuras e
desventuras em terra lusitana. Meus amigos e família liam-nos, através de
mensagens de ‘e-mails’ que eu os
enviava. Era um grupo muito fechado de leitores. Jurlini, uma grande amiga, disse-me,
um dia, quando eu comentei que apenas escrevia para manter uma espécie de
diário:
-
Tu não tens ideia de como é bom ler o que tu escreves…
Eu senti aquele orgulho secreto, mais
uma vez, depois de tê-lo abafado por tanto tempo, tendo quase esquecido que ainda
existia. Naquela fase, além das pequenas crônicas, eu escrevia somente poemas, mas
sem intenção alguma de publicá-los. Mostrava-os para uns pouquíssimos olhos.
Muitos deles tinham destinatários certos, sendo praticamente mensagens exclusivas
e direcionadas, de uma forma carinhosa. Eu escrevia, mais por uma necessidade
minha de expressar o que passava na minha cabeça, como se existisse um gigante
aprisionado, que necessitava manifestar-se daquela forma, ou sufocaria no meu
peito. A poesia era um confortável meio de expressar-me, mas fui desafiado a
escrever algo diferente, depois de um tempo.
-
Só vou ficar descansado quando tu escreveres uma história em que tenha um
dragão, um laranjal e dois regatos gémeos.
-
Isso não existe. Não há maneira de juntar estes elementos numa história.
-
Estás desafiado a fazê-lo.
-
E já recusei-me… Esqueça!
Mas Maykon sabia que a única forma de
fazer-me, pelo menos tentar, seria desafiar-me daquela forma. Passados alguns
dias, eu começava a esboçar as primeiras linhas da história, em que havia dito
que era impossível juntar aqueles elementos tão surreais, mas que tornaram-se,
em pouco tempo, uma grande parte de mim.
A intenção inicial era de escrever um
pequeno conto, mas acabei empolgando-me e deixei-me levar pelo prazer de dar
vida àquela série de personagens bastante complexos, cheios de conflitos, mas
muito humanos. A história evoluiu, cresceu e por incentivo de meus sobrinhos e
dos poucos amigos que iam acompanhando o processo criativo, virou um pequeno
livro – meu primeiro e único, até agora. Escrito de uma maneira bastante
formal, a Efígie do Dragão ganhou
forma, corpo, capa e contracapa e virou um projeto independente, que foi
publicado e lançado em Julho de 2009. Apesar de não haver sido divulgado como
poderia, nem vendido os quinhentos exemplares impressos, a experiência causou-me
um efeito interessante.
Nascia, em mim, uma fase de frenesi
literário, em que eu escrevia contos em vários estilos, muitos deles ilustrados
por desenhos e aguarelas, que também faziam parte de estudos que eu fazia, com
técnicas artísticas amadoras. Estas, também, eu sentia vontade de evoluir e melhorar.
-
Eu não sou engenheiro das palavras como tu.
Eu ri. A expressão, engenheiro das
palavras, criada por um amigo, divertia-me e, ao mesmo tempo, estimulava-me a
enfrentar outros desafios. Embora considerando-me sempre um amador, tanto na
escrita quando no desenho e pintura, ambas as formas de expressão tornaram-se
partes muito arraigadas em mim, tornando-se tão essenciais quanto respirar.
Pensando bem, passaram a ser bem mais do
que simples prazeres: tornaram-se necessidades... Verdadeiros vícios, talvez desencadeados pela necessidade de mostrar minha capacidade de escrever, à famigerada Dona Alba...