quarta-feira, 16 de junho de 2010

Obrigado...


Obrigado por não me ouvires,

Por não me responderes,

Por não dares, a mim,

O valor que eu dou a ti,

Porque somente assim eu me torno

Mais consciente

Das minhas próprias necessidades.

Obrigado por me deixares lutar

Sozinho,

Este conflito,

Sem fim,

Porque, somente assim, sinto

Meu espírito fortalecido

E me torno um lutador

Tenaz e incansável.

Obrigado por me abandonares

À minha própria sorte,

Pois, somente assim, procuro

Encontrar meu caminho,

Mesmo quando me sinto perdido.

Obrigado por seres quem tu és,

Porque assim eu tento

Ser sempre melhor,

Mesmo que não me vejas

Como tal.

Obrigado pelas noites mal dormidas

E pelos sonhos

Que não se realizam,

Porque, somente assim, desejo

Que a vida seja mais generosa

Que meus despojados sonhos.

Obrigado pela falta de contacto,

E pelo árido vazio que deixas

Em minha alma deserta,

Pois somente assim busco inspiração

Na tua ausência

E na austeridade do teu coração.

Obrigado pela amizade

Que não me dispões,

Pois é graças à ela

Que eu crio um mundo,

Onde a poesia

É minha maior força.

Obrigado,

Porque tu és a causa

Do amor à vida

Que hoje eu tenho,

E porque sem ti,

Meu coração seria duro

E insensível

E a vida, sem beleza.

Obrigado, porque sem as lágrimas

Que orvalham minhas manhãs,

A música seria vazia

E as cores, absolutamente desbotadas.

Obrigado pela distância

Que manténs de mim,

Porque somente assim

Eu me sinto tão próximo

Da tua alma de criança,

Que não aceita o carinho

Que eu tenho guardado

Para te dar.

Obrigado por me deixares viver

Sem a tua presença,

Porque somente assim eu consigo

Amar tanto

O meu simples viver…

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Máquina

Eu dirigia, já há horas, por uma estrada poeirenta, no meio de uma grande plantação. O sol ainda estava alto no céu e me batia no rosto, naquela tarde de Outono. A visão do vento a brincar com as folhas verdes do enorme milharal, que se estendia por quilómetros, me faziam sentir saudade de tempos de outrora, mas eu não sabia exactamente o porquê.

Depois de muitos quilómetros de estrada deserta, vi uma encruzilhada. Desacelerei e parei, procurando alguma placa, que me mostrasse onde me encontrava e quão distante poderia estar de outro destino qualquer. Não havia nenhuma indicação, nenhum sinal de trânsito à vista. Em dúvida, sempre uso a mesma táctica: virar à direita. (If right is right, left must be wrong…)

Logo à frente, avistei uma pequena propriedade. Parei e saltei do carro, para tentar obter informações. Tudo estava quieto e deserto. O vento batia na porta falsa da casa de madeira, que abria e fechava contra o batente. Entrei e vi a casa vazia, com as janelas abertas. As velhas cortinas esvoaçavam, como se dançassem, embaladas pela brisa vespertina. Meu olho captou alguma coisa em um canto e eu, instintivamente, virei-me naquela direcção.

Quase invisível, na penumbra, um par de olhos me observava. Aproximei-me com cuidado e vi que era apenas um menininho de uns seis anos - não mais que isso. Os cabelos cacheados, de um castanho muito claro, caíam-lhe pela testa, quase escondendo os olhos esverdeados, que eu via brilhar na meia-luz.

- O que fazes aqui? Estás sozinho? - Eu perguntava, com cuidado, para não assustar a criança.

Estendi-lhe a mão, num esforço meio desajeitado de mostrar que não ia machucá-lo. Ele saiu do cantinho e veio na minha direcção. Olhou-me como se desacreditasse que eu estivesse ali, na frente dele.

- Estás sozinho aqui? - Eu repetia a pergunta, tentando compreender o que se passava.

Ele ainda parecia desconfiado. Mesmo assim, concordou, com um movimento de cabeça.

- Onde estão os outros?

- Não tem mais ninguém aqui. Estão todos mortos. Eles foram pegos pela “máquina de exterminar gente”.

- Como? E por que tu não tiveste a mesma “sorte”?

Ele franziu o cenho, como se começasse a perder a paciência com minhas perguntas. Mas, uma sombra passou pela sua face. Sem responder directamente, ele olhou-me, com condescendência, estendeu um franzino braço e mostrou-me uma grande cicatriz em forma de meia lua.

Eu sorri um sorriso triste e estendi a mão, mais uma vez, tentando mostrar-lhe que podia confiar em mim. Ele aceitou a oferta, colocando a sua pequena mão na palma da minha. Foi então que olhou por cima dos meus ombros, com uma expressão de assombro estampada na face. Com um puxão, desvencilhou-se da minha mão e correu para fora, ao mesmo tempo que um som metálico cortava o ar atrás de mim. Uma fracção de segundo depois, senti uma pontada de dor atravessar meu corpo.

Passei a mão, instintivamente, no peito e pareceu-me que uma ponta muito fina de uma lâmina curva saía dali. Senti um puxão no corpo e penso ter caído de costas, em câmara lenta. Meus olhos não viram mais nada, pois uma escuridão cobriu-me a visão, quase que imediatamente.

Não sei quanto tempo passou. Ainda meio atordoado e sentindo um peso no peito, abri minhas pálpebras lentamente e vi aqueles grandes e esverdeados olhos, bem perto do meu rosto. Uma dor aguda e constante perfurava meu peito.

Com as duas mãos, levantando-o delicadamente, retirei o corpo e as patas do invulgar felino, que havia estado em cima de mim, afastando, ao mesmo tempo, uma afiada unha que me penetrava a pele. Gemi, tentando me levantar, mas tive dificuldade. Eu me sentia enfraquecido.

O gato se afastou, num flash ruivo, como se fugisse de mim ou tivesse encontrado outro ponto de interesse.

Examinando o ambiente à minha volta, percebi que ainda estava dentro da casa. A luz, que entrava pela janela, era ténue e me mostrava que já era tarde. O vento movia as cortinas, delicadamente.

Ao olhar para a porta, vi o menino a me observar, inexpressivamente, com o gato ao seu lado. Estendi o braço naquela direcção, mas ele não se moveu. Julgando que o pequeno estivesse em choque, tentei retirar o telefone do bolso da calça e discar o número da emergência.

De repente o chão começou a vibrar fortemente. Entre surpreso e apavorado, deixei o aparelho cair da minha mão. O gato pulou para fora da casa. A sonolência desapareceu de imediato dos meus olhos, que esgazeados, procuraram reciprocidade no rosto do menino. Não foi espanto que eu vi naquele olhar, porém. Foi um misto de indiferença e, para minha surpresa, um ar de divertimento.

Dizem que as grandes verdades nos atingem, frontalmente, no final. Foi então que compreendi, segundos antes do golpe definitivo e fatal. O quase imperceptível sorrisinho de satisfação, na face angelical dele, revelou-me tudo, sem que precisasse dizer nada…


Na sala dos arquivos telefónicos do número da Emergência, os especialistas ouviam, com cuidado, a gravação incomum. O ruído metálico - como de uma estranha máquina - antecedia um grito abafado de dor, seguido de longos minutos de um silêncio profundamente sufocante. O técnico já ia desistindo de obter mais alguma coisa, quando ouviu, ao fundo, um outro som, mais assustador ainda: aquilo teria sido uma gargalhada de criança, seguida de um - “vem, Ginger” - e de um miado curto?

terça-feira, 20 de abril de 2010

Safiras


Trazes,

No olhar,

O brilho

Intenso

Das safiras,

Que tem o efeito

De perfurar minha alma

Com um punhal

De luz

- Afiado e frio -,

Estilhaçando minha pobre emoção

Em mil fragmentos

- Irrecuperáveis -

E levantando borboletas,

Que alçam voo

Nas minhas entranhas,

Agitando meu coração,

Como um furacão

Que passa,

A estremecer,

Sem derrubar,

Os alicerces

Da minha razão.

domingo, 28 de março de 2010

Tua culpa

A culpa é tua
Se és tão fascinante
E se invades meus sonhos,
No meio da noite,
Como, se de assalto,
Quisesses tirar
Minha alma
De mim.
A culpa é tua
Se teu olhar
Faz de mim
Um escravo
Obediente
E humilde,
Que não quer se libertar
Da candura
Do teu jugo.
A culpa é tua
Se o teu sorriso
Me comove,
A ponto de me fazer
Esquecer de mim,
Perder o controle
Sobre minhas acções
E chorar
De emoção.
A culpa é tua
Se o meu coração
Dá saltos
Quando tu me despes
Com teus olhos
De mar,
Naquele instante
Pequeno
Em que finges
Que não te importas
E eu finjo
Que não percebo.
A culpa é tua
Se ao me perder
Em teus braços,
Achei pedaços
Dispersos
De ti
E ao te encontrar
Perdi-me,
Completamente,
Em ti…

domingo, 14 de março de 2010

Um lago

...E era eu
Um lago
De águas paradas,
- Imperturbável
No passar dos dias,
Escondendo segredos
Na profundidade
Do meu leito -,
Até que tu,
Brisa da manhã,
Vieste agitar
A superfície
Espelhada
Das minhas águas,
Com tua presença
Indelével,
Desvendando meus mistérios,
Com a avidez
De quem lê
As frágeis páginas
De um diário,
Escritas com a força
E com o fogo
Das emoções...

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Esquizo-frenesi


- E o que tu pensas que é isso nas tuas mãos?

A pergunta não era somente retórica. Minhas mãos estavam pegajosas, sujas de sangue ainda fresco. Eu me sentia drenado, usado, dolorido. Há dias eu não conseguia me concentrar. Estava sem dormir direito, há algumas noites. A falta de sono já me causava delírios e eu não tinha ideia do que era real e o que era imaginário… ou alucinação.

Ele falava com a naturalidade e com a arrogância de sempre. Eu conhecia aquela ironia e não gostava nada. Estudei o ambiente em que me encontrava e não vi nada anormal, a não ser o rastro, quase invisível, que deixara ao entrar. Algumas gotas vermelhas haviam marcado uma trilha até onde eu me encontrava. Olhei-me no espelho à minha frente e quase não me reconheci. Meus olhos mostravam a loucura que nunca tive e havia profundas olheiras ao redor deles. Eu parecia velho e cansado. Logo eu, que tantas vezes havia proferido o quanto me orgulhava do facto de minha aparência esconder a minha verdadeira idade. Pensei em tomar um banho quente e me barbear. Precisava daquilo…

- Não se faça de santo. Achas que tentar me ignorar vai mudar o que fizeste? Não mesmo!

Será que ele não podia se calar, por uns instantes, somente? Minha cabeça doía. Precisava tomar algum analgésico e um estimulante. Qualquer coisa para me manter acordado por tempo suficiente. Odeio ficar na dependência destes químicos, mas não tenho saída e nem tempo…

- Tente…tente…quero ver se consegues deixar de me ouvir… Achas que podes te livrar de mim, assim tão fácil? Não lembras da outra noite?

Ele ria. E era o riso de um louco. Na outra noite, que mencionava, agora, com sarcasmo, ele havia se deitado na minha cama, perto de mim e me dito para não perturbá-lo, porque eu não ia conseguir vencê-lo. Meu corpo todo tremia, de medo e de frio, mas não tive coragem de enfrentá-lo, nem de puxar a coberta para cima de mim…

Eu só queria voltar a ser aquela criança que ainda tinha um pingo de fé e que acreditava em orações, que rezava quando tinha medo e adormecia tranquilo, livre para sonhar. Tornei-me um adulto amargo, sem fé, sem esperança e sem coragem de enfrentar meus próprios demónios. Mas não sinto saudades do meu tempo de criança. Não quero voltar a ser torturado pelos fantasmas que rondavam a casa, nem pelas vozes dentro do quarto, quando as luzes apagavam. Não gosto de acordar no meio da noite, sem saber onde estou…

Cheguei há pouco, da rua. Ele me perseguiu, por horas, pela cidade. Eu o via em cada esquina, em cada porta de bar de subúrbio que eu entrava. Quanto mais eu o evitava ou me escondia, mais inútil era o esforço. Parece que tinha um localizador posto em algum lugar do meu corpo… em algum lugar em baixo da minha pele. Quando se aproximava de mim, ele ria, saboreando os momentos em que me fazia sentir medo. E aquele riso… maléfico, escarnecedor, enlouquecido… aumentava na minha cabeça, como se ele tivesse o dial de um amplificador.

Peguei o carro e dirigi até a ponte, sobre a estrada. Parei no ponto mais alto e saí, fui até a amurada e não tive dúvida. Ele não ia me vencer. Mergulhei no vazio, mesmo sabendo que me jogava de encontro à morte. Eu via o chão se aproximar de mim e já respirava aliviado. Aquele pesadelo ia acabar ali mesmo…

…Só que não acabou. Ele mergulhou atrás de mim e me segurou pelo tornozelo direito.

- Ainda não. Tu ainda não tens o direito de morrer. A tua hora não chegou.

Ele dizia aquilo como se fosse o senhor da Morte… ou de meus dias.

Ao olhar para além das garras que me seguravam o tornozelo e me traziam de volta ao topo, foi que eu percebi que ele tinha asas. Asas de demónio. Negras. Enormes. Asas que me traziam de volta para a borda da ponte – longe da possibilidade de suicídio. Ele tinha controle completo sobre mim.

O que podia fazer um homem que tentava se suicidar e era trazido de volta à vida por um demónio? Voltei para casa, sem muitas esperanças. Eu só queria poder dormir. Quando entrei pela porta da frente, eu já não tinha mais forças. Ele estava de pé, à minha espera. E riu... Alto… Como um louco ri…

Olhei-o com desprezo. Eu já não sentia medo. Era impaciência que eu sentia. Me joguei no sofá da sala e me entreguei ao cansaço. Fechei os olhos. Já considerava que sonhar seria melhor que aquele pesadelo que eu vivia acordado. Foi então que uma ideia me veio à mente. Eu poderia ter uma saída… mas teria somente uma tentativa.

Levantei-me e fui até a cozinha. Ele não me seguiu. Peguei a maior e mais afiada faca que havia na gaveta e voltei à sala. Ele ainda estava lá, no mesmo lugar. Olhou-me como se uma faca enorme na minha mão fosse a coisa mais natural do mundo. Eu não pensei duas vezes. Com um movimento rápido, perfurei logo abaixo da linha do esterno, perto da última costela esquerda. Ele apenas riu.

Puxei a faca, com as duas mãos, joguei-a no chão da sala e vim directo para o quarto onde estou agora. Eu ainda o ouço… Ele fala e escarnece de mim.

- O que tu pensas que é isto, nas tuas mãos, afinal?

Ele repetia a frase, no meio daquela confusão toda na minha cabeça.

- Olhe para si mesmo. Tu não passas de um farrapo humano, que nem consegue se livrar de seu demónio. Olhe bem para o que fizeste…

Eu não entendi o que ele queria dizer. Olhei em volta. O rastro vermelho era tão subtil, que parecia nem existir. Minhas pernas fraquejaram. Aquela mancha, sobre o tapete do quarto, aumentava à minha volta... Passei a mão na minha camisa e percebi que estava encharcada e pegajosa. Uma pontada de dor partia de um ponto, abaixo do esterno, um pouco para o lado esquerdo, de onde o sangue escorria sem trégua.

Minha visão começou a ficar turva e a risada dele, ao perceber que eu ia me perdendo, se tornava cada vez mais distante. O que eu sentia, finalmente, era uma paz e um silêncio confortante. Uma sensação que não se parecia nada como o frenesi das noites anteriores. O quarto escureceu, devagar e, então, não o ouvi mais…

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Pandemónio (na casa de descanso) - Epílogo

- …E não poderia ter revelado isto antes? Me desculpe a impaciência, mas é-nos absolutamente necessário ter ciência das condições médicas das pessoas que entram por aquela porta e aqui vivem. Como é que isso passou, sem que tomássemos conhecimento? Isto é inadmissível. É muito grave.

A directora se sentia cansada e preocupada ao mesmo tempo.

- Ele diz que consegue perceber quando uma crise se aproxima e se prepara. É quase como entrar em depressão. Isolar-se é uma forma de defesa. Se sentir que não há necessidade de incomodar ninguém, prefere ficar à margem, até a crise passar. Afinal, a medicação deveria ajudar a retardar a evolução da doença.

A enfermeira-chefe sabia que não era bem assim. Repetia o que ele lhe havia dito, mas não concordava com o discurso. A medicação não impedia a evolução da doença. Era preciso mais que o isolamento e o remédio, para retardar o progresso. Ele necessitava de um acompanhamento mais de perto. Ela sabia que o facto de exercitar, bastante, o cérebro era um bom sinal. Ele desenhava, pintava, escrevia, lia e ainda tinha as cartas de tarot e o computador… Não se sentia nenhum inútil e não era um covarde. E até que enfrentava a condição com muita coragem e cabeça fria. Mas isso não era suficiente. Ela tinha uma influência sobre ele e tinha que se aproveitar desta. Precisava mantê-lo sob constante vigilância, tentando, entretanto, não ser invasiva à rotina dele.

A directora, por seu lado, tratou de fazer suas pesquisas acerca do historial da doença, com o médico que assinara o diagnóstico e que havia sido emitido mais de dois anos atrás. O médico – o mesmo e único homem, que um dia visitara, incógnito, o velho, na Casa de Descanso - confirmara que não havia sido consultado desde então. Se o paciente tomasse a medicação e tivesse acompanhamento adequado, a doença poderia evoluir mais vagarosamente. Era necessário fazer uma reavaliação, com toda certeza.

O velho passava boa parte do dia observando, distraidamente, o movimento no portão de entrada. Sentava-se no habitual banco de madeira, em baixo da árvore no pátio, com o gato a lhe fazer companhia. Nestes últimos dias, parecia normal, embora um pouco mais introvertido que de costume. Parecia que se preocupava em não deixar a enfermeira-chefe mais aflita que já estava. Prometera a ela que se cuidaria melhor. Ele se deixava levar, por gostar dela mais que conseguia controlar e por tentar prolongar aquela atenção por tanto tempo quanto possível. Quanto mais lúcido estivesse, mais desfrutaria da companhia dela. E ele sabia que seu tempo começava a ficar curto.

A enfermeira-chefe se perguntava como a relação com o gato não era afectada pelas crises do velho homem. Que estranha conexão havia entre eles, que nem a doença conseguia enfraquecer? Enquanto o bichano estivesse por perto, ela se sentia segura e, tinha certeza, ele também.


O velho abriu a janela, para deixar circular um pouco de ar dentro do aposento. Quando abriu a porta, não havia ninguém do lado de fora, no corredor. Ginger, o gato, se espreguiçou e se preparou para sair da cama, acompanhando o velho companheiro, que estivera se aperaltando por quase uma hora. O velho, porém, lhe diz:

- Hoje não, meu amigo. Hoje, eu vou sozinho.

O homem havia se vestido como se fosse sair para um passeio. Ele havia arrumado o quarto com esmero, deixara a caixa de areia devidamente limpa e trocara a água e a comida do gato. Com um olhar crítico, dá uma última avaliada no quarto e faz um carinho no animalzinho, que ronrona de satisfação, olha-o, sereno, como se compreendesse e se aninha sobre o travesseiro, apoiando a cabeça sobre as patas dianteiras, cruzadas. O homem sai, então, sem trancar a porta do pequeno apartamento.

O sol já ia alto no céu de Primavera, quando ele caminhou, corredor afora, na direcção da porta da varanda, que recebia uma brisa suavemente fresca, àquela hora da manhã. As pessoas estavam ocupadas, tomando o lanche da manhã e não perceberam quando ele passou pela porta de saída e atravessou, tranquilamente, o pátio. O homem cruzou o portão, cujo movimento havia observado, por semanas, virou à esquerda e saiu pela calçada afora a assobiar uma velha canção conhecida sua.

“And it was cold and it rained so I felt like an actor
And I thought of Ma and I wanted to get back there
Your face, your race, the way that you talk
I kiss you, you're beautiful, I want you to walk”…*



Poucos minutos depois, a enfermeira-chefe entra e vê, somente, o gato deitado. As orelhas do bichinho se movem, levemente, na direcção do ruído que ela faz. A mulher sorri e balança a cabeça, como se desaprovando aquela organização no quarto do velho. Ela percebeu que um único detalhe conspurcava a cuidadosa arrumação: dentro da lixeira jazia um pedacinho de papel, amarelado pelo tempo e dobrado em dois. Ela apanha-o, desdobra-o e lê a curta mensagem. Uma letra miúda e rebuscada mostra um endereço electrónico. Não é a caligrafia do velho, ela reconhece.

Ela sai, vai à saleta dos computadores e envia uma breve mensagem, por e-mail, ao endereço escrito no papel. Levanta-se, arruma a cadeira e sai. Já ia à porta, quando ouviu o computador dar alerta de mensagem chegando. Volta-se e lê: “o provedor não conseguiu encontrar o destinatário”…

- Algo não está certo. Seria somente uma lembrança, guardada com carinho? E se fosse…

A mulher conecta, então, o Messenger, digita o mesmo endereço escrito no papel e envia uma mensagem. Era um tiro no escuro, mas poderia dar resultado… Ela ouve o som de vozes se aproximando e sai da saleta, para não ter que dar explicações a ninguém.

Já no quarto, seus olhos pousam sobre um livro, cujo autor ela desconhecia e que havia sido deixado em cima de sua escrivaninha. Sobre o mesmo, havia um envelope fechado, com o nome dela, desenhado com esmero, como se fosse um exercício num caderno de caligrafia, com a letra cuidadosa do velho. Ligeiramente apreensiva, ela abre o envelope e retira uma pequena mensagem escrita, quase em código."Use a intuição e não tenha medo do desconhecido. As respostas estão lá: basta concentrar-te." Ela franze o cenho, mas compreende o que ele queria dizer.

A mulher abre uma gaveta, fechada à chave e de lá retira uma pequena caixa azul. Dentro da mesma, envolvido num pano quadrado de cetim roxo, está o deck de tarot – o presente dado pelo velho amigo. Ela vinha se esmerando no estudo da leitura das cartas, mais para agradá-lo, que para seu próprio proveito. A curiosidade queria controlar suas atitudes, mas ela tinha receio do que pudesse encontrar, quando começasse a descobrir coisas, para as quais não estivesse preparada. Era como se entrasse no oceano, mas tivesse medo de nadar. E ela não conhecia a profundidade daquelas águas.

Antes de continuar seu pequeno ritual, volta-se e tranca a porta atrás de si. Ela abre o pano em cima da escrivaninha e escolhe, no maço, uma carta para ser o “Significador”, perguntando-se se o velho seria representado pelo Ermitão – um homem solitário, sábio e prudente – ou pelo Imperador – um grande guerreiro, na hora da parada, protegendo os seus bens. Por fim, decide pelo Rei de Paus, por ser um homem mais velho e um Senhor do Ar: um grande mestre – que é como ela o via.

Em seguida, coloca a carta escolhida no centro e embaralha as outras, sete vezes, com cuidado. Parte em três, recolhe a partir do monte à direita, depois o da esquerda e, por fim, o do centro. Uma a uma, as cartas começam a deixá-la desconfortável. Por cima do significador veio a carta chamada Morte: a grande mudança. Esta era uma carta que as pessoas interpretavam muito mal. Talvez pelo nome, disse-lhe, certa vez, o velho. As pessoas têm medo da morte e temem esta lâmina, mas ela é positiva. Tem uma outra que parece menos malévola e é muito mais nefasta…

As cartas foram se sucedendo e seu coração apertando a cada interpretação. Dois de paus, na posição do futuro próximo: viagem curta; encontro com o mestre. A combinação da sequência final, porém, pareceu densa demais: o Enforcado, o Louco e a Torre: o fim de um sacrifício, a incerteza e a destruição… Ela nunca soubera interpretar direito a carta do Louco. Seria incerteza, ou um passo contra o desconhecido?

Pousou os olhos sobre a última lâmina: a Torre – a única carta realmente negativa de todo o deck – mais nefasta que a da Morte. Enquanto esta última significava apenas uma grande e radical mudança, a Torre significava a destruição... ou algo pior…

Foi então que ela entendeu… Levantou-se depressa e saiu para o corredor. Lá fora, as mulheres e também os homens estavam em polvorosa outra vez, falando todos ao mesmo tempo. As vozes, cada vez mais estridentes, pareciam aumentar à medida que ela se aproximava do centro do furacão acontecendo na sala principal, com a determinação de alguém que enfrenta uma tempestade. Do outro lado, perto da porta da saleta dos computadores, o olhar da directora, exasperado, lhe dizia tudo, sem que uma palavra proferisse.

No meio da confusão, ela soube. Duas lágrimas saltaram, sem cerimónia, de seus olhos azuis… O velho transformara a casa de descanso em pandemónio, mais uma vez…


No quarto, o gato, deitado no costumeiro lugar, fecha os olhos, tranquilo… Poucos minutos depois, dorme o sono dos justos. Instintivamente, se encolhe e vira a cabeça, deixando a parte de baixo virada para cima, como tantas vezes fazia – o que divertia o velho – quando quase pedia um carinho e uma coçada no queixo e pescoço…


A directora ouviu o som característico, conhecido, a vir do computador, na saleta. Aproximou-se e viu a mensagem a piscar na tela do computador. Com um click sobre a tela, abriu o Messenger e recebeu uma mensagem: olá, meu amado amigo… Já estava com saudades…

No canto superior, viu a foto de uma mulher, aparentando uns cinquenta e tantos anos, cujos olhos azuis ela reconheceu imediatamente. Intrigada, leu o nome que o destinatário usava. O mesmo sobrenome da enfermeira-chefe…

* Excerpt from (Five Years - David Bowie - 1972)