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sábado, 13 de setembro de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 4: Veneno)


- Onde estão? Quero saber onde estão!

- Não estão comigo. Já te disse!

O homem de cabelos castanhos estava numa grande sala, construída numa área escura e fétida. Sentia o cheiro forte de humidade e de algo pútrido no ambiente. Também ouvia o ruido de água a gotejar perto de onde estavam e, um pouco mais além, também a correr, como se houvesse um córrego, não muito longe. Deviam estar nos subterrâneos de alguma construção.

À sua frente, tinha, aos berros, uma mulher muito alta, magra e pálida, com cabelos negros, bastante compridos e que, apesar de lisos, não pareciam haver, jamais, sido penteados, o que dava-lhe um aspecto aterrador. Tinha olhos castanhos muito claros, quase da cor do mel e estava sentada numa cadeira de espaldar alto. Ela aproximou o rosto macilento do seu, tentando obter a informação que ele não possuía e, aparentemente, procurava ler-lhe os pensamentos, pela forma que olhava no fundo dos seus olhos. Seu hálito era horrível. O homem prendeu a respiração o mais que pode, para não empestar seu organismo. Ele estava sendo seguro por dois tipos estranhos, cada qual de um lado, vestidos com casacos escuros de couro, por sobre roupas também escuras. Outros dois, vestidos da mesma forma, observavam a cena, mas sem interferir. Provavelmente seriam chamados, se e quando fossem necessários. Ele já os havia visto antes, mas não naquele lugar.

- Revistem-no!

À ordem da Sibila, os dois homens começaram a revistá-lo, com pouca destreza, arrancando-lhe parte da roupa e tentando encontrar o que ele, felizmente... ou infelizmente... já não tinha consigo. Pela violência e falta de jeito com que eles o examinavam, julgou que talvez devesse ter algo que lhes dar, mas estava com roupas que nem suas eram, naquele momento. Ele ainda conseguiu gritar, no meio da confusão em que estava:

- Eu não tenho nada comigo! Já disse! Deixem-me em paz!

Os homens terminaram a revista, balançaram a cabeça e largaram-no. Um deles empurrou-o para o chão, aos pés da mulher. Não havendo encontrado nada, deixaram-no de lado, sabendo que sua mestra já tinha planos bastante definidos para ele.

A pitonisa colocou as mãos extremamente magras e pálidas nos braços da cadeira, com o intuito de levantar-se. Estava evidente que havia perdido a calma completamente, por não haver conseguido o que queria. Seu corpo retorceu-se diante dos olhos dos presentes e a cor de sua pele pareceu transmutar-se, assim como sua forma original. Seu corpo alongou-se e ela ficou muito mais alta que as outras pessoas na sala. Sua fúria fez os olhos flamejarem, parecendo mudar a forma, mostrando pupilas menos redondas, como as dos répteis. Os homens fizeram um movimento na direção do prisioneiro, mas logo pararam, quando ela soltou um brado esquisito e deu uma investida, contra ele, já metamorfoseada em seu corpo longo, pálido e horrendo, de uma escamosa serpente. Investiu contra o homem, com um movimento muito rápido e com a boca aberta, como se tentasse cravar-lhe os dentes. Ele ainda ouviu seu grito meio sibilado.

- Afastem-se! Ele é meu!!!

Meio sem pensar, com forças que nem sabia existirem, ele conseguiu ser mais ágil que ela e deu um salto para trás, bem no momento em que viu a cara da cobra chegar perto demais. Foi uma atitude tomada mesmo a tempo de evitar a picada venenosa da mulher-serpente. Ela bateu contra o chão, com um estrondo. Sacudiu a cabeça e voltou a atacá-lo, desta vez, com muito mais fúria.

Ele tinha que ser rápido a pensar numa saída.

Se conseguisse alcançar o portal antes de ser atingido, talvez tivesse uma hipótese de livrar-se dela, quase ileso, embora não conhecesse o lugar em que estavam. Decidiu não correr em linha reta, pelo menos enquanto estivesse na grande sala. Com a forma física em que aquela louca encontrava-se, ele poderia ter alguma vantagem, se ela não percebesse seu intento, de imediato. Era sua única possibilidade e ele lutava contra o tempo. Passou por trás de uma coluna, tentando certificar-se que ela vinha ao seu encalço, depois deu uma volta grande, cruzou por trás de outra coluna e então correu como um desesperado, sem olhar para trás. Os homens ficaram confusos com aquela estratégia esquisita, mas ela era bem mais esperta e percebeu logo que ele tentava fazê-la atrapalhar-se, num emaranhado, com seu próprio corpo.

Soltou um grito, quando percebeu o intento e veio, com uma velocidade que o homem não acreditava ser possível para uma serpente. Já estava a poucos metros da saída, quando sentiu uma fisgada na perna direita, ao mesmo tempo que foi puxado para trás, violentamente, caindo pesadamente contra o chão duro. Embora tentasse, desesperadamente, não conseguiu agarrar-se à nada, para impedir de ser arrastado como uma presa vulnerável, pelo piso sujo e escorregadio, direto para a boca do monstro.

Sentiu que não ia escapar daquela. Seu pavor aumentou imensamente quando uma dormência começou a tomar conta de sua perna e espalhar-se pelo seu corpo. Logo percebeu que um poderoso veneno havia sido injetado em sua corrente sanguínea e que distribuía-se, quase instantaneamente, pelo seu organismo. A adrenalina corria pelas suas veias, mas não suficientemente rápida para minimizar o efeito daquela dormência. Seu pavor aumentou com a sonolência que tomava conta de si. Era tarde demais para conseguir resistir. Ainda lembrou-se de haver lido, uma vez, que quanto mais rápido o veneno se distribui pelo corpo, mais rápido os anticorpos reagem contra ele, mas um caleidoscópio de cores muito vivas turvou-lhe a visão clara do que acontecia e, embora em meio a um estado de alucinação, perdeu a consciência completamente, antes mesmo de pensar em qualquer coisa mais.

***

Uma sensação de cobras a arrastarem seus corpos frios sobre a sua pele e a fazer uma pressão constritora sobre seu corpo, incomodava-o e sufocava-o. Ele não tinha certeza se ainda estava alucinando ou se, realmente, em meio a um covil de serpentes. Estava tudo muito escuro e mal conseguia mover-se. Sentia seus membros praticamente imobilizados, sem reação. Seu corpo parecia arder, como se tivesse com uma espécie de febre, que intensificava aquela sensação de delírio. Tentou mexer-se e retirar os répteis de cima de si, mas seus braços não tinham movimento suficiente para obedecer ao comando de seu cérebro. Uma dor de cabeça insuportável, já conhecida sua, incomodava-o, quase impedindo-o de pensar. Seu peito começou a arfar e a respiração a ficar ofegante e difícil. Uma palpitação no coração impedia-o de inalar o ar propriamente. Sua garganta estava extremamente seca. Estava a ter um ataque de pânico.

De repente, um pequeno raio de luz entrou por uma abertura e atingiu-lhe o rosto. Desviou o olhar e viu que estivera realmente delirando. Seus braços estavam presos por cordas, que contornavam também parte do seu pálido torso e seu corpo estava todo coberto de suor. Ele estava vestido com suas cuecas e mais nada. Uns poucos instantes depois ouviu um ruído de metal a roçar contra metal e a porta abriu-se, em seguida.

Uma mulher alta e magra entrou, seguida de dois homens também bastante altos, porém muito corpulentos. Ela aproximou-se dele e ordenou que os homens o desamarrassem. Os brutamontes obedeceram e arrastaram-no para fora, atrás da mulher. Ele tentava resistir, mas estava com uma espécie de paralisia, com o corpo sem obedecer os comandos de seu cérebro. Tentou gritar, mas a voz não saía direito. Não articulava nada coerente. Achou que estava tendo um AVC.

- Deixem-no aí!

Estavam de volta à sala escura. Os homens largaram-no no chão, com pouco cuidado e ele caiu com o rosto no chão sujo e frio. Ela abaixou-se e segurou-lhe a cabeça, olhando-o nos olhos e, com um sorriso irónico, disse:

- Já não preciso mais de ti. Já sei tudo o que precisava saber. Que doce veneno! Que maravilha ele faz…

Com um esforço enorme, conseguiu articular a única frase possível, embora monossilábica.

- Quê?

Ela deu uma gargalhada vitoriosa, provavelmente por ver tamanha confusão na face do prisioneiro agora moribundo, que encontrava muita dificuldade em falar ou mover-se. Ele estava mesmo mal. O esforço para manter-se sóbrio era enorme e ele sentia que só piorava…

- No teu delírio, sob o efeito do meu veneno, disseste tudo que eu queria saber. Esta fase de confusão e paralisia é somente o começo do teu fim. Agora que já és descartável, servirás de diversão e alimento para minhas serpentes de estimação.

Ele não soube exatamente o que pensou, mas o pavor devia estar evidentemente estampado na sua face, porque ela pareceu divertir-se em torturá-lo, ao proferir sua sentença de morte.

- Joguem-no no fosso. Agora!

Ela virou-se e saiu. Os homens agarram-no e arrastaram-no para fora da sala, até um grande córrego, que corria por toda a extensão do subterrâneo onde estavam. Com um empurrão foi jogado na água turva do fosso e começou a afundar. O som do que assumiu serem as tais serpentes de estimação a mergulharem imediatamente na água e virem no seu encalço, encheram-no de pavor. Aquele não era o fim que ele, alguma vez na vida, imaginara para si. Fechou os olhos e aceitou o inevitável. Seu fôlego estava-se esvaindo depressa e ele sabia que não tinha saída, senão deixar-se perecer.

O que aconteceu em seguida, ele não ia conseguir lembrar ao certo. Seus pulmões começaram a encher de água e ele perdeu os sentidos, sufocado pela falta de ar. Teve a impressão de haver ouvido muitos sons na água, como de algo a debater-se e, até mesmo, uma série de guinchos, antes de perder os sentidos completamente, mas devia ser apenas parte de um delírio precursor da morte.

Um súbito calor, a envolver-lhe o corpo, trouxe-lhe uma resignada serenidade. Estava morrendo e já não sentia qualquer desespero…

***

Uma sensação de alívio e um morno conforto faziam-no crer que havia, realmente, passado daquela existência para outra. Nunca esperou que houvesse vida após a morte, por isso aquele bem-estar era mesmo uma novidade. Abriu os olhos devagar e só conseguia ver uma luz muito forte sobre si. Devia ser a tal luz, que os crentes acreditam que se veja, a caminho da “outra vida”.

- (Morrer não é tão ruim, afinal.)

O pensamento parecia estranho, vindo de um homem que havia sido sempre tão científico como ele. De repente, sua cabeça deu um sinal inesperado. Algo estava errado. Nunca pensou que os mortos sentissem uma fisgada de dor na cabeça. Piscou os olhos e tentou focar em algo à sua volta, para certificar-se que estava errado… ou não…

- Ainda bem que acordaste. Pensamos que te havíamos perdido.

A voz era baixa, calma, suave. Devia ser de algum anjo ou de um guardião, talvez. O homem virou-se na direção de onde pensou ouvir a voz e viu um homenzinho vestido com roupas castanhas, a olhar para ele, com ar preocupado. Ele sorriu ao ver que havia sido reconhecido.

- O que foi isso?

O homem estava evidente e completamente confuso. Nada daquilo fazia sentido. O homenzinho falou, já com uma expressão de alívio e um pouco de cor a decorar-lhe as bochechas enrugadas.

- Tu escapaste de uma boa… mas por muito pouco! Tivemos que ser bastante rápidos. Só há um antídoto satisfatoriamente eficaz contra o veneno da poderosa serpente: o soro feito com seu próprio veneno, depois de injetado na corrente sanguínea do mangusto. O reagente funciona eficientemente bem, mas tem que ser usado pouco tempo depois de a vítima haver sido inoculada. No teu caso, foi muita sorte haver funcionado. Pensamos que não iríamos conseguir e ainda não estamos muito certos das consequências que possas sofrer.

- Como foi que isto aconteceu?

O homenzinho sorriu, brandamente. Sabia que o outro devia estar bem, pois já começara a fazer perguntas.

***

Durante o incidente no horto, quando haviam sido perseguidos pelos estranhos capangas da Sibila, o velho homem somente deu-se conta que estava sozinho, quando chegou de volta aos fundos do edifício. Sabia que era uma daquelas situações de ‘salve-se quem puder’, mas não esperava perder um homem adulto numa fuga daquelas, afinal cada um deveria poder cuidar de si, pelo menos, aparentemente. Voltou atrás, quando deu pela falta do outro, mas já não o encontrou. Preocupado, convocou os seus dois melhores guardiães e, acompanhados por alguns mangustos, saíram à procura do hóspede, em todos os cantos do horto e na região em volta, mas sem qualquer sucesso.

Procuraram-no por várias horas, quase desistindo, até que o grupo avistou uma entrada de um longo túnel, por onde desembocava um córrego que, aparentemente, corria por baixo da cidadela. Havia uma calçada de pedra, ao longo do fluxo da água, com cerca de um metro de largura e que ia na direção oposta, para dentro do túnel.

Entraram pela extensa galeria, que levava a um emaranhado de passagens, o que levantou suspeita no homenzinho, pois desconhecia a existência daquela parte oculta da fortaleza. Um pouco adiante, ouviram sons de passos num dos corredores e trataram de esconder-se. Um grupo de homens, vestidos com casacos escuros e com um característico passo apressado, seguia por uma das galerias. Seguiram-nos e chegaram a uma espécie de calabouço, com uma série de celas, cujas portas tinham um pequena abertura na altura dos olhos. Ao espiar por uma delas, viram um homem seminu amarrado por grossas cordas, caído no chão. A porta estava trancada e eles não tinham nada, em mãos, que pudesse servir para forçar o fecho e entrar. Olharam à volta, procurando uma haste qualquer, mas antes de conseguir algo para quebrar a fechadura, ouviram a voz da serpente, que vinha a arrastar-se pelo corredor, seguida pelos homens que haviam avistado anteriormente.

O grupo tratou de esconder-se, aguardando uma oportunidade para entrar em ação. A Sibila era perigosa e não deveria ser confrontada em seu habitat natural. Fazê-lo, seria cometer suicídio. Além do mais, estavam em desvantagem, por estarem em menor número e os homens da Sibila eram verdadeiros brutamontes.

Quando os homens seguiram a Sibila, arrastando o corpo praticamente inerte do prisioneiro, pelos corredores até onde estava o fosso, o homenzinho sentiu que era a sua única deixa. Só tinham que contar que a atenção jamais voltasse para eles. Quando a serpente deu a ordem para o ataque e saiu, vitoriosa, seguida pelos guarda-costas, eles viram que era o momento ideal para entrar em ação. Viram uma dezena de serpentes entrarem na água e mergulharam no fosso. Os mangustos, que vinham a acompanhar o homenzinho, apressaram-se a ir ao encalço das cobras. Ele, por estar protegido pela ação dos guardiães, que atacavam os algozes, agora transformados em presas, mergulhou também e resgatou a vítima inconsciente, já em vias de afogar-se. Seu corpo estava gelado, por isso a ação de recuperação teve que ser imediata.

***

- Ela quer a caixinha e fará tudo para obtê-la. Temos que ter cuidado. Vamos ter que nos proteger…

- Acalma-te. Não estás em condições de sair ainda. Precisas recuperar as forças, para enfrentarmos a Serpente. Quando souber que tu escapaste e que ela perdeu os seus animaizinhos rastejantes de estimação, vai ficar furiosa e virá atrás de nós.

O velho homem parou, ensimesmado, por uns instantes e falou:

- Por outro lado, acho que acabo de ter uma ideia…

***

A pequena caixa de metal, decorada com arabescos de prata batida, jazia sobre uma mesa, encostada na parede oposta à cama, no quarto de hóspedes, que estava trancado, por medida de segurança. Um homem de meia-idade, bastante pálido, dormia pesadamente. Caíra num sono profundo, mas não propriamente tranquilo. 

Uma leve e fria bruma começou a entrar por baixo da porta, invadindo, aos poucos, todo o aposento e baixando a temperatura lá dentro. Um silvo muito baixo e o som de um suave deslizar pelo piso de grandes lajotas cerâmicas, era quase imperceptível. A bruma adensou-se em volta da cama e o homem encolheu-se, tomando uma defensiva posição embrionária, envolvendo seu corpo com os braços. A sensação térmica era a mesma do ar de inverno, à beira do rio.

Uma grande serpente branca subiu, vagarosamente, pelo lado da cama e começou a enrolar-se, subtilmente, à volta do corpo do homem, aumentando a sensação de frio que sentia, envolto pelo corpo extremamente gélido do réptil. Ela continuou a enlear-se à sua volta e passou parte do corpo pelo pescoço, com o intuito de apertar, sufocando-o e impedindo-o de gritar, mas aparentemente sem a intenção de matá-lo ali. Ele abriu os olhos e viu que era arrastado pelo quarto e, através da porta aberta, para fora, pelo corredor liso e impecavelmente limpo. Ainda conseguiu ver que o homem que montava guarda à porta, jazia inconsciente, no chão.

A serpente deslizou até o grande hall, onde puxou-o até a borda do poço e, dali, mergulhou na água fria, levando-o consigo cada vez mais fundo. Ele tentava gritar, mas o som não saía de sua garganta, que ia-se enchendo de água e aumentando a agonia em que se encontrava. Começou a debater-se, em desespero, mas a ação constritora do corpo do réptil aumentava e impedia-o de safar-se. Ele só via água e o escamoso corpo, branco e roliço, contorcendo-se contra o seu e puxando-o cada vez mais para baixo. Pensou que aquele era, definitivamente, seu fim. O ar que ainda havia em seus pulmões saiu, pela última vez, numa sucessão de bolhas, que subiram até a superfície da água…

Um raio de luz acendeu-se repentinamente. O homem pensou tratar-se de uma alucinação. Seu corpo foi sacudido violentamente e ele começou e sentir espasmos incontroláveis. Agora era mesmo a morte...

***

sábado, 16 de agosto de 2014

Um Lance de Mestre (Parte 1: Intro)


Uma brisa amena de final de Primavera soprava na esplanada à beira do rio, perto da foz. Ele havia saído do trabalho à hora mais ou menos certa - coisa bastante rara nos últimos tempos - e decidira beber uma taça de um suave e fresco vinho verde e relaxar um pouco, antes que o fim-de-semana começasse. Não estava interessado nos transeuntes, mas em olhar as águas a correrem na direção do mar. Aquela visão deixava-o relaxado e absorvia-lhe os pensamentos, levando sua imaginação para terras quase nunca dantes percorridas. Sentia a mente sensivelmente vazia. Não queria pensar em nada; só deixar os odores do fim da tarde preencherem suas narinas, o sabor do vinho fresco a aguçar-lhe os sentidos e os sons do anoitecer tomarem conta do ambiente à sua volta. Ele desligara a parte do cérebro que distinguia as vozes e conversas. Estava mais interessado nos outros sons, menos ouvidos na vida normal: o gralhar das gaivotas, a água a correr, um cão a ladrar ao longe, a peculiar e característica música da noite a chegar…

Um solitário saxofonista, vestindo um colete aberto preto sobre uma t-shirt branca e usando um chapéu coco, também preto, começara a tocar uma melodia bastante melancólica, cujas notas ele alongava com exímia destreza – quase como num ‘noturno’ - na calçada, bem próximo de onde o homem estava. A música sempre mexera com seus sentidos e aquela fazia sua imaginação vaguear, completamente solta e sem qualquer tipo de amarras.

Um grupo de jovens, provavelmente estudantes, aproximou-se em algazarra, rindo alto e fazendo-o voltar à terra. Uma das moças esbarrou no pé da sua cadeira, ao passar e, voltando-se, pediu desculpas, sorrindo e ficou a olhá-lo, sem seguir adiante. Tinha olhos muito claros e um sorriso encantador. Ele sorriu de volta e ficaram a olhar-se, por uns pouquíssimos segundos, até que alguém a chamou pelo nome.

- Elena! Vamos!

Ela voltou para o grupo e ele ficou a observar enquanto os jovens afastavam-se, ainda às galhofas. A maioria das pessoas trajava roupas leves, camisas de mangas arregaçadas, t-shirts ou blusinhas de mangas curtas. A temperatura estava por volta dos 23 graus Centígrados - o que, para o homem de meia-idade, bastante pálido e com ralos cabelos castanhos, já há muito tornando-se brancos à altura das têmporas, ainda era bastante calor – especialmente àquela hora do dia.

Levantou-se, pagou a conta e decidiu caminhar até o parking, que ficava a uma boa distância de onde estava, quase no outro extremo da movimentada ribeira. Uma fina faixa de luz ainda tingia o horizonte com cores quentes e fortes, mas o céu acima dele já exibia fortes matizes de índigo, salpicado de minúsculos pontos brilhantes. 

Quando desceu a rampa, já onde estava o carro estacionado, viu que um pequeno grupo de homens, vestidos com casacos escuros, que iam até a altura dos joelhos, caminhava na sua frente. Estranhou as vestimentas, já que não estava nem um pouco frio. Eles caminhavam, sem olharem uns para os outros e sem conversarem.

Alguém passou por ele, bateu contra seu braço e passou adiante, sem ao menos pedir desculpas. Viu que era um outro homem vestido da mesma maneira dos outros que caminhavam à sua frente e que apressava-se em juntar-se ao grupo. O estranho foi que eles não o cumprimentaram quando ele aproximou-se, nem ele, tampouco, ao grupo. Apenas continuaram a caminhar, lado a lado, sem se olharem, até um carro preto estacionado perto do seu. Os quatro estranhos entraram, quase ao mesmo tempo e quase automaticamente, cada um por uma das portas do veículo.

O homem olhava-os de uma maneira distraidamente interessada, se é que isto era, de alguma maneira, possível. Chegou ao seu carro mesmo a tempo de ver o outro veículo passar por ele e pela primeira vez percebeu o tipo que estava ao volante, já que era a única janela aberta e os outros vidros estavam levantados e eram cobertos por uma película escura. O condutor tinha cabelos muito negros e pele azeitonada, sem ser bronzeada e olhos parcamente emoldurados por quase inexistentes sobrancelhas. Ainda conseguiu ver que o outro homem, sentado ao seu lado, tinha características físicas bastante similares, mas não se pareciam um com o outro. Deviam ser da mesma origem étnica, pensou.

Um calafrio correu-lhe pela espinha quando percebeu que o motorista virou-se para fitá-lo, ao passar. Era o mesmo homem que esbarrara no seu braço, mas tinha uma expressão ameaçadora no olhar. O estranho havia reduzido a marcha ao aproximar-se e, assim que olhou o outro, acelerou e foi em direção à saída do estacionamento. O homem apressou-se em entrar no carro, já resolvido a sair dali o quanto antes. Seu sensor de perigo já estava a girar em amarelo.

Apesar de um pouco assustado pelo que vira, ele estava, também, um tanto intrigado com o incidente, afinal havia sido abalroado pelo sujeito e ele ainda decidira encará-lo, como se quisesse ameaçá-lo ou intimidá-lo. O sangue subiu-lhe à cabeça, quando pensou naquilo. Viu o veículo parado no semáforo à sua frente, mas o condutor furou o sinal, assim que percebeu não vir nenhum outro carro das ruas adjacentes.

Deviam estar com pressa, pensou. Com aquele tipo de condução, não admiraria se causassem um acidente e, entre dentes e em voz alta, desejou mesmo que se envolvessem em um. Era sua veia vingativa falando mais alto que ele. Observou-os subir a rua, esperou o sinal abrir e seguiu seu caminho, já entretido com suas músicas favoritas a tocar no CD player.

A alameda estava iluminada por fortes luzes amarelas, o que dava uma atmosfera surrealista ao local. Por uns instantes, esqueceu do sucedido há poucos minutos, pois adorava passar por entre as árvores, naquela região, a caminho de casa. Seu estômago roncou e ele deu-se conta que havia passado do horário usual do jantar. Havia estado a tarde toda em reunião e não tinha tido tempo de comer nem uma fruta. Estava com fome. Ele, agora, pensava somente no que iria preparar para comer, quando chegasse em casa.

De repente, um vulto saltou à frente do carro e passou correndo do lado esquerdo para o direito da rua. Ele pisou no freio, automática e violentamente. Por sorte não vinha ninguém atrás de si, que pudesse causar um inconveniente acidente de viação. Se o que cruzara seu caminho era um gato, devia ser um animal enorme, pensou o homem, ainda com o coração acelerado. Olhou para o lado direito, tentando distinguir se avistava qualquer sinal dele, quando viu o veículo preto estacionado num pequeno complexo de edifícios comerciais, ao qual nunca havia prestado atenção anteriormente.

Sua curiosidade acendeu-se novamente e, apesar de saber que não era a coisa mais certa a fazer, resolveu ir até lá, estacionando o mais longe possível do tal veículo preto. Por sorte, seu carro não era mais que um modelo dos mais populares, de cor bastante comum, que passaria quase despercebido, no meio dos outros ali estacionados, muitos da mesma cor cinzenta. Havia uma loja de conveniência, um pequeno restaurante ‘take-away’, uma lojinha de equipamentos informáticos e outras menores, perto de uma razoavelmente maior, de móveis e uma farmácia. Bem ao fundo, um tanto separado das lojas, havia uma construção diferente das outras, um pouco mais escura e rústica. Devia ser algum restaurante típico ou talvez até mesmo um bar. Perguntou-se por que razão nunca havia-se dado conta da existência daquele lugar. Percebeu que o conglomerado de estabelecimentos estava construído ao pé de um pequeno bosque, que havia no lado oeste e que dava, ao complexo, um certo ar de tranquilidade.

Estava ainda a olhar para o fundo e para o edifício escuro, quando viu o grupo de homens a caminhar com passos firmes e apressados, naquela direção. Ainda estavam vestidos com os casacos escuros, o que destoava dos outros transeuntes, que usavam trajes mais leves. A indumentária tornava-os bastante chamativos e inconfundíveis, como um grupo de pinguins a caminhar sobre o gelo extremamente branco.

Esperou que entrassem pela escura porta de madeira e foi atrás, um pouco hesitante, mas cheio de curiosidade . A construção era, por dentro, ainda mais sombria e rústica, que vista por fora. Era feita de madeira bruta e tinha dois lances de escadas firmes, separados um do outro por uma curva em noventa graus, com tábuas muito espessas, suportadas por fortes vigas de troncos brutos e cilíndricos, de cor muito escura, como se pintadas com um pigmento de sépia queimada. Ele subiu, com cuidado e constatou que no andar de cima havia uma espécie de bar.

Aparentemente, os personagens que havia seguido conversavam com um outro homem, que ele não conseguia ver claramente, já que os quatro estavam de costas voltadas para a porta, formando uma barreira à sua visão e o outro estava de frente para eles. Lembrou-se da forma com que o motorista havia olhado para si, com evidente hostilidade e decidiu que não podia deixar-se revelar. Eles estavam em maior número, de qualquer forma. Resolveu que o melhor a fazer, era mesmo sair dali o quanto antes. Deu meia volta e desceu as escadas, apressado, mas com cuidado, tentando fazer o mínimo barulho possível. Sua fuga foi subitamente protelada antes de chegar à porta de saída, lá em baixo, pois viu que alguém entrava por uma quase invisível porta lateral. Encostou-se na parede e pôs-se a observar, da penumbra, sem deixar-se ser visto.

Um homenzinho, visivelmente velho e vestido com roupas castanho-escuras, bastante surradas, acabara de entrar. Tinha a pele espessa e marcada, como a de um ancião, que trabalha ao sol, como os agricultores ou pescadores. Tinha olhos escuros, sobrancelhas muito espessas e lábios finos, quase inexistentes, numa boca larga. Trazia, pendurada do cinto, uma espécie de machadinha de lâmina estreita e chata.

Ele puxou-a do cinto e, sobre a lâmina, colocou uma pequena borboleta azul, morta, com as asas abertas, que estava embrulhada num papel pardo, que tirou de um dos bolsos do casaco de couro castanho.

O homem de cabelos castanhos, que ainda estava escondido, franziu a testa e arregalou os olhos, pois aquilo pareceu-lhe, realmente, muito estranho. 

Mas ele não estava minimamente preparado para o que veria na sequência dos acontecimentos. O que o homenzinho fez, então, deixou-o completamente boquiaberto… isso para dizer o mínimo.

***

domingo, 3 de março de 2013

O Que Passar Pelo Meu Coração… (Whatever Walks In My Heart)1








A conexão perdida, por atraso e irresponsabilidade de uma companhia aérea, dias perdidos em fila de espera, até finalmente conseguir lugar em um voo cheio, mas garantido, haviam dado cabo de qualquer sinal de tolerância e educação que ele alguma vez tivera. 

O homem de meia-idade - cabelos castanho-claros, levemente ruivos, cortados curtos e cuidadosamente penteados – ajustou os óculos de aro de metal, que escorregavam lentamente de seu nariz. Aparentemente alheio aos outros expectantes sentados à sua volta, no movimentado hall do aeroporto internacional, aguardando a hora de, finalmente, viajar de volta ao bem-vindo conforto de seu pequeno lar, nunca pensara que fosse desejar tanto estar em outro lugar, que não ali, naquele momento. Ele só queria mesmo que aquele dia passasse o mais rápido possível… 

Seu humor estava pior a cada hora que passava. Além de abominar as infindáveis horas entre as conexões, considerava cada viagem intercontinental, em si, uma verdadeira perda de tempo e um teste à sua parca tolerância. Até chegar de volta à casa, cerca de vinte e quatro horas ter-se-iam passado, numa situação normal. Aquela jornada, porém, já gastara praticamente mais de meia semana de seu tempo… e sua paciência já havia passado do limite aceitável. 

Chegar em casa… aquele era um conceito estranho. “Home is where your heart is”2 (Lar é onde teu coração está)… E onde estava seu coração, afinal? Entre dois países, entre aquilo que parecia como se fossem duas vidas diferentes, separadas por um imenso oceano, ele já não sabia mais exactamente onde ficava o lugar que pudesse chamar de lar

Sentado à desconfortável cadeira plástica, por muito tempo, ele estava inquieto e se irritava com qualquer coisa que ouvia ou lia. Ao invés de ficar contente por finalmente ter as coisas alinhadas, ainda remoía os dias passados e as dificuldades que tivera para chegar ao ponto em que estava. A certa altura, mesmo a música a tocar nos fones de ouvido tivera que ser desligada e devidamente guardada, pois ao invés de acalmá-lo, estava a deixá-lo mais tenso. Seu único consolo, naquele momento, era o vôo ser nocturno, o que se constituía uma vantagem, pois tencionava dormir durante boa parte do tempo.

Até então, não percebera que também era alvo dos olhares e da curiosidade de outros viajantes, acomodados ali à sua volta, à espera do mesmo que ele: entrar no grande avião, que os levaria, por mais de dez horas, ao destino comum - um pequeno país da velha Europa. 

Passou os olhos à volta, esquadrinhando as faces dos desconhecidos vizinhos, já que não havia muito mais a fazer e ainda tinha muitos minutos de sobra, até a hora do embarque. Sua atenção voltou-se, por uma fracção de segundos, para um rapaz de cabelos e olhos claros, sentado ali perto, ainda que sem causar mais que um simples interesse momentâneo - daqueles que se tem por uma pessoa que considera agradável e sabe que nunca mais encontrará em nosso caminho - aquelas pequenas distracções que a gente tem, ao encontrar estranhos, de passagem, em lugares igualmente desconhecidos. 

Às vezes, generalizar os eventos simples que se sucedem em nossas vidas, pode levar a um grande engano. E ele ia perceber isso naquela mesma situação, apenas um pouco mais tarde. 

‘Nada acontece por acaso’, havia-lhe sido dito, naquela mesma tarde, em conversa informal com o motorista do táxi - um visionário, provavelmente - quando iam a caminho do aeroporto.

Em triste consequência da paranóia deixada pelos atrasos e confusão até então acontecidos naquela viagem, perdeu o interesse em praticamente tudo – a não ser o de alojar-se na sua poltrona - do momento em que entrou na fila de embarque, até sentar-se, finalmente, no seu lugar. A partir dali, já menos preocupado, ficou a observar as pessoas passarem, à procura de seus assentos. Algumas pareciam meio perdidas - provavelmente marinheiros de primeira viagem; outras vinham a caminhar, indiferentes, ao longo da grande nave - com certeza os chamados “frequent flyers”

Quando estava inspirado, em viagens normais, enquanto observava, fazia análises mentais rápidas, tentando construir uma pequena história para um e outro passageiro, que lhe parecessem mais singulares. Pessoas constituíam-se materiais interessantes para um espectador imaginativo como ele. Naquele dia, contudo, nada lhe era muito atractivo. Estava cansado…

Um jovem que aproximava-se pelo lado esquerdo, a procurar, com os olhos, o número de seu lugar, parou ao lado do homem sentado junto ao corredor, na mesma fileira que ele. Acomodou sua pequena mochila de lona parda no compartimento acima das poltronas, abriu um largo e simpático sorriso e pediu licença para sentar-se a seu lado. Reconheceu-o como o tal rapaz que havia-lhe chamado a atenção um pouco antes, na sala de espera do aeroporto. Daquela vez, observou-lhe, detalhadamente, cada pormenor. 

Tinha estatura mediana, penetrantes olhos azuis, cabelos claros cortados curtos e um corpo vigoroso, em contraponto às mãos quase pequenas, não exactamente delicadas. Ele, que tinha um interesse acima do normal por mãos – esteticamente - observou-as tão longamente quanto pode. Eram firmes, pareciam um pouco calejadas pelo trabalho árduo e tinham, ao mesmo tempo, forma e graça genuínas. Passaram-lhe a ideia de uma força generosa e destemidamente disponível.  

Já devidamente acomodado no assento a seu lado, apresentou-se polidamente e começaram a conversar. Muito inversamente ao que lhe era de costume em viagens como aquela, a prosa fluiu livre a noite inteira, como se fossem conhecidos de longa data. Esqueceu o sono e outras distracções habituais - os filmes, revistas e livros - naquela noite e dormiu o mínimo possível… A jornada, afinal, acabara transcorrida rápida demais. 

Apesar da tenra idade, o rapaz apresentava uma maturidade incomum para um homem tão jovem e, quando ria, parecia uma criança – tão aparentemente inocente e livre de qualquer preconceito… tão cheio de um frescor sem igual e tão aberto para a vida. Era como se vivesse num mundo muito diferente do seu – o mundo de um razoavelmente bem sucedido executivo de meia-idade - o que era, de certa forma, a mais pura verdade.

Quando se olharam, quase acidentalmente, um nos olhos do outro, o homem sentiu-se quase desconfortável e fora de contexto, como um menino que experimentava as estranhas emoções do primeiro dia na escola. O rapaz exibia uma postura, perante à vida, que o fez sentir-se bastante mesquinho e materialista. Ele ficara encantado com aquela visão de mundo e com outras prioridades existenciais - absolutamente tão díspares das suas próprias. Sentia-se como se fosse uma desengonçada, lenta e sombria lagarta a contemplar, invejoso, aquele ser já tão completamente provido de asas… e que asas enormes ele tinha!!!  

Dizer adeus, foi mais difícil que ele poderia alguma vez sequer imaginado. Suas vidas tomavam destinos bastante separados a partir dali. Por algum estranho motivo, porém, aquele aperto de mãos, na despedida, mostrou-lhe que sua emoção havia sido seriamente afectada por aquele encontro que pareceu tão casual - no início - mas na verdade, abriu-lhe os olhos para realidades que ele não estava acostumado a vislumbrar.

Não chegou a questionar-se o que acontecia com suas emoções. Aceitou de peito aberto aquela sensação nova, que se apossava dele, com a celeridade, o carinho e o aconchego de um bem-vindo e forte abraço. Era o Universo fazendo-o contradizer as impressões que tivera apenas algumas horas atrás.

Quando saiu pela porta giratória do aeroporto, o ar fresco da manhã esfriou seu corpo e sua alma, numa cruel onda de choque, que lhe fez vir, imediatamente, lágrimas aos olhos. 

Estava de volta ao mundo real, que passava em alta velocidade pela janela do táxi e o levava de volta à sua vidinha medíocre que, de repente, pareceu-lhe extremamente fria, melancólica e até um tanto obscura. No bolso, guardado como um pequeno tesouro, um pedacinho de papel trazia, escrito numa letra miúda e singular, o que parecia uma frágil âncora com a esperança: um endereço de e-mail. 

O despojamento que invejou naquele homem – provavelmente vinte anos mais jovem que ele - detectado numa conversa breve, de apenas algumas horas, passou a assumir instintiva e gradualmente em sua vida, a partir daquele momento. 

Sentia necessidade daquela transformação – natural -, motivado por influência da exuberância e da forte presença daquela criatura, que não pareceu ter noção do profundo e extremo efeito que causara em sua vida e em seu comportamento. 

Era como se fosse um filho que houvesse ensinado, com o seu simples exemplo, uma grande lição de vida a seu pai que, mais agradecido que surpreso, decidira mudar seu próprio comportamento, tentando ser um homem melhor dali para diante. 

Não somente por educação, uma mensagem de contacto fora imediatamente respondida, para sua completa surpresa. A cortesia foi retribuída com pedaços desastrados de emoção – pequenos poemas, escritos com exclusividade. Iniciava-se ali um período de contactos bastante frequentes, apesar da grande distância física que os separava.

Quando conversavam, por e-mail, Messenger ou telefone, ele perdia a noção do tempo e abria completamente sua alma. Falavam sobre assuntos que ele não costumava discutir com qualquer outra pessoa. Percebeu também que não era o único a sentir-se tão à vontade. De sua parte, teve a certeza que seu coração havia-se transformado num lugar melhor. 

Foi a primeira vez que as palavras de carinho fizeram-lhe algum sentido. Acreditou piamente no significado e valor delas e na sinceridade do interlocutor. Absorvido pela simpatia e afeição que recebia, não pensava em futuro: só queria estar naquele momento presente, naquele estado e, com certeza quase absoluta, em outro lugar – desde que fosse mais perto do jovem que lhe abrira os olhos. No conforto de um abraço, onde nunca esteve, ele se imaginava aquecido e protegido.

Foi tomando conhecimento, aos poucos, de sua história de vida e de algumas de suas maiores angústias e desilusões. Seu espírito estilhaçou-se em milhares de pedaços, quando o rapaz lhe disse, certa vez que, no começo de sua vida, procurava alguém que amasse, depois contentou-se apenas em ser amado e, mais tarde, ficava feliz em ter alguém que não o fizesse sofrer… 

Aquela triste constatação - vinda de uma alma tão jovem - atingiu, como um tiro certeiro, seu pobre e frágil coração - distante demais para ajudá-lo ou ampará-lo… Ouvir seu desabafo era o melhor que ele podia fazer. Não era por ele que o rapaz sofria, mas era a ele que recorria. Que mais podia-se esperar da vida?
 
Separados por mais de um continente, embora desejasse, de alguma forma, protegê-lo de qualquer sofrimento, o máximo que conseguia oferecer-lhe era sua disponibilidade para ouvir seus lamentos e chorar junto com ele, ao telefone, por minutos incontáveis...

Sabe quando a gente gosta tanto de alguém, que chega a doer?

Ele rezava, todas as noites, para que o jovem fosse feliz e para que os céus lhe enviassem anjos protectores, cada vez que ele se sentisse só ou triste. Seu maior desejo passou a ser de defendê-lo de todos os perigos que pudessem aparecer. “Almost hope you’re in heaven, so no one can hurt your soul”3 (Quase desejo que estivesses no Paraíso, de modo que ninguém pudesse machucar tua alma) …
 
Mas, como já devia esperar, os contactos começaram a escassear. Não era exactamente por culpa de nenhum deles. As circunstâncias de suas vidas, tão separadas e tão distantes, bem como os pequenos – e também os grandes - problemas diários, não os favoreceram…

A distância aumentava com o passar de semanas sem as notícias - que ele procurava insistentemente - dia após dia, quando chegava em casa. O silêncio tornara-se profundo e sombrio, como os mistérios do mar. O tempo dilacerava-lhe as entranhas e turvava-lhe a memória, com seu punhal lento e perverso, a cortar-lhe a alma, sem piedade nenhuma, enquanto um veneno corria-lhe pelas veias, intoxicando-lhe o discernimento e causando-lhe delírios de insegurança.

Mesmo assim, sem forma de favorecê-lo com sua espontânea protecção, ele continuava a rezar, insistentemente, para que o outro se encontrasse… que fosse feliz… que não sofresse… Seus primeiros pensamentos do dia e também os últimos da noite eram, invariavelmente, dirigidos para ele. 

Para compensar a ausência e a distância que os separava, ele procurava aqueles olhos em outros rostos, tentando reacender a memória e resgatar pedaços perdidos dele mesmo, sabendo que estava se iludindo, para diminuir a dor da saudade que sentia. Tentava convencer-se que aquilo tudo era uma outra realidade, criada em sua mente, para manter-se vivo, enquanto finíssimos grãos de areia dourada corriam, incessantes, na grande - e rebuscadamente decorada - ampulheta da existência. 

Decidiu que tinha que dar-se espaço e tempo, para que aquela espécie de obsessão não sufocasse seu incomum relacionamento. Temia, porém, que estivesse cometendo suicídio ou compensando sua débil paixão, com uma falsa esperança. 

Para apaziguar seu coração e dirimir todas as dúvidas e incertezas, convenceu-se que precisavam se reencontrar. Não seria uma tarefa fácil. Tentou organizar-se de muitas maneiras, em várias ocasiões. Alguma coisa sempre dava errado, na última hora, para seu grande desespero. Ou o Universo - ou o rapaz - estavam lutando contra sua vontade.

Desconfiado que fosse uma combinação de ambos, quase desistiu, mas por uma feliz coincidência, foi surpreendido pelo acaso do destino, mais uma vez. Acabaram por combinar almoçarem juntos, num domingo de verão. Pegou a estrada bem cedo pela manhã, enquanto o sol ainda não castigava demais o longo caminho de asfalto. A viagem devia levar cerca de três horas. Estava ansioso… e inseguro, ao mesmo tempo. 

A educação e gentileza que o jovem lhe dirigiu foram sem precedentes e ele deixou-se ficar à vontade desde o primeiro instante em que se viram. Passaram o dia a conversar, rir, almoçaram juntos e contaram histórias, como dois grandes amigos de longa data. Com um forte abraço de despedida, o encontro acabou… assim, educadamente.

Enquanto tuas asas
De luz
Refrescavam a febre
Que eu sentia
Em minha alma,
O calor
De teus braços
Aquecia o frio
No meu coração...6

O homem mais velho ficou um pouco preocupado, ao voltar mais uma vez à sua vida. Embora tivesse sido extremamente controlado, pensou que talvez sua ansiedade acabara por decepcioná-lo. Na viagem de volta, ao final da tarde, em meio aos imensos congestionamentos de fim de praia, foi pensando no que acontecera, revivendo os momentos, os sorrisos, as palavras… vezes e vezes incontáveis…

Reflectiu, por muito tempo, sobre o que aconteceu naquele dia. Ele, que tinha tantas expectativas, viu-se um tanto perdido, tendo percebido que tudo passou-se tão serena e educadamente. Não fora, de maneira alguma, decepcionante. Fora, somente, morno demais… certinho demais…

Teria ele esperado mais que realmente merecia? Teria o outro cedido a encontrar-se, apenas por educação, para que o deixasse, finalmente, em paz – pelo menos por uns tempos? 

Ele nunca iria ter respostas para aquelas questões… e talvez não as quisesse respondidas, de qualquer forma…

O tempo confirmou que estava certo em preocupar-se. Teve que aprender a aceitar que a condição de se ter de estar longe aniquila os relacionamentos, mesmo com a proximidade que a tecnologia ‘on line’ traz hoje em dia. Ele achava que a distância diminuiria, mas estava enganado, pois nada resiste à força do tempo, associada à frieza cruel do afastamento. 

O objecto da sua autêntica afeição foi espaçando as notícias, mais que anteriormente. Talvez ele tenha, mesmo, sido apenas educado e cedido aos seus apelos de revê-lo, afinal…

Sentia que ia, aos poucos, abandonando seu pobre coração que, aconselhado pela razão, foi-se conformando com aquela ausência, aceitando a distância e o silêncio, com uma naturalidade que, em outras épocas, até seria fora do normal. 

Aqueles olhos, porém, seguiram-no por mais tempo que esperava. Eram muitas feridas que fechavam demasiadamente vagarosas, deixando profundas cicatrizes, daquelas que não se apagam jamais. Ele ainda mantinha uma palhinha de esperança, embora soubesse, desde o começo, que não acreditava em milagres. Sentia como se não quisesse - ou devesse - preencher aquela lacuna deixada em seu coração.

Procurava, entrementes, aqueles olhos e sorriso nos rostos de outras pessoas, tentando compensar uma tão sentida ausência. Tudo o fazia lembrar daquele jovem… Algumas vezes era aquela curvinha nas extremidades do sorriso largo, às vezes os olhos, extremamente azuis. Seus pequenos detalhes decoravam outras faces, outras personagens que cruzavam seu caminho. Até mesmo o rapaz que trabalhava no prédio ao lado, com seus olhos cor de safira, cabelos claros e corpo semelhante, faziam seu coração pular de alegria, quando passava pela janela, a caminho do restaurante.

Por um bom tempo ainda, suas orações foram para que o rapaz fosse feliz, mesmo que não tivesse mais quase nada com a sorte do outro. Ele queria, mas sabia que não devia, procurar mais contactos, pois acreditava que todas as pessoas têm o direito de ter sua privacidade assegurada. Têm também o direito de não se comunicarem com quem não desejem. 

Era assim que via aquela falta de contacto: sua muito pouca vontade de falar, comunicar, ver…. Uma preservação da espécie. E neste caso, ele se sentia como um verdadeiro predador. E que sensação estranha era!

Embora nunca houvesse sequer falado sobre isto, outras pessoas sempre lhe diziam que nenhum relacionamento resiste à distância, por muito tempo… nem ao silêncio. Ele não queria aceitar o óbvio: que as pessoas tinham razão, afinal de contas. Perguntava-se, porém, por que seu coração não se conformava de vez e tocava a vida adiante, sem sofrer mais que o necessário. Sabia que era o único responsável pela sua própria aflição. 

Mas era um homem maduro com espírito de menino e este, na sua simplicidade, entregava-se sem restrições às emoções a que se via enfrentar. Era difícil aceitar as perdas e ele não queria sentir-se derrotado. Pelo caminho, ia-se enganando de foco, tentando ajustar suas miras, procurando acertar o ritmo da sua vida, que não se conformava em se manter prático e gostar somente de quem gostasse dele. Pelo caminho, ia tentando não sofrer, dançando com seus fantasmas e sua dor, na tentativa de confortar sua razão, com pedaços alquebrados de emoção. 

What is love, but the strangest of feeling? A sin you swallow for the rest of your life? You´ve been looking for someone to believe in and love you until your eyes run dry…”4 (O que é o amor, senão o mais estranho dos sentimentos? Um pecado que tu engoles pelo resto da tua vida? Tens procurado por alguém em quem acreditar e que te ame até teus olhos secarem) …

Depois de vários meses de silêncio, como por encanto ou brincadeira do destino, o jovem voltou a aparecer no messenger. Parecia ser a mesma pessoa de sempre, com os mesmos problemas e a mesma conversa adorável de tempos atrás - a mesma pessoa que havia ganho seu coração e sua atenção, sem restrições. Daquela vez, todavia, sua emoção reagiu diferente da sua razão. Alguma coisa no fundo de sua lógica gritou em estado de alerta.

A dor da solidão, a decepção e o abandono amadurecem e enrijecem a alma de uma pessoa de uma maneira um tanto desumana. Sentiu que já não era mais o mesmo que havia sido… infelizmente. Seu coração passara a ansiar por uma reconciliação consigo mesmo e, para alcançá-la, precisava ficar longe de novas… e também de velhas… desilusões. Ele se preparava para que outras emoções pudessem tomar o espaço que fora deixado aberto em sua alma ainda não completamente cicatrizada... 

Há não muito tempo, estaria de cabeça baixa e procurando vestígios da presença do outro, em cada espaço e tempo, em cada olhar que cruzasse com o seu. Naquela ocasião, porém, seu peito abria-se e permitia-se querer ser independente, libertando-se - com desprendimento, mas deixando marcas de um carinho imenso, que sentira desde sempre por aquele airoso personagem - que invadiu sua vida, sem querer - e que ensinou-o a ser melhor que alguma vez já houvesse sido. 

 Never mind I’ll find someone like you… I wish nothing but the best for you too… Sometimes it lasts in love, but sometimes it hurts instead…”5 (Não tem problema, eu encontrarei alguém como tu… Eu desejo nada mais que o melhor para ti também… Algumas vezes o amor permanece e, outras, entretanto, dói) …

Ele passara a esperar que outras pessoas pudessem tomar sua atenção, de uma maneira mais leve... e tencionava poder divertir-se com aquilo. Embora anteriormente suas emoções fossem como as águas do oceano, num vai e vem infinito, à beira da praia, agora ele precisava estabilizar as marés e ser como um lago de águas mais calmas, ainda que, mesmo assim, profundas e um tanto obscuras… Seu espírito ansiava por alguma paz e, talvez, independência. 

Tinha necessidade de ser um novo homem – original e mais leve – que não revivesse sofrimentos e que lembrasse apenas das coisas boas que ficaram gravadas no seu coração, para seu bem e para a preservação da sua estimada sanidade. 

Apesar de sentir falta das palavras que nunca mais ouvira, tinha, definitivamente, que seguir adiante. Era sua vida e ele estava disposto a enfrentar o que viesse pela frente.

- Me abandonar,
Me deixar levar –
Ser um pensamento
Solto
No vento;
Ser sempre uma lembrança
Daqueles pequenos momentos,
Que nunca duram
O suficiente,
Para ser demais:
As pequenas eternidades
Do coração…6

Desejou-lhe felicidades, em alta voz, como se falasse ao vento do mar e abriu-se para o mundo.

Atravessou, então, a rua e o destino, com as mãos nos bolsos do casaco, sentindo uma brisa refrescante a desalinhar-lhe os cabelos e pensou, enquanto esboçava um sorriso um tanto triste: é tão bom estar vivo… e livre… mas desta vez, “Whatever walks in my heart will walk alone*…” 1 (O que passar pelo meu coração, passará sozinho) …



Notas:
1. *De Nightwish: “Forever Yours”
2. De “ O Mágico de Oz”;
3. De Within Temptation: “Somewhere”;
4. De Razorlight: “Wire to Wire);
5. De Adele: “Someone Like You; 
6. De. Em Anjos… (http://aquarelasdepalavras.blogspot.pt/2010/01/em-anjos.html)