sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Demon (Parte 1 de 3)


Eu saí da estação com a cabeça ainda um tanto atordoada pela imagem de um triste adeus e da visão do último vagão a desaparecer no meio da neblina, como se houvesse sido engolido pela mesma, naquela pálida manhã de Outono. Não vi a pessoa na qual esbarrei, derrubando uma quantidade de embrulhos pela calçada. Apressei-me a ajudar a minimizar o estrago que eu fizera, quase sem olhar para o rosto de quem agachara-se, ao mesmo tempo, dizendo que não havia problema, ante meus pedidos de desculpas. 

Quando levantei a cabeça e deparei-me com aqueles olhos tão verdes e cristalinos, pensei em como os deuses devem gostar de brincar comigo, provocando-me vezes e vezes, uma atrás da outra. Devo ter ficado por um tempo longo demais a olhar naquele par de fontes de água da cor da esmeralda, porque o sorriso que recebi, deixou-me um tanto sem jeito, ao perceber que poderia ter ultrapassado algum limite. Baixei os olhos, com a face totalmente ruborizada de vergonha, sentindo um imenso calor a subir-me, repentinamente, pelas orelhas, que deviam estar parecendo duas rodelas de tomates maduros.

- Não foi nada demais. Acontece… Obrigado por ajudar a recolher os pacotes.

- Era o mínimo que eu podia fazer, para compensar o estrago.

Minha voz soava estranha. Eu quase nem me reconhecia. Queria sumir, apesar de sentir um enorme magnetismo, como a controlar-me através aqueles olhos. A vergonha que eu sentia era grande e não deixava-me nem um pouco à vontade. O mais certo seria correr dali, mas algo lutava contra aquela intenção. Eu também sentia que desejava... e muito... ficar. Ele, então, surpreendeu-me ao fazer um convite que eu jamais esperava receber, naquela hora, de um completo estranho.

- Queres tomar um café comigo?

Devo ter feito uma cara muito estranha, porque ele riu.

***

Meus olhos pousaram nas sacolas, sobre a cadeira, que continham os embrulhos, que há poucos minutos estavam espalhados pela calçada, do lado de fora da estação. Ele notou minha curiosidade, mas não disse nada, até eu perguntar.

- São presentes para os teus filhos?

- São para meus sobrinhos... Não tenho filhos. Não sou casado.

Minha alma sorriu largamente. O canto da minha boca deve ter dado algum sinal. Ele riu e estendeu a mão.

- Meu nome é Dima.

Eu disse-lhe o meu. Ele olhou-me meio estranhamente, pela invulgaridade do nome, um tanto atípico e perguntou:

- Qual o significado?

- Do que?

Ele riu.

- Do teu nome.

Eu nunca havia pensado numa questão como aquela. Mesmo assim, fiz uma viagem rápida na memória e naquilo que conhecia sobre minhas origens, tentando chegar a alguma conclusão, mas não cheguei à praticamente nada. Na minha terra e na minha família, os nomes sempre foram dados por escolha e afinidade, não por significados. Que eu tivesse conhecimento, o meu havia sido escolhido aleatoriamente, sem critério nenhum, a não ser a inicial, que era igual àquela primeira letra do nome dos meus irmãos. Ele, então, explicou-me a razão da pergunta:

- O meu nome é uma homenagem à Deméter, a deusa. Dmitry. Dima. Eu gosto, porém, de usar um pseudônimo, em brincadeira com a pronúncia: Demon. Dá-me uma identidade pouco comum…

E riu com o canto da boca, levantando a sobrancelha direita, de uma maneira estranha, como eu não conseguiria fazer, por mais que tentasse. Aquela forma de levantar o sobrolho dava-lhe, mesmo, um aspeto que fazia jus ao codinome que escolhera. 

Se a vida fosse um filme, naquele momento, tocaria aquela dramática música incidental, que antecipa um grande suspense. Eu ri, internamente, daquele pensamento tolo. Para falar bem a verdade, já havia feito a associação, mentalmente, mas fingi sentir surpresa. Era apenas uma mentirinha branca, para não demonstrar o óbvio, nem parecer sagaz demais. Às vezes, é melhor passar-se uma impressão parva, para manter as expectativas em fogo brando. E além disso, eu queria que ele falasse mais sobre si.

- Demon… Interessante…

Ele olhou-me diretamente nos olhos e sorriu. Um pensamento invulgar ocorreu-me naquele instante e uma sensação estranha incomodou-me, como o picar de um dedo na roca de fiar ou num espinho de rosa. Algo arranhava-me o senso de coerência. 

Que estranho… Aquele sorriso pareceu-me quase impossível de resistir. Ele percebeu uma espécie de embaraço no meu jeito de olhar-lhe e voltou a abrir-me seu melhor sorriso.

- (Quem é esse homem, afinal?)

Aquele jovem demônio de pele pálida e olhos claros podia-me, facilmente, levar à tentação e eu sabia que seria difícil relutar.

- Tenho que ir. Obrigado pela companhia, mas tenho que ir…

Ele pegou um guardanapo de papel e rabiscou um número de telefone e um endereço eletrónico. Entregou-mos e estendeu a mão.

- Mantenha contacto. Até a próxima.

Levantou-se e saiu sem voltar-se. Ao passar pela janela, olhou para dentro e acenou-me, com um sorriso maroto. Eu sorri de volta. Minha mão pousava sobre o guardanapo de papel, como se tentasse manter um pedacinho dele junto de mim, ainda por um tempo… Talvez em vão…

Abanei a cabeça, levantei-me e saí. Era hora de voltar à vida.

***

- Pensei que não fosses ligar.

- Confesso que hesitei, mas resolvi, finalmente… e nem sei bem o que dizer.

- Convida-me para um café. Não precisas mais que isso…

Eu ri. Ele estava certo. Não havia motivo para usar nenhuma desculpa. É bom ser adulto e independente e não ter que dar contas do que se faz a ninguém.

Encontramo-nos no mesmo local da primeira vez. Ele já estava sentado à uma mesa, quando cheguei. Um largo sorriso e um aperto de mão receberam-me com algo mais que simpatia. Minha face ardia, como se estivesse com febre e eu sentia calor, apesar de estarmos no meio do inverno.  

- Vamos sair daqui e ir a algum lugar mais calmo. Eu tive uma ideia.

Ele conduziu-nos até uma praia. O mar estava calmo e o dia seco e limpo, apesar de a temperatura estar razoavelmente baixa. Saímos a caminhar pela areia, lado a lado, quase sem conversar, cada um mergulhado em seus próprios pensamentos. Às vezes parávamos para juntar uma concha, lançar uma pedra ao mar, ou observar as gaivotas voarem e as ondas a quebrar e arrastar-se até nossos pés. 

Os minutos pareceram voar. Logo o sol começou a descer e mergulhar lentamente na linha do horizonte. Ficamos lado a lado, em silêncio a sentir o ar esfriar e as cores do céu mudarem para os tons mais fortes das cores quentes.

- É bonito.

- Pois é…

Senti uma emoção estranha naquele momento, quando minha mão tocou na dele, quase acidentalmente. A praia estava deserta e quieta, ao contrário da minha mente.

- Vamos voltar? Estou com frio.

- OK. Vamos.

Já de volta, ao entrar no carro, esfreguei as mãos com energia. Havia arrefecido rapidamente, ou eu que estava com a temperatura do corpo completamente desregulada? Ou havia algo mais, por trás daquilo tudo, que minha mente sentia e que meu corpo indicava?

- Estás com esse frio todo? Queres que eu ligue o aquecimento?

- Não precisa… Logo passa…

- Ou queres que eu te ajude a aquecer de outra forma?

- Outra forma?

Ele riu novamente, com o canto da boca e a sobrancelha levantada, exibindo a mesma expressão facial que havia mostrado no dia que falou do invulgar pseudônimo que escolhera. Uma sensação estranha mexeu com meu estômago e eu esbocei um sorriso absolutamente sem graça.

- Não costumo deitar com demônios…menos, ainda, os meus...

Ele pousou a mão sobre a minha e disse, sério:

- Dormir com teus demónios é bem mais admissível do que deitar que com quem te trai a confiança...

Ele tinha razão. Levantei a cabeça e olhei-o nos olhos, quando ouvi-o continuar o pensamento.

- E algumas pessoas nem precisam vender a alma...

Suas pupilas dilataram, fixas no meu olhar. Minha garganta parecia ressecada e eu não conseguia desviar os olhos dos dele. Ele chegou mais perto. 

Eu gelei. Um arrepio correu-me pelo corpo. 

Eu parecia ter o corpo e a mente magnetizados e paralisados ou, então, talvez, completamente enfeitiçados e impedidos de reagir, contra uma espécie de poder, que emanava dele. Senti o calor de sua respiração na minha face. Fechei os olhos… e tremi de medo…


***

3 comentários:

  1. Sei que escrevi uma história bem estranha... com personagens complicados e com enredo ainda emaranhado... mas vamos ver o que o final nos reserva.

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  2. Pode estar emaranhada sim mas os cenários são muito belos como o são a profundidade dos desejos...

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    1. Obrigado pelo comentário. Tenho que caprichar para desenmaranhar e, ainda surpreender...

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