Alter-egos e a Grande Batalha
- Temos que correr. As coisas estão mesmo a
arder!
- Como assim: a arder? Explica isso, pelo amor
de Deus.
- Vem comigo, depressa! Conto os detalhes a
caminho…
A psicóloga
entrou no elevador, seguida pela estagiária e começou a contar-lhe a conversa que
havia tido na noite anterior, com Joe, o último personagem da lista mais
estranha que ela havia conhecido em toda sua carreira. Acabara de receber um
telefonema e tinha que ser rápida.
***
A mulher olhou
o homem, que adormecera ao seu lado, com distinta afeição. Ele virou-se para o
lado e ela viu, em suas costas nuas, duas pequenas tatuagens, uma de cada lado.
Compreendeu, de imediato, porque Phil, sua personalidade favorita, havia
mencionado que tinha asas às costas e que esperava voar. Ele, realmente, as
tinha...
‘As alucinações também alucinam’, pensou.
Abraçou o
corpo desacordado do amante e fechou os olhos…
***
- Eu tenho muitas personalidades diferentes.
Somos sete guerreiros que se revezam, conforme a situação se coloca e um oitavo,
que é um pacifista e que sempre aparece para completar a cena. Cada um tem um
carácter e uma tática distinta, escolhendo seus momentos de se manifestar,
conforme a conveniência deles próprios, fazendo de mim um sério caso para
estudo de grandes psicanalistas.
Nos primeiros tempos, eu tinha dificuldade em
entender o que me acontecia. Lutava contra as manifestações de meus muitos
alter-egos* e assim, ficava dias e noites em disputa interna, até que o cansaço
me vencesse e eu desistisse de lutar, proporcionando, a algum deles, uma
exteriorização qualquer. Com o tempo, aprendi a lidar com todos eles,
permitindo que cada um pudesse ter seu tempo e sua oportunidade de se expor.
Minha maior dificuldade passou a ser a manutenção de reminiscências do que cada
personagem viveu. Muitas vezes tinha lapsos de memória, que duravam muito mais
que alguns simples minutos, como era no início. Passei a sentir muito medo de perder
o controlo de minhas ações. Numa das ocasiões perdi, mesmo, e fui parar no consultório de uma especialista em
multiplicidade e desmembramento de personalidades. Foi uma coincidência e acabou sendo uma das poucas
esperanças que me restavam.
***
- Ele é maduro e experiente, para a idade dele.
Tem boa cabeça. É extremamente sexy, o corpo é desejável, existe uma boa
química entre nós e, além de tudo, sua conversa é agradável, deixando-me muito
à vontade, quando estamos juntos. É muito diligente e responsável. Dá-me vontade de ir adiante e avançar, embora saiba que deva ter bastante
cuidado. Na verdade, estou entre a cruz e a espada, pois posso estar a meter-me
com uma verdadeira bomba-relógio.
- Química? Com todo o respeito e consideração
que lhe tenho, química, física ou biologia não são suficientes. É loucura ir
adiante com isso, não só pelo profissionalismo e ética, como pelo perigo que
pode correr. Quem nos garante que ele não vá fragmentar as personalidades ainda
mais?
- Eu sei e tenho que considerar também que estou
envolvida demais… Mas estás certa. Tenho que usar a razão e deixar o coração de
lado. Ele terá que compreender que a recuperação de sua sanidade e personalidade
é mais importante. Mas, e se a cura for justamente essa?
- Não recordo haver lido sobre qualquer caso
reportado em que a personalidade dominante tenha-se curvado à uma paixão, mesmo
em casos de manipulação mental.
- Tens razão. Preciso manter o foco nele como
paciente, não como amante… Oh, Deus!
- Melhor assim, pode acreditar…
***
- Professor, preciso de sua ajuda. É
importante. Tenho um paciente bastante complexo e não sei como enfrentar a
situação. Preciso de uma luz...
- Pode ser amanhã, por volta das dez da manhã?
Tenho um horário vago e podemos conversar.
- Pode sim. Estarei lá.
A
psicóloga desligou o telefone e pensou no seu professor e orientador, com o
qual havia conversado. Se alguém poderia ajudá-la, naquela hora, ele seria a
pessoa certa. Na hora combinada, ela estava na Universidade, para discutir o
caso dos oito guerreiros.
O
professor ouviu-a e disse-lhe que, talvez, pudesse ajudar. Apresentou-lhe um
jornal do Departamento de Pesquisa da Universidade, onde vinha um relatório
sobre uma nova droga, para tratamento de pacientes com múltiplas personalidades,
que vinha sendo testada com relativo sucesso, em voluntários. Ela ficou interessada
em contactá-los e experimentar.
Na sua
cabeça, porém, uma coisa inda não estava clara: era Joe, a chave, ou Gabriel, o
invólucro original, que tinha que ser tratado e preservado?
O
professor disse-lhe que ela saberia, quando a hora chegasse. Ela concordou,
embora sentisse que não cabia a si aquela decisão.
Ela
lembrou que na noite em que Joe visitou-a e contou-lhe como funcionava o
processo.
***
Ela
ouvia o homem com muita atenção, enquanto ele explicava-lhe como perceber que
todas as personalidades podiam ser controladas pelo pacificador, se ele assim o
quisesse, mas ele tinha que estar à frente, para poder fazê-lo. Naquela noite
perguntou-lhe se ela queria falar com Phil, já que ele percebia o que estava
acontecendo entre eles.
- Como é possível, Joe, que eu possa estar
com ele, assim?
- Confia em mim. Queres estar com ele? Tens
que ser rápida, antes que seja tarde, pois a batalha está muito próxima. Quando
acontecer, não sei como as coisas poderão ser, de alguma maneira, controláveis.
Tem que ser já, antes que eu perca o controle.
Ela
concordou e, Joe saiu de cena, enquanto ainda segurava as mãos da mulher, que,
atónita, tentava absorver todo aquele processo. Levara meses a estudar e não
conseguira nada. Agora Joe revelava aquilo que ela não fora capaz. O olhar do homem
e sua expressão mudaram ali, na sua frente e ela logo reconheceu aquela ternura,
na forma com que ele a olhava.
Ela
sentiu-se completamente vulnerável, desimpedida... e apaixonada... perigosamente
apaixonada. Com lágrimas nos olhos, disse-lhe:
- Olá, meu querido amigo. Quanto tempo eu
não te via. Tive muitas saudades de ti.
- Eu também, mas não é muito fácil estar
disponível. Também tive saudades tuas. A coisa está cada vez mais descontrolada.
Podemos ter muito pouco tempo juntos.
- Eu não compreendo tudo isso... De que
forma esta tal batalha vai acontecer... mas espero que termine, de alguma
forma, bem para nós. Estou tão apreensiva.
- Saberás na hora certa. Joe se encarregará
de avisar. Não tenhas medo do que possa acontecer. Ele e eu, especialmente,
gostamos muito de ti...
Ela
olhou-o com os olhos cheios de água. Estava com medo, mas sentia-se vulnerável,
ali, em frente daquele homem. Fechou os olhos e suspirou.
Ele
aproveitou a oportunidade e beijou-a. Ela não fugiu; não correu; não rejeitou-o.
Ao contrário: correspondeu aos carinhos dele de forma aberta e, sem dúvida
alguma, com paixão.
Ele foi
o amante perfeito. Explorou cada centímetro do corpo dela, cada pedacinho de
pele e cada sensação e reação do corpo dela. Ela sentiu-se especial. Sentiu que estava a
ser amada e desejada. Sentiu que, com aquele homem, ela podia ser completa e
entregou-se integralmente a ele.
***
- Ele está em perigo. Depressa.
- Ele quem?
- Gabriel. Phil. Joe. Sei lá que nome devo usar...
mas ele está em perigo! Temos que correr...
As duas saíram
do elevador e entraram no carro, escoltadas pelo segurança, que havia sido
requisitado acompanhá-las, e saíram pela avenida, em alta velocidade. Só torciam
para não serem paradas pelo polícia ou
pelo trânsito. Não havia tempo a perder.
Quando
chegaram à porta do apartamento indicado por Joe, um ou dois segundos de silêncio
foi logo interrompido por uma série de outros sons, muito mais assustadores que
o próprio silêncio. O som de vidros a quebrarem foi o sinal para se apressarem.
Joe havia
dado uma chave à psicóloga, caso fosse necessário, ou se ocorresse uma emergência.
Aquela era uma emergência... e das grandes. Ela girou a chave e empurrou a porta.
***
O
apartamento estava todo revirado e várias coisas quebradas, como se houvesse
tido luta. Haviam também marcas de respingos de sangue, em alguns pontos nas
paredes e no tapete. Enquanto olhavam as coisas à volta, a psicóloga pediu à
assistente que chamasse a polícia. Só esperava que não tivessem chegado tarde
demais. O quarto estava trancado por dentro, por isso pediu ao segurança que
forçasse a porta ou a arrombasse e foi o que ele fez.
No quarto-suite,
o quadro não era melhor, muito pelo contrário. A janela havia sido arrombada. Lá
também haviam sinais de luta e de sangue, mas não viram ninguém. A mulher
começou a ficar desesperada. Entrou na casa de banho e gritou. Os dois
acudiram-na logo.
O homem que
jazia, desacordado no chão, com marcas da batidas na face e em algumas partes
dos braços, era conhecido de todos. Gabriel parecia ter levado uma surra das
grandes. Eles haviam chegado tarde, mas talvez, não tarde demais. A doutora
pediu ajuda e colocaram-na na cama. Com uma toalha molhada, limpou-lhe os
ferimentos onde conseguiu. A polícia chegou logo em seguida. O oficial já era
conhecido seu e logo reconheceu o rapaz, como o que fora recolhido na rua, completamente
perdido, há alguns meses atrás e que havia sido entregue aos cuidados da
psicóloga.
- Não esperava por essa, mas não estou surpreso.
Esse homem é uma bomba-relógio.
A mulher
não concordou, nem discordou. Apenas voltou sua atenção ao homem inconsciente,
deitado na cama de casal da suite. Olhou à volta e avaliou o estilo sóbrio e
quase minimalista na decoração. Nada de frescuras, nenhum excesso, nada que
pudesse parecer desnecessário. Um quarto de dormir, apenas. Nenhuma TV, nenhum
computador, nem mesmo um discreto aparelho de som. Tudo isto estava na sala. Na
mesinha de cabeceira havia apenas um pequeno abat-jour
e um livro.
- O que é aquilo no bolso dele? Parece um papel
dobrado.
- E é... tem uma mensagem para si.
- O computador...
Os quatro
entreolharam-se e correram para a sala.
***
Na sala de
espera do hospital, um grupo de pessoas esperava o médico vir para dizer como
estava o paciente, que havia dado entrada, inconsciente e com sinais de luta,
marcados no corpo todo. Quando ele apontou, no fim do corredor, os três
levantaram-se, ao mesmo tempo.
- Ainda está inconsciente, mas não há nenhum
osso quebrado e as feridas não são profundas demais. Está sob o efeito de sedativo,
por ora, porque tivemos que fazer uma pequena cirurgia na cabeça, onde havia
uma concussão. Deve ter batido contra qualquer coisa, quando caiu... Havia
também um corte no corpo, que pode ter sido feito por uma faca ou coisa
similar. Tivemos que suturar. Vai ficar uma bela cicatriz. Mas ele ficará bem.
Em pouco tempo podem vê-lo.
- Ótimo. É o que precisamos.
***
- Gabriel. Estás melhor? Consegues falar?
- Olha, não te preocupes. Nós escondemos o
espadim. Ninguém vai chegar até ele. Está bem guardado.
O homem
olhou o segurança, com olhos de quem não compreendeu bem o que ele dissera.
- Nós vimos a mensagem no teu bolso e também no
computador. Eu recebi o arquivo que enviaste para o meu computador pessoal. O
que estava lá foi destruído. Foi muito esperto, mas muito arriscado, o que
fizeste. Assim a polícia já está atrás de quem te fez isso. Juro que, na minha
cabeça, a batalha era com todas aquelas personalidades dentro de ti. Não sabia
que corrias perigo, por estares sendo perseguido por um bandido. E ele esteve
no consultório, naquela noite... Eu também corria perigo. Por sorte o segurança
ainda estava por lá, por isso ele fugiu, antes de ser apanhado... ou de fazer
algo contra mim. E tudo por causa do trabalho de investigação de Alex, tua
personalidade de repórter. Que caso complicado, homem.
O homem
olhou as duas mulheres e o segurança,
com uma expressão muito estranha. Parecia que havia lutado muito, num campo de
guerra verdadeiro e que agora precisava de um pouco de paz, finalmente.
- Estou cansado.
- É compreensível. depois do que passaste. Se
não fossem todas aquelas personalidades a lutarem juntas contra um inimigo
comum, tu não estarias aqui, neste momento. Foi sorte nós chegarmos, pois os
nossos ruídos também serviram para afugentar o teu perseguidor. Olha, vamos
iniciar o tratamento com aquele medicamento experimental. Vai ficar tudo bem.
Ele não
respondeu. Só olhou a mulher e fechou os olhos, lentamente.
***
Meses
depois de começar a usar a droga, as coisas estavam bem mais controladas e eles cada vez
mais próximos. Gabriel estava completamente ao controlo de sua vida e as pouquíssimas
manifestações de outras personalidades foram desaparecendo com o tempo.
Ele
levantou-se e foi ao duche. Poucos minutos depois ela ouviu-o cantar, como já
havia ouvido um certo personagem fazê-lo, com extrema competência, no palco de
um bar. Ela riu, pois algumas coisas haviam-se mantido intactas.
Ele entrou
no quarto, olhou-a com uma expressão diferente, mas que ela já conhecia, de
outros tempos. Vestia-se impecavelmente, com uma das camisas brancas favoritas,
com as mangas dobradas até um pouco abaixo dos cotovelos e suas elegantes calças
jeans, de marca famosa.
- Que bom que mantiveste a voz e a harmonia. Há
tempos que não ouvia essa beleza. Algumas coisas, pelo jeito, não se perderam…
- E como poderiam? É meu ganha-pão. Sou, ou não
sou, um músico profissional, afinal?
***
*Alterego: (alter=
outro; ego=eu) seria igual a outro eu, ou seja, uma outra personalidade que
você tem mas que não mostra, ou está oculta em seu inconsciente…
Finalmente o Epílogo. Espero haver cumprido com o que me propus... Foi um grande trabalho.
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