- Não devias sair com este tempo!
Ele riu. Esperava uma acolhida menos racional, mas
alguém tinha que manter os dois pés firmes ao chão.
-
Achei que…
- Está mesmo horrível! Não para de chover!
- Lá fora. Aqui dentro, não. Ou talvez… Mas eu
gosto da chuva…
Daquela vez não
sorriu.
- Aconteceu alguma coisa?
- Ainda não!
- Como assim?
***
Abriu
os olhos, devagar. O quarto ainda estava escuro. Os estores estavam baixados,
até o nível do chão. Levantou-se e foi até o interruptor. O som do motor a
mover as finas lâminas, que subiam lentamente e permitiam alguma luz entrar
pelo aposento, pareceu-lhe mais alto que de costume. A luz do sol feriu-lhe os
olhos.
Teria
bebido vinho demais? A cabeça ainda parecia às voltas. Nem tudo que lembrava
estava tão claro.
Código secreto de batidas na porta. O coração batendo rápido sob a promessa de um amor secreto. Amantes secretos, a compartilhar o ato de fazer amor, como se fossem os últimos amantes vivos do planeta e a criar inevitáveis novas memórias, que nunca seriam partilhadas com mais ninguém.
Quão injusto e inexorável. Quão triste e, ao mesmo tempo, quão indescritivelmente agradável e satisfatório.
Código secreto de batidas na porta. O coração batendo rápido sob a promessa de um amor secreto. Amantes secretos, a compartilhar o ato de fazer amor, como se fossem os últimos amantes vivos do planeta e a criar inevitáveis novas memórias, que nunca seriam partilhadas com mais ninguém.
Quão injusto e inexorável. Quão triste e, ao mesmo tempo, quão indescritivelmente agradável e satisfatório.
Olhou
para o quarto e notou que a cama estava toda desalinhada. Não gostou nada do que viu. Pequenas manchas rubras
ainda maculavam o tecido branco. Havia de arrumar aquela bagunça toda,
imediatamente.
Sacudiu
a cabeça e pôs mãos à obra, sem pensar muito mais. Arrancou os lençóis e
apressou-se a colocá-los no cesto de roupas a lavar.
Havia
de deixar a cama impecável, com os lençóis limpos; aqueles brancos, de linho,
com papoulas vermelhas, pintadas à mão.
***
Gaivotas.
Invejava aqueles pássaros. Ele gostava daquelas de corpo branco, de asas
cinzentas, enormes, com as pontas negras. Eram assustadoras, às vezes, quando
davam aqueles rasantes, por sobre a sua cabeça, já tão atormentada por uma
série de ideias estranhas.
Talvez
chegasse a ser como elas, quando… Tentou desviar o pensamento…
O
céu, cheio de nuvens pesadamente cinzentas, anunciava tempestade. Mais uma. Nenhuma
tão grande quanto a que se desencadeava dentro de si, entretanto. Desejou,
mesmo sem esperanças, que daquela vez fosse mais fácil.
O
odor iodado do mar preencheu-lhe as narinas. Ele sentiu o vento soprar mais
forte, contra seu corpo. Faltava pouco… e, no entanto, tanto…
***
- Prometes que entendes?
- Não. Jamais vou entender.
- Naquele dia, da tempestade…
sabes?
- O que tem?
- Lembras?
- Do quê?
- De tudo. Do pacto.
- Estávamos bêbados. Maldito
vinho! Aquilo foi loucura.
- Não foi... ou, talvez,
tenha sido, mas… foi um pacto… de sangue…
- Tu não vais levar isto
adiante, vais?
Ele
olhou para aquela face tão amada, agora demonstrando grande preocupação e
considerou se devia contar mais que a verdade conhecida. Não conseguiu manter, firme,
sua mirada. Baixou os olhos, como se voltasse para dentro de si, mais uma vez,
depois de tantas outras, naqueles últimos dias.
- Vou… eventualmente…
***
As
gaivotas. Tão brancas e tão soltas, a planar, com suas enormes asas, sustentadas
pelo vento, que soprava contra seu corpo e o penhasco, celebravam, à sua
maneira, a liberdade de voar.
Abriu
os braços. Sentiu-se leve, como nunca antes. O mar, lá em baixo, rugia, como um
dragão… paciente, mas impiedoso.
Um
trovão ecoou à distância. Tempestade à vista… mas já não tinha importância.
***
Observava,
à janela, de um ponto específico da cidade, um raio a riscar o céu, seguido de
um inevitável trovão.
Contemplou
a pequena cicatriz, deixada, no pulso, pela curta e afiada lâmina do canivete,
que apareceu-lhe, quase de brincadeira, na mão trêmula, numa noite de chuva
pesada, como seria aquela que se aproximava.
Estremeceu,
ao lembrar-se, com tristeza, do pacto… Que estupidez! Nunca devia ter
concordado com aquilo. Aquele desconforto tinha razão de ser.
Era
uma crueldade não saber o dia exato, não conseguir ajudar, não poder interferir.
Mas um pacto é, sempre, um pacto. Sentiu, então, que o facto estava prestes a
ser consumado. O coração sentia, antes de a mente processar.
Mais
um raio. Aquele caiu perto, pelo som do trovejar, que se seguiu, quase que
imediatamente.
***
Coragem,
agora. Não pode ser tão difícil…
Deu
um passo à frente… e outro… até o chão dissolver-se em éter e seu corpo mergulhar no vazio.
Ele saboreou a vitória. A
guerra estava no fim. Vencia ele, antes que aquela maldita doença o fizesse, ou
o tornasse inválido, de vez.
Ele odiaria tornar-se um peso, para quem quer que
fosse.
Já não
haveria outro dia como aquele.
***
Parte final da história/experimento. Curta. Intensa. Forte.
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