sábado, 24 de outubro de 2015

Espirais (Parte 2)

- Férias?
- Sim. Férias. Nós nunca tiramos férias. Desde que…
- Mas nem sabemos o que fazer… Não sei se é uma boa ideia.
- Lembras dos nossos acampamentos? Aquilo era divertido.
- Lembro. Lembro muito bem do último acampamento e dos problemas que tivemos… muito embora isso já tenha acontecido há tanto tempo…
- Pois então. Nós estamos vivos por causa do incidente. Vamos ficar longe de problemas. Não vai acontecer nada de mal desta vez. Eu prometo. OK?
- Não prometa. Ficar na base é que significa ficar longe de problemas.
- Vamos lá. Eu já consegui autorização para sairmos por três semanas.
- Como assim? Conseguiste autorização? Quer dizer que eu fui traído, então!
O rapaz riu e deu um leve soco no braço do amigo. Sabia que ele tinha, ainda, reticências sobre aquele programa, mas estava praticamente convencido a tirar as tais férias, depois de estarem tanto tempo reclusos naquela base militar.
***
- Temos que passar num lugar, primeiro.
- Que lugar? Não era esse o plano…
- Vamos ver como está a área, depois desse tempo todo.
O rapaz de óculos calou-se. Embora não tivesse previsto aquela aparente mudança de planos, também tinha curiosidade em saber. Um súbito desconforto no estômago e peito deu sinal de apreensão, mas ele só fechou os olhos e respirou fundo.
O local, como era de esperar, ainda estava cercado e tinha muitas placas de advertência, indicando proibição ao acesso e entrada de todos. O jeep alugado cortou caminho pela lateral, onde havia uma brecha na cerca de arame farpado e entrou no vasto campo destruído pela explosão nuclear, muitos anos atrás. O coração do rapaz de óculos acelerou. O outro, ao volante, conduzia com o cenho franzido e o semblante fechado e com uma seriedade e silêncio que já lhe eram peculiares. Cerca de cinquenta quilómetros adiante e meia hora depois, chegaram ao que parecia ser o centro da área. O rapaz consultou o GPS, para confirmar se estava certo. Saltou do carro e olhou à volta. O deserto estendia-se, a perder de vista, em um círculo de provavelmente bem mais que o dobro dos cinquenta quilómetros que já haviam viajado.
- Eu tinha que ter esta certeza… Eu só precisava ter mesmo certeza absoluta… Nunca nos deixaram voltar, depois daquele dia.
O outro estava de pé ao seu lado, com os olhos fixos num ponto à esquerda, onde um dia houvera uma mata e onde ficaram soterradas muitas lembranças. Uma imensa fenda estendia-se pelo campo até abrir-se numa grande cratera. Os dois soldados aproximaram-se da borda e olharam para baixo. Terra seca e não fértil escorreu para dentro da fenda, por baixo dos pés deles, até desaparecer da vista, na escuridão.
O vento assobiou na borda do precipício aberto. Um arrepio correu-lhes pela espinha acima.
Os dois viraram-se e voltaram ao jeep, em meio à uma angústia silenciosa e com o propósito tácito de nunca mais retornar a aquele árido, vazio e infecundo deserto, onde o passado havia sido enterrado para todo o sempre. Estavam definitivamente convencidos que já não pertenciam a aquele lugar. Era o destino a colocar uma pedra no passado e a abrir novos horizontes, provavelmente cheios de novas oportunidades.
O tempo encarregar-se-ia de transformá-los, aos poucos… ou não… mas constantemente.
Aqueles dois rapazes eram, agora, soldados de elite, treinados numa base militar, que lhes servia de lar, desde que o dia em que foram resgatados pelo exército, há bastante tempo atrás.
***
Sentados no hall do aeroporto, à espera da chamada para o voo, os dois jovens homens não conversavam. Tinham as faces sérias e os olhares distantes, ambos a olharem para fora, onde aeronaves de várias companhias e localidades subiam e desciam, umas após as outras, de e para os mais variados destinos.
Gentes de todas as raças, nacionalidades e origens misturavam-se, arrastando malas de todos os tamanhos, cores e formas, pelos corredores afora e em todas as possíveis direções.
Os fortes aromas das caras fragrâncias francesas exalavam das perfumarias do ‘Duty Free’, misturando-se com tantos outros, nem todos tão nobres, pela longa avenida, repleta de viajantes e seus pequenos grandes mundos. Vozes de diversas tonalidades e em vários idiomas misturavam-se às chamadas para os voos, provenientes dos altifalantes, em múltiplos e diferentes pontos do aeroporto internacional, caracterizando uma verdadeira e moderna torre de Babel.
O monitor exibiu, finalmente, a mensagem esperada com bastante aflição. O embarque estava autorizado. Os dois levantaram-se, ajeitaram as mochilas às costas e entraram na fila, em frente ao balcão de controlo. Alguns metros atrás deles, dois olhos observaram seus movimentos, com cuidadosa atenção e com discrição exemplar, certificando-se que não os perdia de vista.
Os dois soldados passaram pela funcionária uniformizada, cruzaram a porta de vidro, desceram a rampa e desapareceram na curva do corredor móvel, que levava até a pequena porta da aeronave.
Poucos minutos depois, acomodando-se nos assentos próximos às asas e ocupados em ajeitar as mochilas nos apertados compartimentos acimas das cabeças, não perceberam quando um dos passageiros passou e tomou o assento no lado oposto, algumas fileiras atrás, assegurando-se que os dois eram mantidos sob constante e criteriosa observação.
***
- Onde é que nós estamos?
- Não sei.
- Como é que nós viemos parar neste lugar?
- Não tenho ideia. Não sei o que aconteceu…
O rapaz de óculos olhou à volta e não viu a mochila com seus pertences. Sua face manifestava uma visível preocupação. O outro compreendeu sua confusão com genuína empatia. Era evidente que estavam numa grande enrascada, mesmo sem saber a razão pela qual estavam naquela sala trancada e muito mal iluminada. As paredes eram altas e nuas, pintadas de um tom impessoal, provavelmente de bege, pouco distinto na penumbra. O teto era apenas um borrão na escuridão. A sala era totalmente desprovida de móveis, mas estava muitíssimo limpa, ainda com cheiro de detergente no ar. A porta era de madeira lisa e escura, pesada e maciça e não tinha fechadura, pelo lado de dentro. Como estava muito firmemente trancada, provavelmente tinha um fecho com cadeado ou algo similar.
O chão, feito de um bloco único de cerâmica polida, era de um pardo monocromático. Havia uma impessoalidade muito fria e marcante no aposento e que dava-lhes a impressão que servia para fins não muito dignos.
- Temos que repassar os últimos acontecimentos a limpo e com cuidado, para tentar resgatar alguma memória. Qual é a última coisa que tu lembras? Lembras de termos saído do avião? Lembras de chegarmos até a saída?
- Sim. Lembro bem. Até acenarmos para o táxi, já do lado de fora do aeroporto. Disso eu lembro claramente...
- Mas uma 'van' escura parou antes... e alguém esbarrou em mim.
- Em mim também… Depois tudo ficou confuso… Não consigo lembrar de nada direito. Acho que fomos drogados e assaltados.
- Ou sequestrados…
Os dois rapazes chegaram à aquela conclusão com alarme nos olhos e com um aperto no coração.
Um estranho silêncio instalou-se no meio dos dois, quando ouviram o som de passos a reverberar no piso do lado de fora do aposento onde estavam aprisionados. O ruído de metal roçando contra metal e batendo solto na madeira deixou-os em posição de alerta. Alguém mexia no ferrolho, abria a porta e entrava, sem ser anunciado, nem convidado...

***

sábado, 17 de outubro de 2015

Espirais (Parte 1)

Os dois jovens homens atravessaram, correndo, o grande hall, a procura de uma saída. O som de seus passos ecoava pelas paredes e pelo teto alto, em forma de abóbada com arcos góticos, que sustentavam a pesada estrutura, num desenho arquitetónico bastante rebuscado. Atrás deles, uma moça, um pouco mais nova que eles seguia, descalça e vestida com uma espécie de túnica azul celeste, amarrada na cintura com um cordão da espessura aproximada de um dedo, feito de fibra dourada e trançada à mão. 
Os rapazes viram um pórtico, também em arco, que dava para fora do edifício e seguiram por lá. A moça ainda tentou avisá-los, mas já era tarde. A tal passagem levava a um pátio murado, mas sem portões de saída, como se fosse uma varanda fechada. As paredes de pedra lisa não permitiam que subissem e não havia nada à volta que pudesse sugerir uma saída ou passagem que pudesse ser usada para chegar a qualquer lado, ou para atravessar para o outro lado do muro. A única alternativa era voltar para dentro. Eles subiram os três degraus de um pequeno lance de escadas e correram na direção de onde vieram, novamente, chegando até onde a moça os observava, sem mover-se, mas demonstrando uma certa impaciência, por eles não lhe haverem dado ouvidos. Os dois passaram e carregaram-na junto com eles, puxando-a pela mão. A moça foi junto, sem resistir. Os três seguiram pelo corredor vazio até uma grande sala, muito maior que o hall por onde vieram e muito mais impressionante.
O piso era de um mármore puro e muito alvo, praticamente sem manchas. As paredes pareciam não haver sido pintadas alguma vez, não tinham nenhuma decoração adicional, nem eram perfuradas por janelas ou quaisquer tipos de aberturas. Não haviam cadeiras ou assentos no aposento, tampouco. Dois círculos concêntricos, um vermelho e um dourado, estavam pintados no chão, à volta de onde uma árvore havia sido plantada, provavelmente há muitas dezenas de anos, no centro daquela sala. Suas muitas e longas raízes aéreas denunciavam sua idade. Seus ramos, longos e pesados, eram sustentados por muitas forquetas de metal, tão antigas, que muitas delas já faziam parte do madeiro, que as envolvia, como se quisesse que nunca deixassem de sustentá-lo. Em volta do enorme tronco, uma encorpada liana, quase sem folhas, subia em espiral, para além do limite do teto e perdia-se da visão. Eles ficaram a olhar, boquiabertos, a imensidão daquela árvore centenária, tão sóbria e respeitosamente senhora daquele lugar.
Passos pesados e ligeiros aproximavam-se pelo corredor, fazendo os três entrarem em estado de alerta, mudando o foco de sua atenção. Homens armados entraram na grande sala, aparentemente dispostos a tudo. Os rapazes apressaram-se a subir pela espiral, mas a moça, que havia ficado por último, foi logo apanhada por um dos homens. O rapaz de óculos quis voltar atrás, mas ela gritou:
- Fujam! Depressa!
Ela foi carregada para fora da sala e do campo de visão dos dois, enquanto um dos homens começava a subir atrás deles. Não foi preciso muito para decidirem para qual lado ir. Só tinham que ser mais rápidos que o seu perseguidor.
Por cima do telhado, os ramos estendiam-se para além do limiar das muralhas da grande edificação. Eles tomaram a direção do que pareceu ser a saída mais próxima, por cima do pátio murado, onde estiveram minutos antes. Este estava construído por cima de uma grande ravina rochosa. Uma névoa impedia de ver o fundo do precipício, mas dali eles podiam ouvir o som de água a correr muito abaixo de onde estavam. Vendo que aquela direção os conduziria à uma morte mais rápida, os dois resolveram voltar.
O rapaz de óculos virou-se e viu que o homem que os perseguia estava sobre o mesmo galho da árvore em que estavam e vinha aproximando-se deles. Sem saber o que fazer, ele paralisou, completamente, a meio caminho. Seu companheiro, ao ver que ele não sabia como reagir, diante daquela situação, puxou-o para trás, certificou-se que ele não caía e correu na direção do homem, que já apontava a arma contra eles. A investida contra seu corpo pegou o homem de surpresa e fê-lo perder o equilíbrio e cair por cima do telhado e rolar dali abaixo. Ainda ouviu-se um tiro, que deve ter sido a reação do homem ao tentar apegar-se a algo enquanto desabava do galho da imensa árvore.
Eles correram para o outro lado, na direção de uma densa floresta, até onde um dos galhos curvava para baixo, devido ao excesso de peso e saltaram para a mata. Tinham que sair dali a qualquer custo.
Havia uma espécie de trilha marcada, pela qual seguiram, por puro instinto. Se havia aquele caminho tão distinto, devia, certamente, levar a algum lugar para fora dali. Correram até onde a tal trilha terminava no topo do paredão da ravina. Apesar de não ver o fundo, sabiam que passava um rio por baixo. Deviam ter andado em círculos, à volta da fortificação. Uma saída era para trás, a tentar encontrar outra alternativa. A outra era para baixo… E era muito abaixo de onde estavam.
As vozes de vários homens a gritar no meio da densa vegetação e aproximando-se deles, rapidamente, fê-los entrar em pânico. Um rugido, aterrorizante e ameaçador, ouvido atrás deles, muito alto e aparentemente muito próximo de onde estavam, foi sinal suficiente para apressar-lhes a única possível decisão. A saída, naquele momento, era, definitivamente, para baixo.
Eles saltaram, antes que a fera – fosse ela qual fosse – e também os homens estivessem perto demais. O tempo pareceu-lhes bastante longo, enquanto caíam no vazio, entre o topo do paredão, a névoa do caminho e o fundo, onde esperavam haver água… muita água…
Quando a adrenalina está correndo muito rapidamente e em nível alto no corpo, a perceção de tempo e espaço, bem como as sensações, são distorcidas pelo cérebro. É como olhar pelo espelho lateral de um veículo, para certificar-se da direção, mas sem saber ao certo se as distâncias estão bem calculadas. Era necessário uma experiência maior, para certificar-se, mas não havia tempo para experimentar.
O impacto foi menor que eles imaginaram, quando chocaram-se contra a água fria do largo e profundo curso de água. As corredeiras, porém, eram mais fortes que eles esperavam e nadar era praticamente impossível. Deixaram-se ser arrastados pela correnteza, rio abaixo, na esperança de que, em algum ponto mais adiante, houvesse calmaria, para poderem sair dali, em segurança. Tentavam não afogar-se nem engolir água demais, no caminho, mantendo a atenção um no outro, para não ficarem perdidos, nem separados. Pelo menos estavam seguros, indo para longe de onde caíram e da perseguição dos homens armados.
Alguns quilômetros abaixo, quando as piores e mais violentas corredeiras já haviam ficado para trás, mas ainda deixando-se levar pela correnteza, avistaram uma região aparentemente mais virgem. Uma espécie de alívio tomou conta deles, quando perceberam que estavam vivos e a salvo, longe da ameaça na fortaleza.
A impressão foi logo desmistificada, quando viram que um grupo de homens os observava de cima de uma grande rocha, na curva do rio. Sem saber se estavam a salvo ou cada mais em perigo, deixaram-se levar, sem saudar os observantes.
Alguns homens correram pela margem, seguindo os dois, provavelmente até um ponto onde pudessem resgatá-los… ou atingi-los, de alguma forma e acabar, de vez, com a vida deles. Uma sensação esquisita de medo, apesar de haverem sido treinados pelo exército, passou pelos dois, instintivamente e ao mesmo tempo. A amizade entre eles ia além de uma comum e parcial afinidade. Havia uma sintonia maior, especialmente depois do que passaram juntos, até serem recolhidos por um soldado num jeep do exército, há muito tempo atrás.
Como daquela vez, estavam incertos se, ao serem resgatados, estariam mais a salvo ou em maior perigo.
Como a sorte gostava de brincar com os dois, a correnteza ficou mais calma. Os homens que corriam pelas margens, seguindo o trajeto deles, enquanto eram levados pelas corredeiras, no leito do rio, aproximaram-se e entraram na água, apressando-se a retirá-los de lá…

***

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Um Animal de Sorte



Eu, decididamente, não gosto de viajar de carro. Não gosto de ficar preso dentro de uma caixa de transporte, mesmo que seja por uns poucos instantes e para minha própria segurança. Sei que é necessário e, provavelmente, ainda não acharam uma forma melhor, mas eu, simplesmente, abomino aquelas experiências.

No dia em que eu fui transportado para fora da casa de onde estava, temporariamente, depois de haver sido recolhido da rua, não foi diferente. Apesar de tudo, eu não queria deixar a casa de minhas madrinhas. Não tinha a mínima ideia do que iria acontecer e não estava nada voltado para uma nova mudança. Já tinha passado por uns maus bocados e não estava com intenção de passar outros. Meus passeios anteriores não haviam sido marcantes pela positiva.

Quando levaram-me para dentro e abriram a pequena caixa de transporte, ele estava inquieto e apreensivo, apesar de nos haver recebido com um sorriso no rosto. Talvez até estivesse mais receoso que eu… não sei direito. A minha madrinha colocou a caixa sobre um tapete que havia no hall de entrada do apartamento.

Ele sentou-se no chão e eu percebi que estava bastante tenso… ou talvez fosse uma demonstração de cuidado excessivo. Quando vi-me livre, olhei à minha volta e esperei uns segundos. Ele esperou também. Não invadiu meu espaço, o que pareceu-me uma boa estratégia. Aquele sinal de respeito indicou que minha sorte estava por mudar. Antes, eu estava assustado e desconfiado, mas senti-me abrigado e seguro, perto daquele homem desconhecido, cujos olhos tinham uma tristeza tocante e pareciam carregados de dor. Naquele momento, senti o impulso de aproximar-me dele e deixá-lo saber que eu apreciei sua consideração. Dei um passo adiante e inclinei meu corpo para perto dele, que levantou a mão e tocou-me a cabeça, com muito cuidado. Eu retribuí com uma leve turra.

Lembro que ouvi a madrinha perguntar à colega: o que foi que aconteceu aqui? Ele riu e disse: não sei, mas pareceu-me um bom sinal...

Eles trocaram informações sobre meu estado de saúde e as indicações médicas. Eu estava a curar uma infeção urinária, decorrente do stress que tive, no meu primeiro lar. Ele disse que achava esquisito o nome que me deram. Eu também, mas não tinha como dizer-lhes. Mas foi graças ao tal nome esquisito que ele teve ciência da minha história e resolveu conhecer-me.

Quando elas saíram e a porta foi fechada, deixando-nos a sós, o meu novo lar temporário pareceu-me um imenso campo a ser explorado… nas minúcias. Já sabia onde ficava minha comida e água e também a caixa de areia, portanto o básico estava sob controlo. Fui-me habituando, aos poucos, tanto ao lugar, quanto ao homem que cuidava de mim, inicialmente como FAT… uma família de uma pessoa só.

Duas semanas depois ele disse que havia decidido adotar-me. Eu já desconfiava, pela maneira que havia-se apegado e como parecia contente com minha presença na sua rotina de vida. Levaram-me, ele e minha madrinha, ao veterinário, para avaliar o estado da minha saúde. Eu estava bem. Ainda assustava-me com muitas coisas e ruídos desconhecidos, mas estava a adaptar-me bem ao meu novo lar, graças à paciência dele.

Burocracias ultrapassadas e compromissos assumidos, um novo nome foi-me escolhido, por ele, para combinar com minha nova vida. O passado tinha que, definitivamente, ficar para trás, junto com meu antigo nome e a dor eu já havia sofrido. Ele passou a chamar-me Thomas. Um novo nome, um novo lar e uma nova vida. Não sei porque, mas às vezes chama-me de “tigre”, além de muitos outros estranhos e carinhosos cognomes. Não acho que sejam os nomes ou as alcunhas que me fazem o que eu sou. Aliás, meu nome oficial é bonito e caiu-me muito bem.

Dois anos já decorreram desde o dia em que entrei por aquela porta. Engraçado como o tempo passa rápido, quando está-se bem. Agora eu ando livre pela nossa casa, conheço as rotinas e os horários e sei quando ele chega, de volta do trabalho, pelo som de seus passos nas escadas e corredor. Eu corro para a porta e fico à espera do barulhinho da chave na fechadura, para dizer-lhe olá, assim que entra. Ele chama-me de “meu menino”, faz festinhas e conversa comigo, como se eu fosse uma criança, perguntando-me se estou bem, se tenho fome e se quero um carinho.

Nós não recebemos muitas visitas. O tocar da campainha da porta ainda causa-me uma certa desconfiança. A mulher da limpeza reclamou que eu era muito arisco, mas eu tinha que certificar-me que ela estava livre de qualquer suspeita, antes de deixá-la aproximar-se. No dia em que ele chegou mais cedo e que trouxe-me, ao colo, para perto dela, percebi que, afinal, a mulher não ia fazer-me mal.

Melhor assim… para o bem dela…

Gostei da reviravolta que minha vida deu. Gosto da tranquilidade que ele me proporciona e do cuidado que demonstra para comigo. Ele cuida bem de mim e faz de tudo para proteger-me. Tenho mimos, conforto, comida e água, a caixa de areia sempre limpa e, ainda, companhia e segurança. Não preciso muito mais que isso, afinal.

Ele não perde a paciência comigo, nem quando eu apronto alguma. Na verdade, ele acha engraçado que eu arranje, da minha maneira, um lugar para ficar em cima do roupeiro, derrubando as incómodas caixas que lá foram deixadas. Eu sou um bichano grande e preciso de espaço… e gosto de lugares altos e quietos…

Ele sempre diz que eu sou muito amado e eu sei o que isso significa. Basta reparar no jeito que me trata e a forma como me olha. Não tenho quaisquer dúvidas em relação ao sentido daquelas palavras, ditas com tamanha afeição. É fácil compreender as intenções explícitas por elas. É bom saber que sou amado. Dá-me uma sensação boa saber que eu faço parte da vida dele e que ele faz da minha.

Ouvi uma conversa, dia desses, quando um amigo disse a ele que eu era um gatinho de sorte. Apesar de ele ter dito que eu já sofri o suficiente na minha vida e que mereço um pouco de paz e tranquilidade, reconheço que muitos animais não têm a mesma sorte que eu. Alguns continuam a sofrer maus tratos e acabam por ter uma vida infeliz, sujeita a muitos perigos e, consequentemente, com baixas expectativas de vida longa. Eu, pelo menos, estou seguro e sou bem tratado e respeitado, o que é uma coisa que nem todos conseguem ser.

Sim. Eu sou, mesmo, um gato de sorte!

Sinto que, às vezes, a rotina dele precisa de um pouco de ação… e eu, claro, faço questão de proporcionar-lhe alguma.

Vou lá dentro, agora, fazer minha cara de santo e inocente para ele. Acabo de ouvi-lo chamar meu nome e perguntar quem foi que bagunçou o armário e derrubou as t-shirts no chão do quarto...

…Não sei porque fazer qualquer drama. Nem foi no chão… Foi no tapete!