Eu saí da estação com a cabeça ainda um tanto
atordoada pela imagem de um triste adeus e da visão do último vagão a
desaparecer no meio da neblina, como se houvesse sido engolido pela mesma,
naquela pálida manhã de Outono. Não vi a pessoa na qual esbarrei, derrubando
uma quantidade de embrulhos pela calçada. Apressei-me a ajudar a minimizar o
estrago que eu fizera, quase sem olhar para o rosto de quem agachara-se,
ao mesmo tempo, dizendo que não havia problema, ante meus pedidos de desculpas.
Quando levantei a cabeça e deparei-me com aqueles olhos tão verdes e
cristalinos, pensei em como os deuses devem gostar de brincar comigo,
provocando-me vezes e vezes, uma atrás da outra. Devo ter ficado por um tempo
longo demais a olhar naquele par de fontes de água da cor da esmeralda, porque
o sorriso que recebi, deixou-me um tanto sem jeito, ao perceber que poderia ter
ultrapassado algum limite. Baixei os olhos, com a face totalmente ruborizada de vergonha, sentindo um imenso calor a subir-me, repentinamente, pelas
orelhas, que deviam estar parecendo duas rodelas de tomates maduros.
- Não foi nada demais. Acontece… Obrigado por ajudar a recolher os
pacotes.
- Era o mínimo que eu podia fazer, para compensar o estrago.
Minha voz soava estranha. Eu quase
nem me reconhecia. Queria sumir, apesar de sentir um enorme magnetismo, como a controlar-me através aqueles olhos. A vergonha que eu sentia era grande e não deixava-me nem um
pouco à vontade. O mais certo seria correr dali, mas algo lutava contra aquela
intenção. Eu também sentia que desejava... e muito... ficar. Ele, então,
surpreendeu-me ao fazer um convite que eu jamais esperava receber, naquela
hora, de um completo estranho.
- Queres tomar um café comigo?
Devo ter feito uma cara muito
estranha, porque ele riu.
***
Meus olhos pousaram nas sacolas,
sobre a cadeira, que continham os embrulhos, que há poucos minutos estavam
espalhados pela calçada, do lado de fora da estação. Ele notou minha
curiosidade, mas não disse nada, até eu perguntar.
- São presentes para os teus filhos?
- São para meus sobrinhos... Não tenho filhos. Não sou casado.
Minha alma sorriu largamente. O
canto da minha boca deve ter dado algum sinal. Ele riu e estendeu a mão.
- Meu nome é Dima.
Eu disse-lhe o meu. Ele olhou-me
meio estranhamente, pela invulgaridade do nome, um tanto atípico e perguntou:
- Qual o significado?
- Do que?
Ele riu.
- Do teu nome.
Eu nunca havia pensado numa questão
como aquela. Mesmo assim, fiz uma viagem rápida na memória e naquilo que
conhecia sobre minhas origens, tentando chegar a alguma conclusão, mas não
cheguei à praticamente nada. Na minha terra e na minha família, os nomes sempre
foram dados por escolha e afinidade, não por significados. Que eu tivesse
conhecimento, o meu havia sido escolhido aleatoriamente, sem critério nenhum, a
não ser a inicial, que era igual àquela primeira letra do nome dos meus irmãos.
Ele, então, explicou-me a razão da pergunta:
- O meu nome é uma homenagem à Deméter, a deusa. Dmitry. Dima. Eu gosto,
porém, de usar um pseudônimo, em brincadeira com a pronúncia: Demon. Dá-me uma
identidade pouco comum…
E riu com o canto da boca, levantando
a sobrancelha direita, de uma maneira estranha, como eu não conseguiria fazer,
por mais que tentasse. Aquela forma de levantar o sobrolho dava-lhe, mesmo, um
aspeto que fazia jus ao codinome que escolhera.
Se a vida fosse um filme, naquele
momento, tocaria aquela dramática música incidental, que antecipa um grande
suspense. Eu ri, internamente, daquele pensamento tolo. Para falar bem a
verdade, já havia feito a associação, mentalmente, mas fingi sentir surpresa.
Era apenas uma mentirinha branca, para não demonstrar o óbvio, nem parecer
sagaz demais. Às vezes, é melhor passar-se uma impressão parva, para manter as
expectativas em fogo brando. E além disso, eu queria que ele falasse mais sobre
si.
- Demon… Interessante…
Ele olhou-me diretamente nos
olhos e sorriu. Um pensamento invulgar ocorreu-me naquele instante e uma
sensação estranha incomodou-me, como o picar de um dedo na roca de fiar ou num
espinho de rosa. Algo arranhava-me o senso de coerência.
Que estranho… Aquele
sorriso pareceu-me quase impossível de resistir. Ele percebeu uma espécie de
embaraço no meu jeito de olhar-lhe e voltou a abrir-me seu melhor sorriso.
- (Quem é esse homem, afinal?)
Aquele jovem demônio de pele
pálida e olhos claros podia-me, facilmente, levar à tentação e eu sabia que
seria difícil relutar.
- Tenho que ir. Obrigado pela companhia, mas tenho que ir…
Ele pegou um guardanapo de papel
e rabiscou um número de telefone e um endereço eletrónico. Entregou-mos e
estendeu a mão.
- Mantenha contacto. Até a próxima.
Levantou-se e saiu sem voltar-se.
Ao passar pela janela, olhou para dentro e acenou-me, com um sorriso maroto. Eu
sorri de volta. Minha mão pousava sobre o guardanapo de papel, como se tentasse
manter um pedacinho dele junto de mim, ainda por um tempo… Talvez em vão…
Abanei a cabeça, levantei-me e
saí. Era hora de voltar à vida.
***
- Pensei que não fosses ligar.
- Confesso que hesitei, mas resolvi, finalmente… e nem sei bem o que
dizer.
- Convida-me para um café. Não precisas mais que isso…
Eu ri. Ele estava certo. Não
havia motivo para usar nenhuma desculpa. É bom ser adulto e independente e não ter
que dar contas do que se faz a ninguém.
Encontramo-nos no mesmo local da
primeira vez. Ele já estava sentado à uma mesa, quando cheguei. Um largo sorriso e um aperto de mão receberam-me com algo mais que simpatia. Minha face ardia, como se estivesse com
febre e eu sentia calor, apesar de estarmos no meio do inverno.
- Vamos sair daqui e ir a algum lugar mais calmo. Eu tive uma ideia.
Ele conduziu-nos até uma praia. O mar
estava calmo e o dia seco e limpo, apesar de a temperatura estar razoavelmente baixa.
Saímos a caminhar pela areia, lado a lado, quase sem conversar, cada um
mergulhado em seus próprios pensamentos. Às vezes parávamos para juntar uma
concha, lançar uma pedra ao mar, ou observar as gaivotas voarem e as ondas a quebrar e
arrastar-se até nossos pés.
Os minutos pareceram voar. Logo o sol começou a
descer e mergulhar lentamente na linha do horizonte. Ficamos lado a lado, em
silêncio a sentir o ar esfriar e as cores do céu mudarem para os tons mais
fortes das cores quentes.
- É bonito.
- Pois é…
Senti uma emoção estranha naquele
momento, quando minha mão tocou na dele, quase acidentalmente. A praia estava
deserta e quieta, ao contrário da minha mente.
- Vamos voltar? Estou com frio.
- OK. Vamos.
Já de volta, ao entrar no carro,
esfreguei as mãos com energia. Havia arrefecido rapidamente, ou eu que estava
com a temperatura do corpo completamente desregulada? Ou havia algo mais, por
trás daquilo tudo, que minha mente sentia e que meu corpo indicava?
- Estás com esse frio todo? Queres que eu ligue o aquecimento?
- Não precisa… Logo passa…
- Ou queres que eu te ajude a aquecer de outra forma?
- Outra forma?
Ele riu novamente, com o canto da
boca e a sobrancelha levantada, exibindo a mesma expressão facial que havia
mostrado no dia que falou do invulgar pseudônimo que escolhera. Uma sensação
estranha mexeu com meu estômago e eu esbocei um sorriso absolutamente sem
graça.
- Não costumo deitar com demônios…menos, ainda, os meus...
Ele pousou a mão sobre a minha e
disse, sério:
- Dormir com teus demónios é bem mais admissível do que deitar que com
quem te trai a confiança...
Ele tinha razão. Levantei a
cabeça e olhei-o nos olhos, quando ouvi-o continuar o pensamento.
- E algumas pessoas nem precisam vender a alma...
Suas pupilas dilataram, fixas no
meu olhar. Minha garganta parecia ressecada e eu não conseguia desviar os olhos
dos dele. Ele chegou mais perto.
Eu gelei. Um arrepio correu-me pelo corpo.
Eu
parecia ter o corpo e a mente magnetizados e paralisados ou, então, talvez, completamente enfeitiçados e impedidos de
reagir, contra uma espécie de poder, que emanava dele. Senti o calor de sua respiração na minha face. Fechei os olhos… e tremi de
medo…