domingo, 29 de março de 2015

Os Oito Guerreiros (Última Parte: A Grande Batalha)

Alter-egos e a Grande Batalha


- Temos que correr. As coisas estão mesmo a arder!

- Como assim: a arder? Explica isso, pelo amor de Deus.

- Vem comigo, depressa! Conto os detalhes a caminho…

A psicóloga entrou no elevador, seguida pela estagiária e começou a contar-lhe a conversa que havia tido na noite anterior, com Joe, o último personagem da lista mais estranha que ela havia conhecido em toda sua carreira. Acabara de receber um telefonema e tinha que ser rápida.

***

A mulher olhou o homem, que adormecera ao seu lado, com distinta afeição. Ele virou-se para o lado e ela viu, em suas costas nuas, duas pequenas tatuagens, uma de cada lado. Compreendeu, de imediato, porque Phil, sua personalidade favorita, havia mencionado que tinha asas às costas e que esperava voar. Ele, realmente, as tinha...

‘As alucinações também alucinam’, pensou.

Abraçou o corpo desacordado do amante e fechou os olhos…

***

- Eu tenho muitas personalidades diferentes. Somos sete guerreiros que se revezam, conforme a situação se coloca e um oitavo, que é um pacifista e que sempre aparece para completar a cena. Cada um tem um carácter e uma tática distinta, escolhendo seus momentos de se manifestar, conforme a conveniência deles próprios, fazendo de mim um sério caso para estudo de grandes psicanalistas.

Nos primeiros tempos, eu tinha dificuldade em entender o que me acontecia. Lutava contra as manifestações de meus muitos alter-egos* e assim, ficava dias e noites em disputa interna, até que o cansaço me vencesse e eu desistisse de lutar, proporcionando, a algum deles, uma exteriorização qualquer. Com o tempo, aprendi a lidar com todos eles, permitindo que cada um pudesse ter seu tempo e sua oportunidade de se expor. Minha maior dificuldade passou a ser a manutenção de reminiscências do que cada personagem viveu. Muitas vezes tinha lapsos de memória, que duravam muito mais que alguns simples minutos, como era no início. Passei a sentir muito medo de perder o controlo de minhas ações. Numa das ocasiões perdi, mesmo, e fui parar no consultório de uma especialista em multiplicidade e desmembramento de personalidades. Foi uma coincidência e acabou sendo uma das poucas esperanças que me restavam.

***

- Ele é maduro e experiente, para a idade dele. Tem boa cabeça. É extremamente sexy, o corpo é desejável, existe uma boa química entre nós e, além de tudo, sua conversa é agradável, deixando-me muito à vontade, quando estamos juntos. É muito diligente e responsável. Dá-me vontade de ir adiante e avançar, embora saiba que deva ter bastante cuidado. Na verdade, estou entre a cruz e a espada, pois posso estar a meter-me com uma verdadeira bomba-relógio.

- Química? Com todo o respeito e consideração que lhe tenho, química, física ou biologia não são suficientes. É loucura ir adiante com isso, não só pelo profissionalismo e ética, como pelo perigo que pode correr. Quem nos garante que ele não vá fragmentar as personalidades ainda mais?

- Eu sei e tenho que considerar também que estou envolvida demais… Mas estás certa. Tenho que usar a razão e deixar o coração de lado. Ele terá que compreender que a recuperação de sua sanidade e personalidade é mais importante. Mas, e se a cura for justamente essa?

- Não recordo haver lido sobre qualquer caso reportado em que a personalidade dominante tenha-se curvado à uma paixão, mesmo em casos de manipulação mental.

- Tens razão. Preciso manter o foco nele como paciente, não como amante… Oh, Deus!

- Melhor assim, pode acreditar…

***

- Professor, preciso de sua ajuda. É importante. Tenho um paciente bastante complexo e não sei como enfrentar a situação. Preciso de uma luz...

- Pode ser amanhã, por volta das dez da manhã? Tenho um horário vago e podemos conversar.

- Pode sim. Estarei lá.

A psicóloga desligou o telefone e pensou no seu professor e orientador, com o qual havia conversado. Se alguém poderia ajudá-la, naquela hora, ele seria a pessoa certa. Na hora combinada, ela estava na Universidade, para discutir o caso dos oito guerreiros.

O professor ouviu-a e disse-lhe que, talvez, pudesse ajudar. Apresentou-lhe um jornal do Departamento de Pesquisa da Universidade, onde vinha um relatório sobre uma nova droga, para tratamento de pacientes com múltiplas personalidades, que vinha sendo testada com relativo sucesso, em voluntários. Ela ficou interessada em contactá-los e experimentar.

Na sua cabeça, porém, uma coisa inda não estava clara: era Joe, a chave, ou Gabriel, o invólucro original, que tinha que ser tratado e preservado?

O professor disse-lhe que ela saberia, quando a hora chegasse. Ela concordou, embora sentisse que não cabia a si aquela decisão.

Ela lembrou que na noite em que Joe visitou-a e contou-lhe como funcionava o processo.

***

Ela ouvia o homem com muita atenção, enquanto ele explicava-lhe como perceber que todas as personalidades podiam ser controladas pelo pacificador, se ele assim o quisesse, mas ele tinha que estar à frente, para poder fazê-lo. Naquela noite perguntou-lhe se ela queria falar com Phil, já que ele percebia o que estava acontecendo entre eles.

- Como é possível, Joe, que eu possa estar com ele, assim?

- Confia em mim. Queres estar com ele? Tens que ser rápida, antes que seja tarde, pois a batalha está muito próxima. Quando acontecer, não sei como as coisas poderão ser, de alguma maneira, controláveis. Tem que ser já, antes que eu perca o controle.

Ela concordou e, Joe saiu de cena, enquanto ainda segurava as mãos da mulher, que, atónita, tentava absorver todo aquele processo. Levara meses a estudar e não conseguira nada. Agora Joe revelava aquilo que ela não fora capaz. O olhar do homem e sua expressão mudaram ali, na sua frente e ela logo reconheceu aquela ternura, na forma com que ele a olhava.

Ela sentiu-se completamente vulnerável, desimpedida... e apaixonada... perigosamente apaixonada. Com lágrimas nos olhos, disse-lhe:

- Olá, meu querido amigo. Quanto tempo eu não te via. Tive muitas saudades de ti.

- Eu também, mas não é muito fácil estar disponível. Também tive saudades tuas. A coisa está cada vez mais descontrolada. Podemos ter muito pouco tempo juntos.

- Eu não compreendo tudo isso... De que forma esta tal batalha vai acontecer... mas espero que termine, de alguma forma, bem para nós. Estou tão apreensiva.

- Saberás na hora certa. Joe se encarregará de avisar. Não tenhas medo do que possa acontecer. Ele e eu, especialmente, gostamos muito de ti...

Ela olhou-o com os olhos cheios de água. Estava com medo, mas sentia-se vulnerável, ali, em frente daquele homem. Fechou os olhos e suspirou.

Ele aproveitou a oportunidade e beijou-a. Ela não fugiu; não correu; não rejeitou-o. Ao contrário: correspondeu aos carinhos dele de forma aberta e, sem dúvida alguma, com paixão.

Ele foi o amante perfeito. Explorou cada centímetro do corpo dela, cada pedacinho de pele e cada sensação e reação do corpo dela.  Ela sentiu-se especial. Sentiu que estava a ser amada e desejada. Sentiu que, com aquele homem, ela podia ser completa e entregou-se integralmente a ele.

***
- Ele está em perigo. Depressa.

- Ele quem?

- Gabriel. Phil. Joe. Sei lá que nome devo usar... mas ele está em perigo! Temos que correr...

As duas saíram do elevador e entraram no carro, escoltadas pelo segurança, que havia sido requisitado acompanhá-las, e saíram pela avenida, em alta velocidade. Só torciam para não serem  paradas pelo polícia ou pelo trânsito. Não havia tempo a perder.

Quando chegaram à porta do apartamento indicado por Joe, um ou dois segundos de silêncio foi logo interrompido por uma série de outros sons, muito mais assustadores que o próprio silêncio. O som de vidros a quebrarem foi o sinal para se apressarem.

Joe havia dado uma chave à psicóloga, caso fosse necessário, ou se ocorresse uma emergência. Aquela era uma emergência... e das grandes. Ela girou a chave e empurrou a porta.

***

O apartamento estava todo revirado e várias coisas quebradas, como se houvesse tido luta. Haviam também marcas de respingos de sangue, em alguns pontos nas paredes e no tapete. Enquanto olhavam as coisas à volta, a psicóloga pediu à assistente que chamasse a polícia. Só esperava que não tivessem chegado tarde demais. O quarto estava trancado por dentro, por isso pediu ao segurança que forçasse a porta ou a arrombasse e foi o que ele fez.

No quarto-suite, o quadro não era melhor, muito pelo contrário. A janela havia sido arrombada. Lá também haviam sinais de luta e de sangue, mas não viram ninguém. A mulher começou a ficar desesperada. Entrou na casa de banho e gritou. Os dois acudiram-na logo.

O homem que jazia, desacordado no chão, com marcas da batidas na face e em algumas partes dos braços, era conhecido de todos. Gabriel parecia ter levado uma surra das grandes. Eles haviam chegado tarde, mas talvez, não tarde demais. A doutora pediu ajuda e colocaram-na na cama. Com uma toalha molhada, limpou-lhe os ferimentos onde conseguiu. A polícia chegou logo em seguida. O oficial já era conhecido seu e logo reconheceu o rapaz, como o que fora recolhido na rua, completamente perdido, há alguns meses atrás e que havia sido entregue aos cuidados da psicóloga.

- Não esperava por essa, mas não estou surpreso. Esse homem é uma bomba-relógio.

A mulher não concordou, nem discordou. Apenas voltou sua atenção ao homem inconsciente, deitado na cama de casal da suite. Olhou à volta e avaliou o estilo sóbrio e quase minimalista na decoração. Nada de frescuras, nenhum excesso, nada que pudesse parecer desnecessário. Um quarto de dormir, apenas. Nenhuma TV, nenhum computador, nem mesmo um discreto aparelho de som. Tudo isto estava na sala. Na mesinha de cabeceira havia apenas um pequeno abat-jour e um livro.

- O que é aquilo no bolso dele? Parece um papel dobrado.

- E é... tem uma mensagem para si.  

- O computador...

Os quatro entreolharam-se e correram para a sala.

***

Na sala de espera do hospital, um grupo de pessoas esperava o médico vir para dizer como estava o paciente, que havia dado entrada, inconsciente e com sinais de luta, marcados no corpo todo. Quando ele apontou, no fim do corredor, os três levantaram-se, ao mesmo tempo.

- Ainda está inconsciente, mas não há nenhum osso quebrado e as feridas não são profundas demais. Está sob o efeito de sedativo, por ora, porque tivemos que fazer uma pequena cirurgia na cabeça, onde havia uma concussão. Deve ter batido contra qualquer coisa, quando caiu... Havia também um corte no corpo, que pode ter sido feito por uma faca ou coisa similar. Tivemos que suturar. Vai ficar uma bela cicatriz. Mas ele ficará bem. Em pouco tempo podem vê-lo.

- Ótimo. É o que precisamos.

***

- Gabriel. Estás melhor? Consegues falar?

- Olha, não te preocupes. Nós escondemos o espadim. Ninguém vai chegar até ele. Está bem guardado.

O homem olhou o segurança, com olhos de quem não compreendeu bem o que ele dissera.

- Nós vimos a mensagem no teu bolso e também no computador. Eu recebi o arquivo que enviaste para o meu computador pessoal. O que estava lá foi destruído. Foi muito esperto, mas muito arriscado, o que fizeste. Assim a polícia já está atrás de quem te fez isso. Juro que, na minha cabeça, a batalha era com todas aquelas personalidades dentro de ti. Não sabia que corrias perigo, por estares sendo perseguido por um bandido. E ele esteve no consultório, naquela noite... Eu também corria perigo. Por sorte o segurança ainda estava por lá, por isso ele fugiu, antes de ser apanhado... ou de fazer algo contra mim. E tudo por causa do trabalho de investigação de Alex, tua personalidade de repórter. Que caso complicado, homem.

O homem olhou as duas mulheres e o segurança, com uma expressão muito estranha. Parecia que havia lutado muito, num campo de guerra verdadeiro e que agora precisava de um pouco de paz, finalmente.  

- Estou cansado.

- É compreensível. depois do que passaste. Se não fossem todas aquelas personalidades a lutarem juntas contra um inimigo comum, tu não estarias aqui, neste momento. Foi sorte nós chegarmos, pois os nossos ruídos também serviram para afugentar o teu perseguidor. Olha, vamos iniciar o tratamento com aquele medicamento experimental. Vai ficar tudo bem.

Ele não respondeu. Só olhou a mulher e fechou os olhos, lentamente.

***

Meses depois de começar a usar a droga, as coisas estavam bem mais controladas e eles cada vez mais próximos. Gabriel estava completamente ao controlo de sua vida e as pouquíssimas manifestações de outras personalidades foram desaparecendo com o tempo. 

Ele levantou-se e foi ao duche. Poucos minutos depois ela ouviu-o cantar, como já havia ouvido um certo personagem fazê-lo, com extrema competência, no palco de um bar. Ela riu, pois algumas coisas haviam-se mantido intactas.

Ele entrou no quarto, olhou-a com uma expressão diferente, mas que ela já conhecia, de outros tempos. Vestia-se impecavelmente, com uma das camisas brancas favoritas, com as mangas dobradas até um pouco abaixo dos cotovelos e suas elegantes calças jeans, de marca famosa.

- Que bom que mantiveste a voz e a harmonia. Há tempos que não ouvia essa beleza. Algumas coisas, pelo jeito, não se perderam…


- E como poderiam? É meu ganha-pão. Sou, ou não sou, um músico profissional, afinal?

***

*Alterego: (alter= outro; ego=eu) seria igual a outro eu, ou seja, uma outra personalidade que você tem mas que não mostra, ou está oculta em seu inconsciente…

1 comentário:

  1. Finalmente o Epílogo. Espero haver cumprido com o que me propus... Foi um grande trabalho.

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